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3 de Julho de 2015   História da filosofia

Vida e obra de Bertrand Russell

A. J. Ayer
Tradução de Desidério Murcho

Bertrand Russell detinha um lugar único entre os filósofos deste século porque combinava o estudo de problemas especializados da filosofia não apenas com um interesse tanto pelas ciências da natureza quanto pelas ciências sociais, mas também com um compromisso com o ensino primário e também universitário, e com uma participação activa na política. Na verdade, foi sobretudo devido à sua actividade política, e como propagandista moral e social, que ganhou a fama mundial de que gozou no fim da vida; mas o seu lugar na história ficará a dever-se à sua obra filosófica, especialmente a que levou a cabo na sua juventude e início da meia-idade. Também aqui a amplitude dos seus interesses era excepcionalmente abrangente. Ele próprio, sem dúvida por boas razões, dava o maior valor aos seus trabalhos em lógica matemática; mas, como veremos, deu também contributos importantes na filosofia da lógica, num sentido mais lato, na teoria do conhecimento e na ontologia, a questão do que realmente existe. Em todos estes aspectos, a sua obra tem tido uma imensa influência nos seus contemporâneos, do início deste século até aos dias de hoje. Na verdade, com a possível excepção do seu aluno Ludwig Wittgenstein, não há filósofo do nosso tempo que tenha feito tanta diferença, não apenas na abordagem de problemas filosóficos particulares, como também no modo como a área é estudada.

Russell nasceu no dia 18 de Maio de 1872, quase exactamente um ano antes da morte do seu padrinho civil, John Stuart Mill. O seu pai, o Visconde Amberley, era o filho mais velho do primeiro Conde Russell, o famoso estadista liberal que, como Lorde John Russell, introduziu o primeiro projecto de reforma eleitoral de 1832, e foi duas vezes primeiro-ministro, de 1846 a 1852, e de 1865 a 1866. A sua mãe, que pertencia também à aristocracia parlamentarista, era filha de um político liberal menos proeminente, o segundo Lorde Stanley de Alderley. Bertrand Arthur William Russell foi o segundo filho de três. As suas vidas e personalidades foram favoravelmente descritas nos dois volumes de The Amberley Papers, que Russell organizou em colaboração com Patricia Russell, a sua terceira esposa, publicados em 1937.

A mãe e a irmã de Russell morreram de difteria em 1874, e o seu pai, que nunca recuperou da sua perda, morreu menos de dois anos depois. Nomeara dois livre-pensadores como guardiães dos seus filhos, mas os seus pais arranjaram maneira de anular esta determinação, daí resultando que Bertrand Russell e o seu irmão Frank, que era quase sete anos mais velho, fossem viver com os seus avós em Pembroke Lodge, uma casa da Rainha em Richmond Park, que esta tinha dispensado vitaliciamente ao Lorde e à Lady Russell. No primeiro e mais fascinante dos três volumes de autobiografia que Russell publicou nos anos de 1966-69, diz que a sua chegada a Pembroke Lodge aos três anos de idade é a sua recordação vívida mais antiga. O seu avô, então com oitenta e três anos, viveu apenas mais três anos, mas a sua avó, que era vinte e três anos mais nova do que o marido e que viveu até 1898, foi a influência dominante sobre Russell ao longo da sua infância e adolescência. Filha do segundo Conde de Minto, vinha de uma família de presbiterianos firmes e tinha convicções morais e religiosas muitíssimo fortes. Na política, era mais radical do que o marido, e a influência que nele exercia era mal vista pelos seus colegas, que lhe chamavam “Sombra Mortal”. O próprio Bertrand Russell acabou por rejeitar muitos dos seus princípios, mantendo todavia o seu radicalismo, mas herdou o seu fervor moral; e o texto que ela inscreveu no pórtico da Bíblia que lhe ofereceu, “Não vás atrás da multidão fazendo o mal”, foi objecto da adesão corajosa de Russell em todos os momentos da sua vida.

Como recorda na sua autobiografia, a infância de Russell foi solitária mas não foi infeliz. Ao contrário do seu irmão, não foi enviado para um colégio interno, sendo antes educado por governantes e perceptores. Na adolescência, começou a sentir-se só, e a consciência de que havia entre ele e a sua avó um abismo intelectual fê-lo sentir-se infeliz, o que foi agravado pela sua rejeição das crenças religiosas dela. O seu próprio interesse pela ciência tivera origem muito cedo num dos seus tios, mas o momento do seu grande despertar intelectual foi a descoberta da geometria de Euclides, que lhe foi apresentada aos onze anos pelo irmão. Muito rapidamente dominou os teoremas, mas não aceitava que tivesse de aceitar os axiomas com base na confiança. Só consentiu em fazê-lo quando o seu irmão lhe assegurou que não poderiam progredir de outro modo. Contudo, tratou-se de uma concessão com a qual nunca se reconciliou verdadeiramente, como a sua filosofia acabaria mais tarde por mostrar.

Depois de passar dezoito meses numa academia militar, onde ficou chocado com o filisteísmo da maior parte dos seus colegas, Russell conseguiu obter uma bolsa modesta para estudar matemática no Trinity College de Cambridge. Foi para esta cidade em Outubro de 1890, com dezoito anos, e a partir daí, como escreveu, “tudo correu bem”.1 Quem o avaliou para efeitos da obtenção de bolsa foi A. N. Whitehead, que o recomendou a várias pessoas e com quem viria a colaborar no Principia Mathematica. Rapidamente fez um círculo de amizades, que incluía o filósofo J. E. McTaggart, já então assistente em Cambridge, e que viria a incluir o filósofo G. E. Moore, tendo sido, como eles, eleito membro da exclusivista sociedade dos “Apóstolos”. Começou por estudar matemática e ficou em sétimo no exame Tripos de matemática de 1893, mas o seu interesse voltava-se já para a filosofia, tendo ficado mais um ano para estudar para a segunda parte do tripos de Ciência Moral. Tendo obtido nota máxima com distinção, dedicou-se então a trabalhar para obter uma Fellowship.

