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22 de Setembro de 2004   História da filosofia

O problema do pensamento asiático

Filosofia ou não?
André Bueno

Em trajetória concomitante, Oriente e Ocidente se afastaram, no passado, e perdemos o ponto de referência, de diálogo. Ambos estranhavam-se, mas também se admiravam. Geravam fascínio mútuo, um instigador da busca pelo diferente — este contestador natural e legítimo de toda alteridade. As hierarquias existiam, mas elas nunca eram totais. Baseavam-se em coerções políticas transitórias, que em muito auxiliaram no processo de trocas culturais e intelectuais entre civilizações distintas.

Quando foi, pois, que o Logos se transformou neste conceitual hermetizante do pensar ocidental? Em que momento ele se tornou a referência da “verdade” do conhecimento, excluindo a possibilidade de confrontação com outros métodos de pensamento?

Não se trata de amaldiçoá-lo, posto que somos herdeiros de sua tradição, e o nosso saber — com todas as suas virtudes e falhas — é um processo contínuo de interpretação, construção e reprodução de uma miríade de “logias” que surgem com a evolução do mesmo. Mas em algum lugar da História, por um motivo legítimo ou não, o Logos deixou de ser o conhecimento em si para vir a ser uma espécie de conhecimento por si mesmo, uma concepção que comprovava a sua validade pelo seu entendimento e aceitação — e quem não o fizesse, poderia ser enquadrado como “atrasado”, “primitivo” ou ainda “ignorante”. Não se tratava mais de mostrar que o saber ocidental possuía sua eficácia, o que sabemos ser verdade; havia de se ter quase uma fé no logos, como se esse pudesse responder a tudo. Todas as coisas poderiam ser enquadradas pela sua lógica; nada poderia escapar a sua ciência. Neste momento, o Ocidente escala sozinho o degrau de uma hierarquia imaginária e toma o poder do mundo pensante. Centra-se num futuro onde sua técnica irá prevalecer; constrói uma história que busca apresentar-se como uma longa tradição de sucessos, ignorando a ascendência do Oriente sobre muitos de seus conhecimentos. É um contexto onde impera o otimismo, e que parece não apenas durar para sempre, mas que sempre foi.

Mas agora, vivenciamos o momento de contestar mais este dogma — tarefa por excelência da Filosofia — de retornar, estudar e buscar compreender o pensamento asiático. A “gaiola logocêntrica” não pode mais durar, ela o sabe; precisa se adaptar, novamente, a um tempo de diálogo, de troca. Para além do que entende, precisa vislumbrar o que não entende, e sentir novamente a empolgação “juvenil” de uma descoberta. Por isso Confúcio diria: “O Mestre é sem idéia, sem necessidade, sem posição e sem eu” (Lunyu, 9); [O Mestre não possui idéias sem fundamento, nem privilegia concepções; não necessita de posição, seu ponto de partida é si próprio, não predetermina coisas, nem faz afirmações categóricas, sendo sem preconceito; não se posiciona, não se obstina, tem o que é correto para si mas está aberto ao estudo; e, por fim, não é egoísta, egocêntrico, pedante, não visa o particular no universal, mas o universal no particular].

Voltemos, porém, ao tema inicial: em que momento resolvemos separar-nos do Oriente? Quando foi que negamos toda e qualquer similaridade entre “nós” e a Ásia? Aliás, podemos afirmar mesmo que existe um “Ocidente”, quando pensamos que ele engloba povos tão diversos quanto os da América do Sul, do Norte, Europa e África? Creio que estamos a falar, de fato, sobre uma tradição intelectual, cuja força espraiou-se por todos os cantos do mundo, e que gerou a aparência disso que nós chamamos “Ocidente”. Ela provém, justamente, desta Filosofia nascida na Grécia, que criou e ajustou o prisma das ciências e do conhecimento nesta “parte do mundo” — mescla de culturas e povos diferentes cuja identidade foi aos poucos moldada pela submissão colonial a Europa.

A história desta separação pode ser rastreada e é relativamente recente. Uma breve análise do problema mostra que as diferenças intelectuais entre Ocidente e Oriente não pareciam ser tão problemáticas até o final do século XVIII. Isso não significa que elas não fossem grandes ou profundas, mas seu tratamento era bem diferenciado do que há hoje.

