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Crítica
31 de Março de 2007   História da filosofia

A República de Platão

Simon Blackburn
Tradução de Luís Gottschalk

Se é que alguns livros mudam o mundo, a República pode bem reivindicar o primeiro lugar. É habitualmente considerada a realização suprema de Platão como filósofo e escritor, brilhantemente suspensa entre os primeiros diálogos zetéticos e inconclusivos e as especulações cosmológicas e dúvidas menos impositivas dos mais tardios. No decurso dos séculos foi provavelmente objecto de mais comentários e sujeito a críticas mais radicais e apaixonadas do que a grande maioria dos outros grandes textos fundadores do mundo moderno. Na realidade, a história das interpretações deste livro constitui, por si mesma, uma disciplina académica, com capítulos de especialistas sobre quase todos os episódios da história da religião e da literatura nos últimos dois mil anos, e até mais. Para mencionar apenas os poetas ingleses mais importantes, há livros integralmente dedicados ao platonismo e Chaucer, Spenser, Shakespeare, Milton, Blake, Shelley e Colleridge, para referir apenas alguns, e muitos outros sobre movimentos e épocas inteiras: Platão e o cristianismo, Platão e o renascimento, Platão e a época vitoriana, Platão e o nazismo, Platão e nós mesmos. A história da influência directa de Platão na filosofia constitui por si mesma outro estudo, apimentado por nomes como Fílon de Alexandria, Macróbio, Porfírio, Pseudodionísio, Eriúgena, tal como os mais conhecidos Plotino, Agostinho e Dante. Por vezes, o Platão de que se trata é o autor de outros textos, nomeadamente do inspirado Banquete ou do teologicamente ambicioso Timeu. Mas a República raramente anda longe.

Quem quer que se demore pelos vastos e silenciosos mausoléus onde se alinham os trabalhos sobre Platão e a sua influência corre o risco de sufocar. Quem quer que escreva sobre este assunto tem de ter consciência de um gigantesco e relutante auditório, composto de estonteantes hordas de espíritos fiscalizando e criticando omissões e simplificações. Muitos destes espíritos pertencem aos mais brilhantes linguistas, académicos, filósofos, teólogos e historiadores das suas respectivas épocas que não vêem com bons olhos o jardim a que dedicaram as suas vidas ser espezinhado por estranhos e infiéis. E a República constitui o santo dos santos, mesmo no centro do santuário, uma vez que durante séculos foi o único tema obrigatório dos estudos filosóficos, e representou na educação desses mesmos académicos a peça central e inspiradora.

Platão escreveu a sua filosofia sob a forma de diálogos, uma forma que requer diferentes vozes e o fluxo e refluxo dos argumentos. Já na antiguidade se notou que o Sócrates, que é o herói desses diálogos, e o próprio Platão são personagens intermutáveis que facilmente admitem múltiplas interpretações: “É bem sabido que Sócrates tinha o hábito de reservar o seu conhecimento ou as suas crenças; um hábito que Platão aprovava”, escreveu Santo Agostinho. Uma maneira de interpretar isto é que Platão, e presumivelmente Sócrates, tinham realmente doutrinas a ensinar, mas, por qualquer razão irritante, preferiam revelá-las apenas parcialmente, um pouco de cada vez, numa espécie de striptease intelectual. Esta foi a orientação seguida ocasionalmente por comentadores tontos apaixonados pela ideia de mistérios esotéricos escondidos, acessíveis exclusivamente aos iniciados, entre os quais lhes agrada imaginar-se incluídos.

O modo correcto de interpretar a observação de Agostinho é que Platão sentia que a filosofia era mais o objecto de uma actividade do que a absorção de um corpo estático de doutrina. Um processo, não um resultado. Sócrates permanece o grande educador, e aqueles que o procuravam seriam simultaneamente ouvintes e questionadores, participantes no diálogo, e teriam eles próprios de enveredar pelos labirintos do pensamento. A recepção passiva da palavra de nada valeria — este havia sido um dos erros dos adversários de Platão, os sofistas, que cobravam dinheiro por fornecer o produto que vendiam como sabedoria prática (o que nos poderia fazer pensar nas pilhas de saber vazio e literatura comercial que atafulham actualmente as livrarias). No final do diálogo Fedro, de Platão, Sócrates profere um discurso contra o ler filosofia como parente pobre do fazê-la. Muitos repetiram esta ideia posteriormente. Schopenhauer descreve a leitura como um mero substituto do pensar por si e prefere citar Goethe, o alemão de saber enciclopédico: “O que herdastes dos vossos antecessores, tendes primeiro de ganhá-lo por vós mesmos a fim de poderdes possuí-lo”. Robert Louis Stevenson defendeu que a literatura não é senão a sombra de uma boa conversação. “A conversa é fluida, experimental, continuamente prosseguindo a busca e o progresso; enquanto as palavras escritas permanecem rígidas e tornam-se como que em ídolos até mesmo para o escritor, escamoteando o erro incontornável e fixando os dogmatismos no âmbar da verdade”.