Foi por essa altura que ficou noivo. Travara conhecimento com Alys Pearsall Smith em 1889, quando mal tinha dezassete anos, e ficara instantaneamente apaixonado — ainda que tenham passado quatro anos até ela começar a levá-lo a sério. Sendo cinco anos mais velha, vinha de uma família de quacres americanos: o escritor Logan Pearsall Smith era seu irmão. A família de Russell não aprovava o noivado, em parte por razões sociais, e tentou desencorajá-lo dizendo-lhe que a loucura presente na sua família tornava arriscado ter filhos: o seu tio William era louco e a sua tia Agatha, aquando do noivado, sofrera de alucinações que obrigaram a cancelá-lo. Quando isto não o desencorajou, separaram-no de Alys arranjando maneira de ele se tornar adido diplomático honorário da embaixada britânica de Paris. Pelo que ele próprio conta, o seu trabalho consistia sobretudo em tentar persuadir o governo francês de que as lagostas não eram peixes. Tendo-se rapidamente cansado de tal diplomacia, e dispondo de fundos herdados do pai que lhe davam independência financeira, regressou à Inglaterra depois de alguns meses, determinado ainda a casar-se. O casamento teve lugar em Dezembro de 1894 e de início revelou-se muito feliz.

No ano seguinte, Russell obteve a sua Fellowship no Trinity com uma dissertação sobre os fundamentos da geometria. Nos termos da Fellowship, que manteve até 1901, não estava obrigado a dar aulas nem sequer a residir em Cambridge, e por isso foi com a esposa para Berlim para estudar política e economia. Muitos anos depois escreveu sobre uma manhã de primavera em que, caminhando no Tiergarten, concebeu o plano de escrever duas séries de livros: um “sobre a filosofia das ciências, tornando-se progressivamente mais concreto à medida que passasse da matemática à biologia”, e outro “sobre questões sociais e políticas, tornando-se progressivamente mais abstracto”.2 Ainda sob a influência do hegelianismo que aprendera de McTaggart, tinha a esperança de culminar numa síntese hegeliana, “uma obra enciclopédica abordando igualmente a teoria e a prática”.3 Os primeiros frutos deste projecto foram a publicação em 1896 de Democracia Social Alemã, o primeiro de setenta e um livros e panfletos que Russell acabaria por publicar, e o aparecimento um ano depois de Ensaio sobre os Fundamentos da Geometria, com base na sua tese de Fellowship. A isto seguiu-se em 1900 a Exposição Crítica da Filosofia de Leibniz, um livro que resultou de uma série de lições que dera em Cambridge em 1899, substituindo McTaggart. Tratava-se principalmente de uma tentativa de derivar a metafísica de Leibniz da sua lógica, e em particular do seu pressuposto errado de que todas as proposições têm a forma sujeito-predicado. Por este tempo, Russell tinha abandonado já Hegel, sobretudo em resultado da persuasão do seu amigo G. E. Moore, mas no seu livro sobre Leibniz, e ainda mais no anterior Ensaio sobre os Fundamentos da Geometria, revela uma forte influência de Kant, um filósofo por quem mais tarde acabaria por ter pouco respeito.

Os trabalhos de Russell sobre a filosofia da matemática sofreram uma reviravolta decisiva em Julho de 1900, quando foi a um congresso internacional de filosofia em Paris, travando aí conhecimento com o lógico italiano Giuseppe Peano. Este havia desenvolvido o seu próprio sistema de lógica matemática e Russell viu na sua notação “um instrumento de análise lógica que há anos procurava”.4 De facto, a notação de Peano é bastante desajeitada e o próprio Russell haveria de a melhorar muitíssimo, mas abriu-lhe os olhos para a possibilidade técnica de proceder a uma redução da matemática à lógica. Russell passou dois meses a dominar e a alargar os métodos de Peano, dedicando-se depois com tal ardor à tarefa de analisar as noções fundamentais da matemática que até ao final do ano completou o primeiro rascunho do seu livro de quinhentas páginas, Princípios da Matemática. Demorou mais de um ano a revê-lo e o livro não foi publicado até 1903. É ainda hoje um marco na história daquela área. Veremos que inclui um género de realismo platónico que Russell viria a rejeitar mas, como escreveu na introdução da segunda edição, publicada em 1937, a “tese fundamental [...] de que a matemática e a lógica são idênticas é algo que nunca vi qualquer razão para mudar”.5

Para sustentar a sua tese, Russell precisava de reformular a lógica, e para fazê-lo mobilizou a cooperação do seu antigo tutor, Whitehead. Juntos, trataram de construir o novo sistema de lógica que se materializou no Principia Mathematica, cujo primeiro volume foi publicado em 1910, o segundo em 1912 e o terceiro em 1913. Tudo começou por progredir sem sobressaltos, mas rapidamente, ainda antes da publicação de Princípios da Matemática, encontraram dificuldades que foram incapazes de resolver até Russell descobrir em 1906 a teoria dos tipos.6 Depois disso, o que ficou a faltar foi sobretudo o trabalho mecânico de escrever os teoremas. Uma vez que Whitehead estava completamente ocupado com as aulas, esta tarefa coube quase inteiramente a Russell, que conta que de 1907 a 1910 trabalhou neste projecto cerca de oito meses por ano, de dez a doze horas por dia.7 Quando o livro ficou completo, os síndicos da Cambridge University Press calcularam que a publicação resultaria num défice de seiscentas libras, podendo eles arcar apenas com metade desse montante. A Royal Society, da qual Russell e Whitehead eram membros, tendo o primeiro sido eleito em 1908, concordaram em contribuir com duzentas libras, mas os autores tinham de encontrar as restantes cem. E foi assim que a recompensa financeira que receberam da sua obra-prima, que lhes custou dez anos de trabalho, foi de -50 libras por cabeça.

