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11 de Março de 2011   Ética

Por que me oponho à clonagem humana?

Jeremy Rifkin
Tradução de Vítor João Oliveira

Até agora, o debate sobre a clonagem e as células estaminais tem sido visto por Washington e pelos meios de comunicação como uma luta clássica entre facções conservadoras, activistas pró-vida e a Igreja Católica contra a comunidade científica e as forças progressistas, com os republicanos alinhados com um dos lados e os democratas com o outro. Na realidade, muitos de nós que estão do lado da esquerda progressista também se opõem tanto à clonagem terapêutica como à clonagem reprodutiva, embora as razões difiram em relação a certos aspectos dos conservadores. Recentemente, sessenta e sete líderes progressistas deram o seu apoio à legislação que criminalizava a clonagem terapêutica e a clonagem reprodutiva. Entre os signatários da petição anti-clonagem contavam-se muitos dos intelectuais e activistas mais respeitados dos actuais círculos de esquerda.

Enquanto a oposição conservadora é bem entendida, nenhuma ou quase nenhuma atenção tem sido dada pelos meios de comunicação ou nos debates públicos ao porquê de alguns de nós de esquerda nos opormos à clonagem de embriões humanos com o fim específico de os usar para o cultivo de células estaminais para experiências médicas ou para possibilitar o nascimento de um bebé. Preocupamo-nos com a possibilidade do mercado de óvulos humanos criados por esta investigação fornecer incentivos anti-éticos para ultrapassar os tratamentos com hormonas que ameaçam a saúde e a cirurgia. Também estamos preocupados com o aumento da bio-industrialização da vida pela comunidade científica e das companhias de investigação científica e chocados e alarmados com a possibilidade de os embriões de clones humanos poderem ser patenteados e declarados “invenções” humanas. Opomo-nos aos esforços para reduzir a vida humana e as suas diversas partes e processos ao estatuto de meras instrumentos de investigação, produtos manufacturados e utilidades. Por outro lado, poucas pessoas de esquerda, se é que existem algumas, se opõem a investigação com células estaminais adultas, que podem ser retiradas de indivíduos nascidos e que provaram ser promissoras em estudos com animais e testes clínicos. Esta abordagem “suave” ao uso da nova ciência não levanta o risco ético, social e económico das estratégias para usar células estaminais embrionárias.

Além disso, inúmeras doenças, se não a maior parte, que os investigadores esperam tratar usando células estaminais embrionárias para produzir partes do corpo são o resultado de uma coreografia complexa realizada pelas nossas predisposições genéticas e por disposições ambientais. Ao concentrar a investigação científica quase exclusivamente em curas mágicas sob a forma de substituição de genes, a comunidade médica exclui opções preventivas menos invasivas — isto é, que se servem de uma compreensão de conhecimentos científicos sofisticados da relação entre os genes e o ambiente para desenvolver terapias médicas que têm sucesso nas pessoas.

Também nos preocupa o declive ardiloso. Se usar um embrião clonado com doze dias para produzir células estaminais e tecidos é moralmente aceitável, o que impedirá a defesa futura do cultivo de células mais desenvolvidas pertencentes, digamos, a embriões com oito semanas, ou o cultivo de órgãos de fetos clonados com cinco meses de idade, se isso se viesse a verificar ser uma terapia médica mais útil?

E o que dizer da questão de clonar um ser humano nascido? A maioria dos membros do Congresso, de ambos os lados da cena política, opor-se-ia ao nascimento de um clone. Mas para a maioria do Congresso, a oposição da comunidade científica e da indústria biotecnológica deve-se ao facto das técnicas de clonagem serem ainda inseguras e representarem um elevado risco de produção de um bebé deformado. Um número substancialmente inferior dos membros de ambos os lados da cena política opor-se-ia à clonagem de um bebé humano mas apenas até os procedimentos se revelaram seguros e confiáveis. Afinal, defendem os proponentes, se um casal infértil desejar transmitir a sua herança genética para produzir clones de um ou de ambos os parceiros, não poderá exercer o seu direito de escolher no emergente mercado biotecnológico? Mais ainda, dizem-nos que as nossas preocupações são exageradas porque mesmo que um clone venha a ter a mesma configuração genética que o original, o seu desenvolvimento será diferente, uma vez que o contexto social e ambiental em que a sua vida ocorreria não seria igual ao do seu dador.

