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30 de Setembro de 2005   Lógica

O mundo não respeita a lógica?

Matheus Martins Silva

Um dos argumentos utilizados por subjetivistas é a de que o mundo não tem que respeitar as leis da lógica, que não passariam de convenções humanas. O jovem Nietzsche em carta a um amigo é um exemplo deste modo de pensar: “Meu caro, as visões da vida não são criadas nem anuladas pela lógica! Eu me encontro bem nestes ares, tu em outros. Respeita o meu nariz como eu respeito o teu!”. O problema dessa argumentação é que ela resulta de uma incompreensão do que é a lógica. Mas o que é a lógica?

A lógica consiste no estudo e sistematização da argumentação correta. Entre outras coisas, a lógica nos permite distinguir os argumentos corretos dos incorretos e perceber porque razões um argumento é correto ou incorreto. Mas por que razão é importante argumentar? Porque um dos principais meios de descobrirmos a verdade e distingui-la de ilusões é argumentar e justificar nossas idéias; por isso a lógica é tão importante. Argumentamos o tempo todo, fazemos ilações de todos os tipos entre diversas coisas, não só na atividade filosófica, mas também no dia-a-dia: seja um empresário que pretende tomar uma decisão importante, um político que pretende convencer o eleitorado ou um filho que pede aumento de mesada ao pai, todos se utilizam da lógica.

Agora que já explicamos o objeto de estudo da lógica e sua importância, podemos entender o equívoco das afirmações de Nietzsche. A lógica não é independente do mundo. A lógica trabalha com relações de valores de verdade, mas o que determina os valores de verdade e as relações entre eles é o mundo, não é a lógica. A lógica apenas exprime essas verdades. Um argumento em que as premissas podem ser verdadeiras e a conclusão falsa é inválido, não porque assim desejamos, mas porque as circunstâncias efetivas do mundo assim o determinam. Tomemos um exemplo de argumento inválido:

Se Deus criou o mundo há seres vivos organizados.
Há seres vivos organizados.
Portanto, Deus criou o mundo.

O argumento é inválido porque a conclusão não se segue das premissas. De fato, há seres vivos organizados, mas isso não implica em dizer que Deus criou o mundo. Poderiam existir outras causas para os seres vivos, causas físico-químicas, por exemplo. Por um lado, podemos saber pela forma lógica que o argumento é inválido, pois a conclusão não se segue das premissas; por outro lado, podemos constatar que a segunda premissa é verdadeira verificando na própria realidade o seu valor de verdade: realmente há seres vivos organizados. Mas mesmo que admitíssemos a primeira premissa como verdadeira, o que é questionável, isso não nos permitiria concluir que Deus criou o mundo; e nada que eu pudesse dizer em contrário mudaria esse simples fato, porque as circunstâncias efetivas do mundo são tais que a conclusão não se seguirá das premissas.

Já o fato de ser impossível que um argumento válido contenha premissas verdadeiras e a conclusão falsa o é não porque exista uma lei da lógica convencionada que assim determina, mas porque o mundo é tal que torna impossível o contrário. Tomemos um exemplo de argumento válido:

As pessoas que estudam lógica têm uma boa preparação filosófica.
O João estuda lógica.
Logo, o João tem uma boa preparação filosófica.

O argumento é válido porque seria impossível que as premissas fossem verdadeiras e a conclusão falsa, uma vez que sua estrutura lógica determina que a verdade dessas premissas implica a verdade da conclusão. Se de fato as pessoas que estudam lógica têm uma boa preparação filosófica e o João é uma dessas pessoas, necessariamente ele terá uma boa preparação filosófica. Sendo as premissas verdadeiras a conclusão não pode ser falsa, e por mais que insistisse em dizer o contrário o mundo não vai se modificar por isso.

Na verdade, quando se diz que algo é uma impossibilidade lógica o que se quer mostrar é que o mundo é tal que torna algumas coisas impossíveis, e podemos saber disso recorrendo apenas à lógica e ao significado dos termos. Por exemplo, tomemos a seguinte afirmação:

Deus existe e não existe.

O mundo é tal que torna impossível — logicamente impossível — que Deus exista e não exista, visto que é uma mera verdade lógica que nada pode existir e não existir. Essa proposição se contradiz a si mesma porque afirma e nega o mesmo fato: afirma que Deus existe e simultaneamente afirma que Deus não existe. Podemos dizer que isso é impossível por efeito do modo como o mundo é. Portanto se uma afirmação descreve algo logicamente impossível essa afirmação descreve algo impossível ou necessariamente falso.

É claro que podemos dizer que há verdades que não são verdades lógicas, mas de outra espécie, como por exemplo:

A água é H2O.
Curvelo é uma pequena cidade do interior de Minas Gerais.

A primeira afirmação é uma verdade química ao passo que a segunda afirmação é uma verdade meramente geográfica, mas não há nada nessas afirmações que seja inquietante ou problemático para as pretensões da lógica. São verdades que escapam ao domínio da lógica, mas isso não implica em dizer que essas verdades violam a lógica. É necessário que isso fique bem claro, pois muitas pessoas partilham da noção equivocada de que ou admitimos a lógica como um instrumento para se chegar a verdades ou a consideramos irrelevante. Mas é claro que essa forma de pensar é um falso dilema: a lógica não é o único instrumento para se chegar à verdade. Se não fôssemos capazes de ver o mundo à nossa volta como poderíamos, na imensa maioria das vezes, saber se uma afirmação é verdadeira ou falsa? A experiência também é uma importante fonte de verdade.