Já na Grécia antiga, sabemos que houve o estabelecimento de contatos intelectuais profundos com os Índia num período pré-Alexandrino, tema devidamente estudado por Arora (1992) e McEvilley (2002). Com a ligação estabelecida pelas conquistas macedônicas, um corredor cultural formou-se da Ásia Central até o Mediterrâneo, produzindo seus efeitos na literatura e no imaginário destas civilizações. Na Índia, por exemplo, teremos o surgimento de um texto budista intitulado Milinda-Panha que se trata do diálogo entre um rei grego (Menandro) e o sábio Nagasena acerca do Budismo. Algum tempo depois, quando Roma assume o controle da Europa, Philostrato envia seu Apollonyo de Tiana para estudar filosofia e magia com os indianos (Hanus, 1988). Os chineses receberiam suas primeiras informações sobre o Ocidente através do historiador Sima Qian, e Roma conheceria, com maior precisão, as origens da seda por Plínio, o Velho.

O advento da Idade Média pode ter arrefecido um pouco a intensidade destas relações, mas de forma alguma encerrou-as. Haja visto o interesse dos árabes pela filosofia grega, manifesto por Averróis e Avicena; ou ainda, o fascínio dos europeus pela “Tartária”, nome dado a China na época de sua dominação pelos mongóis. Muito antes de Marco Pólo, missionários nestorianos já divulgavam o cristianismo pela China; João de Carpino (1245-47) e Guilherme de Rubroeck (1253–55) foram também preparar o terreno para a chegada dos europeus no século XIII. O Livro de Pólo (1271–95), portanto, só viria a se tornar o mais famoso justamente por suas fantasiais e pelo tom aventureiro, se comparado às descrições de João de Montecorvino (1289-1328) ou André de Perusia (1307-30), bem mais realistas e precisas.

A ação jesuítica, principalmente a partir do século XVI, dinamizaria por completo esta relação. Um movimento em torno da tradução de obras clássicas chinesas seria iniciado (ver anexo), e uma estreita relação intelectual e científica criou-se entre a Europa e a Ásia (Dawson, 1970:57-97). Leibniz, fascinado pela China, chega a propor a existência de paralelos entre o pensamento ocidental e o neoconfucionismo (Mungello, 1977: 116-17). No século XVIII, Malebranche cria o seu Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filósofo Chinês; Voltaire empreende a divulgação da “miragem chinesa”, uma visão idílica do pensamento e da vida no império celeste baseada em suas leituras sobre Confúcio e nas cartas jesuítica. Montesquieu iria criticar severamente esta posição, baseando-se igualmente naquilo que pensava conhecer sobre a China.

Estas amostras nos levariam a pensar que a Europa estava inclinada a um diálogo extremamente fértil com o Oriente, mas, no início do século XIX, algo deu errado. A Filosofia, até então entusiasmada com o flerte, rompe inadvertidamente com a prática orientalista, e submete-a a uma relação conflituosa e submissa. Joga-lhe a pecha de “sabedoria”, em tom pejorativo, como se esta fosse desprovida de “lógica” e, em essência, baseada num “sistema primitivo” de pensar. Poucas vozes, como Schopenhauer ou Nietzsche, assumiriam com coragem seu compromisso com o pensamento asiático. Todo este movimento guarda uma profunda relação com o desenvolvimento da prática colonialista surgida neste século, que necessitava criar a idéia de hierarquia cultural para salvaguardar o valor e a importância de suas descobertas. Já não era apenas fé em Deus, mas também a fé na Ciência, que deveriam ser espalhados pelas culturas submetidas.

A demarcação destas fronteiras encontrou ressonância no panorama da filosofia ocidental. A construção de uma visão filosófica excludente, autocentrada e ocidentalista embasou e respondeu à demanda da alteridade eurocêntrica (Dawson, 1970:133-153); e se algum autor parecia simbolizar esta tendência, este seria Hegel.

Hegel e a história da filosofia

Ao tomar Hegel como referência, devemos ter um imenso cuidado em “culpá-lo” pelas “deformações” que o seu pensamento teria gerado na interpretação dos saberes asiáticos. O mesmo Hegel que chama a China de “pré-filosófica” sorve de sua dialética um elemento fundamental para a estruturação de sua teoria histórica. Em alguns momentos, é difícil saber se Hegel acreditava de fato na inferioridade dos orientais ou se ele buscava esmiuçar o sentido de alguns conceitos até definir com precisão as fronteiras entre estes e o Ocidente. Restam ainda as controvérsias com Schelling, Schelgel, entre outros autores — alguns vivamente interessados pela questão orientalista — que podem ter provocado um “natural antagonismo” por parte de Hegel em relação a Ásia, o que constitui um argumento ainda mais capcioso e escorregadio do que os anteriores.

