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9 de Fevereiro de 2005   Lógica

Argumentação e lógica formal

John Shand
Tradução de Artur Polónio

1.1 O objectivo geral deste livro é apresentar os instrumentos básicos e os princípios do raciocínio correcto em argumentos, e sugerir como se devem adquirir processos habituais de ultrapassar as forças causais que minam o raciocínio. Ele destina-se a preceder, e a preparar para, qualquer curso que envolva a avaliação e a construção de argumentos. Mas espera-se também que o livro contenha ideias que o leitor considere interessantes em si mesmas, e seja capaz de aplicar na generalidade, na condução da sua vida.

1.2 É tornado claro no livro qual o valor do raciocínio, e que a natureza da razão em si é logicamente distinta dos processos psicológicos envolvidos na aquisição de crenças. Usar a razão, isto é, raciocinar, é um processo psicológico, e é igualmente distinto da razão em si. Raciocinar é uma maneira de adquirir crenças, na verdade uma maneira cujos méritos são aqui defendidos, mas o raciocínio correcto não é definido pelo facto de ser um bom caminho para a crença. Um processo de raciocínio pode conduzir ou não a uma crença, no seu termo. O raciocínio, seja bom ou mau, não está relacionado com o efeito de se ter uma crença, mas com o ser essa crença justificada ou não. Faz-se aqui uma distinção nítida entre lógica e retórica (no sentido lato): entre os processos que fazem com que cheguemos a conclusões (retórica) e o termos justificação para sustentar essas conclusões com argumentos (lógica). O raciocínio pode, com efeito, convencer-nos a acreditar numa proposição, mas pode ser-nos oferecido um raciocínio perfeitamente sólido, quer seja esse o resultado quer não.

O objectivo do livro é duplo:

  1. Habilitar o leitor a avaliar mais activamente textos ou discursos, quando o objectivo dessa avaliação for a qualidade dos argumentos; e habilitar o leitor a construir melhores argumentos mais conscientemente, quer a escrever quer a falar, quando a qualidade dos argumentos for a preocupação prioritária.
  2. Habilitar o leitor a enfrentar melhor essas forças que tenderiam a causar que o leitor raciocinasse mal, ou não raciocinasse de todo, em circunstâncias em que deveria fazê-lo.

1.3 Há argumentos teóricos subjacentes ao livro, que são em parte disputáveis, mas a sua consideração aprofundará, espero, a avaliação do leitor das noções de razão e de raciocínio. A disputa teórica do autor é que a noção de raciocínio correcto pode ser reduzida a uma certa ideia básica. Essa ideia é a de solidez dedutiva tal como é definida pelas noções de validade e verdade. Isto torna decisiva a distinção entre bons e maus raciocínios porque, se alguma coisa conta como raciocínio correcto, é o raciocínio dedutivo. O objectivo aqui não é tanto estabelecer este ponto de vista teórico, mas antes dar ao leitor um instrumento útil para avaliar os méritos de argumentos que encontrar, na leitura ou na fala, e para construir os seus próprios argumentos.

O presente ponto de vista é essencialmente reducionista a respeito dos bons argumentos e das falácias. O raciocínio correcto pode ser reduzido a uma única noção, a de solidez dedutiva: (a) as premissas devem ser verdadeiras e (b) o argumento deve ser válido para que a conclusão se siga das premissas, de tal maneira que afirmar as premissas e negar a conclusão envolveria uma contradição, isto é, seria inconsistente. É só a partir de (a) e (b) que um argumento susceptível de dar a alguém uma razão para aceitar uma conclusão como verdadeira é, em última análise, derivado. Inclui-se na análise da validade que se trata de uma questão de forma, e que ninguém deveria distrair-se com conteúdo irrelevante ao avaliar a validade. Os argumentos individuais são válidos porque são instâncias de formas válidas de raciocínio: formas argumentativas válidas. Desta maneira, espera-se, a noção de raciocínio correcto pode ser aplicada a qualquer situação, independentemente do assunto.

1.4 O que é frequentemente referido como “falácias” são significativas não por serem erros de raciocínio formal — tais erros são habitualmente tão óbvios que dificilmente valerá a pena assinalá-los —, mas antes por serem estratagemas psicológicos de retórica pensados para induzir enganosamente as pessoas a pensar que lhes foi apresentado um bom argumento quando não foi, de modo a persuadi-las a aceitar uma conclusão. Talvez isso suceda desse modo porque não há nenhum bom argumento a favor da conclusão. Para evitar falácias só se requer que nos mantenhamos nos princípios do raciocínio correcto — a conclusão segue-se realmente de premissas verdadeiras —; desta maneira, todas as falácias colapsam em conjunto. A característica distintiva do que é frequentemente chamado falácias não é o seu fracasso formal em subsistir segundo as regras da solidez dedutiva — embora também possam fazê-lo —, mas antes a sua efectividade no sentido estratagemas psicológicos de acordo com os quais se pensa que se está perante um bom argumento quando não é o caso. A única verdadeira falácia, afinal, é aquela onde houve uma falha em argumentar com solidez dedutiva: premissas verdadeiras e um argumento válido.

