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9 de Março de 2009   Filosofia da ciência

Direção da causalidade

Matheus Martins Silva
Causalidade e Direção do Tempo: Hume e o Debate Contemporâneo
de Túlio Aguiar
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, 177 pp.

Imagine que atiro uma pedra num lago, provocando uma série de pequenas ondas concêntricas. Os filósofos dirão que esta ação envolve um processo causal: o ato de jogar a pedra é a causa e as ondas concêntricas o efeito. Também dirão que, a princípio, parece que nunca observamos o inverso desse processo, em que surgiriam primeiro as ondas e só depois a pedra cairia no lago. Isto parece sugerir que os processos causais têm a mesma direção do tempo: vão do passado para o futuro e as causas antecedem os efeitos. Mas será mesmo assim?

Neste livro, o filósofo Túlio Aguiar defende que sim, que há uma direção da causalidade, estando erradas as teorias que desconsideram essa direção. O autor também nos apresenta um mapeamento das principais teorias contemporâneas sobre a causalidade e assume a defesa de uma delas: a abordagem situacional. Vale a pena indicar brevemente o conteúdo dos quatro capítulos do livro.

No primeiro capítulo, Aguiar observa a importância da noção de causalidade ou causação para as discussões da filosofia moderna e descreve a teoria das idéias de Hume com o objetivo de explicar a sua teoria da causalidade. Uma das duas definições de causa apresentadas por Hume, C1, será o ponto de partida de toda discussão contemporânea sobre a causalidade, tendo principal influência naquilo que veio a ser chamado no século XX de tradição humiana. Essa tradição procura refinar C1 para tratar do problema das leis da natureza e suas ramificações epistemológicas. Os elementos psicológicos da explicação de Hume são substituídos por elementos de caráter lógico e pragmático, como as regularidades. Esta estratégia enfrenta problemas, pois a mera regularidade não parece adequada para explicar tanto as leis da natureza quanto a causalidade. São apresentadas brevemente algumas respostas de Quine, Goodman e Lewis para esses problemas e um resumo do que foi debatido no capítulo. Um problema que identifiquei neste primeiro capítulo é o excessivo zelo do autor ao documentar a teoria de Hume, chegando ao ponto de utilizar cinco comentadores: Stroud, Wilson, Noonan, Loeb e Pears. Aguiar poderia ter evitado esses pormenores interpretativos excessivos.

Na primeira parte do segundo capítulo, Aguiar examina a teoria da explicação científica proposta por Hempel, mais especificamente a parte de sua teoria que trata das leis determinísticas: o chamado modelo nomológico-dedutivo. A razão para examinar essa teoria é simples: é amplamente reconhecido na filosofia da ciência que os conceitos de causalidade e explicação estão ligados de algum modo. Assim, um dos meios de avaliar a plausibilidade de uma teoria que explica a causalidade em termos de regularidades é examinar a teoria da explicação também baseada em regularidades por ela gerada, como é o caso da teoria de Hempel. Para demonstrar essa herança regularista na teoria de Hempel o autor recorre às interpretações de Israel Scheffler, Philip Gasper e Richard Boyd.

Feita a apresentação da teoria de Hempel, Aguiar indica os contra-exemplos apresentados por Salmon, Scriven e Sylvain Bromberger, além de fazer uma breve discussão sobre a função dos contra-exemplos na avaliação das teorias filosóficas. Os contra-exemplos que tratam dos aspectos direcionais da causalidade negligenciados pelo modelo de Hempel, como os contra-exemplos do mastro e do pêndulo, são utilizados pelo autor para reforçar a sua tese de que a direção do tempo é um aspecto importante da causalidade. Parece razoável pensar que podemos explicar os efeitos por meio de suas causas, mas não o contrário, ou seja, parece razoável pensar que há uma direção da explicação causal. Admitindo que esta direção é real, precisamos de uma teoria que mostre sua origem na causalidade.

A segunda parte do capítulo consiste num exame da teoria de Mackie das condições INUS (do inglês insufficient but nonredundant part of an unnecessary but sufficient condition): a causa é um componente conjuntivo de uma condição suficiente mínima. Essa teoria é um refinamento da análise regularista da causalidade, típica da tradição humiana. Papineau demonstra que esta teoria é incapaz de explicar a direção da causalidade e oferece a sua solução do problema, a relação probabilística conhecida como assimetria da compartimentalização. A solução de Papineau, contudo, enfrenta problemas ao tentar reduzir as relações causais às relações probabilísticas. O capítulo termina com uma revisão do que foi debatido até aqui.