O que escapa tanto aos liberais como aos libertários é o facto da clonagem de um ser humano levantar questões fundamentais que estão para lá da verdadeira natureza do que significa ser um ser humano. Desde tempos imemoriais que temos concebido o nascimento da nossa progenitura como uma bênção concedida por Deus ou por uma natureza beneficente. Celebramos a nossa descendência e empenhamo-nos em ser participantes de um acto de criação. A união de um espermatozóide com um óvulo representa um momento de audível rendição a forças que estão para lá do nosso controlo. Damos parte de nós próprios a outrem e a fusão da nossa masculinidade e feminilidade resulta numa nova criação única e finita.

A razão pela qual a maioria das pessoas sente uma repulsa instintiva à clonagem é por, no fundo, sentir que esta marca o início de uma nova viagem em que “o dom da vida” será firmemente marginalizado e eventualmente abandonado em definitivo. Em seu lugar, a nova progenitura torna-se na derradeira experiência de consumo — concebida à partida, produzida por especificação e procurada no mercado biológico.

A clonagem é, em primeiro lugar e fundamentalmente, um acto de “produção”, e não de criação. Recorrendo às novas tecnologias, um ser vivo é produzido com o mesmo grau de engenharia equivalente ao que é expectável numa linha de montagem. Quando falamos em padrões tecnológicos, o que imediatamente nos vem à cabeça são coisas como controlo de qualidade e previsão de lucros. A clonagem de seres humanos não é mais do que isso. Pela primeira vez na história da nossa espécie, podemos determinar antecipadamente a constituição genética da nossa descendência. A criança já não é uma criação única — insubstituível — mas o resultado de um acto de engenharia.

A clonagem humana escancara a porta a um comercial Maravilhoso Mundo Novo. É um facto que as companhias de investigação científica já deram o salto que as coloca para lá do jogo político que está a ser jogado no Congresso e nos meios de comunicação quando patentearam embriões e células estaminais, conferindo-lhes propriedade e controlo sob novas formas de comércio reprodutivo. Muitas pessoas de esquerda preocupam-se com a clonagem humana, investigação de células estaminais, células estaminais embrionárias, e em breve o design de bebés será a base para novas formas de biocolonialismo em que as empresas de investigação da vida se tornarão os derradeiros árbitros do próprio processo evolutivo.

Temos boas razões para nos preocuparmos. Enquanto os chefes de estado e os parlamentares se debatem com a escalada da batalha entre os defensores do direito à vida e os investigadores, algo bem mais ameaçador está a crescer gradualmente nos bastidores, com consequências potenciais devastadoras para a sociedade. Cientistas americanos e britânicos e empresas de biotecnologia estão a usar tecnologia de embriões e células estaminais para desenvolver a estrutura de uma sociedade eugénica comercial com implicações de longo prazo profundas para a espécie humana.

A “eugenia” foi um termo introduzido pelo filósofo inglês, Sir Francis Galton, no século XIX. Significa usar a produção para eliminar traços genéticos indesejáveis e acrescentar traços genéticos desejáveis para melhorar as características de um organismo ou da espécie. Quando pensamos na eugenia, pensamos no plano malévolo de Adolf Hitler para criar uma raça “superior”. Hoje, contudo, um novo movimento eugénico está a ser meticulosamente preparado pelas administrações das empresas e longe do escrutínio público: uma eugenia comercial, bastante diferente do tipo de histeria eugénica social que engoliu o mundo na primeira metade do século XX.

A nossa história começa com uma pequena empresa de biotecnologia, a Roslin Bio-Med. A empresa foi criada em Abril de 1988 pelo Instituto Roslin, uma empresa subsidiada pelo governo situada nas proximidades de Edimburgo, na Escócia, onde a ovelha Dolly foi clonada. Foi concedida uma licença exclusiva para o Instituto Roslin usar tecnologia de clonagem na investigação biomédica. Um ano depois, o Roslin Bio-Med foi vendido à Geron, uma empresa americana situada em Menlo Park, na Califórnia. Depois, em Janeiro de 2000, o Gabinete Inglês de Patentes atribuiu ao Dr. Ian Wilmut a propriedade sobre a sua tecnologia de clonagem. A patente, agora propriedade da Geron, abrange o processo de clonagem e todos os animais produzidos pelo processo de clonagem. O que o público não sabe — porque isto não tem praticamente recebido atenção — é que o Gabinete Inglês de Patentes garantiu a Wilmut e à sua empresa a patente sobre todos os embriões humanos clonados até à fase de blástula — a fase em que surgem as células estaminais polipotentes. O governo inglês tornou-se, por isso, no primeiro governo do mundo a reconhecer o embrião humano como uma forma de propriedade intelectual. O Reino Unido também foi o primeiro país a sancionar o uso de embriões, e até de embriões clonados, na cultura de células estaminais.