1.5 Além disso, é uma disputa teórica deste livro que a única coisa que pode dar a alguém uma boa razão para ter uma crença ou realizar uma acção é que há um argumento sólido a favor delas, um argumento de acordo com o qual a conclusão é ou a crença em questão, ou a prescrição segundo a qual a acção em questão deveria ocorrer. Nem as crenças nem os factos sobre o mundo podem, por si mesmos, dar a alguém uma razão para acreditar em, ou fazer, seja o que for. Tanto umas como outros podem causar que alguém tenha outras crenças, ou aja, mas isto é diferente de ter uma razão. Que isto não é óbvio, é obscurecido pela trivialidade de argumentos latentes ou tácitos que dão a falsa impressão de que nos movemos directamente de crenças ou factos para uma conclusão. Todavia, se se tem de todo uma razão para acreditar ou para agir, então deve ter-se um bom argumento — um argumento que ligará, com toda a probabilidade, outras crenças ou factos à crença ou acção finais, numa estrutura de justificação normativa. Factos e crenças, tal como os processos causais, são em si mesmos logicamente inertes; em si mesmos, não sustentam se se tem ou não razões. Só se ligados num argumento é que têm força racional.

Por exemplo: é possível dizer-se que tenho uma razão para não escalar um penhasco se acredito que é quebradiço, ou que tenho uma razão porque ele é, de facto, quebradiço — mas nem crença nem facto por si só me dão uma razão. Só parece tal porque tacitamente pressupomos um bom argumento (ou, no mínimo, um argumento), talvez algo no género das seguintes linhas rudes.

Não quero magoar-me e morrer.
Rochas quebradiças em penhascos como este, se escalados, são uma maneira provável de alguém se magoar ou morrer.
Estas rochas são quebradiças ou acredito que o são.
Logo, não deveria escalar o penhasco.

Esta disputa tem cabimento mesmo nos casos em que a simples percepção está envolvida. Pode pensar-se que tenho uma razão para acreditar que há um copo de água à minha frente se posso vê-lo. Mas, embutido em “ver” há um argumento, familiar aos filósofos se não a outros, ligando o facto de eu ter uma experiência de ver um copo de água ao facto de eu ter uma razão para acreditar que há um copo de água. É, na verdade, matéria de debate filosófico o quão forte este argumento pode ser — mas, seja como for que ele se revele, um argumento é essencial para eu estar justificado, para eu ter razão. Em suma, há um argumento segundo o qual ver um copo em determinadas circunstâncias é uma boa razão para acreditar que há um copo para ver. O facto de eu meramente ver o copo, em si mesmo, não implica nada. Não é, de facto, difícil pensar em casos em que poderíamos estar iludidos. Mais uma vez, seja o que for que pensemos acerca disso, estamos sempre envolvidos num argumento, e estamos a dizer tacitamente que há um bom argumento quando disputamos a verdade de uma certa crença, ou que se tem uma razão para agir de uma certa maneira. É que, na maior parte do tempo, em virtude da familiaridade, não reparamos que tais argumentos latentes são tacitamente pressupostos.

1.6 Faz-se uma distinção importante entre o insucesso (e o sucesso) objectivo de argumentos e o insucesso (e o sucesso) de argumentos pessoais. Um argumento bem-sucedido oferece uma razão para a sua conclusão ser verdadeira. No sentido objectivo, um argumento tem sucesso se é uma instância de uma forma argumentativa válida, onde haveria contradição em afirmar as premissas e negar a conclusão, e se não inclui senão premissas verdadeiras. Se a alguém é oferecido tal argumento, é-lhe dada uma boa razão para aceitar que a conclusão é verdadeira, quer ele (ou seja quem for) o faça quer não. Todavia, mesmo se a alguém é oferecido tal argumento, esse argumento pode não lhe dar uma boa razão para aceitar a verdade da conclusão. Assim, um argumento pode falhar, no sentido pessoal, porque a pessoa a quem é dirigido pode ser incapaz de aceitar a verdade das premissas ou de ver que ele é válido. O argumento pode ser bem-sucedido no sentido objectivo — ter premissas verdadeiras e ser válido — e, no entanto, falhar no sentido pessoal, se uma pessoa não pode aceitar as premissas ou aceitar que o argumento é válido. Note-se que o inverso não é o caso: um argumento não pode ser bem-sucedido no sentido pessoal e, no entanto, falhar no sentido objectivo. Se um argumento falha no sentido objectivo — ou porque contém premissas falsas, ou é inválido, ou ambos —, então não pode oferecer a ninguém uma boa razão a favor da verdade da conclusão, isto é, uma razão no sentido pessoal, porque ele não oferece de todo uma razão, o que quer que as pessoas que o vêem possam pensar sobre ele, e quão aceitável possam considerá-lo. Uma pessoa pode pensar que um argumento lhe dá uma razão para aceitar a verdade da conclusão; mas, se não é um bom argumento no sentido objectivo, então essa pessoa está errada.