A insistência no compromisso, em Platão, vai de par com a sua adopção da forma do diálogo, em que diferentes vozes se fazem ouvir, e são as curvas e contracurvas da argumentação, mais do que uma qualquer conclusão obtida, que nos ajudam a expandir o espírito, à medida que lemos. Nesta perspectiva, a filosofia consiste na descoberta através do diálogo e argumentação (“dialecticamente”); tudo o que lermos mais tarde pode, quando muito, constituir um instrumento para recordar a compreensão obtida neste processo.

Esta concepção dramática do que Platão representa torna mais difícil de criticar. Pode-se rejeitar uma conclusão, mas é muito mais difícil rejeitar um processo de expansão imaginativa e, se levarmos a sério o paralelo com o teatro, pode parecer tão tolo como “rejeitar” o King Lear ou o Hamlet. Na realidade, o paralelismo não impede a crítica, mas encoraja-a. No decurso dos dramas platónicos, as teses são afirmadas e defendidas, os argumentos apresentados e as pessoas persuadidas. Por vezes, o drama culmina numa aparente conclusão. E em todos estes casos é apropriado perguntar-se se as teses, os argumentos e conclusões são de facto aceitáveis. Fazê-lo não é nem mais nem menos do que participar no drama e entrar na arena dialéctica, a actividade que Sócrates e Platão nos recomendam.

Mas Platão e a República têm os seus detractores. No quadro de Rafael A Escola de Atenas, Platão e Aristóteles ocupam ambos o centro da cena, mas enquanto Aristóteles aponta para a Terra, Platão aponta para cima, para os Céus. Coleridge estabeleceu o mesmo contraste, dizendo que todos nascem ou platónicos ou aristotélicos, querendo significar que Platão é um místico, que se movimenta na abstracção, enquanto Aristóteles é o homem empírico e prosaico que encara as coisas como se apresentam no mundo tal qual o vemos. E Coleridge prosseguiu: “Não creio ser possível que alguém que nasceu aristotélico venha a tornar-se um platónico e tenho a certeza que ninguém que nasceu platónico pode alguma vez tornar-se um aristotélico”.

Muito da República pode ser lido como relativamente incontroverso, independentemente da nossa posição quanto ao conteúdo metafísico dos capítulos centrais da obra, em especial o excerto que todos recordam, o Mito da Caverna. Na melhor das interpretações, está muito longe de sugerir uma imagem visionária e romântica, fruto de êxtases e iluminações divinas. De facto, podemos dar-lhe um sentido menos enfático, e vê-lo como um apelo razoável a uma compreensão do mundo real do mesmo género da que, dois milénios depois, é oferecida pela ciência e pela matemática. Pode ser que Platão tenha sido terrivelmente atraiçoado pelos platónicos — um destino frequente dos grandes filósofos.

Mas há outras razões, menos doutrinais, que deviam levar-nos a considerar surpreendente a soberania da República. A obra arrasta-se infindavelmente de forma labiríntica. Longe de serem convincentes, os argumentos vão desde os menos sólidos até aos tão absurdamente frágeis que levam alguns intérpretes a negar que alguma vez tenha havido a intenção de os apresentar como argumentos. A teoria sobre a natureza humana, tal como se apresenta, é fantasiosa e pode parecer inconsistente. As suas supostas implicações políticas são fundamentalmente desagradáveis e muitas vezes chocantes. Tanto quanto Platão nos deixou um legado no domínio da política, incluem-se nele a teocracia ou governo de sacerdotes, o militarismo, o nacionalismo, a hierarquia, o conservadorismo, o totalitarismo e o completo desprezo pelas estruturas económicas da sociedade, nascido da sua condição privilegiada de esclavagista. Na República, Platão consegue ligar-se simultaneamente ao mais rígido dos conservadorismos e à mais extrema e visionária das utopias. Ainda por cima, a teoria do conhecimento da obra é um verdadeiro desastre. A tentativa de chegar ao que aparentemente pretendia — mostrar que o indivíduo moral, e só ele, é feliz — é, em grande medida, uma sequência de passes de magia.

