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4 de Outubro de 2006   Lógica

O que é uma condição necessária?

Desidério Murcho

Usa-se por vezes um certo tipo de exemplos de condicionais, em contextos didácticos, que, estritamente falando, não devem ser usados. Porque se usa esses exemplos, surgem perplexidades com respeito à definição de condição necessária. O objectivo deste artigo é mostrar que tais perplexidades têm origem no uso de exemplos inadequados, e explicar por que razão tais exemplos são inadequados.

Por definição, uma condição suficiente é a antecedente de uma condicional, e uma condição necessária é a consequente de uma condicional. As definições são as seguintes:

Def. 1) P é a condição suficiente de Q se, e só se, a condicional indicativa “Se P, então Q” for verdadeira.
Def. 2) Q é a condição necessária de P se, e só se, a condicional indicativa “Se P, então Q” for verdadeira.

Estas definições são metalinguísticas porque são mais claras deste modo. É fácil ver como seriam as definições em modo linguístico: a segunda, por exemplo, seria assim: Q é a condição necessária de P se, e só se, se P, então Q. Assim, uma condição necessária para estar em Braga é estar em Portugal, pois se alguém está em Braga, está em Portugal. Contudo, se usarmos um certo tipo de exemplos, parece absurdo insistir que a consequente das condicionais é sempre uma condição necessária (ou seja, a Def. 2 parece errada). O tipo de exemplos em causa é o seguinte:

1) Se estiver Sol, vou à praia.

Parece pura e simplesmente absurdo declarar que uma condição necessária para fazer Sol é a pessoa que profere 1 estar na praia: parece evidente que a presença dessa pessoa na praia não é uma condição necessária para que faça Sol. Contudo, é evidente que uma condição necessária para estar em Braga é estar em Portugal — porque a seguinte condicional é verdadeira: “Se alguém está em Braga, está em Portugal”. Ou seja, é falso que uma pessoa que está em Braga não está em Portugal — mas é estranho afirmar que estar Sol quando quem proferiu 1 não está na praia é uma falsidade. Afinal, se a pessoa entretanto morrer e não for à praia, nem por isso deixa de estar Sol.

As condicionais como 1, contudo, são enganadoras. Para explicar porquê é necessário falar um pouco do tipo de coisas diferentes que podemos fazer com as palavras.

Podemos usar palavras para descrever estados do mundo, exprimir opiniões, fazer promessas, ameaças e perguntas — entre muitas outras coisas. Um caso particularmente interessante de coisas que podemos fazer com as palavras é promessas ou declarações de intenções em geral. Ora, neste caso, escondem-se algumas subtilezas que é necessário compreender correctamente. Quando alguém diz “Prometo devolver-te o livro que me emprestaste” não está, estritamente falando, a fazer uma afirmação comparável a algo como “O livro que me emprestaste é muito interessante”. O próprio acto de proferir aquelas palavras constitui a promessa. É o que se chama um acto ilocutório (Austin 1962, Searle 1979): faz-se algo com as palavras que não é do domínio estritamente linguístico. Há vários tipos de actos ilocutórios, sendo que só nos assertivos o locutor se compromete (ou simula comprometer-se, se estiver a mentir) com a veracidade do que afirma. Assim, um acto assertivo é algo como “Está a chover”: o locutor está a declarar o que julga ser um estado de coisas do mundo; ou algo como “A pena de morte devia ser abolida”: o locutor está a declarar o que julga ser uma verdade moral. Em contraste, os actos compromissivos não comprometem o locutor com uma verdade, mas antes com o cumprimento de uma dada acção. As promessas são o caso mais saliente de actos compromissivos — o locutor compromete-se a realizar determinada acção. Mas qualquer declaração de intenções de acção constitui um acto compromissivo — e o caso mais evidente é precisamente o caso da nossa condicional: “Se estiver Sol, vou à praia”. Neste caso, o locutor está a comprometer-se a realizar uma dada acção — ir à praia — no caso de se verificar uma determinada condição — fazer Sol.

Assim, estritamente falando, a condicional problemática não tem realmente valor de verdade — tal como as exclamações, perguntas, ordens ou promessas não têm valor de verdade. A condicional “Se estiver Sol, vou à praia” é como a condicional “Se estiver frio, fecha a janela” — tal como as ordens, as promessas não têm canonicamente valor de verdade.