Deve notar-se que a distinção entre “objectivo” e “pessoal” não é uma questão psicológica, mas uma questão puramente conceptual. No sentido pessoal, os argumentos falham não porque sejam incapazes de persuadir psicologicamente, mas porque, se uma pessoa ou não sabe se as premissas são verdadeiras, ou é incapaz de ver que a conclusão se segue das premissas, então a essa pessoa não foi oferecida uma razão para acreditar que a conclusão é verdadeira — embora no sentido objectivo lhe possa ter sido oferecida tal razão. Em tais casos, para que um argumento tenha sucesso no sentido pessoal, posso ter necessidade de elucidação e talvez de justificação adicional dada às premissas — as premissas que considero inaceitáveis tornar-se-ão a conclusão de outro argumento que eu possa aceitar — e, dessa maneira, poderei aceitar a conclusão do argumento original. Não é uma questão de me persuadir, mas de me oferecer uma justificação. Tudo o que é requerido para o sucesso objectivo de um argumento é que as premissas sejam verdadeiras e que ele seja válido, caso em que a conclusão é verdadeira, quer ninguém possa ver essas coisas quer não. Na verdade, pode ser o caso em que ninguém pode saber se um argumento tem premissas verdadeiras (podemos não ter acesso a informação que confirmaria as premissas), ou se o argumento é válido (pode ser de tal modo complexo que fique para lá da nossa compreensão), por razões práticas ou mesmo em princípio; mas, apesar de tudo, pode ser um bom argumento no sentido objectivo.

1.7 Deixem-me dar um exemplo de como a distinção entre “objectivo” e “pessoal” funciona na prática. No sentido pessoal, é inútil a um oncologista, no que respeita a apresentar um bom argumento, apresentar-me um argumento a favor da conclusão de que tenho cancro a partir de premissas que são inaceitáveis para mim, seja porque não sei se são verdadeiras, seja porque estão para lá da minha compreensão. Do mesmo modo, é inútil a um oncologista, no sentido pessoal, no que respeita a apresentar um bom argumento, apresentar-me um argumento a favor da conclusão de que tenho cancro cuja validade não consigo ver, talvez porque está para lá da minha compreensão. Se deve ser-me oferecida uma boa razão para aceitar a verdade da conclusão na base de um argumento (ao contrário de aceitar a conclusão por acreditar que o oncologista tem um bom argumento e é competente), então deve ser-me oferecido um argumento que eu possa ver que é válido e que tenha premissas que eu possa aceitar, ainda que o argumento original fosse perfeitamente bom no sentido objectivo, tanto por ser válido como por ter premissas verdadeiras. Deve ser-me oferecido um bom argumento no sentido pessoal. Se o meu médico me diz que tenho cancro, e eu não compreendo o argumento ou não sei se as premissas são ou não verdadeiras, de tal modo que não consigo ver racionalmente como chega ele à sua conclusão, então, para me oferecer um bom argumento, o médico precisa de argumentar de maneira mais simples, a fim de que eu compreenda e possa aceitar. Há, obviamente, limites a quão simples e básicos os argumentos podem chegar.

Claro que se poderia, em qualquer caso, aceitar a conclusão do oncologista; mas não deveríamos fazê-lo com base na confiança (seja isso o que for), ou porque ele é, só por si, um “especialista”, mas porque pensamos que ele está a argumentar validamente a partir de premissas verdadeiras, quer eu consiga compreender isso quer não. Se ele tem tal argumento, então a conclusão de que tenho cancro é verdadeira. Decerto que a conclusão pode ser, em todo o caso, verdadeira; mas, se não se segue validamente de premissas verdadeiras, então não há qualquer argumento a seu favor. O apelo à autoridade de um especialista em cancro para estabelecer se tenho ou não cancro pode parecer, num certo sentido, um bom argumento em si mesmo — mas isto é uma ilusão, excepto se por “especialista em cancro” queremos dizer alguém muito mais capaz do que a maioria de ordenar bons argumentos, no sentido objectivo, em matéria de cancro. A verdadeira questão não é o que chamamos a uma pessoa, ou que autoridade é suposta ter, mas se ela é ou não competente na construção de bons argumentos: deduzindo validamente conclusões de premissas verdadeiras.

1.8 Argumenta-se, por vezes, que o raciocínio dedutivo, só por si, é excessivamente restritivo para caracterizar o que é permissível, em termos de raciocínio correcto: que há outras maneiras não-dedutivas de raciocinar perfeitamente legítimas, dependendo das circunstâncias. Isto inclui supostos argumentos baseados, por exemplo, na autoridade, na emoção, na opinião popular e, claro, na indução, que são ditos legítimos em determinadas circunstâncias. Eu acredito que isto é um erro. Em cada caso, as putativas maneiras legítimas de raciocinar não-dedutivamente só o são porque dependem tacitamente da noção básica de dedução. A confusão surge porque não se vê isso, mas, em vez disso, a legitimidade do argumento é imputada às circunstâncias de superfície e ao facto de se poder acabar por chegar a crenças verdadeiras. Mas chegar a crenças verdadeiras não é suficiente para mostrar que a maneira pela qual se lá chega é um bom argumento, ou que, na verdade, é de todo um argumento — para isso é necessário que seja oferecida uma razão para a crença, ainda que esta seja verdadeira; e, para isso, ela deve surgir como a conclusão de um fragmento de dedução sólida. Em qualquer dos casos, ou há um argumento em que, começando com premissas verdadeiras e prosseguindo com validade dedutiva, é possível derivar a conclusão, ou não há — e, se não há, apesar das aparências, tais como o apelo à autoridade, não se tem uma razão para aceitar a verdade da conclusão.