O que podemos afirmar, pois, é que aqueles que buscaram seguir a “tradição hegeliana” acabaram muitas vezes por fortalecer esta tendência crítica para com o Oriente, sem que houvesse uma necessária certeza sobre a postura do próprio Hegel; e, como já dissemos antes, o contexto histórico do século XIX re-afirmava esta interpretação, pois a Europa empreendia um forte movimento imperialista que tornava indispensável a sua afirmação intelectual.

A crítica de Hegel ao pensar oriental centrava-se principalmente na sua formulação estrutural e conceitual. Para ele, a filosofia era uma herdeira direta do Logos grego, cujo processo de conhecer vinculava-se estritamente a liberdade de pensar do espírito (IHF, p.336). Tal condição não existira nas sociedades asiáticas, onde o despotismo atrelaria ideologicamente o pensar humano, limitando-o a um estágio “pré-filosófico” onde a consciência do indivíduo não atingiria um estado potencial de crítica capaz de fazê-lo compreender os fins últimos do conhecimento. “A diferença entre os povos africanos e asiáticos, por um lado, e os gregos e romanos e modernos, por outro, reside precisamente no fato de que estes são livres e o são por si; ao passo que aqueles o são sem saberem que o são, isto é, sem existirem como livres” (Ibidem).

Isso teria impedido os orientais de compreenderem a idéia da filosofia, que seria uma “apreensão do desenvolvimento do concreto” (Ibidem, p.339-40), em oposição a uma abstração pura e simples que não conduz a crítica dos objetos. A História da Filosofia seria, pois, “um progresso sucessivo e em si necessário, em si racional e determinado a priori da sua idéia; portanto, é isto o que a história da filosofia tem de apresentar como exemplo” (ibidem, p.345). Ela seria, portanto, baseada na liberdade de pensar; esta liberdade que se contrapõe ao dogma e a crença não raciocinada, fortalecendo a busca do conhecimento pelo conhecimento em si, o Logos; e este sistema deriva de uma condição social e ideológica única, que só teria existido no Ocidente. “A limitação da vontade ao finito é própria do caráter dos orientais, não havendo entre eles a vontade de chegar a compreender-se como universal, porque o pensamento ainda não é livre por si mesmo” (Ibidem, p.379).

Assim sendo, os orientais não seriam capazes de produzir filosofia: “a consciência oriental consegue decerto alçar-se acima do conteúdo da natureza em direção ao infinito, mas perante o poder que incute medo ao indivíduo, ela sente-se como algo acidental” (ibidem); “Segue-se que não se pode verificar o conhecimento filosófico, ao qual importa a cognição da substância, do universal absoluto (...) pelo que o pensamento oriental tem de ser excluído da história da filosofia” (ibidem, p.380).

O Oriente, por conseguinte, não teria desenvolvido a base propícia ao pensar filosófico. Não possuiria um sistema adequado de investigação lógica e o seu arcabouço conceitual seria, na verdade, uma interpretação elaborada de valores primitivos, que geraram uma complexidade moral e religiosa fascinante mas pouco esclarecedora, cujo efeito seria condicionar ainda mais a liberdade do pensamento nestas sociedades.

Isto fica patente na análise do pensamento chinês, ao qual Hegel dedica uma seção em Lições de História da Filosofia (p.119-125). Para ele, Cícero, por exemplo, teria legado no De Officis um tratado moral “mais compreensivo e melhor do que todos os livros de Confúcio” (p.121). No campo da ciência, “o concreto não é concebido peça especulação, mas é simplesmente feito de idéias ordinárias” (p.122) e os princípios concretos não são encontrados senão num estágio de “concepção sensual da natureza universal ou poderes espirituais” (ibidem).