É uma tentação tentar defender, contra a tipologia canónica de Searle e Austin, que as promessas e as declarações de intenções têm afinal valor de verdade com base em algo como o seguinte: se o João disser “Prometo devolver-te o livro amanhã” e não o fizer, dizemos geralmente que o João mentiu. Mas este tipo de observação é insuficiente porque a linguagem é demasiado vaga. Dizemos que ele mentiu tal como dizemos que uma proposição é válida — porque usamos as palavras de forma algo descuidada. Estritamente falando, o João não mentiu — apenas faltou à sua promessa. Se tivesse mentido, estaria a dizer uma falsidade; se estivesse a dizer uma falsidade, não teria prometido; e se não tivesse prometido, não poderia ter faltado à promessa — caso em que chegamos ao absurdo de ter de admitir que é impossível faltar às promessas: tudo o que podemos fazer é mentir. Logo, este argumento não estabelece que as promessas têm valor de verdade.

Outra motivação para defender que as promessas têm valor de verdade é a seguinte: imaginemos que o João está a dizer “Prometo devolver-te o livro amanhã”. Alguém pode correctamente descrever o que o João acaba de fazer dizendo “O João prometeu devolver o livro amanhã”. Ora, esta última afirmação é claramente assertiva — exprime uma proposição, ou seja, tem valor de verdade. Este exemplo pretende provar que as promessas têm afinal valor de verdade. Mas de facto não prova coisa alguma; afinal, quando, em vez de estar a prometer algo, o João está a beijar alguém, com certeza que o que ele está a fazer não tem valor de verdade — mas a descrição do que ele está a fazer tem valor de verdade: “O João está a beijar alguém”. Assim, do facto de podermos descrever, com um acto assertivo, o acto de prometer, não se segue que os actos de prometer são, em si, assertivos — e portanto não se segue que as promessas têm valor de verdade.

As promessas são apenas um caso particular da classe geral de actos ilocutórios nos quais o locutor se compromete com algo ou declara as suas intenções. Assim, quando alguém declara que irá à praia dadas certas condições, a sua elocução não é assertiva — e como tal não tem valor de verdade. Por isso, não se deve usar este tipo de condicionais compromissivas quando se procura ilustrar as condições de verdade das condicionais — tal como não se devem usar condicionais como “Se estiver Sol, vais à praia?” nem “Se estiver frio, fecha a janela!”. É preciso garantir que nos exemplos para ilustrar condicionais assertivas se usam exclusivamente condicionais realmente assertivas, como “Se estiver Sol, a temperatura será mais elevada”, “Se alguém está em Braga, está em Portugal” ou “Se um aluno tiver menos de 8 valores, reprova”. Compreende-se assim por que razão só no caso das condicionais compromissivas as suas consequentes não estabelecem condições necessárias para as suas antecedentes: uma condicional na qual a sua antecedente ou consequente não constitui uma asserção é uma condicional sem valor de verdade.

Quem defende que as promessas têm valor de verdade não ficará evidentemente convencido com este artigo — nem esse é o seu objectivo. O objectivo é apenas mostrar o seguinte: se todos os exemplos que põem em causa a definição canónica de condição necessária como a consequente de uma condicional indicativa verdadeira se baseiam em condicionais compromissivas, a resposta a esses exemplos é simplesmente a canónica — mostrar que as condicionais compromissivas não têm valor de verdade e portanto não estabelecem condições necessárias. Cabe a quem defende que as promessas têm valor de verdade apresentar uma nova definição de condição necessária.

Contudo, a definição canónica de condição necessária em termos de consequente de uma condicional indicativa verdadeira parece ser colocada em causa por outro tipo de exemplos que não envolvem actos compromissivos. Vejamos o seguinte caso:

Se está Sol, então 1 = 1.

Esta condicional é indicativa e verdadeira, dado que a sua consequente é uma verdade necessária. Mas parece absurdo admitir que a identidade entre 1 e 1 é uma condição necessária para fazer Sol. Logo, não devemos aceitar que as consequentes das condicionais são condições necessárias.

Este argumento falha, mas esconde uma subtileza. Dado que se define condição necessária em termos da consequente de uma condicional verdadeira, temos de aplicar à noção de condição necessária o mesmo tipo de distinções que aplicamos às condicionais.