Durante este período, os Russells e os Whiteheads viviam frequentemente juntos. A Sra. Whitehead era inválida, sofrendo do coração, e Russell descreve uma ocasião, no ano de 1901, em que, ao encontrá-la isolada na sua dor, teve uma revelação súbita da “solidão da alma humana”. Reflectiu que “nada pode anulá-la a não ser a máxima intensidade do género de amor de que falam os pregadores religiosos; o que resultar deste motivo é prejudicial ou, na melhor das hipóteses, inútil; segue-se que a guerra é incorrecta, que uma educação escolar pública é abominável, que o uso da força é de abandonar, e que nas relações humanas devemos penetrar até ao núcleo da solidão de cada pessoa, comunicando com esse núcleo”.8 Russell nunca foi teísta nem, como veremos, simpatizante da religião organizada, mas tinha um temperamento religioso. Em jovem tinha uma atitude quase mística perante a matemática,9 foi sempre sensível à natureza e à poesia romântica, e o seu desejo de que a existência humana deve ter sentido reflectia-se nas tensões emocionais da sua vida privada e na paixão que introduziu na política. Ao mesmo tempo, esta tensão mística era compensada por um forte sentido de ironia, e por uma inteligência céptica e analítica; e é pouco visível na sua filosofia.

Ao longo dos anos em que trabalhou no Principia Mathematica, Russell não deixou que os seus interesses políticos enfraquecessem. Era amigo dos principais membros da Sociedade Fabiana, incluindo Bernard Shaw e H. G. Wells, e em especial Beatrice e Sidney Webb, e sob a influência destes tornou-se um defensor do império e um apoiante da Guerra dos Bóer. Depois da revelação que teve em 1901, mudou de posição e tornou-se pacifista. No início do século defendeu o comércio livre, e quando esta política triunfou com a vitória liberal nas eleições gerais de 1906, juntou-se à causa do sufrágio das mulheres. Perante muita ridicularização e alguma violência, candidatou-se ao parlamento e foi eleito, numa eleição em Wimbledon, em 1907, como candidato da União Nacional das Sociedades Sufragistas Femininas. Depois de completar o Principia Mathematica pensou mais seriamente numa carreira política e procurou ser escolhido como candidato liberal por Bedford. Porém, os membros da Associação Liberal local, que inicialmente o receberam entusiasticamente, não aceitaram indicá-lo quando Russell confessou que era agnóstico e admitiu que este facto viria provavelmente a ser do conhecimento dos eleitores.

Russell acreditava, não sem justificação, que o seu agnosticismo por esta altura lhe tinha custado também uma Fellowship no Trinity.10 Por essa altura, ele procurava emprego remunerado porque usara muito do seu capital para saldar as dívidas de Whitehead. A Sra. Whitehead tinha conhecimento do facto, mas Whitehead desconhecia-o. Na verdade, Trinity veio em seu socorro, tornando-o assistente, ao invés de lhe dar uma Fellowship. A contratação teve lugar em 1910, por um período inicial de cinco anos. Tinha o mesmo salário que teria com uma Fellowship, mas não lhe dava qualquer voz activa na administração do colégio, nem lhe dava a segurança de um professor efectivo. Este facto ganharia importância alguns anos depois.

A primeira década do século foi um período não apenas de tensão intelectual para Russell, mas também de infelicidade emocional. Numa tarde do início de 1902, quando vivia com os Whiteheads em Grantchester, foi andar de bicicleta e deu-se subitamente conta de que não amava mais Alys. Não conseguiria esconder-lhe este facto e, na verdade, não o tentou; e uma vez que ela continuava a demonstrar um amor por ele a que Russell não podia corresponder, a vida do casal tornou-se difícil de suportar, apesar de nenhum dos dois procurar consolo junto de outras pessoas. Isto prolongou-se por nove anos, até Russell se apaixonar pela Lady Ottoline Morrell, a famosa anfitriã de Garsington, e a esposa de um político liberal pelo qual Russell havia feito campanha. Quando o confessou a Alys, esta ameaçou divorciar-se invocando a Lady Ottoline. Mas esta última não queria deixar o marido, nem incorrer num escândalo, e Russell impediu Alys de levar a cabo o seu plano ameaçando suicidar-se. Russell abandonou-a então e não a viu de novo até 1950, quando voltaram a encontrar-se como amigos. É claro pelas suas cartas que ela o amou a vida inteira.

Apesar de Russell se ter concentrado na lógica matemática desde que começou a trabalhar no Princípios da Matemática, não negligenciara completamente outros aspectos da filosofia. O seu Ensaios Filosóficos, que foi publicado em 1910, incluía um artigo sobre ética e algumas críticas eficazes às teorias pragmatistas e idealistas da verdade; além disso, o seu artigo “Sobre a Denotação” que, na verdade, resultou dos seus estudos lógicos, tendo sido publicado na Mind em 1905, estabelecia os fundamentos da sua famosa teoria das descrições.11 Depois de completar o Principia Mathematica, alargou ainda mais os seus estudos. O artigo em que traça pela primeira vez a importante distinção entre o conhecimento por contacto e o conhecimento por descrição12 foi publicado em 1911; a sua comunicação presidencial à Sociedade Aristotélica, no mesmo ano, dizia respeito à relação entre os particulares e os universais13 e em 1912 publicou na Home University Library um pequeno livro sobre Os Problemas da Filosofia, que é ainda, provavelmente, a melhor introdução à filosofia em língua inglesa. No ano seguinte publicou, entre outras coisas, um artigo importante “Sobre a Noção de Causa”, e na primavera de 1914 deu as Palestras Lowell em Boston, publicando-as com o título O nosso Conhecimento do Mundo Exterior como Campo de Aplicação do Método Científico em Filosofia. A posição aí defendida, como veremos, é um empirismo radical, colocando Russell na linha de sucessão que remonta a Locke, Berkeley, Hume e John Stuart Mill.

Aquando das suas palestras em Boston, Russell tornou-se professor temporário em Harvard, tendo aí T. S. Eliot sido seu aluno de pós-graduação. É Russell o herói do poema “Mr. Apollinax”, de Eliot, sendo apresentado numa festa na qual “as suas gargalhadas tilintavam entre as chávenas de chá” e “e a sua conversa seca e apaixonada devorou a tarde”. Russell ficou subsequentemente amigo íntimo de Eliot e da primeira esposa deste, mas nunca conseguiu convertê-lo à filosofia.

