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4 de Fevereiro de 2009   Filosofia

Relevância, plausibilidade e informatividade

Eduardo Dayrell de Andrade Goulart
Ensaio Filosófico: O Que é, Como se Faz
A. P. Martinich
Tradução de Adail U. Sobral
São Paulo: Edições Loyola, 2002, 254 pp.

A boa escrita em filosofia é uma habilidade difícil de adquirir e, entretanto, deve ser a mais valorizada. Exige trabalho e repetição. Não é uma questão de gênio, pode ser ensinada e aperfeiçoada. Com boa escrita quero significar uma escrita clara, organizada, direta e simples; onde os argumentos sejam construídos conforme uma ordem e estrutura, e onde não haja espaço para palavrórios e obscuridades pseudofilosóficas; mecanismos que ajudam a espalhar a falsa idéia de que a filosofia é uma atividade incompreensível, e profunda só por ser difícil.

Depois da leitura de Ensaio Filosófico fica bem clara a diferença entre a atividade filosófica desses grandes figurões e a filosofia praticada e ensinada pelo trabalho de A. P. Martinich. O objetivo central do livro é desenvolver técnicas que ensinam, aperfeiçoam e facilitam a escrita de ensaios filosóficos. Um método eficaz, útil, simples e produtivo; e que acima de todas as condições faça da filosofia uma disciplina rigorosa e profissional. Além disso, não se restringindo apenas ao ensino da redação filosófica, o livro é capaz de transmitir a verdadeira idéia do que é fazer filosofia, atividade não somente de repetição e reverência a idéias, mas a de criticar e avaliar argumentos, idéias e crenças.

Esta edição brasileira é uma tradução do livro Philosophical Writing: An Introduction (2.ª edição). A tradução é boa e oferece a leitura de um texto bem articulado e coerente, um bom trabalho para o mercado editorial brasileiro onde são raras e muito mal divulgadas as traduções de bons livros de filosofia. Felizmente, está disponível para os estudantes brasileiros um excelente manual de escrita de ensaios filosóficos.

O livro tem oito capítulos. No Capítulo 1 é apresentada a relação entre público e autor do ensaio, mais especificamente a relação entre professor/público e aluno/autor que é a situação vigente nas salas de aula. Nesse capítulo são explicitadas todas as características dessa relação: o que o aluno deve entender como um ensaio para o professor, conhecer o que o professor irá avaliar no ensaio do aluno, o que o aluno deve escrever e pressupor para o professor na situação da avaliação e como o aluno deve se comportar na produção do ensaio afim de que o professor entenda seus pontos de discussão.

