Início Menu
31 de Agosto de 2004   História da filosofia

Laozi e Zhuangzi

Mestres do Caminho
André Bueno

Em meio ao caos que se instalava no século VI a.C., a proposta do misterioso mestre Laozi (contemporâneo de Confúcio) surgiu com um elemento bastante inovador nas formas de pensar chinesas: baseando-se num distanciamento claro das decadentes instituições políticas dos Zhou, este sábio defendia, no seu Daodejing (Tratado da Virtude e do Caminho) um retorno à natureza primordial do ser, sendo esta a verdadeira busca para uma real salvação. Os tempos ancestrais representavam para Laozi uma época de paz, de desapego, que fora obtido graças à harmonização natural dos seres com o meio; mas, no intuito de fazer prevalecer esta paz, apareceram os sábios, que instituíram leis, promulgaram regras, e lançaram a desconfiança entre as pessoas, ensejando os desejos egoístas de sobrevivência e acúmulo material.

Por causa disso, a sociedade perdeu o Dao (Tao), o caminho, conceito esse já existente na mentalidade chinesa, mas que os daoístas (ou taoístas) iriam buscar desenvolver ao máximo. O Dao não poderia, em essência, ser explicado. Parece tratar-se de uma fórmula de harmonia com a natureza, onde o ser descobriria sua posição atuante no ciclo cósmico. Isso exigia que a pessoa comum, portanto, se desprendesse das coisas mundanas que a retinham no círculo vicioso das convenções sociais, para descobrir, no seu íntimo, o ritmo das relações existentes entre seu corpo, seu espírito e a natureza.

Por isso mesmo, a descrição lingüística do Dao não era possível, para os daoístas, por se tratar de uma experiência “transcendente”, desligada das sensações mundanas que governam os seres comuns. A matéria e o espírito seriam, na verdade, desdobramentos de uma única fonte primordial, inominável, que provinha da entidade geradora do cosmo, o Vazio (DDJ, 11). O Vazio geraria o princípio (Li, o um); dele, estabelece-se a dicotomia complementar fomentadora de todos os fenômenos, os princípios opostos, o Yin e o Yang. Da fusão de ambos nasce o Três, o filho, o manancial das dez mil coisas (expressão chinesa para o universo) (DDJ, 42). Este fenômeno da criação das energias seria o grande ciclo no qual a natureza se encerra e se reproduz, e para voltar a se integrar nessa realidade o ser precisaria buscar, dentro de seu próprio espírito, a noção de equilíbrio e interação que se chamaria Dao. Ele não poderia dispensar a matéria, do qual faz parte: mas pode tentar apreende-la sem desejo, sem noção de posse, o que permite então a livre expressão das propriedades das coisas (DDJ, 48, 49). Esta isenção do desejo, que permitiria o livre fluir do conhecimento é que fomenta o conceito da ação-isenta (wu wei) (DDJ, 63). Agir é, pois, atuar tentando conciliar os opostos e, ao mesmo tempo, empregar a energia adequada ao momento; é uma ação isenta de um fim específico, baseada pura e simplesmente na sua execução e vivência (tal como, num exemplo clássico, o ato de meditar).

Esta clivagem taoísta é bastante interessante: quantas vezes não deixamos de enxergar as coisas, como elas são, porque nelas projetamos nossas ânsias e desejos? É exatamente por isso que Laozi propunha uma aproximação isenta, sem o que só seríamos capazes de observar a forma externa das mesmas, e nelas continuaríamos a sobrepor nossas concepções próprias de mundo que não seriam nada mais, nada menos, do que uma deformação da realidade proposta pela cultura.

De fato, a cultura aparece aí, para os daoístas, como um filtro deformador da realidade natural, uma construção até necessária para que o homem pudesse interagir com o meio; mas, a partir do momento que a mesma se torna um sistema de domínio sobre a natureza, ela começa então a se degradar e corromper, pois passa a ser uma construção irreal (e ideal) sobre a verdade cósmica. Na ausência de harmonia entre estes princípios cósmicos ocorrem, então, os conflitos entre os países, os povos, as famílias, cada qual não percebendo a presença dos atributos universais presentes em suas naturezas (DDJ, 65).

Mas essa “individualidade natural” do ser seria de fácil acesso? Na verdade sim, e não (DDJ, 70). Ela dependeria do esforço individual de cada um, o que a torna um caminho tortuoso e complicado, mas que ao mesmo tempo está aberto diante de nós, já que fazemos parte desta natureza e não podemos dela nos separar. Este seria o Portal do conhecimento, dos mistérios, presente na entrada do Dao. (DDJ, 1)

Tais concepções conclamavam as pessoas ao estudo íntimo e a meditação profunda do papel do ser humano no seu meio. Laozi foi um tanto hermético nos seus discursos sobre o resgate da harmonia primordial, mas ao mesmo tempo foi original e autêntico, quando propôs que a real liberdade do ser não poderia ser atingida pela prática de uma cultura que trazia dentro de si o cerne da degradação. Toda e qualquer construção humana que se distanciasse de uma base natural tenderia a gerar perturbação, já que ela provocaria o surgimento de novas ânsias, duvidas, conflitos e perigos que jogariam os seres uns contra os outros. A abordagem do Caminho deveria ser feita, com segurança, através da flexibilidade do pensamento, da ação contida e do coração aberto aos movimentos do mundo.