Hegel parecia ter fechado o círculo em torno do pensamento ocidental. Como herdeira do Logos — o conhecer desenvolvido em condições únicas — a Filosofia excluiria naturalmente tudo o que dela própria não proviesse. Apesar disso, o próprio pensador também deixou algumas aberturas para que esta questão fosse resolvida no futuro de uma outra forma, quiçá mais adequada. Como ele mesmo afirma; “[o pensamento oriental] dele sempre quero dar alguma noção. Antes, eu pusera-o de parte, porque só desde há pouco tempo estamos habilitados a formar um juízo sobre ele” (IHF, p.380); mesmo assim, esses juízos não são precisos, pois algumas das obras fundamentais destas civilizações nunca foram bem traduzidas (LHF, p. 121) e as informações que dela provinham tratar-se-iam mais de paráfrases do que propriamente de entendimento (ibidem). Isso significa, portanto, que Hegel não abandonara de maneira alguma suas definições, mas sabia que algumas delas podiam ser refeitas ou melhoradas devido a uma consciente carência de informações.

Infelizmente, os leitores de Hegel se ativeram a crítica, gerando um problema sério de interpretação acerca do Oriente. A recolha e tradução de novas fontes não colaborou para o esclarecimento do saber asiático, ao contrário: o prisma logocêntrico foi aplicado a leitura destes textos, e a conseqüência foi uma deturpação profunda de suas propostas. Marx desenvolveria ao máximo no século XIX a teoria do despotismo oriental, e esqueceria que sua teoria dialética bebia de fonte estrangeira. No século XX, Husserl afirmará a existência de uma inevitável superioridade ocidental no pensar, legitimada pela dominação colonial e pela força da ciência (Wu, 1998:420–422). Heidegger, o inevitável controverso, irá afirmar categoricamente: “A palavra philosophia diz-nos que a filosofia é algo que pela primeira vez e antes de tudo vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a philosophia determina também a linha mestra de nossa história ocidental-européia. A batida expressão “filosofia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a 'filosofia” é grega em sua essência — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver" (O que é a Filosofia?, p.8); “apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega” (ibidem, p.10). Por fim, a “Língua grega, e somente ela, é logos” (p.15).

Esta tendência inevitavelmente iria conduzir a interpretação do pensamento asiático por boa parte do século XX. A hierarquia cultural gerada pelo Ocidente iria permear a submissão e a inserção de elementos “externos” à sua história. Neste contexto, nossa visão do Oriente o transformaria num amálgama confuso de civilizações, das quais fazemos poucas distinções (Said, 1996). Suas formas de pensar seriam todas superficiais, e portanto, superficialmente semelhantes também. Em termos taxionômicos, aproximamo-las facilmente de sistemas religiosos, sem muito bem saber porque. Pouco sabemos sobre seus conceitos, e nos damos por satisfeitos quando deles conhecemos algo, posto que são pouco interessantes à nossa razão. Simplesmente, às vezes, chegamos a acreditar que eles não produziram muito mais do que aquilo que nós já traduzimos. E o que foi traduzido, se o foi, é porque contém um algo mínimo que possa nos intrigar (ainda que seja desinteressante). Logo o Ocidente, tão capaz e preparado para discutir conceitos, parece não aplicar esta norma quando se trata da Ásia.

Parece que vivemos o que Derrida chamou de “círculo ontoteológico de Hegel”, que encerra a filosofia em si mesma (Margins of Philosophy, p. xx). Para se conservar, ela perde justamente o elemento dinâmico que a impulsiona, esta busca do conhecer o que é externo a sua tradição. Seu grande problema não será criar para si um filtro, um sistema pelo qual translitera os outros saberes; será que este filtro determina, de antemão, o que é “importante” conhecer, e este conhecimento é a própria tradição filosófica, sua estrutural conceitual e metodológica, o que praticamente cria a ilusão de auto-suficiência e a desestimula a busca fora de si de respostas para seus questionamentos (embora esta fosse uma de suas metas principais) (Wu, 1998:407-8). Para o trabalho sinológico, a conseqüência direta desta postura será a grande e geral inconsciência intelectual do século XX acerca da China, que somente a duros golpes políticos e após um grande esforço acadêmico irá se deslocar do atoleiro conceitual para reascender a necessidade de reflexão.

No entanto, respostas a este problema foram elaboradas; e talvez Hegel estivesse realmente certo quanto à “liberdade do pensar”, posto que alguns autores se dispuseram a abandonar essa postura fechada para investigar o pensar asiático mais de perto, e descobrir a “parte que faltava” na História da Filosofia.