Há uma crença segundo a qual deve haver formas legítimas de raciocínio mais fracas do que a dedução, se devemos fazer justiça à maneira como realmente raciocinamos. Mas isto confunde a natureza do raciocínio correcto — que é o dedutivo — com a nossa capacidade de conhecer a verdade das premissas requerida para transformar essas formas mais fracas de raciocínio em fragmentos de dedução sólida. Frequentemente temos de nos contentar com raciocínios que são menos do que dedutivamente perfeitos não porque o raciocínio menos perfeito seja legítimo em si mesmo, mas porque somos incapazes de conhecer a verdade das premissas que o tornariam num fragmento dedutivo de raciocínio. Assim, pomo-las de parte. Mas, se temos justificação para acreditar de todo que uma conclusão é verdadeira na base de um argumento, tais premissas têm de ser verdadeiras e o argumento válido.

1.9 Diz-se comummente que uma fonte de raciocínio legítima, que não a dedução, é a indução. Os argumentos indutivos são de tal ordem que as suas conclusões ultrapassam o conteúdo das suas premissas. Pode-se argumentar da premissa “Todos os cisnes observados são brancos” para a conclusão “Todos os cisnes são brancos”. Dedutivamente, isto é falacioso, na medida em que as premissas podem ser verdadeiras e a conclusão pode ser falsa sem que haja contradição envolvida — de facto, a conclusão é falsa. Ver a indução como uma forma legítima de raciocínio é, a meu ver, um erro. Só é legítima enquanto vista como uma forma de raciocínio dedutivo com premissas suprimidas. Na verdade, todos os argumentos não-dedutivos deveriam ser vistos como entimemas: isto é, argumentos dedutivos, se são de todo argumentos, com premissas suprimidas. A questão de saber se as premissas podem ser estabelecidas como verdadeiras é um assunto inteiramente diferente de saber o que constitui um raciocínio correcto. Se não podemos estabelecer as premissas como verdadeiras, de modo a fazer de um argumento um argumento dedutivamente válido, então tanto pior para o argumento; isso não deveria conduzir-nos a forjar a legitimação espúria da suposta “validade” de formas de raciocínio, tais como a indução, que são mais fracas do que a dedução sólida. As premissas requeridas para transformar as formas mais fracas em dedução sólida podem ser verdadeiras, caso em que a sua inclusão oferece uma razão em favor da verdade da conclusão, quer possamos saber que essas premissas são verdadeiras quer não. A nossa capacidade para as estabelecer como verdadeiras não deveria levar-nos a considerar nada que não seja a solidez dedutiva como propriamente raciocínio.

O que poderia transformar um argumento indutivo num dedutivo seria a adição, em qualquer caso de raciocínio indutivo, de um Princípio de Uniformidade da Natureza. Na verdade, na falta de tal premissa é difícil ver de que maneira seja o que for se segue necessariamente das premissas habitualmente encontradas no raciocínio indutivo. O Princípio de Uniformidade da Natureza dirá qualquer coisa como: há leis da natureza, e elas mantêm-se universalmente, tanto no espaço como no tempo. Considere-se o seguinte argumento indutivo:

Todas as rochas em liberdade próximas da superfície da Terra observadas caem na direcção do centro da Terra.
Logo, esta rocha em liberdade próxima da superfície da Terra cairá na direcção do centro da Terra.

Esta é uma amostra de raciocínio incrivelmente fraco, e absolutamente inválido, a menos que algum Princípio de Uniformidade da Natureza seja incluído no argumento, juntamente com uma lei universal acerca do comportamento das rochas e da gravidade. É um problema notoriamente difícil, em filosofia, justificar o Princípio de Uniformidade da Natureza: a sua negação não implica contradição e, no entanto, a tentativa de estabelecê-lo por observação sujeita-se a ser circular. Mas a dificuldade, ou talvez mesmo impossibilidade, de estabelecer o Princípio de Uniformidade da Natureza como verdadeiro não deveria nem levar-nos a pensar no raciocínio indutivo como uma forma legítima de raciocínio, nem levar-nos a pensar a sua inclusão, que tornaria dedutivo o raciocínio indutivo, como irracional. O mesmo se aplica ao problema de estabelecer as leis naturais universais requeridas. O Princípio de Uniformidade da Natureza, tanto quanto sabemos, pode muito bem ser verdadeiro. Se o é, então a sua inclusão em fragmentos de raciocínio indutivo, de maneira a torná-lo dedutivo, significa que temos uma razão perfeitamente boa para aceitar como verdadeira a conclusão de semelhante raciocínio. Mais uma vez, não deveríamos considerar que a nossa incapacidade para conhecer a verdade das premissas implica que não temos, se o argumento é válido, um argumento dedutivo sólido a favor da verdade da conclusão, no sentido objectivo: se as premissas são verdadeiras, e o argumento é válido, a conclusão é verdadeira.