O primeiro verso do Daodejing nos diz respeito à necessidade que os seres humanos teriam de reencontrar sua posição na natureza cósmica. Seria um engano pensarmos que somos donos de algo, já que esta consciência ideológica deriva de uma noção social, mas ela não esclarece, em si, o fato de que todos os seres nascem e morrem e apenas a natureza continua a existir. Assim sendo, nós pertencemos à natureza, e não o contrário. Laozi pensava, com isso, em chamar as pessoas à construção de uma sociedade mais harmônica, baseada na compreensão deste princípio, que nos induz a agir não de forma selvagem, mas que nos traz a consciência da transitoriedade das coisas e que, por isso mesmo, nos força à rever nossos desejos e angústias como coisas vãs, numa existência que não exige nada disso para assegurar nossa sobrevivência.

A precisão da proposta de Laozi nos faz pensar, em termos modernos, na questão da responsabilidade individual sobre o mundo. Em que medida nós assumimos um exame íntimo de nossas vidas e não criamos para elas mais necessidades do que realmente precisaríamos? A cultura, por muitas vezes, não nos induz ao excesso desmedido, criando anseios sobre coisas que seriam totalmente dispensáveis em nossas vidas, mediante um exame mais atento? Quando observamos as “comunidades primitivas”, que durante um bom tempo conseguiram estabelecer um padrão de vida bastante significativo, pautado exclusivamente na harmonia com a natureza e o meio, podemos realmente assegurar que a evolução material seria o único caminho de desenvolvimento possível para a sociedade? E ainda, as construções tecnológicas, que se propõe a serem reprodutoras da vida humana, muitas vezes não ameaçam o meio ambiente, pondo em perigo, por conseguinte, a própria existência das sociedades mundiais? Se assim for, a descoberta dos “mistérios” que envolvem o caminho não seria, nada mais, nada menos, a proposta de criação duma sociedade onde seres conscientes fossem capazes de assegurar a vida comum através de uma relação mais equânime e adaptada à realidade do meio. O caminho, portanto, seria se deixar conduzir por este movimento natural e constante, sem conflitos, sem atritos, sem desperdícios (DDJ, 76, 77). Eis uma mensagem significativa que Zhuang zi, um dos principais seguidores da linha daoísta trabalharia, posteriormente, para tornar mais acessível ao público através de inúmeras parábolas, que veremos a seguir.

Zhuangzi e o daoísmo popular

Com Zhuangzi (IV a.C.), a escola daoísta recebeu a adição de um incrível contador de histórias, que tornou o Dao acessível aos leigos, deixou uma mensagem humanística profunda e surpreendeu a todos com sua sensibilidade, agudeza e humorismo.

O texto de Zhuangzi não era menos profundo de que o de Laozi; mas sua maior virtude, talvez, tenha sido a de tornar a idéia do dao menos hermética, mais legível e compreensível, ilustrando-a com parábolas instrutivas e, muitas vezes, divertidas. Se Confúcio era um apaixonado pela história tradicional, com seus discursos edificantes e diretos, Zhuangzi era um artesão de contos sutis e despojados. Ao defender o caminho proposto pelos daoístas, este autor questionou diversas vezes o senso comum, a ideologia e a cultura. Como afirma em um de seus contos:

“Se um homem dorme em um lugar úmido, resfria-se e morre. Mas e as enguias? Viver em cima de uma árvore é difícil, e esgota os nervos de qualquer um. Mas que me dizes dos macacos? Entre o homem, a enguia e o macaco, quem habita o lugar certo, absolutamente? Os seres humanos alimentam-se de carne, o gamo de erva, as centopéias de cobras, as corujas e corvos de ratos. Desses quatro, qual é o gosto certo, absolutamente? O macaco se une a macaca, o gamo à corça; as enguias unem-se aos peixes, enquanto os homens admiram Mao Qiang e Li Chin à vista dos quais os peixes mergulhariam, horrorizados, na profundidade das águas, as aves voariam alto no Céu e os gamos fugiriam correndo. Quem dirá, contudo, qual é o correto padrão de beleza? Na minha opinião, o padrão da virtude humana, e do positivo e negativo, é tão obscuro que é impossível realmente saber qual seja”.