Costuma-se distinguir a condicional material da implicação estrita. A distinção é a seguinte: uma implicação material, ou uma condicional, é verdadeira exactamente quando a antecedente é falsa ou a consequente verdadeira. Assim, a condicional “Se Sócrates nasceu em Paris, é egípcio” é verdadeira — apesar de ser intuitivamente falsa, pois temos tendência para ler a condicional como se exprimisse a seguinte ideia: “Sendo as coisas como são, se Sócrates tivesse nascido em Paris, teria sido egípcio”. Ora, esta condicional contrafactual(1) é falsa, pois se Sócrates tivesse nascido em Paris, sendo as coisas como são, teria sido francês.

A implicação estrita difere da condicional material porque exprime uma necessitação da condicional: uma condicional com a forma “Se P, então Q” só é uma implicação estrita se for verdadeira em todos os mundos possíveis (isto é, quando □(P → Q)). Assim, a condicional “Se Sócrates nasceu em Paris, é egípcio” é uma implicação estrita falsa porque não é uma condicional verdadeira em todos os mundos possíveis, apesar de ser verdadeira no mundo tal como é. Consequentemente, ser egípcio não é uma condição necessariamente necessária para Sócrates ter nascido em Paris — mas é uma condição materialmente necessária, ou contingentemente necessária, pois no mundo tal como é a condicional indicativa é verdadeira.

Eis outro exemplo: uma condicional como “Se alguém está em Braga, está em Portugal” é uma condicional indicativa verdadeira, mas não é necessariamente verdadeira — por outras palavras, a implicação material é verdadeira, mas a implicação estrita é falsa. A implicação estrita é falsa porque não é verdadeiro que em todos os mundos possíveis nos quais uma pessoa está em Braga, está em Portugal — pois há mundos possíveis em que Braga é uma cidade espanhola, por exemplo. O que isto significa é que estar em Portugal não é uma condição necessariamente necessária para estar em Braga: é uma condição contingentemente necessária para estar em Braga.

Voltando à condicional “Se está Sol, 1 = 1”: esta é uma implicação estrita verdadeira e portanto é também uma implicação material verdadeira (todas as condicionais estritamente verdadeiras são materialmente verdadeiras, mas não vice-versa). Portanto, a identidade entre 1 e 1 é uma condição necessariamente necessária para estar Sol: em todos os mundos possíveis em que está Sol, a identidade mantém-se. Contudo, é contra-intuitivo dizer que a identidade entre 1 e 1 é uma condição necessária para estar Sol. Isto acontece porque a condicional não exprime uma relação causal entre a antecedente e a consequente: não é o Sol que causa a identidade entre 1 e 1, ou que a torna possível. Por outras palavras, a condicional não exprime uma condicional nomológica relevante. Por isso, a identidade entre 1 e 1 não é uma condição nomologicamente necessária para estar Sol — mas é uma condição materialmente necessária para estar Sol, porque é uma condição estritamente necessária para estar Sol. Para que uma consequente seja uma condição nomologicamente necessária da antecedente, a condicional em causa tem de ser nomologicamente relevante: algo como “Se está Sol, a temperatura aumenta”. Dado que quando uma condicional refere fenómenos naturais a expressão “condição necessária” fica associada a relações causais entre fenómenos, qualquer condicional indicativa verdadeira que não seja nomologicamente relevante (ainda que seja uma implicação material verdadeira ou uma implicação estrita verdadeira) parece constituir um contra-exemplo à definição canónica de condição necessária. Contudo, trata-se de uma ilusão que resulta de não se ter em conta os vários tipos de condições necessárias — tantas quantas os tipos de implicações existentes — e de não se ter em conta que Q só é uma condição nomologicamente necessária de P se a condicional “Se P, então Q” for nomologicamente relevante. Mas do facto de Q não ser uma condição nomologicamente necessária de P não se segue que não é uma condição necessária em qualquer outro sentido.

