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Crítica
12 de Julho de 2010   Ética

Para desfazer equívocos

Fernanda Belo Gontijo
Utilitarismo
de John Stuart Mill
Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves
Revisão científica, prefácio, introdução, cronologia, notas e bibliografia de Pedro Madeira
Lisboa: Gradiva, 2005, 152 pp.

O utilitarismo é uma teoria teleológica e consequencialista. Defende que o fim de nossas ações é a felicidade e que o correto é definido em função das melhores consequências, que são definidas em função da maximização imparcial da felicidade dos afetados por nossas ações. Maximizar imparcialmente a felicidade significa promover a maior soma de felicidade possível para todos aqueles que sofrem de alguma maneira as consequências do que fazemos, independente de serem pessoas por quem temos afetos ou laços consaguíneos.

Entre salvar um parente próximo de um incêndio e salvar quatro estranhos, dado que salvar quatro estranhos maximiza a felicidade, o padrão moral utilitarista defende que o certo é salvar os quatro estranhos ao invés de um parente próximo. Dado que, num acidente inevitável, a única forma de salvar a vida de todos os passageiros de um ônibus e assim maximizar a felicidade é o auto-sacrifício do motorista, o utilitarismo defende que o correto é o auto-sacrifício do motorista.

Por exigir decisões desse tipo, a teoria utilitarista foi e ainda é mal compreendida e muito criticada. Para desfazer os equívocos em torno do utilitarismo e contribuir para que fosse adequadamente compreendido e avaliado, John Stuart Mill (1806–1873) publicou Utilitarismo (1861), que se tornou um clássico da ética e influenciou decisivamente os utilitaristas posteriores.

A teoria utilitarista foi defendida pela primeira vez por Jeremy Bentham (1748–1832) em Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação (1789). Até o Utilitarismo de Mill a teoria era baseada no hedonismo quantitativo: defendia-se que quanto maior a duração e intensidade dos prazeres gerados por uma ação, mais felicidade tendia a ser gerada por essa ação.

Mill defende em cinco capítulos uma versão mais sofisticada de utilitarismo, que se baseia no hedonismo qualitativo: durante a avaliação de uma ação, além da intensidade e duração dos prazeres, devemos levar em conta a qualidade dos prazeres gerados por ela. Mill os distingue como superiores ou inferiores, de acordo com a sua natureza intrínseca. São superiores os prazeres do intelecto, das emoções, da imaginação e dos sentimentos morais e são inferiores os prazeres corporais. Confrontados por indivíduos que tenham experiência de ambos, os do tipo superior sobressaem-se como preferíveis, sendo então considerados melhores (superiores) do que os outros.

Uma das várias objeções contra o utilitarismo que são discutidas no livro é a acusação de que o utilitarismo é muito exigente. Mill responde a essa objeção sustentando dois argumentos. Um é que a não ser que alguém seja um benfeitor público, não é necessário considerar a felicidade de todas as pessoas ou de todos os seres sencientes, mas apenas dos envolvidos na ação. Outro argumento é que abster-se de praticar ações que sejam prejudiciais à sociedade é o que, de alguma maneira, todo sistema moral exige. Antes desses, Mill parece defender ainda um terceiro argumento, que não é tão claramente desenvolvido quantos os dois anteriores. Este argumento sustenta que não é preciso agir de acordo com um senso cego de dever, o que significa que não temos de promover sempre — rígida e inquestionavelmente — a felicidade geral.

A primeira resposta de Mill talvez seja a mais problemática. Primeiro, porque se aceitarmos que os envolvidos nas nossas ações pertencem a um círculo pequeno, que provavelmente envolverá aqueles com quem nos relacionamos cotidianamente, ainda sim não escapamos da obrigação do auto-sacrifício. Provavelmente serão muitas as situações em que será necessário abdicar de nossa felicidade individual em função da felicidade geral do grupo restrito que sofre as consequências de nossos atos. Segundo, porque na medida em que muitas de nossas ações têm alcance global, como as que se referem à preservação ambiental, o universo de indivíduos a serem considerados por nossos atos cresce consideravelmente e, de fato, é muito difícil levar sempre em consideração a felicidade geral numa proporção tão alargada.

Mill trata também do problema da sanção moral. Uma sanção moral é aquilo que motiva ou obriga as pessoas a agirem moralmente; no caso de Mill, uma fonte de prazer e dor que as leva a agir de determinado modo. Mill defende que a sanção última do princípio de utilidade ou da maior felicidade é o sentimento de empatia do homem para com seus pares ou sentimento social que o leva a unir-se a eles e a ajustar os seus interesses com os interesses deles. Esse sentimento é um tipo de sanção interna, isto é, um sentimento em nossa mente de desaprovação perante a violação dos deveres e que nos impede de violá-los. Por ser um sentimento, assim como outras sanções internas, poderia ser negado. No entanto, Mill argumenta que, pelo fato de esse sentimento de empatia possuir uma base natural, não pode ser negado. O homem possui uma natureza social. Naturalmente, deseja unir-se aos seus semelhantes; e para que essa união seja possível é preciso que exista igual consideração de interesses. Assim, quanto mais imparcial for o homem e ajustar seus interesses individuais aos interesses coletivos, melhor será para ele mesmo.

Mill tenta também apresentar uma prova a favor do utilitarismo em três etapas: demonstrar que a felicidade é desejável; demonstrar que a felicidade geral é desejável, demonstrar que a felicidade é a única coisa desejável como fim, sendo tudo o resto desejável apenas como meio ou parte desse fim. Este capítulo é alvo de muita discussão, pois a prova que Mill apresenta parece falaciosa.