Por esta altura, a relação de Russell com a Lady Ottoline Morrell estava a perder intensidade, e nesta visita aos Estados Unidos voltou a apaixonar-se, desta vez por uma rapariga que o acompanhou à Inglaterra, no pressuposto de que iria viver com ele e que se casariam caso Alys lhe concedesse o divórcio. Este plano ficou frustrado porque o amor de Russell não resistiu ao choque emocional que o início da primeira guerra mundial lhe provocou. Russell não era isento de patriotismo; na verdade, afirmou na sua autobiografia que “o amor pela Inglaterra é praticamente a emoção mais forte que tenho”;14 nem era um pacifista absoluto: na segunda guerra mundial, Russell pensava que os males do nazismo justificavam a resistência armada. Acontece apenas que em 1914, e cada vez mais à medida que a guerra progredia, Russell não conseguia ver qualquer princípio que estivesse em questão, nem qualquer probabilidade de um resultado melhor, que justificasse o sofrimento e a morte. Ficou horrorizado com o entusiasmo com que a nossa entrada na guerra foi em geral aclamada e com o apoio que encontrou em muitos dos seus amigos, incluindo homens como Whitehead e Gilbert Murray. Incapaz do distanciamento do amigo do seu irmão, o filósofo Santayana, que argumentou que os jovens que estavam sendo mortos na guerra acabariam em qualquer caso por morrer, mais cedo ou mais tarde, e de nada serviriam enquanto vivessem, Russell dedicou-se a escrever contra a guerra, fazendo discursos em encontros pacifistas e desempenhando um papel activo em movimentos como a União do Controlo Democrático e a Irmandade Contra o Recrutamento. Não acreditava que estas actividades pudessem ter muito efeito, mas pensava que tinha o dever de fazer o que fosse possível.

Este dever incluía a tentativa de elaborar uma filosofia política que forneceria o enquadramento de uma ordem social melhor. Os dois livros daí resultantes foram Princípios de Reconstrução Social, publicado em 1916, e Vias para a Liberdade, que saiu dois anos depois. Ao escrever as palestras nas quais o primeiro se baseava, Russell foi aconselhado por D. H. Lawrence. Conheceu-o por meio de Lady Ottoline, maliciosamente retratada por Lawrence como Hermione Roddice no romance Mulheres Apaixonadas. A atitude de Lawrence para com Russell era uma mistura de amizade e hostilidade, sendo esta última predominante. Escreveu a Russell pedindo-lhe para ser seu herdeiro, mas na mesma carta acusava-o de ser um intelectual, incitando-o a “tornar-se uma criatura ao invés de um instrumento mecânico”,15 e sugeriu que o pacifismo de Russell era uma máscara que escondia a sua “ânsia de pontapear e atacar”. Durante um breve período Russell acreditou no diagnóstico e foi assaltado por pensamentos suicidas, mas acabou por se livrar do feitiço de Lawrence e viu como era malévola a política fascista do romancista, assim com o seu culto da desrazão.

Um amigo melhor e mais corajoso foi Clifford Allen, mais tarde Lorde Allen de Hurtwood, o secretário da Irmandade Contra o Recrutamento, que foi repetidamente levado a tribunal marcial e mantido na prisão por se recusar a obedecer a ordens militares. Foi num destes julgamentos, em 1916, que Russell conheceu Lady Constance Malleson, mulher do actor Miles Malleson, e também ela bem conhecida como actriz, sob o nome de Colette O’Niel. Rapidamente se tornaram amantes, e Russell via na sua beleza, juventude e coragem, e no amor que tinha por ele, um refúgio do “mundo do ódio”16 que o rodeava.

A sua inimizade para com esse mundo foi-lhe retribuída. Em Abril de 1916 a Irmandade Contra o Recrutamento publicou um panfleto protestando contra uma sentença de dois anos de trabalhos forçados que fora dada a um objector de consciência. Quando alguns homens foram também condenados a trabalhos forçados por distribuir o panfleto, Russell escreveu uma carta ao Times, dizendo que era ele o autor do panfleto e que se havia alguém a condenar, a responsabilidade principal era dele. Em resultado, foi levado a tribunal perante o Lorde Mayor de Londres, sob a acusação de fazer “afirmações capazes de prejudicar o recrutamento e a disciplina das forças de Sua Majestade”. Na verdade, o parágrafo do panfleto que constituía a base principal da acusação, no qual se perguntava ao leitor se estava do lado dos acusadores ou daqueles que defendiam a consciência, não foi escrito por Russell, mas ele responsabilizou-se à mesma. Considerado culpado, foi sentenciado a uma multa de cem libras com dez libras de custos, ou em alternativa a um encarceramento de sessenta dias. Russell recusou pagar a multa, mas quando as autoridades se apoderaram das suas posses os seus amigos juntaram-se e fizeram um leilão com o seu primeiro livro.

A consequência mais séria que este caso teve para Russell foi o seu afastamento da posição que detinha no Trinity. Em Fevereiro de 1915 o conselho do colégio declarara-se disposto a dar-lhe uma Fellowship assim que o seu contrato de assistente terminasse, mas quando Russell entrou com um pedido de licença durante dois períodos lectivos, para dar continuidade aos seus trabalhos políticos, o conselho decidiu renovar o seu contrato de assistente por mais cinco anos, em vez de lhe conceder a Fellowship. Quando os membros souberam da sua condenação, votaram unanimemente a favor do seu afastamento. Como corpo executivo do colégio, tinham o poder para tal, mas a atitude dos onze homens em causa, que eram na sua maior parte idosos e sem simpatia pela política de Russell, opunha-se à da maioria dos Fellows, incluindo os que prestavam serviço na guerra. Vinte e dois deles assinaram imediatamente uma carta de protesto e em 1919, um ano depois do fim da guerra, um memorando exigindo a recontratação de Russell, originalmente assinado por vinte e oito Fellows e com o apoio de outros cinco, recebeu a aceitação do conselho. Russell aceitou a contratação, mas pediu licença sabática para os anos de 1920–21, e neste segundo ano, quando estava para retomar as suas aulas, demitiu-se porque receava que as circunstâncias do seu segundo casamento pudessem provocar um escândalo no colégio e embaraçar os seus amigos.17

Entretanto, Russell continuou em conflito com a autoridade. Quando o Trinity o despediu, foi-lhe oferecido um lugar de professor em Harvard, mas o governo britânico recusou-lhe o passaporte. Dois anos depois o governo endureceu a sua posição. Em Maio de 1918 Russell escreveu um artigo para um jornal semanário, no qual, ao descrever as más consequências que resultariam da rejeição das aberturas alemãs para a paz, escreveu que “as guarnições americanas que terão então ocupado a Inglaterra e a França, quer se revelem eficazes contra os alemães quer não, serão certamente capazes de intimidar os grevistas, uma ocupação a que o exército americano está habituado no seu território”.18 Devido a esta alegada difamação de um aliado, ficou preso por seis meses. Graças à intervenção do Sr. Balfour, serviu a sentença em condições que lhe permitiram o uso irrestrito de livros e de materiais de escrita, aproveitando Russell a oportunidade para escrever a Introdução à Filosofia Matemática, livro no qual apresenta de maneira lúcida e simples as ideias principais de Principia Mathematica, e para começar a redacção de A Análise da Mente.