Sem recorrer à experiência grandes cientistas como Galileu não teriam feito qualquer descoberta. Contudo, a lógica não se faz menos importante por isso, como diz o próprio Galileu: “O número de pessoas que raciocinam bem em questões complicadas é muito menor do que o daquelas que raciocinam mal”. Ora, se a lógica nos permite distinguir a boa argumentação da má argumentação, se com a lógica podemos raciocinar de modo mais rigoroso, por que razão deveria ela ser descartada como uma ferramenta inútil ou de pouco valor? Ao invés, constitui um instrumento dos mais importantes.

A lógica é tão necessária que sequer podemos argumentar de modo satisfatório contra ela mesma sem utilizá-la e conhecê-la. Em resposta a um interlocutor que desafiou Epicteto a demonstrar o valor da lógica, este último argumentou da seguinte forma:

“Queres que te prove isso?” A resposta foi “Sim”. “Então tenho de usar uma forma demonstrativa de discurso”. O interlocutor aceitou. “Como saberás então se te estou a enganar com um sofisma?” E quando o homem ficou em silêncio, Epicteto disse: “Estás a ver? Tu próprio admites que a lógica é necessária, pois sem ela nem podes determinar se a lógica é necessária ou não”. (Epicteto, Discursos, Livro 2, cap. 25)

O que o argumento demonstra é que mesmo que queiramos saber se os argumentos que pretendem demonstrar a necessidade da lógica são sólidos, temos de usar a própria lógica.

Outro ponto interessante são as motivações psicológicas dos opositores da lógica. Geralmente o que se verifica é que os adversários da lógica têm algo a perder se admitirem o papel regulador da lógica: seja porque possuem crenças que apesar de emocionalmente reconfortantes são absurdamente contraditórias, seja por serem incapazes de justificar racionalmente suas crenças. São essas motivações espúrias, completamente alheias à lógica, que levam esses opositores a rejeitarem o raciocínio correto. Na verdade, eles sabem em que prateleira deve se colocar a lógica sem nada conhecer da mesma, exceto que esta representa um perigo para a suas crenças. Se dissermos que a lógica é um instrumento inútil que não merece ser levado a sério, qual é o próximo passo? Dizer que a procura da verdade não precisa mais ser pautada pela discussão pública e aberta das idéias; afinal, haveria muitas verdades que escapam ao domínio da lógica e da racionalidade. É por isso que seus críticos freqüentemente afirmam que a lógica é demasiado castradora e fria, como diz Nietzsche: “a lógica escraviza a linguagem”.

Qualquer pessoa que tenha estudado lógica seriamente sabe que há algo de errado nesse modo de pensar; há muitas pressuposições como, por exemplo, a de que a lógica eliminaria modos de expressão como a poesia, as metáforas, etc. Bom, para ser breve: uma das características da lógica é a criatividade. Poderia citar inúmeras razões sendo uma delas o fato de que estudar lógica exige pensar em possibilidades diferentes e circunstâncias novas ao avaliar os diferentes argumentos — o método dos contra-exemplos e dos mundos possíveis é um perfeito exemplo disso. A lógica também não elimina a poesia nem proíbe metáforas, mas apenas avalia e diferencia a boa argumentação da má argumentação em qualquer lugar que esta se encontre: na literatura, na filosofia ou na ciência.

Também se diz freqüentemente que a lógica é muito limitada por se basear em três princípios: a identidade, a não-contradição e o terceiro excluído. A realidade, diz esses críticos, é muito complexa para ser compreendida por esses princípios. Esse último argumento, mais do que os anteriores, demonstra uma enorme ignorância, pois várias lógicas modernas violam essas leis. As lógicas intuicionistas, por exemplo, abandonaram o princípio do terceiro excluído. A lógica não é uma disciplina pronta e acabada, mas levanta diversos problemas filosóficos que estão na ordem do dia. Mas essas são conclusões que só quem se deu ao trabalho de estudar a lógica está em condições de afirmar e é claro que tais críticos não estão interessados em saber verdadeiramente o que é a lógica. Na verdade o que realmente querem dizer com “a lógica é castradora”, é que a lógica disciplina o pensamento, além de inviabilizar idéias ambíguas, contraditórias e infantis. Mais uma vez, só mesmo as pessoas interessadas em devaneios rebuscados e elucubrações sem fundamento sentem a necessidade de afirmar que são em demasia “limitadas” pela lógica. Um pensamento rigoroso e preciso é um veneno para esse modo de pensar.

Por fim, devemos pedir a esses opositores que sejam ao menos conseqüentes com suas idéias. Afinal, a filosofia é uma disciplina essencialmente dialética que procede por meio de argumentos e contra-argumentos. A atividade filosófica se preocupa em responder questões tão fundamentais que só muito raramente a experiência pode resolvê-las e não temos outros instrumentos a não ser a avaliação crítica dos diferentes argumentos, suas objeções, contra-exemplos, etc. De fato, o raciocínio lógico desempenha um papel tão indispensável e proeminente na filosofia que torna inacreditável a postura de alguém que insiste em permanecer na atividade filosófica apesar de negar esses mesmos princípios. Os que negam a lógica negam também a filosofia, além de abrir espaço para um relativismo castrador, pois não podemos considerar seriamente as questões filosóficas se o “nariz” do outro é o critério de verdade, como disse o jovem Nietszche na carta.

Matheus Martins Silva

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ISSN 1749-8457