Sim, a China pode ter filosofia

Como vimos, antes de Hegel não existiam grandes problemas em utilizar a palavra Filosofia para denominar os sistemas de pensamento asiáticos. A dificuldade, de fato, era dos europeus não as conhecerem suficientemente bem, o que lhes gerava dificuldades para enquadrá-las em uma determinada categoria. O Confucionismo, por exemplo, foi tido em alguns momentos como religião (no sentido monoteísta), ora como filosofia moral, ou ainda, como conjunto de supertições anímico-politeísticas! Defini-lo, portanto, significava rever um método ou um conceito.

No final do século XIX, japoneses e chineses começaram também a diferenciar o pensamento ocidental do oriental. Um neologismo, Zhexue (em japonês Tetsugaku, que significa algo próximo à “estudo aprofundado”, “estudo com sagacidade”, etc.) começou a ser empregado para designar as formas de pensar advindas da Europa, em oposição as clássicas Jia (escolas) que compunham a tradição oriental. Note-se que, antes disso, o pensamento ocidental era classificado igualmente como Jia, sem uma notória dificuldade em aceita-las como um das formas do dao (caminho). O contexto colonialista impunha, porém, uma necessária separação, e os asiáticos responderam a altura.

Em torno da década de 30, no entanto, alguns especialistas ocidentais e asiáticos começaram a construir um movimento de aceitação do pensamento oriental pela via filosófica. Isto significava demonstrar a validade do pensar chinês, japonês e indiano como filosofias através justamente das estruturas de análise ocidentais. A proposta consistia em identificar a presença dos conceitos e métodos filosóficos no discurso das antigas “doutrinas”, a existência de idéias que pudessem contribuir para o enriquecimento da Filosofia, e os processos pelos quais os valores intelectuais foram estabelecidos nestas sociedades.

Esta atitude reconhecia a anuência científica e política da filosofia como leitora destes saberes, mas possibilitava uma excelente oportunidade de gerar aceitação, no Ocidente, dos sistemas de pensamento asiáticos. Tratava-se, grosso modo, de corromper a hierarquia utilizando seus próprios expedientes.

Nos ateremos, aqui, ao caso Chinês. O início deste movimento partiu de vários lugares da China, simultaneamente, por meio de um grupo constituído por chineses educados em escolas ocidentais. O trânsito de que dispunham em cultura tradicional, e o domínio de línguas e técnicas estrangeiras forneceram-lhes uma base sólida para se apresentarem diante da academia.

Os primeiros (e mais conhecidos) representantes deste movimento são Wing-tsit Chan, Hu Shih e Fung Yulan. No caso destes três autores, a abordagem inicial sempre tratava basicamente dos mesmos pontos: apresentar a diversidade do pensar asiático, explicitar suas condições de funcionamento por uma aproximação com a terminologia ocidental e, por fim, definir suas singularidades, propondo sua validação. Como afirma Chan em um de seus artigos; “é incorreto considerar um sistema filosófico oriental como a filosofia oriental em conjunto; igualmente incorreto é ver num período da Filosofia oriental todo o curso do seu desenvolvimento. Como os antigos textos filosóficos orientais se encontram com mais facilidade e, portanto, são mais familiares, as filosofias orientais medievais e modernas têm sido consideradas, consciente ou inconscientemente, como que notas de pé de página da antiga Filosofia oriental. Nada, porém, está mais longe da verdade. Se percorrermos toda a história da Filosofia oriental, encontraremos muita variedade e mudança, de modo que o antigo período, embora muito importante, de maneira alguma é a história completa” (Chan, 1978:160). A grande incompreensão que se criou em torno da filosofia asiática “pode ser atribuída ao fato central de que ela vê a filosofia como um problema humano. Ela se dedica, primordialmente, à busca de solução final para os problemas humanos” (ibidem, p.165).

Hu Shih destacaria, justamente, que o problema de interpretação do Oriente não girava em torno da questão metodológica, mas sim do objetivo final de suas propostas. Um de seus principais trabalhos, The Developement of the logical method in Ancient China (1939) mostra que é perfeitamente possível enxergar os mesmos esquemas interpretativos da filosofia ocidental no discurso dos pensadores chineses. A forma dos textos serem apresentados, no entanto, é que respondiam a uma demanda específica das escolas (o texto serviria para atrair e despertar o pensar, evitando somente conduzi-lo, e propiciando a sua discussão dentro de uma proposta teórica subjacente, ao qual o aluno deveria em certa medida conhecer).