1.10 Outro a argumento a favor da suposição de que há formas mais fracas de raciocínio do que a dedução é a crença errada de que se só o raciocínio dedutivo fosse válido, no nosso raciocinar sobre o mundo, isso restringiria de alguma forma o mundo a um curso de necessidade dedutiva, descrito num esquema de verdades necessárias, quando ele é, de facto, contingente (poderia ter sido de outra maneira). Mas este receio tem origem na confusão a respeito do trajecto entre as premissas e a conclusão ser necessário na dedução — uma vez que a negação da conclusão entraria em contradição com essas premissas — com o facto de as premissas serem necessárias. É perfeitamente adequado que as premissas de um argumento dedutivo sejam contingentes e, se assim for, também a conclusão será contingente. A dedução mostra, se as premissas forem verdadeiras, que outras verdades devem seguir-se como conclusões. Mas isto não significa que as conclusões sejam verdades necessárias (não poderia ser de outra maneira).

Por autocontradição entende-se uma proposição com a forma p e não-p; por exemplo, “chove e não chove”. Uma proposição autocontraditória afirma e nega o mesmo facto; afirma algo e, simultaneamente, afirma o oposto. Se a negação de uma proposição é uma contradição, então ela é uma verdade necessária. Se a asserção de uma proposição é uma contradição, então ela é uma falsidade necessária. Em qualquer outro caso — a negação não é autocontraditória e a sua asserção não é autocontraditória — uma proposição é contingente: pode ser verdadeira ou pode ser falsa.

Dizer que, num argumento dedutivo válido, se as premissas forem verdadeiras, então a conclusão será verdadeira, não é dizer que a conclusão deve ser verdadeira, no sentido em que a negação da conclusão seria autocontraditória — o que mostraria tratar-se de uma verdade necessária — mas apenas que a sua contradição contradiria as premissas. A dedução mostra o que deve ser verdade se as premissas forem verdadeiras. A menos que as premissas sejam verdades necessárias, a dedução é perfeitamente compatível com o facto de as conclusões serem contingentes.

Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

Este é um argumento válido. Não há nada de autocontraditório em negar a conclusão e afirmar que “Sócrates não é mortal”, embora isso seja falso. O argumento mostra apenas que se as premissas forem verdadeiras, então a conclusão deve seguir-se e ser verdadeira. Mas claro que não há nada de autocontraditório em negar as premissas e afirmar que “nem todos os homens são mortais” e “Sócrates não é homem”, embora essas asserções sejam falsas. Logo, se as premissas são contingentes, então também a conclusão o será, mesmo num argumento dedutivamente válido. A conclusão não tem mais necessidade do que as premissas. Seria um erro abandonar a dedução quando se raciocina sobre o mundo empírico porque pensamos, com razão, que as verdades sobre o mundo não são necessárias. Só na matemática e na lógica se encontram tais verdades necessárias. Mas raciocinar dedutivamente sobre o mundo empírico não pressupõe que se pensa que as verdades sobre o mundo são verdades necessárias.

1.11 Onde é que isto deixa a noção comum de oferecer um bom argumento a favor de qualquer coisa quando esse argumento pode ser menos do que dedutivamente sólido? Há um sentido perfeitamente normal, que segue o uso comum, em que algo menos do que um argumento dedutivamente sólido conta como um “bom argumento”. Considere-se o seguinte caso:

Deixei, há uma hora, no meu quarto, o meu livro, que agora desapareceu.
Tu és a única pessoa na casa, para além de mim.
Conclusão: Tu tiraste o livro do meu quarto.

Isto parece um “bom argumento”, no sentido comum: de um modo habitual, diríamos alegremente que a conclusão se segue das premissas. Mas será que se segue? Eu sugiro que o argumento só parece ser bom porque o transformamos tacitamente num argumento dedutivamente válido. Tal como está, não é dedutivamente válido. Isto pode ser testado perguntando se é possível as premissas serem verdadeiras e a conclusão falsa. A resposta é, seguramente, sim. Por outras palavras, podemos perguntar se teria havido contradição entre as premissas e a negação da conclusão. A resposta é, seguramente, não. A razão pela qual se pensa ser um bom argumento é que há toda a espécie de premissas suprimidas, de natureza mais ou menos pateta e rebuscada, que tacitamente usamos para fazer funcionar o argumento, algumas das quais são o resultado de argumentos que aceitámos anteriormente. A conclusão podia ser falsa, ainda que as premissas fossem verdadeiras, se, por exemplo, os livros pudessem movimentar-se por sua conta e risco, ou se extraterrestres se tivessem materializado no meu quarto e abduzido o livro, ou se eu tivesse enlouquecido e não fosse capaz de lembrar-me de nada por mais de dez minutos. Todas estas conjecturas são, certamente, remotas, mas não logicamente impossíveis e, nas devidas circunstâncias, não tão improváveis quanto isso. Que suceda que as não as levemos a sério é, frequentemente, o resultado de conclusões a que chegámos raciocinando noutras alturas.

