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15 de Novembro de 2010   Lógica

Excerto de um apócrifo de Platão

Ou a demonstração informal da validade de um silogismo em DARII
Artur Polónio

Sócrates — Assim, pretendes tu, meu jovem amigo, ser capaz de demonstrar-me que, dado que pretendo que todos os políticos são maçadores, estou racionalmente obrigado a aceitar que alguns poetas são maçadores. Por mim, não precisarias de esforçar-te muito. Para me persuadir de que alguns poetas são maçadores basta ler os que por aí andam, e por aí escrevem.

Aristóteles — Penso como tu, Sócrates. Mas permite-me, ainda assim, levar a cabo a minha demonstração. Se nada aprendermos de novo com ela, ao menos teremos estabelecido conclusivamente o nosso ponto de vista comum.

Sócrates — Seja como queres. Uma vez que nada de melhor temos que fazer, enquanto esperamos pelo jantar, e para não privarmos o nosso auditório de uma amostra da tua lógica (que, apesar de eu ter morrido alguns anos antes de tu teres nascido, não ignoro tratar-se de um instrumento poderoso), sugiro-te que prossigas.

Aristóteles — Muito bem. Proponho-me mostrar-te, para além de qualquer dúvida razoável, que a minha conclusão se segue das minhas premissas. Mas, para isso, vou pedir-te que as aceites provisoriamente.

Sócrates — Decerto, meu caro Aristóteles. Eu compreendo que apenas pretendes mostrar-me que o teu argumento é válido; isto é, que se as tuas premissas forem verdadeiras, a tua conclusão será, também, verdadeira. Saber se as tuas premissas são, de facto, verdadeiras, isso será outra conversa, claro.

Aristóteles — Compreendeste bem o meu propósito, Sócrates. Nem eu esperaria de ti outra coisa, de resto. Aliás, só daqui a muitos séculos é que aparecerá um tal Perelman que, alegadamente inspirado pela minha própria lógica, imagina tu, confundirá tudo, verdade e validade, e pretenderá que só há demonstração se se partir de premissas verdadeiras; caso contrário, teremos apenas argumentação. E terá muitos seguidores…

Sócrates — É, realmente, lamentável, meu bom amigo, e é espantoso o fascínio que as ideias malucas exercem sobre as mentes humanas… Por vezes, penso que a melhor maneira de evitar ser mal compreendido é não escrever coisa alguma. É por isso que eu não escrevo. Por isso e para ser evitar ser amaldiçoado pelos estudantes do ensino secundário, que não gostam de ler, e pelos nossos políticos, que pensam que o melhor é não os ensinar a fazê-lo. Mas não nos afastemos do nosso propósito, ou acabaremos, como habitualmente, por dizer coisas desagradáveis acerca dos nossos políticos.

Aristóteles — Tens razão, Sócrates. Prossigamos, pois. E começo mesmo por pedir-te que regresses, provisoriamente, à tua ideia de que todos os políticos são maçadores.

Sócrates — Isso não é difícil de fazer, meu amigo. Porém, não me parece relevante, para a validade do teu argumento, que eu acredite que todos os políticos são maçadores. Basta-nos imaginar, para já, um mundo onde é verdade que todos os políticos são maçadores — embora, devo acrescentar, esse mundo que imaginamos se pareça muitíssimo com este…

Aristóteles — Seja como pretendes, Sócrates. Suponhamos, pois, que é verdade que todos os políticos são maçadores. Claro que só daqui a alguns séculos é que Frege dará conta de que a frase “Todos os políticos são maçadores”, que sabemos exprimir uma proposição universal afirmativa, é na realidade uma condicional quantificada.

Sócrates — Isso parece interessante. Mas vais ter de explicar-me o que queres dizer ao certo. Receio não estar a compreender-te bem…

Aristóteles — Vê as coisas deste modo, Sócrates: quando dizemos que todos os políticos são maçadores, o que estamos realmente a dizer? Estamos a dizer algo como o seguinte: tome-se o que se quiser: se isso for um político, será um maçador.

Sócrates — Sim, parece-me que estou a compreender, agora. É uma maneira um tanto pedante de pôr as coisas, mas é bem visto!

Aristóteles — Claro que, para compreendermos bem as coisas, por vezes temos de praticar algum pedantismo. Mas, se estás de acordo com o que afirmo, peço-te que me permitas retomar a minha demonstração.

Sócrates — Com certeza, meu amigo!

Aristóteles — Começámos, pois, por supor que todos os políticos são maçadores. Além disso, vimos que a universal afirmativa “Todos os políticos são maçadores” exprime, na realidade uma condicional quantificada, que podemos exprimir do seguinte modo: se alguém for um político, será um maçador. Supõe agora, Sócrates, que é verdadeira a seguinte afirmação: “Alguns poetas são políticos”.

Sócrates — Isso também não me parece difícil de fazer. Dado que alguns políticos são, inegavelmente, poetas, podemos afirmar com toda a segurança, por conversão, que alguns poetas são políticos.

Aristóteles — Estás a raciocinar correctamente, Sócrates. Não esquecerei esse tipo de inferências, na minha lógica. Porém, e uma vez que aceitas que alguns poetas são políticos, repara agora noutra coisa, que Frege também descobrirá, daqui a uns dois mil e tal anos: a frase “Alguns poetas são políticos”, que é uma particular afirmativa, exprime de facto uma conjunção quantificada.

Sócrates — Como assim?