Vejamos a primeira fábula: quem pode saber o que é melhor, em absoluto? Quantas vezes alguém pode indicar um caminho, achando que é o melhor para o outro, desconhecendo-lhe por completo o íntimo? Zhuangzi não negava o valor da experiência humana, mas contestava sua abrangência e especificidade. O que os seres vivem, em geral, são construções ideológicas e culturais alheias aos impositivos do espírito (ZZ, 2), mas como se pode vivenciar esta mesma espiritualidade em meio as demandas da sociedade? Quem pode saber, realmente, o que é melhor para nós, senão nós mesmos? Zhuangzi não era, porém, um defensor do egoísmo e da imaturidade. Para ele, as experiências humanas deveriam ser a base sobre qual nós observaríamos a vacuidade das causas e efeitos, e não uma muralha, construída pelas decepções, que fechariam nossa alma ao mundo. Em geral, o chamado “conhecimento da vida” seria, na visão deste pensador, nada mais do que um conjunto de amarguras e rancores que induzem as pessoas à sempre lutarem pelo que é transitório, o que dá prestígio, por aquilo que não é a definitiva realidade do ser. As sensações não podem servir para igualar, a todos, numa visão egocêntrica e pessimista do mundo: elas têm por fundamento, na verdade, mostrar às pessoas as diferenças que existem entre os seres da natureza. E isto não faz com que haja, necessariamente, uma hierarquia cósmica que determine a posição de cada um no universo; cada qual tem, de fato, seu lugar nos ciclos naturais, cada um com sua importância, ninguém melhor ou pior do que o outro.

É por isso que Zhuangzi recusou as honrarias de um bom cargo:

“Zhuangzi estava pescando no rio Pu, quando o príncipe de Zhu mandou dois altos funcionários convidá-lo para assumir o cargo de administrador do Estado Zhu. Zhuangzi continuou pescando e, indiferente, disse: “Ouvi falando que em Zhu há uma tartaruga sagrada que morreu há cerca de três mil anos. E que o príncipe guarda cuidadosamente essa tartaruga em um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa tartaruga seria melhor estar morta e ter os seus restos venerados, ou estar viva e arrastando a sua cauda na lama?””Seria melhor estar viva e arrastando a sua cauda na lama”, responderam os dois altos funcionários. “Ide embora!”, gritou Zhuangzi. “Eu também prefiro arrastar a minha cauda na lama”.

Porque se deixar prender em obrigações matérias e transitórias, cujas preocupações cotidianas e monótonas nada tem haver com a realidade última do mundo (ZZ, 17)? Vivendo de pequenos trabalhos, ele conseguia dar de comer a sua família. Tinha o que precisava para seu sustento, então porque querer mais? Seria comodismo? Ou a negação daquilo que muitos querem, o Poder e o Prestígio?

A força impositiva, na visão daoísta, é efêmera e rápida, em contraposição a suavidade, que é durável e sutil. Assim também seriam o Poder e o Prestígio: hoje, um homem é soberano; e amanhã, escravo de outro rei. Somente aqueles que percebessem o caminho seriam capazes de compreender que todas essas coisas passam. A fome, sim, seria uma realidade; nascer, morrer, procriar, eis o que todos fazem, do mais alto político até o mais baixo popular. Disto Zhuangzi concluía que todas as disputas em torno de valores, posses, bens e posições nada mais eram do que construções humanas, pois todos, enfim, precisam do mesmo básico para viver. Afirmando uma idéia já proposta por Laozi, o segredo da vida consiste em desenvolver a capacidade de ser flexível e adaptável.

É por isso que Zhuangzi encerra brilhantemente sua vida retribuindo, à natureza, seu corpo (ZZ, 32). A mesma Mãe que dá, é a que tira. E, no entanto, como podemos achar que não fazemos parte dela, se somos entes perenes, já que no ciclo cósmico não há perdas, mas apenas manifestações da mesma matéria? Como podemos nos fazer mais ou menos importantes que outros, se somos feitos do mesmo princípio e se necessitamos das mesmas coisas? (ZZ, 7)

Zhuangzi é um apanágio sobre o preconceito e sobre o egoísmo. Não que Lao zi não tenha se pronunciado, e bem, sobre estas coisas, mas Zhuangzi explorou-as ao máximo, aproximando seu discurso das pessoas mais ignorantes e menos instruídas. A salvação estaria ao alcance de todos, e ela seria facilmente alcançada por aqueles que conseguissem de desprender dos grilhões materialistas do mundo para perceber, com naturalidade, a presença do caminho (Dao), da existência real do Ser.

Muito nos impressiona ver que, no século IV a.C., este autor já era capaz de discutir as diferenças sociais e materiais sob uma ótima humana, isenta de preconceitos, pautada unicamente numa crítica ao mundo, e não somente à sua cultura. Se nesta época já era possível realizar tal inferência, vemos que a criação de um conceito humanístico não é privilégio de nenhuma sociedade, mas de uma sabedoria universal, inerente a todos os povos.

André Bueno

Bibliografia

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457