A decisão de regressar à filosofia foi tomada por Russell ainda antes de escrever o artigo que lhe valeu a prisão. No início de 1918 dera em Londres um curso de oito palestras, intituladas A Filosofia do Atomismo Lógico. Foram publicadas na altura na revista Monist, mas só apareceram em livro em 1956, quando foram incluídas numa colectânea de ensaios de Russell intitulada Lógica e Conhecimento. Como Russell admitiu no prefácio das palestras que escreveu para a Monist, ficaram-se a dever em grande parte a conversas que tivera com Ludwig Wittgenstein antes da guerra. Este viera para Cambridge em 1912 para aprender a filosofia da matemática de Russell, tendo muito rapidamente impressionado Russell com a sua genialidade. Quando rebentou a guerra, Wittgenstein alistou-se como oficial no exército austríaco e foi capturado pelos italianos pouco depois do armistício. Nos agradecimentos da Monist, Russell disse não saber se Wittgenstein estava vivo ou morto, mas em Fevereiro de 1919 este escreveu a Russell da sua prisão militar italiana para lhe comunicar que tinha um manuscrito que gostaria de dar a Russell para ler e que quando deixasse de ser um prisioneiro de guerra gostaria de se encontrar com ele para discuti-lo. Tratava-se do manuscrito do famoso Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein. Um obstáculo a esse encontro era que Wittgenstein, considerando incorrecto que um filósofo tivesse dinheiro, desfizera-se da sua considerável fortuna, e era demasiado orgulhoso para deixar que Russell lhe pagasse a viagem. Esta dificuldade foi resolvida comprando Russell alguma mobília que Wittgenstein deixara em Cambridge, concretizando-se o encontro em Haia no Natal de 1919. O resultado foi que Russell tratou de conseguir publicar o Tractatus e escreveu uma introdução à edição inglesa. Depois disso, estes dois homens divergiram filosoficamente. Wittgenstein incluía Russell e H. G. Wells no grupo de homens que não viam mais problemas, e Russell, apesar de manter um grande afecto por Wittgenstein, via pouco mérito no seu trabalho tardio.

Na sua visita a Haia, Russell foi acompanhado por Dora Black, que conhecera em 1916 quando ela estudava em Girton. Encontrando-a de novo em 1919, sentia-se dividido entre ela e Colette, mas o facto de Dora querer ter filhos tornava-a mais atraente aos olhos de Russell. Politicamente, contudo, não combinavam, pois tinham atitudes diferentes para com a Rússia soviética, que ambos visitaram separadamente em 1920. Dora Black ficou favoravelmente impressionada pelo que lhe foi mostrado, mas Russell, como escreveu a Lady Ottoline, apesar de pensar tratar-se “do governo certo para a Rússia do momento”, via com mais perspicácia que o regime era “uma burocracia tirânica fechada, com um sistema de espionagem mais elaborado e terrível do que o dos czares”, governando “uma nação de artistas que visava industrializar e tornar tão Yankee quanto possível”.19 As suas opiniões foram registadas num livro intitulado A Teoria e a Prática do Bolchevismo, que foi publicado no mesmo ano, e nunca moderou a sua oposição à negação soviética da liberdade.

Depois de regressar da Rússia, Russell partiu quase imediatamente para a China, para onde fora convidado a leccionar durante um ano. Levou Dora com a intenção de casar mal o processo de divórcio que convencera Alys a levantar contra si próprio chegasse ao fim. Russell ficou tão encantado com a China como desencantado ficara com a Rússia, tendo ficado particularmente cativado por Pequim, que me pareceu também, quando visitei aquela cidade em 1954, a mais bela do mundo. Quase no fim da sua visita à China, Russell ficou muito seriamente doente com bronquite e quase morreu. Alguns jornalistas japoneses, que tinham visto os seus pedidos de entrevista recusados, relataram a sua morte, o que lhe deu o prazer de ler os seus próprios obituários. Um deles, numa revista de missionários, consistia numa única frase: “É de perdoar aos missionários um suspiro de alívio ao saber da morte do Sr. Bertrand Russell”.

Depois de desapontar os missionários, Russell regressou à Inglaterra em Setembro de 1921, e casou-se com Dora Black. O primeiro filho do casal nasceu pouco depois e recebeu o nome de John Conrad, em parte devido ao romancista Joseph Conrad, por quem Russell tinha uma grande admiração e afecto, que era correspondido. Uma filha, Kate, nasceu dois anos depois. Uma vez que os senhorios recusaram tê-lo como inquilino, por razões morais e políticas, Russell comprou uma casa em Chelsea, onde se candidatou com sucesso ao parlamento pelos liberais em 1922 e de novo em 1923. Tendo os filhos em mente, comprou também uma casa em Cornualha, onde passava cerca de metade do tempo. Depois de dar quase todo o capital que lhe restava, sobretudo à Universidade de Cambridge e a um dos seus colégios de mulheres, precisava de ganhar dinheiro e ao longo da década aceitou quatro digressões pelos Estados Unidos para dar palestras. Este foi também um período de grande actividade literária da sua parte. A Análise da Mente, onde leva o seu empirismo mais longe, foi publicado em 1921. Em 1925 foi convidado a dar as Palestras Tarner no Trinity, que foram publicadas em 1927 com o título A Análise da Matéria; nelas, Russell aproxima-se do realismo físico. Um livro mais popular a que deu o título de Um Esboço de Filosofia surgiu no mesmo ano. Entretanto, publicara um livro sobre a China, um livro sobre As Perspectivas da Civilização Industrial, com a colaboração da sua esposa, dois livrinhos intitulados O ABC dos Átomos e O ABC da Relatividade, um livrinho sobre O Futuro da Ciência e outro chamado Em que Acredito, e em 1926 o livro Sobre a Educação: Especialmente na Infância, que teve sucesso financeiro. Em 1928 trouxe a lume uma colectânea intitulada Ensaios Cépticos, cuja primeira e representativa frase é a seguinte:

Desejo propor à consideração benevolente do leitor uma doutrina que poderá, receio bem, parecer brutalmente paradoxal e subversiva. A doutrina em questão é esta: é indesejável acreditar numa proposição quando não há qualquer base para supor que é verdadeira.