Aristóteles — Ora pensa comigo, Sócrates! Quando dizemos que alguns poetas são políticos, o que estamos de facto a dizer é que existem alguns particulares que exemplificam conjuntamente duas propriedades: ser poeta e ser político.

Sócrates — Sim, sim. Parece-me que estou a compreender. Confesso que começo a achar interessante aquilo que dizes. Deixa-me, pois, assegurar-me de que estou a acompanhar devidamente o teu raciocínio: começaste pela premissa de que todos os políticos são maçadores. Depois, mostraste que, de acordo com um tal Frege, a frase “Todos os políticos são maçadores”, que é uma universal afirmativa, exprime, de facto, uma condicional quantificada: se algo for um político, será um maçador. A seguir, acrescentaste uma segunda premissa, a premissa de que alguns poetas são políticos. E mostraste que, de acordo com o teu Frege, essa frase, que é uma particular afirmativa, exprime de facto uma conjunção quantificada: há coisas — se me permites exprimir-me assim — que são conjuntamente poetas e políticos.

Aristóteles — É isso mesmo, Sócrates. Compreendeste perfeitamente. Convido-te agora a supor que há, num mundo qualquer à tua escolha, um poeta qualquer que é, simultaneamente, um político. Conheces Manuel Alegre?

Sócrates — Parece-me bem que não, meu caro Aristóteles. Dizes tu que esse Manuel Alegre é, simultaneamente, poeta e político? Isso não é surpreendente, se pensarmos na quantidade de políticos que são, na realidade, verdadeiros poetas…

Aristóteles — Supõe, pois, Sócrates, que há algures um Manuel Alegre que é poeta e político. Sobre ele não suporemos mais coisa alguma, de resto. Não queremos trazer para a nossa demonstração um poeta político especial. Um qualquer serve, desde que tenha conjuntamente essas duas qualidades. Não queremos que a nossa demonstração dependa das qualidades particulares de Manuel Alegre, nem de outro poeta político qualquer. Claro que se algo — ou alguém, neste caso, — é um poeta e é um político, então essa pessoa é um poeta.

Sócrates — Não tenho qualquer dúvida em aceitar isso, Aristóteles. Se algo tem, conjuntamente, duas qualidades, então é óbvio que tem, separadamente, cada uma delas. Suponho que vais propor-nos, a seguir, que pensemos que se há algures, como dizes, alguém que é um poeta e um político, então há algures alguém que é — infelizmente! — um político.

Aristóteles — Acertaste uma vez mais, Sócrates! Repara que, supondo que alguns poetas são políticos, estabelecemos duas coisas: há poetas; e há — infelizmente, como dizes, — políticos. Além disso, recordo-te que tínhamos começado com a premissa de que todos os políticos são maçadores.

Sócrates — Lembras bem! Se é verdade que todos os políticos são maçadores, e se é verdade que alguém é político, essa pessoa é um maçador.

Aristóteles — Precisamente. E repara ainda que esse político, que, como demonstrámos até aqui, é um maçador — justamente porque todos o são! — é também poeta. Logo, esse poeta é um maçador.

Sócrates — Estou a ver. Da suposição de que há ao menos um poeta que é político, inferimos correctamente que há ao menos um poeta que é um maçador; e isso porque tínhamos começado por supor que todos os políticos são maçadores.

Aristóteles — Continuas a raciocinar correctamente, Sócrates. E vês que, assim, já nem temos necessidade de pensar num poeta em particular que é, também, um político. Uma vez que tínhamos suposto que alguns poetas são políticos, podemos inferir correctamente que alguns poetas são maçadores, dado que todos os políticos o são.

Sócrates — Parece-me que tens razão, Aristóteles. Permite-me que reveja a tua demonstração, para me assegurar de que raciocinámos correctamente. Começámos por supor que todos os políticos são maçadores. Depois aceitámos ainda, provisoriamente, que alguns poetas são políticos. Supusemos, além disso, que há um certo poeta que é, também, um político. Daí inferimos duas coisas: que há pelo menos um poeta, e há pelo menos um político. Ora, dissemos, se há pelo menos um político, e se todos os políticos são maçadores, então há pelo menos um maçador. Mas esse maçador é, também, poeta, como tínhamos dito. Estabelecemos, portanto, que há pelo menos um poeta que é um maçador.

Aristóteles — Ou, o que vem a dar no mesmo, que alguns poetas são maçadores, quod erat demonstrandum.

Sócrates — Que dizes? Quod erat demonstrandum? Mas isso é latim, meu bom Aristóteles! E repara que o latim ainda não foi inventado.

Aristóteles — Tens razão, Sócrates. Parece-me que me deixei entusiasmar com a beleza da demonstração, e comecei a falar numa língua que não conheço…

Sócrates — Em todo o caso, meu amigo, deixa-me dizer-te que a tua lógica é um instrumento terrível! Quando a passares para o papel, hás-de dar-lhe esse nome: “instrumento”. Não me surpreenderá, de resto, que durante muitos séculos os que a conhecem façam o possível por guardá-la nas bibliotecas dos mosteiros e entre os muros das universidades. Imagina tu que, um dia, esse magnífico instrumento fica disponível para qualquer cidadão, e toda a gente passa a raciocinar com esse rigor e essa clareza! Como isso seria fatal para a fraca retórica dos nossos políticos! Não me parece que venhas a fazer muitos amigos entre eles, meu jovem…

Artur Polónio

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ISSN 1749-8457