Podemos assim concluir que a identidade entre 1 e 1 é uma condição materialmente necessária e estritamente necessária para estar Sol — mas não é uma condição necessária nomologicamente relevante para estar Sol. Em sintonia perfeita com isto, a condicional em causa é materialmente verdadeira e estritamente verdadeira, mas não é uma condicional nomologicamente relevante. Note-se, contudo, que é uma condicional nomologicamente verdadeira — dado que, por definição, uma condicional é nomologicamente verdadeira se, e só se, é verdadeira em todos os mundos possíveis com leis da natureza iguais às nossas. Dado que a condicional é verdadeira em todos os mundos possíveis, tenham ou não leis da natureza iguais às nossas, segue-se que é verdadeira também em todos os mundos nomologicamente possíveis. Ora, as condicionais nomologicamente relevantes são precisamente as que são falsas em pelo menos um mundo possível com leis da natureza diferentes das nossas: é através desse contraste que confirmamos, digamos assim, a ligação nomológica entre a antecedente e a consequente da condicional. Por exemplo, a condicional “Se aquecermos o metal, ele dilata” exprime uma condicional nomologicamente relevante porque em alguns mundos possíveis com leis da natureza diferentes os metais não dilatam quando são aquecidos, mas dilatam em todos os mundos possíveis com leis da natureza iguais às nossas. Portanto, para exprimirmos condições necessárias nomológicas, temos de garantir que a condicional em causa é verdadeira em todos os mundos nomologicamente possíveis, mas falsa em pelo menos algum mundo nomologicamente impossível.

Outro exemplo que levanta dificuldades à definição canónica de condição necessária é o seguinte:

Se o Sporting ganhar, Figo fica feliz.

Este caso parece, uma vez mais, desafiar a ideia de que as consequentes são condições necessárias das antecedentes. Pois a felicidade de Figo não parece uma condição necessária para que o Sporting ganhe: é perfeitamente possível que o Sporting ganhe sem que Figo fique feliz (imagine-se que Figo morre antes do fim do jogo, ou que acontece uma calamidade à sua família mais querida). Mas, ao exprimir a nossa perplexidade deste modo, denunciamos o modo como estamos a entender a condicional: não como uma implicação material, mas como uma implicação estrita. Para que a implicação material seja verdadeira basta que Figo fique feliz no mundo tal como é. Mas para que a implicação estrita seja verdadeira, Figo tem de ficar feliz em todas as circunstâncias em que Sporting ganhar, e não apenas nas circunstâncias do mundo tal como é. Dado que há circunstâncias possíveis em que Figo não fica feliz apesar de o Sporting ganhar, a condicional não exprime uma implicação estrita — e portanto não exprime uma condição necessária estrita, ou uma condição necessariamente necessária. Podemos ser tentados a dizer que a condicional é nomologicamente verdadeira, mas isso não é verdade. Na melhor das hipóteses, há uma boa correlação entre a vitória do Sporting e a felicidade de Figo. Mas há muitos mundos possíveis em que Figo não fica feliz apesar da vitória do Sporting: mundos em que alguma desgraça se abateu sobre Figo momentos antes da vitória do Sporting (pode ter partido uma perna, perdido um familiar querido, etc.).

Em conclusão, diferentes tipos de condicionais assertivas exprimem diferentes tipos de condições necessárias; mas as condicionais não assertivas, como as compromissivas, não exprimem condições necessárias. Em contextos didácticos é necessário dar muita atenção às condicionais que se usam para exemplificar condições necessárias e suficientes.(2)

Desidério Murcho

Notas

  1. Uma condicional contrafactual tem como antecedente algo que é contrário aos factos. Por exemplo, factualmente, Platão era grego. Qualquer condicional como “Se Platão tivesse sido egípcio, teria sido um poeta” é uma condicional contrafactual, dado que Platão não era egípcio. As condições de verdade das condicionais contrafactuais diferem das condições de verdade das condicionais indicativas. A condicional contrafactual “Se Platão tivesse nascido em Paris no século XIX, teria sido alemão” é falsa, mas entendida como uma condicional indicativa (que seria expressa como “Se Platão nasceu em Paris no século XX, é alemão”) é verdadeira — porque a antecedente é falsa.
  2. Este artigo resulta de uma dificuldade levantada por Aires Almeida. Agradeço a sua insistência na dificuldade e a profícua discussão que se seguiu. Este artigo é parcialmente também da sua autoria. Agradeço igualmente as objecções de António Paulo Costa, que me ajudaram a esclarecer melhor alguns aspectos, assim como os comentários de Artur Polónio e de António Padrão, que ajudaram a esclarecer perplexidades importantes.

Referências

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ISSN 1749-8457