Foi neste espírito que no ano anterior escrevera Por que não sou Cristão. A Ensaios Cépticos seguiu-se, em 1929, O Casamento e a Moral e, em 1930, A Conquista da Felicidade. Estes livros, naquele tempo considerados chocantes, e que acabaram por prejudicar o autor devido à sua defesa de uma certa medida de liberdade sexual, contribuíram para a mudança de mentalidade que hoje nos faz considerá-los ultrapassados. Não têm a profundidade dos trabalhos mais académicos de Russell, mas estão admiravelmente escritos e o perfil moral que representam é racional e de grande humanismo. Li-os aquando da sua publicação original e posso testemunhar, com base na minha experiência juvenil, o efeito iluminante que exerceram em mim.

Acreditando fortemente na importância dos primeiros passos na educação, e incapazes de encontrar uma escola para os seus filhos que estivesse à altura das suas teorias, os Russells decidiram fundar uma escola. Para isso, Russell alugou a casa do irmão em South Downs e recrutou cerca de vinte crianças para juntar aos seus filhos. A escola era dirigida numa perspectiva progressista, mas não anárquica. Na sua Autobiografia,2 Russell admitiu que não foi inteiramente bem-sucedida, em parte porque atraiu demasiadas crianças problemáticas, e em parte porque foi incapaz de encontrar um equilíbrio adequado entre a liberdade e a autoridade. A escola continuou aberta até depois do início da segunda guerra mundial, mas o papel de Russell na sua direcção chegou ao fim em 1932, quando se separou de Dora. Os dois filhos do casal ficaram sob a supervisão de Chancery [tribunal de menores].

Por esse tempo, Russell tornara-se o terceiro Conde Russell, depois da morte do seu irmão em 1931. Com o título, herdou menos do que nenhum dinheiro, uma vez que o seu irmão tinha ficado falido, e Russell, além de pagar uma pensão a Dora, contraíra também a obrigação de pagar quatrocentas libras por ano de pensão à segunda das três mulheres do irmão. Russell ganhava mil libras por ano escrevendo artigos para os jornais de Hearst, mas isto chegou ao fim quando recusou um convite para ficar com Hearst no seu castelo da Califórnia. Dependendo financeiramente cada vez mais dos livros que escrevia, publicou A Perspectiva Científica em 1932, Liberdade e Organização de 1814 a 1914 em 1934, Elogio do Ócio em 1935 e Qual é a Via da Paz? em 1936, além de um livrinho sobre Religião e Ciência em 1935 e uma palestra sobre Determinismo e Física em 1936. Em Qual é a Via da Paz? mantinha ainda a sua posição pacifista, mas ficou cada vez mais insatisfeito com essa perspectiva à medida que a segunda guerra mundial se aproximava.

O melhor destes livros, do meu ponto de vista, é Liberdade e Organização de 1814 a 1914, onde o dom de Russell para escrever sobre história política fica mais óbvio. Na investigação que levou a cabo para o escrever teve a assistência de Patricia, mais habitualmente conhecida como Peter Spence, uma jovem que dera aulas na sua escola. Em 1936 casou com ela e o filho do casal, Conrad, nasceu no ano seguinte.

Depois de publicar um livro sobre O Poder em 1938, Russell voltou-se de novo para a filosofia. Deu uma série de palestras na London School of Economics e outra em Oxford, onde discutiu com os filósofos mais jovens, entre os quais eu me encontrava. Pareceu-me então, assim como mais tarde, que Russell tinha a grande qualidade, que Moore e Einstein também tinham, de ser capaz de falar a pessoas mais novas e menos dotadas como se elas lhe pudessem ensinar alguma coisa.

No outono de 1938, Russell foi com a família para a América, para assumir um contrato de professor visitante na Universidade de Chicago, a que se seguiu um contrato semelhante na Universidade da Califórnia. Em 1940 foi convidado pelo Conselho do Ensino Superior da cidade de Nova Iorque para assumir o cargo de professor no colégio da cidade. Contudo, assim que Russell aceitou a oferta e se despediu do seu posto na Califórnia, emergiu um alarido contra a sua contratação. Começou com um bispo episcopal, e a hierarquia católica foi a principal responsável por lhe dar continuidade. A base da objecção a Russell era o seu agnosticismo e a sua alegada defesa e prática da imoralidade sexual. Quando o Conselho do Ensino Superior não recuou, uma Sra. Kay de Brooklyn foi levada a pôr a cidade em tribunal, exigindo o anulamento do contrato de Russell devido ao mal que as suas aulas poderiam fazer à sua filha. O facto de ele ter sido convidado para ensinar lógica num colégio de artes liberais, que as mulheres não podiam então frequentar, não foi considerado relevante. O seu advogado, um Sr. Goldstein, recorreu intensamente à sua imaginação, descrevendo as obras de Russell na sua acusação como “lascivas, libidinosas, plenas de luxúria, venéreas, erotomaníacas, afrodisíacas, irreverentes, tacanhas, mentirosas e destituídas de fibra moral”.21 Com base no comentário sensato de Russell, no livro Sobre a Educação, que “se deveria permitir que uma criança, desde o início, visse os seus pais, irmãos e irmãs sem roupa sempre que isso ocorra naturalmente”22, acusou-o de dirigir uma colónia de nudistas, acrescentando, sem quaisquer indícios, que Russell cultivava a poesia obscena e aplaudia a homossexualidade. Russell não pôde responder a estas acusações em tribunal porque não lhe foi permitido integrar as partes do processo. O caso foi julgado por um juiz católico romano chamado McGeehan, que deu razão à queixosa com base sobretudo na ideia de que o ensino de Russell encorajaria os alunos a cometer crimes. O Conselho de Ensino Superior foi impedido de apelar da sentença devido a uma tecnicismo legal e, em qualquer caso, de pouco teria servido, pois no orçamento seguinte da cidade o Mayor La Guardia removeu os fundos do cargo de Russell.