Por fim, Fung Yulan afirmaria que “a Filosofia chinesa é inferior à ocidental e à indiana em demonstração e em explicação; que a filosofia chinesa acentua o que o Homem é, e não o que ele tem; que ela não dá muita importância à Epistemologia; que não está interessada no conhecimento pelo conhecimento; que não contrasta o Homem e o Universo; que não desenvolveu um sistema de lógica; que subordinou a Metafísica aos assuntos humanos; que discute extensa e completamente o problema de como viver; que não é sistemática na forma, porém no conteúdo; e que só é tradicional no nome e que é progressista” (Chan, 1978: 161 e Fung, 1937: 1–6). Ainda que Fung divergisse de Chan e Hu quanto à questão conceitual e sobre a importância da filosofia chinesa, todos concordavam que a busca da eficácia no plano real e o interesse pela condição humana eram os principais guias e diferenciadores do pensamento oriental em relação ao ocidental.

Na Inglaterra e nos Estados Unidos a Academia respondeu bem a proposta, reformulando a estrutura de seus departamentos de sinologia por esta linha de direcionamento. A Universidade do Havaí, ponto central do Oceano Pacífico onde subsiste uma grande comunidade chinesa, tornar-se-ia um dos pontos de referência destas discussões, principalmente através da consagrada revista Philosophy: East and West. Inúmeros trabalhos históricos e filosóficos sobre a China iriam encontrar repercussão mundial após esta abertura. Um dos casos mais famoso, por exemplo, é a série Science and Civilization in China, organizada por Joseph Needham e publicada em Cambridge a partir da década de 50, que serviu de base — sem qualquer exagero — para a reformulação de toda a História da Ciência. Alguns outros nomes importantes poderiam ser citados para ilustrar o desenvolvimento desta corrente, cada qual com sua contribuição para o entendimento desta história chinesa através do pensamento ocidental. No entanto, esta linha continua a encontrar alguns obstáculos. Busquemos analisa-los brevemente.

O primeiro deles é o problema de terminologia. Muito se contesta a inadequação da transliteração de termos chineses para as línguas ocidentais, provocando uma série de enganos interpretativos. Há também uma forte tendência a busca específica, nos textos chineses, de valores tidos como importantes na cultura ocidental, em detrimento daquilo que pudesse vir a ser de interesse legitimamente autóctone. Por fim, alguns poucos especialistas continuam investindo na tradução de textos inéditos, enquanto a maior parte da produção sobre temas filosóficos tem apenas repetido informações antigas, sem muito acrescentar. Isso tem redundado numa abordagem superficial e pouco interessante da filosofia chinesa, que muitas vezes é confundida e suplantada por publicações de cunho esotérico e sensacionalista cujo principal atributo é apenas o de transmitir as deformações intelectuais propostas por autores desinformados.

Em contraposição a esta linha de estudo desenvolvida nos centros de língua inglesa, a Escola Francesa buscou abordar o problema do pensamento chinês por uma via completamente diversa. Sob a liderança de Marcel Granet, o mais famoso dos sinólogos franceses, desenvolveu-se a concepção de buscar compreender o pensamento chinês por si próprio. Isso significava afastar-se do problema “é ou não é filosofia” para demonstrar que o pensamento chinês possuía valia simplesmente pelo que representava historicamente, por sua profundidade conceitual (do qual os franceses adquiriram a consciência de seu desconhecimento) e pela construção de uma lógica alternativa a nossa. Esta orientação abriu uma nova perspectiva intercultural para a Europa, posto que ela se propunha a entender o cerne do pensar chinês, sua estrutura e funcionamento, e sua forma de lidar com o real — algo bastante distante do alcance da maior parte dos especialistas no início do século XX.