Na primeira etapa da prova, Mill usa as seguintes analogias para demonstrar que a felicidade é desejável: assim como provamos que um objeto é visível demonstrando que as pessoas o vêem e provamos que um som é audível demonstrando que as pessoas o ouvem, também provamos que a felicidade é desejável demonstrando que as pessoas a desejam. As expressões “é visível” e “é audível” significam o mesmo que “pode ser visto” e “pode ser ouvido”. Assim, considerando a analogia de Mill, “é desejável” deveria significar “pode ser desejado”. De fato, a felicidade pode ser desejada e podemos prová-lo verificando que as pessoas a desejam.

No entanto, o que Mill pretende defender é que “é desejável” significa “é digno de ser desejado”. O que enfrenta a objeção óbvia de que o fato de as pessoas desejarem uma coisa, neste caso, a felicidade, prova que as pessoas a desejam, mas não prova que seja digna de ser desejada.

Uma resposta possível a essa objeção é defender que o que Mill pretende demonstrar com a analogia dos sentidos é que recorremos à visão e à audição para estabelecer o que é visível e o que é audível; da mesma forma, recorremos à nossa capacidade de desejar para estabelecer o que é desejável (ou seja, digno de ser desejado). Ao fazê-lo, descobrimos que a felicidade é desejada e que nada há de errado nisso porque é uma coisa boa, sendo então digna de ser desejada.

Essa resposta é problemática porque as pessoas desejam muitas coisas prejudiciais para elas. Se o que desejamos determinar é o que é digno de ser desejado, teremos que admitir que viver num mundo de mentiras é digno de ser desejado porque muitas pessoas desejam viver num mundo de mentiras.

A segunda etapa da prova é demonstrar que a felicidade geral é desejável: Mill argumenta que se cada pessoa deseja a sua própria felicidade, consequentemente todas as pessoas desejam a felicidade de todas as pessoas. Nesse ponto, Mill é acusado de cometer a falácia da composição, na qual se afirma que porque as partes possuem certas propriedades, o todo também terá tais propriedades. Mill parece estar errado porque nada garante que quem deseja a sua própria felicidade venha a desejar a felicidade de todas as pessoas.

Outra interpretação possível do argumento de Mill é que na medida em que as pessoas promoverem a sua própria felicidade, a felicidade geral será promovida. Esse argumento enfrenta o problema de ser incoerente com o utilitarismo. O utilitarismo defende a promoção imparcial da felicidade, o que em alguns momentos implica na renúncia da felicidade individual para a promoção da felicidade geral.

A terceira etapa da prova é demonstrar que a felicidade é a única coisa desejável como fim e que o resto é desejável apenas como meio ou parte para a felicidade. Mill argumenta da seguinte forma: admite o fato de as pessoas desejarem outras coisas diferentes da felicidade, como a virtude, por exemplo. Admite que a virtude é digna de ser desejada e que deve ser desejada por si mesma e acrescenta que tanto a virtude quanto outros ingredientes da felicidade (a música, a saúde, etc.) não são radicalmente distintos ou separados da felicidade. São inegavelmente meios para ela e quanto mais estiverem associados à felicidade, mais se tornam, além de meios, parte da felicidade, sendo então desejados por si mesmos. Esta resposta de Mill também não é muito convincente, pois se há coisas que são desejadas por si mesmas, mesmo por serem associadas com a felicidade, a felicidade não pode ser considerada a única coisa desejável. Assim, temos muitas indicações de que a prova de Mill seja falaciosa, embora seja preciso um exame mais atento para demonstrá-lo com maior precisão.

Mill termina o livro tentando demonstrar que o utilitarismo não é incompatível com a justiça. Defende que a justiça não está dissociada da felicidade e que a promoção da felicidade passa pela justiça. A relação da justiça com o utilitarismo consiste no fato de as regras morais da justiça estarem diretamente relacionadas ao que há de essencial na promoção da felicidade humana. São elas que proíbem os homens de se prejudicarem, preservam a paz entre eles e os pune quando as desrespeitam. A imparcialidade e a igualdade, virtudes ou obrigações da justiça, são partes essenciais da utilidade. Por tudo isso, as regras morais da justiça são mais imperativas do que as outras, embora a sua observação admita exceções.

Pelo fato de admitir certos tipos de exceções o utilitarismo é frequentemente acusado de ser uma teoria incompatível com a justiça. No entanto, podemos acrescentar à argumentação de Mill que a flexibilidade do utilitarismo pode ajudar-nos a ter uma noção mais adequada de justiça. Basear a justiça em regras engessadas pode ser uma ponte para a injustiça. A princípio, matar, roubar, mentir ou forçar alguém a fazer o que não quer seria errado e injusto. No entanto, em circunstâncias especiais pode ser mais justo revogar as regras morais da justiça que condenam essas atitudes para evitar que uma injustiça maior seja cometida. Há casos particulares em que pode ser necessário revogar os princípios gerais da justiça em função da maior felicidade geral: utilizando exemplos do próprio Mill, para salvar uma vida pode ser necessário roubar ou tomar pela força comida, remédios ou um médico.

Muitas são as críticas levantadas contra a teoria utilitarista de Mill. Mas ao contrário do que acontece a outras teorias que se enfraquecem mediante as objeções que lhe são levantadas, o utilitarismo tem demonstrado cada vez mais a sua força. A discussão em torno de seus princípios tem erguido um debate vivo e tem impulsionado seu aperfeiçoamento e gerado versões mais refinadas da teoria. Para compreender os fundamentos desse debate, leia-se atentamente o Utilitarismo de Mill, clássico obrigatório para estudiosos de ética, mas não só. Com escrita clara e fluente, Mill discute questões importantes relacionadas com o bem-estar individual e coletivo, que são também relevantes para a filosofia política e para outras áreas das ciências humanas.

Fernanda Belo Gontijo

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