Em resultado de tudo isto, Russell ficou quase completamente privado de meios de subsistência nos Estados Unidos. Apesar de muitos académicos terem falado em sua defesa, não conseguiam persuadir as suas universidades a dar-lhe emprego. A série de palestras que tinha planeado teve de ser cancelada, e nenhum jornal ou revista publicava os seus artigos. Felizmente, a Universidade de Harvard, que já o convidara para dar as palestras William James, teve a coragem e a decência de manter o convite. As palestras foram publicadas nesse mesmo ano, com o título Investigação sobre o Significado e a Verdade. Apesar de deixar alguns aspectos incompletos, este livro inclui muitas ideias interessantes e considero-o das melhores obras filosóficas de Russell.

Uma vez terminado o seu semestre em Harvard, Russell foi salvo da difícil situação em que se encontrava pelo Dr. Barnes, um milionário de Filadélfia detentor de uma colecção magnífica de quadros modernos que raramente deixava alguém ver, e que mantinha uma fundação privada, principalmente para dar instrução aos historiadores da arte. Convidou Russell para dar palestras na fundação e deu-lhe um contrato de cinco anos, que rompeu menos de dois anos depois com o argumento de que as palestras, que consistiam numa apresentação preliminar da História da Filosofia Ocidental, tinham sido insuficientemente preparadas. Nesta ocasião, Russell teve mais sorte com o juiz: levou Barnes a tribunal acusando-o de violação danosa do contrato e ganhou a causa. Entretanto, fora convidado pelo Trinity para regressar como Fellow. Demorou algum tempo até a embaixada britânica se deixar persuadir a providenciar a viagem de regresso de Russell e da sua família, apesar do seu argumento de que desejava cumprir os seus deveres na câmara dos lordes, mas um convite do professor Paul Weiss do Bryn Mawr College levantou o embargo às suas palestras, e Russell obteve um adiantamento substancial de honorários pela História da Filosofia Ocidental, que acabou por ser o seu livro de maior sucesso — o suficiente para o aliviar daí em diante de quaisquer ansiedades financeiras. No Bryn Mawr, Russell completou a biografia intelectual que escreveu para A Filosofia de Bertrand Russell, da colecção The Library of Living Philosophers. Este livro, publicado em 1944, inclui um interessante artigo sobre a lógica de Russell, da autoria de Gödel, e um comovente reconhecimento da sua obra, da autoria de Einstein, mas o nível dos contributos é, mais do que de costume, desigual — e as respostas de Russell aos críticos são bastante superficiais.

Russell assumiu a Fellowship no Trinity em Outubro de 1944 e deu aulas em Cambridge nesse ano académico e nos dois que se lhe seguiram. A sua Fellowship foi prolongada até 1949, sendo depois mudada para outra categoria vitalícia, sem quaisquer deveres. A História da Filosofia Ocidental foi publicada em 1945, seguindo-se-lhe em 1948 O Conhecimento Humano: o seu Âmbito e Limites, a última das obras filosóficas significativas de Russell. A relativa pouca atenção que os filósofos profissionais deram ao seu livro decepcionou Russell — que a atribuiu à voga contemporânea de uma forma muito restrita de filosofia linguística que ele condenava. Em grande parte, as ideias incluídas no livro tinham já sido elaboradas na Investigação sobre o Significado e a Verdade, mas tem o interesse de incluir a primeira tentativa robusta de dar conta do problema da indução.

Depois de Trinity acolher o seu regresso, as autoridades britânicas decidiram também que Russell se tornara respeitável, e que, na verdade, a sua hostilidade ao comunismo poderia ser vantajosa para elas. Em 1948 foi enviado para dar palestras em Berlim, onde o tornaram temporariamente membro das forças armadas, o que Russell achou muito divertido, e em Novembro do mesmo ano foi enviado para a Noruega numa missão análoga. Nesta ocasião, o que o salvou da morte foi o vício irrevogável de fumar (cachimbo, diga-se, e não cigarros), pois o avião que o transportava de Oslo para Trondheim caiu no porto desta cidade, matando todos os passageiros do compartimento para não-fumantes. Russell teve de nadar uns poucos de metros antes de ser salvo por um barco, mas nada sofreu nesta aventura, apesar da temperatura gélida da água. Apesar de parecer muito frágil, tinha uma constituição bastante forte e, à excepção de uma pneumonia em 1953, que quase o matou, e de outra doença grave dez anos depois, gozou de muito boa saúde até ao fim da vida. Nos seus últimos anos ficou com dificuldades auditivas e tinha também dificuldade em engolir, o que significava que tinha de viver de comidas macias, mas continuou a fumar e a beber, em especial uísque e champanhe. Vi-o pela última vez no seu nonagésimo quinto aniversário, e pareceu-me fisicamente activo e inteligentemente alerta. O boato que os seus adversários políticos fizeram circular de que tinha ficado senil não tinha qualquer fundamento.

Continuando a estar nas boas graças junto das instituições oficiais, foi-lhe atribuída a Ordem de Mérito, dando origem ao comentário do rei Jorge VI de que Russell era “um homem esquisito” e, no mesmo ano, 1949, foi eleito membro honorário da Academia Britânica, sendo convidado pela BBC para dar a primeira série das palestras Reith, que publicou com o título A Autoridade e o Indivíduo. Em 1950 viajou pela Austrália e pelos Estados Unidos, deslocando-se depois a Estocolmo para receber o prémio Nobel da literatura. O discurso que proferiu nesta ocasião foi incluído no seu livro A Sociedade Humana em Ética e Política, que saiu em 1954. Entre os livros que publicou na década de 1950 encontra-se o gracioso Retratos de Memória, consistindo quase inteiramente em perfis psicológicos de algumas das pessoas famosas que conheceu, e O meu Desenvolvimento Filosófico, uma combinação de autobiografia intelectual, respostas aos críticos e formulações das suas perspectivas da altura. Deu também à estampa dois volumes de contos, intitulados Satanás nos Subúrbios e Pesadelos de Pessoas Eminentes. São sobretudo fábulas, muito ao estilo de Voltaire.

