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10 de Agosto de 2005   Filosofia

Nem dualismo nem materialismo

Matheus Martins Silva
Mente, Linguagem e Sociedade: Filosofia no Mundo Real
de John R. Searle
Tradução de F. Rangel
Rio de Janeiro: Rocco, 2000, 160 pp.

Neste pequeno livro John R. Searle, um dos maiores filósofos contemporâneos, tenta explicar de modo reduzido alguns de seus pontos de vista sobre a mente, a linguagem e a sociedade, de modo a demonstrar sua unidade subjacente como diversos elementos de um só mundo. Como eles podem se relacionar e como se encaixam em nossa concepção geral do universo? O livro é excelente por várias razões, sendo uma delas o estilo e a forma de escrita. À boa maneira analítica, o autor aborda diversos temas de maneira acessível sem com isso perder a complexidade intelectual e a tecnicidade necessária para abordar essas questões. Nesse sentido, o livro tem o mérito de também poder ser considerado introdutório, uma vez que não exige nenhum conhecimento filosófico prévio do leigo interessado em filosofia, devido à sua linguagem clara e não artificiosa. A tradução peca em alguns pontos: nas páginas 98 e 99, por exemplo, há dois erros toscos de tradução que sugerem que Searle se contradiz grosseiramente, mas essas exceções não prejudicam o livro como um todo.

No primeiro capítulo o autor considera a visão iluminista e os desafios ao realismo. Na contra-mão do pós-modernismo e outros eventos intelectuais que vieram a desafiar o otimismo acerca de nossa capacidade de compreender as coisas, Searle reativa o espírito iluminista e responde de modo implacável a esses desafios. Os leitores familiarizados apenas com a filosofia continental terão aqui uma surpresa: o autor não rejeita aquilo que todo mundo aceita! Para Searle há um mundo real que existe independentemente de nós e as palavras de nossa linguagem em geral têm significados razoavelmente claros. Na verdade, ele considera a existência de um mundo real tão óbvia e necessária para a racionalidade que se sente embaraçado em discutir os desafios a esse ponto de vista. Por que alguém em sã consciência desejaria atacar o realismo externo? Para Searle é errado representar o realismo como um ponto de vista, pois negar que exista uma maneira como as coisas são no mundo, independentemente de nossas representações, já seria um fato sobre como o mundo é, e pressuporia, portanto, o realismo.

O livro também é um exemplo de uma tendência contemporânea da filosofia analítica de considerar a filosofia da mente como a filosofia primeira: a estratégia do autor a partir do capítulo 2 em diante, é partir da mente para chegar à linguagem e depois à realidade social. Desse modo, diversos problemas lingüísticos, éticos e sociais poderiam ser mais bem compreendidos e abordados a partir dos fenômenos mentais.

Um dos melhores exemplos da originalidade da iniciativa filosófica de John Searle é sua explicação acerca da consciência. Para o autor o maior obstáculo em se obter uma explicação satisfatória da consciência e responder ao problema mente-corpo se deve a um conjunto de categorias obsoletas e pressuposições errôneas que herdamos de nossa tradição filosófica e religiosa. Partimos da idéia equivocada de que o vocabulário que contém termos como “mental” e “físico”, “materialismo” e “dualismo” é razoável por si mesmo e tentamos entender a consciência nesses termos.

Mas nem o dualismo — seja de propriedade ou de substância — nem o materialismo tem chances de estarem corretos, porque em ambas as posições há um pressuposto injustificado de que o mental é incompatível com o físico. O dualismo afirma que há duas espécies diferentes de entidades metafísicas no universo, o mental e o físico, mas além de não conseguir explicar de modo satisfatório a relação entre as duas, nos força a desistir de toda a visão científica de mundo que levamos séculos para obter, pois como um mundo que consiste inteiramente de partículas em campos de força possa conter algo parecido com a consciência? Do outro lado temos a posição mais comum na filosofia da mente, o materialismo, que consiste em eliminar a consciência ao reduzi-la a outra coisa, seja a estados cerebrais ou programas de computador. O problema com essas tentativas reducionistas é que elas acabam por negar a existência real dos estados de consciência que deveriam explicar e contestam o fato inegável de que todos temos estados conscientes internos, qualitativos e subjetivos tais como uma dor de dentes, um remorso ou uma lembrança.

A proposta de Searle é rejeitar não só o dualismo como também o materialismo e sustentar que a consciência é tanto um fenômeno “físico” como um estado “mental” qualitativo e subjetivo. A consciência é um fenômeno natural e biológico causada pelo cérebro, mas que diferentemente de outros fenômenos físicos possui um status ou modo de existência de primeira pessoa. Uma montanha ou geleira tem um modo objetivo de existência, uma ontologia de terceira pessoa, porque seu modo de existência não precisa ser experimentado por nenhuma pessoa enquanto uma cócega ou dor de dentes tem um modo subjetivo de existência, uma ontologia de primeira pessoa, e só existem enquanto experimentadas por um sujeito.

O interessante é que para Searle a irredutibilidade da consciência não implica em dizer que ela estaria além do alcance da investigação científica, que por definição é objetiva em oposição a subjetiva. Se por um lado a consciência é ontologicamente subjetiva nem por isso ela deixa de ser epistemologicamente objetiva, pois ela ainda é uma questão de fato e não uma questão de opinião (epistemologicamente) subjetiva. O seu modo de existência subjetivo não seria um impedimento para uma ciência objetiva da consciência. Mas como podemos oferecer uma explicação biológica da consciência uma vez que o materialismo foi rejeitado? Esse talvez seja o único ponto fraco do livro, pois Searle deixa sua posição ambígua. A resposta, que Searle deixa implícita nesse livro, mas que pode ser encontrada em outros livros de sua autoria, como O Mistério da Consciência (Ed. Paz e Terra), é que o que foi rejeitado foi uma certa forma de materialismo reducionista e não todas as formas possíveis de materialismo. O cérebro ainda é a causa da consciência.

Desta forma Searle transforma o “enigma” da consciência no problema da consciência, além de apresentar um programa de pesquisa razoável sobre esse naturalismo biológico para futuras investigações da consciência. Os aspectos estruturais da consciência, suas diversas formas de referir-se a objetos e estados de coisa no mundo (intencionalidade) e seu papel na criação da realidade social são todos apresentados numa perspectiva lúcida e rigorosa. A linguagem é entendida como uma ação humana, o que revela como foi influenciado por Austin e sua análise dos atos de fala, os speech acts.

Searle também apresenta um novo método de análise dos problemas filosóficos como uma das maneiras de se progredir em filosofia: ao nos defrontarmos com uma questão aparentemente insolúvel, como a do problema mente-corpo, não devemos aceitá-la de maneira passiva, mas questionar as pressuposições habituais subjacentes às alternativas. Deste modo nos livramos das pressuposições errôneas e resolvemos a questão que a princípio aparentava ser insolúvel. É assim que ele procede também ao naturalizar a intencionalidade. Não são poucos os méritos deste livro que demonstra que, ao contrário do que alguns dizem, a filosofia está mais viva do que nunca e que é possível fazê-la bem e divulgá-la para o grande público sem recorrer a jogos de palavras e formalismos vazios que ninguém entende bem do que se trata.

Matheus Martins Silva

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