O capítulo dois consiste na explicação de conceitos fundamentais, de lógica formal e informal, que devem ser usados na produção do ensaio filosófico. Uma vez que um ensaio consiste na defesa de proposições com argumentos; e que os argumentos são um dos objetos de estudo da lógica, fica claro porque esses conceitos lógicos são importantes na construção do texto, pois facilitam a organização do ensaio oferecendo uma clareza impossível de ser adquirida de outra maneira. A meta principal de um bom ensaio filosófico é ser capaz de desenvolver um bom argumento. Mas o que é um bom argumento? Um bom argumento é um argumento sólido que é reconhecido como tal em virtude da apresentação de sua forma lógica e de seu conteúdo. Nessa definição existem termos técnicos tanto de lógica formal como de lógica informal. É preciso o trabalho conjunto dessas duas disciplinas para elucidar os elementos da definição de um bom argumento. A começar com a definição de argumento sólido, que é um argumento válido somente com premissas verdadeiras, percebemos ainda um outro termo técnico que também necessita ser definido, o termo “validade”, para a análise do bom argumento. A validade é a característica dos argumentos que garante a transmissão da verdade das proposições para a conclusão. Portanto, um argumento é válido se, e somente se, for necessário que se, as premissas são verdadeiras, a conclusão seja verdadeira. Entretanto, a solidez sozinha ainda é insuficiente para explicar o que seja um bom argumento. Muitos argumentos são sólidos, mas ruins, ou seja, não são argumentos convincentes. Por exemplo, o argumento “Todo homem é mortal; portanto, todo homem é mortal” é sólido, mas dificilmente será reconhecido por um público como um bom argumento. Portanto, o bom argumento deve ser sólido e também ser reconhecido como tal em virtude de sua forma lógica e de seu conteúdo. A forma lógica é o objeto de estudo da lógica formal, é a análise da validade do argumento. O conteúdo é a informatividade e verdade das premissas, é a análise dos indícios para a verdade das premissas. Assim, o reconhecimento do bom argumento ultrapassa as capacidades da lógica formal e requer, além da validade e solidez, três características: a relevância, plausibilidade e informatividade das premissas para a conclusão. Um bom argumento é aquele argumento que contém premissas relevantes para a conclusão. Por isso o argumento acima não é bom, a premissa não é relevante para a conclusão. No bom argumento, as premissas também devem ser mais plausíveis do que a conclusão, elas devem representar fatos mais conhecidos e certos do que os da conclusão. O bom argumento deve apresentar premissas informativas, no sentido de que os fatos que essa premissa apresenta não são triviais. Portanto, o bom ensaio filosófico é aquele que introduz o argumento, o desenvolve e depois o resume. O ensaio deve mostrar de maneira racional como a partir das premissas inferir uma conclusão. No desenvolvimento do argumento no ensaio o autor deve apresentar todas as provas e fatos para a verdade das premissas, explicar a relevância das premissas para a conclusão, explicar por que as premissas são mais plausíveis do que a conclusão, explicar e explicitar a regras de inferência que justificam a validade do argumento e o autor deve, depois de todo esse trabalho, demonstrar para seu público que seu argumento é sólido e fazer com que o público o reconheça como tal exatamente pela apresentação da sua forma lógica e pelos indícios de que as premissas são verdadeiras, informativas e mais plausíveis. O autor deve adequar o argumento e suas informações ao sistema de crenças do seu público, deve explicitar minuciosamente e rigorosamente todas as características do argumento, as de caráter formal e informal. O bom argumento do ensaio impele o público a aceitar sua conclusão em virtude do reconhecimento da validade do argumento e da verdade das suas premissas.

Nos Capítulos 3 e 4, Martinich fornece orientações para a estrutura ideal do ensaio, prescreve regras para a produção de esboços e dos respectivos ensaios e exemplifica suas idéias com esboços que ele mesmo construiu. Os exemplos são pedaços de ensaios mal construídos que são aperfeiçoados conforme a apresentação das regras e orientações. O caráter didático dessa apresentação é impressionante. Nesses capítulos é apresentada a estrutura de um ensaio filosófico em sua forma mais simples:

  1. Apresentar a proposição a ser provada;
  2. Apresentar o argumento em favor da proposição;
  3. Demonstrar que o argumento é válido;
  4. Demonstrar que as premissas são verdadeiras;
  5. Retomar de modo conclusivo o que foi provado.

A exposição da estrutura do ensaio é caracterizada de forma tão pormenorizada que ela inclui elementos que vão desde a maneira de como escolher o tema do ensaio a até dicas de aperfeiçoamento do texto final.

O Capítulo 5 é sobre as táticas disponíveis para a produção de textos analíticos. As táticas discutidas são: dilemas, argumentos com reductio ad absurdum, contra-exemplos, raciocínio dialético, análise, distinção e definição. Os dilemas são situações que introduzem problemas e explicitam aspectos contraditórios de crenças amplamente sustentadas. A reductio ad absurdum é um dos métodos de resolução dos problemas acusados pelos dilemas. Consiste em um argumento no qual se nega a proposição ou tese a ser provada e demonstra-se que a negação é falsa ou absurda. Se a negação da tese é falsa, então a tese é verdadeira. O contra-exemplo é a forma de refutar uma proposição ou argumento sem se comprometer com qualquer outra tese ou solução de um problema; é apenas uma tática crítica, como são os famosos contra-exemplos de Edmund Gettier para refutar a tese do conhecimento como crença verdadeira justificada. O raciocínio dialético é uma forma de pensar que pode ser adaptada para a produção do ensaio. O raciocínio consiste na apresentação de uma tese simples e não qualificada, submetê-la a críticas, explicar as críticas, rever a tese e reformulá-la numa versão mais sofisticada, complexa e adequada. A análise é a tática de decomposição de um conceito complexo em elementos mais simples, assim como a análise química é a decomposição de uma molécula química complexa em elementos mais simples. As distinções são táticas que possibilitam a categorização dos objetos. No ensaio, elas são fundamentais, pois ajudam na clareza e precisão dos argumentos. As definições, assim como as distinções, reforçam a clareza do ensaio; são usadas para explicar termos técnicos e termos comuns usados em contextos que modificam o sentido usual desses termos.