O casamento com Patricia Spence acabou em 1949, e em 1952 casou-se com Edith Finch, uma senhora americana que ele conhecia desde há vários anos. Este casamento foi muito feliz e deu a Russell uma paz de espírito que ele não conhecera até então. Começaram por partilhar uma casa em Richmond com o filho mais velho de Russell e a sua família, mas em 1955 alugaram uma casa em Penrhyndeudraeth, no norte do País de Gales, onde, à parte viagens ocasionais, sobretudo devido a trabalhos políticos, Russell viveu os seus últimos dias.

Daí em diante, Russell ficou cada vez mais absorvido pela política. O que mais o motivava era a sua crença na probabilidade de uma terceira guerra mundial, temendo que o uso de armas atómicas destruiria grande parte da humanidade. Durante um certo período, nos finais da década de 1940, Russell defendeu que os Estados Unidos deveriam pressionar a Rússia ameaçando usar a bomba atómica, mas por volta de meados da década seguinte concluíra que a única esperança de paz era renunciar às armas atómicas, num primeiro passo em direcção ao desarmamento geral, e considerava que o governo britânico tinha o dever de dar o exemplo. Mantinha a sua opinião com tanta firmeza que dificilmente admitia a possibilidade de discordância honesta, e era demasiado rápido a acusar os seus adversários políticos de simples malvadez. As suas perspectivas estão expostas no livro Senso Comum e Guerra Nuclear, que foi publicado em 1959, e na sua continuação, Há Futuro para a Humanidade?, que foi publicado em 1961. A sua solução de longo prazo era o estabelecimento de um governo mundial, a favor do qual fez uma pressão política activa na década de 1950. Em 1955 levou vários cientistas importantes, incluindo Einstein e Juliot-Curie, a assinar um manifesto a favor da cooperação pela paz e inaugurou uma série de conferências anuais com essa finalidade. Em 1958 ascendeu à presidência da Campanha a favor do Desarmamento Nuclear, demitindo-se dois anos depois para liderar o Comité dos Cem na sua campanha de desobediência civil. Em Fevereiro de 1961 presidiu à resistência colectiva sentada que organizou em Whitehall, e depois de outra manifestação colectiva em Agosto, ele e a sua esposa foram presos e acusados de incitamento à desobediência civil. Foram sentenciados a dois meses de cadeia, mas perante provas médicas de que isto seria perigoso para a sua saúde, a sentença foi comutada para uma semana de detenção no hospital prisional.

Daí em diante as actividades de Russell ganharam maior amplitude. Mantinha correspondência com chefes de estado e fez intervenções tanto na crise cubana de 1962 como na disputa fronteiriça sino-indiana. Fez suas as causas dos judeus na Rússia, dos árabes em Israel e dos presos políticos da Alemanha de Leste e da Grécia. Rejeitando a explicação oficial do assassinato do presidente Kennedy, tornou-se presidente do comité britânico Quem Matou Kennedy? Em 1964 estabeleceu a Fundação Bertrand Russell para a Paz e, para obter fundos, vendeu mais tarde os seus arquivos à Universidade McMasters do Ontário. Por esta altura, concluíra que as acções do governo dos Estados Unidos representavam o maior perigo para a paz mundial e o seu último livro, à parte a sua autobiografia, tem por título Crimes de Guerra no Vietname. Este livro foi publicado em 1967, pouco depois de Russell ter estabelecido o Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, que tinha em Jean-Paul Sartre o seu membro mais destacado, e que acusou o presidente Johnson. Os documentos produzidos por este tribunal foram mal recebidos naquele tempo, mas os indícios que vieram posteriormente a lume vindicaram-nos em grande medida.

No livro A Sociedade Humana em Ética e Política, Russell afirmou que na esfera ética concordava com o dictum de Hume de que “A razão é e deve ser escrava das paixões”. Por vezes, talvez Russell tenha seguido este princípio demasiado literalmente, mas seja qual for a perspectiva que tenhamos sobre a sua posição política, o seu fervor moral, a preocupação persistente com a humanidade e a impressionante energia intelectual e física que o alimentava são admiráveis. Morreu no dia 2 de Fevereiro de 1970, poucos meses antes de completar noventa e oito anos.

A. J. Ayer
Russell (Fontana/Collins, Londres, 1972), pp. 11–34.

Notas

  1. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. 1, p. 56.
  2. “My Mental Development”, The Philosophy of Bertrand Russell, ed. P. A. Schillp (1944), p. 11.
  3. Ibid.
  4. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. 1, p. 144.
  5. The Principles of Mathematics, p. v.
  6. Cf. pp. 47-51.
  7. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. 1, p. 152.
  8. Ibid., p. 146.
  9. Veja-se, por exemplo, o seu ensaio “The Study of Mathematics” escrito em 1902 e reimpresso em Philosophical Essays (1910) e Mysticism and Logic (1917).
  10. Cf. Sceptical Essays, p. 150.
  11. Cf. pp. 52–62.
  12. Cf. pp. 36-40.
  13. Cf. pp. 105-11.
  14. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. II, p. 7.
  15. Citado em Russell, Portraits From Memory, p. 109.
  16. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. II, p. 26.
  17. O relato seguinte baseia-se em G. H. Hardy, Bertrand Russell and Trinity. O professor Hardy foi um dos mais activos apoiantes de Russell no Trinity.
  18. The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. II, p. 80.
  19. Ibid., Vol. II, p. 122.
  20. Ibid., Vol. II, pp. 54-5.
  21. Ibid., Vol. II, p. 219. Para um relato completo deste caso, veja-se também o apêndice de Paul Edwards à edição de 1950 de Russell, Why I am not a Christian.
  22. On Education: Especially in Early Childhood, p. 170
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