1.12 Outro exemplo. Alguém grita “Fogo!” com grande convicção como um “argumento” na base do qual deveríamos abandonar o edifício — a conclusão “Devo abandonar o edifício” não se segue, é claro, logicamente — mas, neste caso, eu seria doido se parasse para pedir um argumento correcto, do género “O edifício está em chamas, se ficares morres de uma maneira horrível, ora não queres morrer de uma maneira horrível, logo deves abandonar o edifício”, nem seria sensato par a pessoa que gritou “Fogo!” pensar em oferecer-me um. Contudo, a razão pela qual ouvir apenas “Fogo!” parece ser uma boa razão para retirar a conclusão que leva alguém a agir, aqui, é que se assume que algum argumento sólido semelhante subjaz a um sincero grito de “Fogo!”. Há, na verdade, um bom argumento para dizer que esta não é uma situação apropriada para apresentar bons argumentos tradicionais, mas antes para simplesmente gritar “Fogo!”. Todavia, isto não significa que encontrámos uma nova forma argumentativa, na qual meramente gritar “Fogo!” é um bom argumento.

1.13 Diz-se frequentemente, aos leitores de livros sobre raciocínio crítico, em matéria de avaliação de argumentos não-dedutivos, para pensarem em maneiras nas quais a conclusão podia ser falsa, mesmo sendo as premissas verdadeiras. Mas, a menos que o argumento em questão seja dedutivo, isto não dá ao leitor qualquer orientação relativamente ao que é um argumento válido, porque não lhe dá qualquer orientação relativamente ao que conta como especulação razoável, na qual a conclusão é supostamente falsa, ao passo que as premissas permanecem verdadeiras. À excepção do caso de um argumento dedutivamente sólido, há inúmeras maneiras, talvez infinitas em número, nas quais a conclusão podia ser falsa, ainda que as premissas fossem verdadeiras. A única maneira de avaliar a verdade ou falsidade das especulações que podemos produzir é derivá-las como conclusões de outros argumentos. E é melhor que esses argumentos sejam dedutivos, ao contrário do argumento original, ou embarcaremos numa regressão infinita de argumentos, sem qualquer método para avaliar a respectiva validade ou a validade de qualquer argumento.

1.14 Tudo isto aponta no sentido da minha reivindicação de que a ideia nuclear de um bom argumento é a solidez dedutiva, e que os argumentos são tanto melhores quanto mais próximos estiverem de ser dedutivamente sólidos. Parte-se de premissas verdadeiras, e o que entraria em contradição com essas premissas, se negado, é verdadeiro. Neste sentido dedutivo, a conclusão segue-se das premissas: se estas premissas são verdadeiras, então isto segue-se dedutivamente. Não sei de outra maneira segundo a qual as conclusões se seguem verdadeiramente das premissas.

1.15 Argumentar-se-á, talvez, que na vida real as pessoas não vão encontrar argumentos reais, apresentados de maneira estritamente dedutiva, claramente reconhecíveis como casos de raciocínio dedutivo. Isto é, certamente, verdade. Mas não é razão para se concluir que há formas de raciocínio mais fracas do que a dedução sólida que sejam argumentos legítimos por direito próprio. São legítimos porque podem tornar-se argumentos dedutivos cujas premissas são verdadeiras (sucesso objectivo), e talvez também cujas premissas podemos aceitar como verdadeiras (sucesso pessoal). Não vemos isto porque, frequentemente, o que impediria um argumento de ser dedutivamente sólido pode ser rejeitado como disparate, e o que é requerido pode ser aceite como óbvio — em tais casos, sem passarmos pelo processo de fazer isto, estamos, no sentido comum, justificados quanto a aceitarmos as conclusões como verdadeiras, e a fazermo-lo na base de um bom argumento. Os “argumentos reais” não exibem um tipo de raciocínio novo ou legítimo para além dos exemplos mais formais; não têm uma lógica diferente exclusivamente sua, oposta aos exemplos artificialmente construídos. Antes são, na medida em que servirem como tal, argumentos que devem obedecer às mesmas regras que qualquer argumento, apenas estão expressos em diferentes graus de complexidade e obscuridade. Argumentos complexos e obscuros, se servem para alguma coisa, são construídos por partes simples que são sólidas.

Não ajuda, ao pensar nos argumentos que podemos encontrar na vida real, oferecer às pessoas uma lista de regras proibidas e permitidas, para além das que caracterizam a solidez dedutiva. A dedução é a noção básica e clara que não permite excepções. A tentativa de codificar regras para as complexidades dos “argumentos reais” dar-nos-ia uma confusa série de “faz” e “não faças” que seria impossível de aplicar. Nem a tentativa de codificar tais regras faz justiça à flexibilidade subtil da nossa inteligência — na verdade, é esta mesma flexibilidade que é, decerto, o item definidor da superioridade da inteligência humana. Criticar esta abordagem é como criticar um livro sobre condução correcta por não fornecer regras para lidar com todas as situações rodoviárias possíveis: não só tal prontuário seria impossível, mas a tentativa de o usar produziria algo, na melhor das hipóteses, inútil e, na pior, perigoso. Todos sabemos que, acima do nível de principiante, a melhor maneira de nos tornarmos bons nalguma coisa é simplesmente fazê-la; é desse modo que, em última análise, aprendemos e melhoramos.