Mais insidiosamente, na medida em que se pode falar de um estilo estético ligado a Platão, não é algo que nos possa facilmente fascinar, a menos que estejamos demasiado impregnados dele para podermos escapar-lhe. A quinta-essência do platonismo, pelo menos em Inglaterra, encontramo-la na luminescência dourada da época vitoriana tardia e da época eduardina — o vagamente homoerótico, vagamente religioso, emocionalmente paralisado, ocioso e classista mundo dos campos de jogos, colégios caros e universidades preguiçosas, o mundo de Walter Pater ou de E. M. Forster, de literatos e estetas meio esquecidos como John Addington Symonds ou Goldsworthy Lowes Dickinson, ou meninos bonitos poetas como Rupert Brooke. Esse não é o nosso mundo. Também não é propriamente um mundo de esclavagistas, mas o capitalismo regurgita os seus próprios parasitas.

Outro aspecto igualmente chocante, aos olhos de alguns, é que, ao escrever a República, Platão atraiçoou completamente o seu mestre Sócrates. Sócrates é o primeiro e o maior dos heróis liberais, mártir da liberdade de pensamento e expressão. Para autores como John Stuart Mill e George Grote — pensadores pragmáticos, liberais e utilitaristas — esse é o verdadeiro Sócrates, o eterno espírito de reflexão, crítica e, potencialmente, de oposição ao próprio estado. Mas na República ele é apresentado como um perfeito dogmático, em completo contraste com a abertura de espírito, a paciência e o espírito inquisitivo que os seus admiradores apreciam. Aparece como porta-voz de uma sociedade repressiva, autoritária, estática e hierárquica na qual tudo até mesmo as relações sexuais e o planeamento familiar é regulamentado pelas classes políticas que, deliberadamente, usam a mentira para esse fim. No sistema social que nos apresenta, o Sócrates liberal teria sido executado muito mais expeditamente do que pela democracia ateniense. Na República, o Sócrates liberal é o porta-voz da ditadura. Ao apresentá-lo desta forma, Platão atraiçoa-se a si mesmo: ele próprio, em tempos poeta, exige agora o exílio dos poetas.

Uma obra pode ter muitos defeitos e serem-lhe perdoados se o autor se revela um exemplo de doçura e luminosidade, como acontece com a personagem literariamente criada por Platão, o Sócrates dos primeiros diálogos. Mas no caso isso não nos ajuda muito. É verdade que, no início, deve ter havido em Platão a doçura e a luz necessárias à criação do Sócrates heróico e liberal. Mas se essa figura se esfuma, como acontece na República, não há muito mais que possamos colocar no prato da balança. Sabemos muito pouco sobre Platão e o que há para saber não é, de um modo geral, atraente. Integrado no seu contexto histórico, podemos encontrar um velho azedo típico, um aristocrata desiludido, odiando a democracia ateniense, convencido de que governam as pessoas erradas, com um medo profundo da própria democracia, constantemente escarnecendo dos artesãos, agricultores e, afinal, de qualquer trabalho produtivo, desprezando radicalmente todo o anseio dos trabalhadores pela educação, e, em última análise, manifestando um apego indefectível ao regime intolerável de Esparta.

Mas, como tantas vezes em Platão, há algo que confunde essa imagem, simpaticamente revelado pela reacção de Nietzsche ao facto de Platão, no seu leito de morte, ter lido Aristófanes, o autor cómico: “nada me fez meditar tanto na natureza secreta e esfíngica de Platão do que o felizmente conservado episódio de que, debaixo da almofada do seu leito de morte não havia uma bíblia, nem nada de egípcio, pitagórico ou platónico — mas um livro de Aristófanes. Como poderia Platão ter suportado a existência — uma existência grega que ele repudiou — sem Aristófanes?”

Dizem-nos que Jesus chorou, mas não que tenha rido. Com Platão, tal como com Sócrates, o riso está frequentemente mais perto do que se imagina. E isto é um bom sinal. Talvez o velho azedo não fosse, afinal, tão azedo. Mas isto não tem realmente importância, porque é a obra concreta que perdura que nos diz respeito, e não a sombra do seu autor que partiu há muito. E, aquilo que se costuma dizer, que apesar de muitos livros serem erradamente esquecidos, nenhum é erradamente lembrado, é uma verdade inquestionável. Assim, precisamos de trabalhar arduamente para nos reconciliarmos com o poder da República que, incontestavelmente, perdura. Precisamos de compreender a atracção que este livro exerceu e continua a exercer sobre a imaginação dos leitores.

Simon Blackburn
Plato’s Republic: A Biography (Nova Iorque: Groove Atlantic, 2007).
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ISSN 1749-8457