Em seu livro O pensamento Chinês, de 1934, Granet afirmava; “A China Antiga, mais que uma Filosofia, teve uma Sabedoria. Esta se exprimiu em obras de características muito diversas. Raríssimas vezes assumiu a forma de exposição dogmática.(...) Aliás, quase nada sabemos de positivo sobre a História Antiga da China” (1997:13-4). Este seria o tom da obra; “As noções chinesas parecem diferir profundamente deste corpo de idéias diretivas que, para nós, corresponde à Razão. Como veremos, aquelas noções se ligam a um sistema de classificação que poderia ser legitimamente aproximado das “classificações primitivas”. Seria muito fácil atribuir aos chineses uma mentalidade “mística” ou “pré-lógica”, se interpretássemos ao pé da letra os símbolos que eles reverenciam. Mas, se considerasse estranhos ou singulares esses produtos do pensamento humano, eu julgaria estar incorrendo em falta com o espírito de humanismo e com o princípio de toda pesquisa positiva. Ademais, a injustiça que estaria presente num preconceito desfavorável demonstra-se pela análise de idéia diretivas; esse quadros permanentes do pensamento são calcados nos quadros de uma organização social cuja duração é suficiente para provar seu valor; é preciso que essas regras de ação correspondam de algum modo à natureza das coisas.(...) Talvez sejamos levados a uma apreciação mais equânime do pensamento chinês ao nos apercebermos de que a credibilidade das noções que lhes servem de princípios diretivos decorre, não da popularidade deste ou daquele ensino, mas da eficiência longamente comprovada de um sistema de disciplina social" (ibidem, p.26-7).

Com esta postura, a Academia francesa começava a se livrar da incômoda herança cristã e eurocêntrica que havia dominado o panorama dos estudos sinológicos ocidentais. No campo da Filosofia, a abertura gerada estimulou o interesse pela China, que se via desvinculada da necessidade de comprovar sua “validade científica” — a civilização chinesa possuía seu próprio valor, e por isso merecia ser investigada. A curiosa distinção empregada por Granet, “mais que uma filosofia, uma sabedoria” parece significar que este saber chinês, embutido em sua própria lógica, adquiriu uma eficácia comprovada histórica e intelectualmente, motivo pelo qual tal distinção só poderia ser feita por alguém, justamente, que tenha uma visão finita do que é filosofia. O pensar chinês é um conjunto completo, orgânico, com um ritmo autêntico de funcionamento, mas aberto à recepção de novas idéias, tidas como um princípio natural e endógeno ao ser humano. O pensar, pois, é imanente, e essa imanência é a própria natureza (Jullien, 1998b). Logo, como dizer que não há filosofia na China? E, no entanto, porque buscar filosofia na China? Hoje, ainda, esta orientação de Granet é uma pedra basilar da moderna sinologia.

Paradoxalmente, a concepção francesa propiciou o campo para o debate conceitual entre o pensar chinês e o ocidental através justamente de sua diferenciação. O aprofundamento no conhecimento do Oriente deu uma base mais segura para sua interpretação. A quebra de uma hierarquia intelectual a priori tornou possível o diálogo entre saberes diferentes, e tanto europeus quanto chineses conseguiram realizar um trabalho mais profundo e menos analógico. Ainda assim, vez por outra os sinólogos são obrigados a se defrontar com um pouco de preconceito requentado, derivado do desconhecimento persistente na filosofia sobre a estrutura destes sistemas de pensamento. Esta, aliás, foi a palavra empregada num dos títulos mais recentes do gênero, Histoire de la pensée chinoise, de Anne Cheng (1997-2003). Considerado um dos melhores manuais sobre o tema publicado nos últimos anos, a autora é obrigada a explicar a distinção que faz entre “filosofia” e “pensamento”, e porque optou utilizar o segundo termo simplesmente para evitar polêmicas estéreis que envolvessem a definição do que é “filosófico”. Utilizar a palavra filosofia significa ainda, para alguns especialistas, submeter o pensar chinês à hierarquia que determina a sua necessidade de comprovar-se válido para os nossos padrões. “O Oriente ignora o conceito porque se limita a fazer coexistir o vazio mais abstrato e o ser mais trivial sem mediação alguma” (Deleuze & Guattari, 1991:90). Neste caso, Deleuze e Guattari parecem também ignorar o que é o pensamento chinês, realizando as mesmas indistinções de sempre.

Em meio as propostas inglesa e francesa (cujo plano de fundo não ignora a ação intelectual dos próprios chineses), houve também o desenvolvimento de expedientes metodológicos para realizar o trabalho de diálogo entre Ocidente e Oriente. Atualmente, dois autores significativos para a compreensão do pensar asiático, François Jullien e Raimon Panikkar, tem buscado corresponder a expectativa de investigar o pensamento asiático por um novo prisma.

André Bueno

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