1.16 O que apresento aqui é a noção básica de raciocínio correcto: o que é o raciocínio correcto, se é que algo conta como raciocínio correcto. A única maneira de melhorar a capacidade de raciocinar, para além deste guia básico para o essencial, é fazê-lo. Isto não vale só relativamente a tornarmo-nos proficientes em matéria de raciocínio, mas também para adquirirmos o hábito de raciocinar, a fim de que possamos combater as forças que nos levam a abandonar a razão quando não deveríamos fazê-lo. Quando as pessoas olham para argumentos deveriam perguntar-se:

a) São as premissas verdadeiras?
b) É o argumento válido?

Se a resposta a uma ou a ambas as questões é “não”, então o argumento falhou no sentido de não oferecer uma razão a favor da verdade da conclusão. A conclusão pode ser verdadeira, mas não foi dada nenhuma razão para ela ser verdadeira. Quem avalia o argumento pode, então, prosseguir introduzindo subtilezas em casos particulares, subtilezas que são excessivamente complexas para serem caracterizadas ou úteis enquanto regras.

1.17 Não discuto neste livro a natureza da verdade. Isto porque se trata de uma questão epistemológica que está para além do objectivo do livro. Limito-me a assumir, o que é suficiente para o meu propósito, que há um sentido no qual as proposições podem ser ditas verdadeiras ou falsas, e que todas as proposições são ou verdadeiras ou falsas. Que isto sucede com as proposições é quanto basta para caracterizar a natureza do raciocínio correcto. Mas é possível dizer que as proposições, que podem ser premissas em argumentos, podem ser verdadeiras (ou falsas) independentemente de ser possível saber-se se o são. Esta é a distinção entre algo ser verdadeiro e o pensar-se que o é. Há um sentido indisputável em que se concordaria que existe tal noção de verdade. Por exemplo, é verdadeiro que as aranhas, geralmente, ou entram nas banheiras trepando pelo ralo, ou caem nelas depois de, rastejando pelo bordo, serem incapazes de trepar pelas superfícies lisas. A primeira é uma crença comum, mas de facto é a última que é verdadeira. A noção de raciocínio correcto não depende de nenhuma noção de verdade, apenas de que há uma.

De que modo, ou, na verdade, se as premissas de um argumento são estabelecidas como verdadeiras não é uma questão de raciocínio enquanto tal, no sentido em que não temos de comprometer-nos com a maneira como, ou se, tal pode acontecer, a fim de caracterizar o raciocínio correcto. Tudo o que é requerido a fim de caracterizar o raciocínio correcto é que as premissas sejam verdadeiras e que a conclusão estabelecida seja tal que a sua negação contradiria essas premissas.

1.18 Reiterando a tese estabelecida em § 1.5, disputo que, num certo sentido, os argumentos sejam a única maneira de estabelecer a verdade das proposições, incluindo as premissas — que podem formar o conteúdo das nossas crenças e a base das nossas razões para agir. Mais uma vez esta é, estritamente falando, uma reivindicação que se situa para lá do objectivo deste livro; mas, se for verdadeira, enfatiza a importância da argumentação. Assim, acrescentarei qualquer coisa para defender essa reivindicação. Pode dizer-se que, muitas vezes, se mostra que as proposições são verdadeiras não porque se sigam de outras proposições verdadeiras, mas por confrontação com a experiência — observando a maneira como as coisas são no mundo. Suponhamos que queremos estabelecer uma verdade do género da trivial “O gato está no tapete”. Agora suponhamos que procuramos confirmar a premissa olhando na direcção do tapete para ver se o gato lá está. Suponhamos que parece lá estar. Sustenta esta experiência, por si só, a reivindicação de que a proposição “O gato está no tapete” é verdadeira? Se pensamos que sim, é só porque aceitamos inconscientemente vários argumentos implícitos. Para que o ter a experiência implique que a asserção “O gato está no tapete” é verdadeira tem que estar alguma espécie de argumento envolvido. Pode ser tão directo como: desta espécie de experiência, nestas circunstâncias, é possível concluir seguramente que a proposição “O gato está no tapete” é verdadeira. Seja qual for o argumento, há alguma espécie de argumento envolvido que liga a experiência à legitimidade de sustentar certas coisas como verdadeiras na base dessa experiência. Muitos filósofos têm defendido que mesmo estabelecer as nossas crenças mais básicas acerca do mundo na base da experiência é problemático. O dirigirmo-nos simplesmente à experiência sem que um argumento esteja envolvido não mostra nada. Na base da mesma experiência de ver um gato, se soubéssemos que estávamos sob a influência de uma droga alucinogénica, poderíamos concluir, com razão, lembrando-nos de que não temos gato, que não há um gato no tapete, ou que o gato é uma bola de futebol. Em qualquer caso, há-de haver algum argumento acerca de como o nosso conhecimento depende da nossa experiência em geral e, em cada caso, daquela experiência em particular, para que as proposições sejam implicadas como conclusões das nossas experiências.