Apesar do sucesso britânico na criação de um regime regulamentador e comercial favorável à nova investigação, foi a empresa americana Geron que se apressou a assegurar a tecnologia da clonagem. Mesmo antes de assegurar a patente do embrião, a Geron foi financiando discretamente a investigação de células estaminais conduzida por dois investigadores americanos, o Dr. James A. Thomson da Universidade de Wisconsin e o Dr. John Gearhart da Universidade de John Hopkins em Baltimore, Maryland. Em Novembro de 1988, ambos os cientistas anunciaram ter isolado e identificado independentemente células estaminais humanas. A descoberta abriu a porta da era da experimentação com células estaminais em medicina. As instituições de investigação académicas candidataram-se imediatamente às patentes e venderam as licenças de exclusividade da sua utilização à Geron. Em conformidade com os termos do acordo da Universidade de John Hopkins, Gearhart recebe uma parte dos direitos das patentes da Geron. Gearhart e a John Hopkins ainda têm acções da Geron, e Gearhart é consultor da empresa. A Geron, antes sem concorrência no mercado, está a ser agora desafiada por uma empresa concorrente. O fundador da Geron, Michael West, saiu desta empresa e chefia agora a Advanced Cell Technology, em Massachussets. A nova empresa de West assegurou as suas próprias patentes para clonar embriões não-humanos e está a realizar experiências para encontrar formas alternativas de criar células estaminais humanas.

Ao assegurar as patentes do processo de clonagem, bem como da clonagem de embriões e células estaminais humanas, empresas como a Geron ou a Advanced Cell Technology estão em posição de ditar os termos dos avanços futuros na investigação médica em células estaminais. A produção em massa de embriões humanos clonados garante uma fonte ilimitada de tipos de células estaminais que constituem a biologia da vida humana. Investigadores, institutos e outras empresas de todo o mundo terão de pagar à Geron e à Advanced Cell Technology para aceder ao uso de embriões de células estaminais que produzem, dada a vantagem inicial da empresa no mercado. Se outros investigadores ou empresas acabarem por ser bem-sucedidos na obtenção de células diferenciadas a partir de células estaminais, terão de celebrar acordos comerciais de vários tipos com a Geron e a Advanced Cell Technology para assegurar o direito de produzir os produtos.

O que pressagia isto para o futuro? Para começar, a garantia de uma patente para embriões humanos clonados levanta uma questão política central. Podem as instituições comerciais reclamar uma vida humana individual potencial, sob a forma de propriedade intelectual no seu estágio inicial de desenvolvimento? A resposta do Gabinete Inglês de Patentes foi “sim”. No século XIX, lutamos pela questão de saber se os seres humanos nascidos podiam ser propriedade comercial e todas as nações acabaram por abolir a escravatura. Todavia, agora temos a tecnologia que permite a empresas como a Geron reclamar seres humanos potenciais como propriedade intelectual, num estádio de desenvolvimento entre a concepção e o nascimento. A questão de saber se as empresas comerciais serão autorizadas a possuir vida humana potencial em fase de desenvolvimento será seguramente uma das questões políticas seminais do século biotécnico.

Em segundo lugar, será que empresas como a Geron e a Advanced Cell Technology estarão autorizadas a ter — sob a forma de propriedade intelectual — as células primárias que são o portal de acesso à totalidade da composição biológica que constitui a vida humana? Será que arriscaremos o amanhecer de uma nova era na história da humanidade em que a criação da própria vida humana estará cada vez mais sob o controlo de forças comerciais? Será que as empresas biotecnológicas globais dominarão os designs, as partes e o processo de produção de vida humana?

As implicações comerciais da investigação de embriões e de células estaminais devem ser examinadas na sua globalidade. Fracassar neste intento encurralar-nos-á num futuro de eugenia comercial que nem antecipámos nem escolhemos livremente.

Jeremy Rifkin
Contemporary Debates in Applied Ethics, ed. Andrew I. Cohen e Christopher H. Wellman (Oxford: Blackwell, 2005), pp. 141–144
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ISSN 1749-8457