O terceiro capítulo examina quatro grupos de teorias, as chamadas teorias puras. São puras porque em cada uma delas apenas um conceito é utilizado para explicar a causalidade: as teorias da transferência (transferência de uma quantidade física), as teorias agenciais (agência), as teorias contrafactuais (dependência contrafactual) e as teorias probabilísticas (dependência probabilística). As teorias de Hume e suas herdeiras podem constituir um quinto grupo, em que a noção de regularidade explica a causalidade.

O capítulo inicia com discussões de metodologia filosófica de Dowe (abordagem Ramsey-Lewis) e em seguida apresenta cada uma das teorias puras e alguns dos seus problemas: as teorias da transferência de Aronson e Fair enfrentam as objeções de Dowe e Ehring, as teorias da agência de Price, Menzies e Gasking enfrentam as objeções de Hausman, a teoria contrafactual de David Lewis enfrenta as objeções de Horwich e Kim, a teoria probabilística reducionista de Suppes enfrenta as objeções de Cartwright, Salmon, entre outros e as teorias probabilísticas não reducionistas de Nancy Cartwright e Hans Reichenbach enfrentam as objeções de Hausman e Crasnow.

O quarto capítulo retoma as teorias discutidas no capítulo anterior e avalia a capacidade das mesmas de explicar não só a causalidade como também a direção da causalidade e a direção das explicações causais. As teorias dos quatro grupos enfrentam problemas, com destaque para a teoria da explicação causal de Horwich, que procura alargar os princípios da teoria da causalidade de Reichenbach à explicação. Esta teoria enfrenta dificuldades incontornáveis, como indicam as objeções de Sober e Barret. Em seguida, conhecemos a teoria de Van Fraassen, que defende que a direção da causalidade e das explicações causais pode ser invertida de acordo com o contexto e os fatores pragmáticos envolvidos. Aguiar apresenta inúmeros contra-exemplos a esta teoria para, em seguida, apresentar a abordagem situacional proposta por Ehring e Hausman: basicamente, esta abordagem afirma que dois eventos a e b, relacionados de forma a sugerir conexão causal, têm a sua função causal determinada por sua relação com outros eventos. Aguiar acredita que essa abordagem é superior em relação às demais tanto na compreensão da direção da causalidade quanto na compreensão da direção das explicações causais, mas reconhece os problemas que esta abordagem enfrenta. O autor termina o capítulo com uma discussão sobre a diferença entre o caráter epistemológico e o caráter ontológico da causalidade e a instabilidade que isso gera na teorização sobre a causalidade.

O livro conclui com algumas reflexões do autor sobre os avanços decisivos na discussão contemporânea sobre a causalidade: sabemos hoje que uma análise das partes que compõem uma condição suficiente e do conceito de rede causal são elementos imprescindíveis para uma compreensão adequada da causalidade, e que há uma instabilidade permanente na tentativa de fornecer uma explicação unificadora dos aspectos ontológicos e epistemológicos da causalidade.

A julgar pelo conhecimento que tenho da bibliografia em português, apenas os filósofos Sílvio Chibeni e Paulo Margutti apresentaram alguns trabalhos sobre o tema, o que faz de Aguiar um dos pioneiros da discussão sobre a causalidade no Brasil. Estamos falando de um livro extremamente informativo, inteligente e que apresenta a selva do embate de idéias da metafísica da causalidade de maneira adequada. Este não é, contudo, um livro introdutório ou dirigido a não filósofos, pois pressupõe um leitor familiarizado com discussões filosóficas, noções de lógica e argumentos sofisticados. O que era de esperar num livro dedicado ao espinhoso problema da causalidade e que contribui para o desenvolvimento da filosofia no Brasil. Causalidade e Direção do Tempo é uma leitura recomendável tanto para quem tem interesse em trabalhar nesse surpreendente campo como para os que apreciam a boa filosofia de modo geral.

Matheus Martins Silva

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