No Capítulo 6 são apresentadas três possibilidades gerais para a busca de indícios a favor das proposições do argumento do ensaio. A primeira é a busca da verdade. O autor do ensaio sempre deve assegurar-se de que está a acreditar e defender a verdade. A segunda é o uso da autoridade. Consiste no uso legítimo de argumentos descobertos por grandes filósofos ou cientistas, aceitando suas autoridades para fornecer indícios. A terceira possibilidade é relativa ao ônus da prova de cada proposição ou tese defendida pelo autor. O ônus da prova recai sempre naquele que afirma ser verdadeira sua tese.

O Capítulo 7 é sobre a importância da inteligibilidade como característica principal de um artigo filosófico. Nesse capítulo são apresentadas quatro qualidades que garantem a inteligibilidade do ensaio e asseguram sua compreensão: clareza, coerência, concisão e rigor. A clareza é uma qualidade de interação entre o conteúdo e o público do ensaio. Por exemplo, um ensaio sobre o teorema da incompletude de Gödel poder ser claro para um grupo de alunos de Oxford, mas talvez não para funcionários públicos. Contudo, essa qualidade não se esgota apenas nessa relação de interação, pois um ensaio claro é também aquele que apresenta distinções precisas e definições esclarecedoras. A coerência é a qualidade que diz respeito ao percurso da argumentação no ensaio. O percurso de um ensaio coerente deve ser contínuo: a maneira como se movimenta, da introdução para o meio, e do meio para a conclusão sem ruptura abrupta ou exagerada. A concisão é outra qualidade do ensaio que diz respeito da relação entre brevidade e conteúdo. Um ensaio conciso é aquele que fornece o maior número possível de informação no menor espaço possível. Essa qualidade é fundamental porque exige menos atenção do leitor para a compreensão do artigo. O rigor é a qualidade que reuni a qualidade da clareza e da explicitação. Um ensaio rigoroso é aquele ensaio que é preciso, direto e nada deixa implícito na argumentação. Se existe pelo menos um mínimo de dúvida ou ambigüidade no seu ensaio, deve-se dizer da maneira mais explícita possível.

O Capítulo 8 apresenta alguns problemas que acontecem na introdução dos ensaios. Três maneiras de como não começar seu ensaio são discutidas. O primeiro é o desvio de assunto: autores que logo na introdução misturam seus objetivos e não os especificam de maneira clara. O segundo problema é o de como alguns autores mascaram seus argumentos e indicam que eles são soluções gerais para problemas restritos. O terceiro problema é o de começar o ensaio fazendo rodeios, sem ir direto ao ponto.

O livro termina com um apêndice intitulado “Domingo à Noite, Tenho de Entregar um Ensaio na Segunda de Manhã”, que é um resumo muito simples e básico de toda a estrutura e conteúdo do livro e destina-se aos alunos que não tiveram tempo de ler o livro inteiro.

Ensaio Filosófico é um manual sensacional, capaz de ensinar e estimular o trabalho filosófico através da idéia de que a filosofia é uma disciplina tão profissional como qualquer outra. O livro apresenta o conteúdo de maneira bastante esquemática e também oferece uma série de exercícios no final de alguns tópicos, assim como qualquer manual de química ou matemática oferece exercícios de fixação no final de seus capítulos. Em um país onde a tradição filosófica valoriza outras qualidades que não a clareza, coerência e rigor de seus textos, a publicação do livro é muito bem-vinda e de grande importância para a tentativa de reverter essa deplorável situação da filosofia no Brasil. Espero em breve poder ver nos cursos de Introdução à Filosofia ou Metodologia de Pesquisa Ensaio Filosófico como o principal manual na referência bibliográfica. Não só para os estudantes de filosofia, mas para qualquer estudante universitário que necessita do ensaio como forma de transmissão e troca de informações, o livro é muito útil. Porque além de ensinar a escrever ensaios filosóficos, o livro ensina a escrever ensaios.

Eduardo Dayrell de Andrade Goulart

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ISSN 1749-8457