Em geral, à excepção das verdades que podem ser conhecidas porque a sua negação é autocontraditória, tais como 2 + 2 = 4 (sendo a sua negação 1 + 1 + 1 + 1 ≠ 1 + 1 + 1 + 1), as verdades são conhecidas pela maneira como se situam relativamente ao mundo que experienciamos, tal como “Londres tem mais de 5 milhões de habitantes”.

1.19 Neste livro dá-se também muita ênfase a factores que se situam para lá da razão, que conduzem à corrosão, ou mesmo ao abandono completo, do raciocínio. O que leva, frequentemente, as pessoas a raciocinar mal, ou a não raciocinar de todo, não é uma deficiência em compreender o raciocínio correcto — a necessidade de ir de premissas verdadeiras a conclusões que se sigam delas —, mas antes uma espécie de cegueira psicológica induzida por factores estranhos ao processo de raciocínio. Essas forças podem ser contrariadas adquirindo bons hábitos mentais que constituam uma força contrária, levando a que se racione quando se deve. Tais hábitos podem ser mais bem adquiridos e fortalecidos pela prática do raciocínio, particularmente naquelas matérias sobre as quais nos parece difícil raciocinar — não tanto porque o raciocínio envolvido seja complexo e trabalhoso (embora possamos desistir quando não deveríamos fazê-lo por causa disso) — mas porque consideramos que é psicologicamente desconfortável empregar a razão nessas matérias. Pode tratar-se de crenças queridas; aquelas cuja perda pensamos trazer medo e tristeza; aquelas que simplesmente aceitámos durante muito tempo; aquelas que dizem a temas emotivos, acerca dos quais é difícil manter a cabeça fria; aquelas que sentimos que devemos ter porque são consideradas verdadeiras por aqueles que amamos ou respeitamos; aquelas que estão embutidas numa longa tradição cultural; aquelas em que nos sentimos pressionados a acreditar pelos que nos rodeiam — aquelas em que podemos acreditar por uma porção de causas que tornam difícil para nós aplicar-lhes a razão. Desta maneira, se formos capazes de empregar a razão nestes casos difíceis, tornar-nos-emos mais fortes em tender a empregar a razão em qualquer outro caso em que deveríamos fazê-lo.

Isto não significa confrontar a lógica com a psicologia, mas, pelo contrário, enfatizar a distinção entre argumentos e poder; entre o que constitui um bom processo de raciocínio em ordem a justificar uma conclusão e o processo causal que leva a uma crença; entre o que é um bom argumento e o que pode produzir crença. Estas duas questões são logicamente independentes. É claro que, quando alguém raciocina, há um processo causal a desenrolar-se na sua cabeça; mas se se trata de raciocínio correcto ou não é completamente independente quer do curso, quer do resultado desse processo causal. O que define o raciocínio correcto é prescritivo ou normativo, e não descritivo. A correcção do raciocínio é definida pela verdade e pela validade — pela natureza da razão —, não pelo que de facto acontece causalmente. A tendência a raciocinar e o acto de raciocinar, mas não a razão em si mesma, são processos causais e, logo, têm algum poder em levar-nos a sustentar certas crenças. Mas não podemos confiar em que a inclinação inata natural seja suficientemente forte para nos induzir a começar a raciocinar — ou, uma vez que tenhamos começado, a prosseguir —, porque há forças irracionais alinhadas contra ela. Isto não contradiz o que foi dito acerca da independência estrita da razão enquanto tal relativamente a causas, porque aquilo de que se trata aqui não é o que caracteriza a natureza da razão em si mesma, mas apenas do que acontece quando se raciocina. Assim, muitas vezes o acto de raciocinar é fraco e facilmente desviado, ou não chega, de todo, a ter início, precisamente naqueles casos em que deveria sê-lo. Por isso insisti na importância de criar resistências às forças causais sempre que raciocinamos quando deveríamos e raciocinamos correctamente. Estas forças que minam o nosso raciocinar bem — o nosso bem argumentar — são negligenciadas nas discussões do raciocínio correcto, como se, uma vez expostas as regras, o trabalho estivesse feito. Mas isso é apenas o princípio. Praticar o raciocínio, raciocinar, especialmente em casos difíceis, é o que ajuda. É absolutamente inútil saber o que é o raciocínio correcto se não se é capaz de raciocinar quando se deveria fazê-lo. Descobrir maneira de raciocinar quando se deveria fazê-lo é demasiado importante para ser negligenciado. É, de facto, talvez a coisa mais importante que um ser humano pode fazer.

John Shand
“Rationale” in Arguing Well (Londres, Routledge, 2000), pp. 3–19
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ISSN 1749-8457