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27 de Setembro de 2004   Filosofia da mente

O argumento de Kripke contra o materialismo identitativo e a ilusão de contingência

Vítor Pereira

Introdução

O argumento de Kripke contra o materialismo tipo-tipo é um argumento contra a tese segundo a qual os tipos mentais são idênticos a tipos físicos (por exemplo, a dor é oscilação no tálamo cortical. O que exemplifica a propriedade de ser uma dor exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical).

Um defensor do materialismo identitativo tipo-tipo alega que as identidades entre tipos mentais (como as dores) e tipos físicos (como a estimulação das fibras C ou a oscilação no tálamo cortical ou o disparar de tais e tais neurónios) são como as identidades teóricas “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79”.

A relação de identidade é a relação que qualquer coisa tem consigo própria e com mais nenhuma outra.

Se x é numericamente idêntico a y, então é necessário que x seja numericamente idêntico a y.

Por exemplo, se “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79” são identidades numéricas, então é necessário que a água seja H2O, que o calor seja o movimento médio de moléculas e que o ouro seja o elemento de peso atómico 79.

A diferença entre as expressões é para ser entendida como uma diferença de valor cognitivo para um utente competente da linguagem, e não como um diferença entre supostos objectos. Pois se houver dois objectos, não são numericamente idênticos. Isto é, se houver dois objectos, há dois objectos e não há de todo qualquer identidade numérica entre eles.

Um defensor da identidade entre tipos mentais e tipos físicos defende que o tipo dor é necessariamente o tipo oscilação no tálamo cortical.

Se os tipos físicos são expressos por “estimulação das fibras C” ou por “oscilação no tálamo cortical” ou por “disparar de tais e tais neurónios”, isso só releva para uma diferença de valor cognitivo para um utente competente da linguagem, não como diferença entre tipos, já que só há um e um único tipo.

A tese do materialismo identitativo tipo-tipo é para ser distinguida da forma de materalismo que estabelece uma identidade particular-particular entre uma experiência particular de dor e uma configuração específica do cérebro co-ocorrente.

Tal como de uma pessoa poder ter simultaneamente propriedades distintas, como por exemplo a propriedade de ser estudante de filosofia, a propriedade de ser vigilante, a propriedade de ser copeiro, não se segue que seja uma pessoa diferente que as exemplifica, também de um acontecimento específico no cérebro poder ter simultaneamente propriedades distintas como por exemplo a propriedade de ser uma dor, a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical, não se segue que seja um acontecimento específico no cérebro diferente que as exemplifica.

Tal como do facto de particulares x e y terem propriedades distintas não se segue que x e y sejam distintos, também do facto de acontecimentos específicos no cérebro terem propriedades distintas não se segue que sejam acontecimentos específicos no cérebro distintos.

A defesa do materialismo identitativo particular-particular é consistente com a recusa do materialismo identitativo tipo-tipo. Isto é, a defesa da identidade entre uma experiência particular de dor e uma configuração específica do cérebro co-ocorrente é consistente com a recusa da identidade entre o tipo dor e o tipo oscilação no tálamo cortical.

Um argumento contra o materialismo identitativo tipo-tipo é um argumento contra o materialismo identitativo particular-particular. Mas um argumento a favor do materialismo identitativo particular-particular não é um argumento a favor do materialismo identitativo tipo-tipo.

Problema

Ora, as identidades teóricas como “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79”, são de facto necessárias, mas parecem contingentes.

Logo, se o materalista identitativo tipo-tipo tem razão, tem de explicar a aparência de contingência de identidades como, por exemplo, “dor = oscilação no tálamo cortical”.

Kripke argumenta que não há qualquer explicação para a aparência de contingência das identidades psicofísicas de tipos.

Logo, as identidades psicofísicas de tipos não são identidades teóricas como “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79”.

Será possível, no entanto, defender que a distinção entre conceitos e propriedades pode ser utilizada para explicar porque é que as identidades psicofísicas de tipos apenas parecem contingentes?

Explicação alternativa da ilusão de contingência

Uma explicação segundo a qual as identidades teóricas da física e da química como “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79” apenas parecem contingentes consiste em dizer que se confundem erroneamente com identidades de facto contingentes como, respectivamente, “líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O”, “o que causa esta sensação de calor = o movimento médio das moléculas”, “o mais valioso metal = o elemento de peso atómico 79”, em que à esquerda de “=” ocorrem propriedades superficais do que ocorre à direita de “=”, em que à esquerda de “=” ocorrem propriedades fenomenológicas e não essenciais do que ocorre à direita de “=”.

Ora, uma explicação deste género não está, como argumenta Kripke, disponível no caso de identidades psicofísicas tipo-tipo como “dor = oscilação no tálamo cortical”. E não está disponível uma explicação segundo a qual as identidades psicofísicas tipo-tipo apenas parecem contingentes porque à esquerda de “=” ocorrem propriedades fenomenológicas e essenciais independentemente do que ocorre à direita de “=”.

É possível, por exemplo, que o líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho não seja H2O, porque o conceito de água não contém desde logo a essência da água. Apesar de o líquido nos aparecer sob as mesmas propriedades superficiais, podia dar-se o caso de ser XYZ e não H2O. A identidade “líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O” é uma verdade contingente de facto, porque depende de como a água nos aparece.

É possível, por exemplo, que o que causa esta sensação de calor não seja o movimento médio das moléculas, porque o conceito de calor não contém desde logo a essência do calor. Apesar de sentirmos calor, podia dar-se o caso de não haver qualquer movimento médio de moléculas. A identidade “o que causa esta sensação de calor = o movimento médio das moléculas” é uma verdade contingente de facto, porque depende do que sentimos como calor.

É possível, por exemplo, que o mais valioso metal não seja o elemento de peso atómico 79, porque o conceito de ouro não contém desde logo a essência do ouro. Apesar de algo nos aparecer sob as mesmas propriedades superficiais do ouro, podia dar-se o caso de não ser o elemento de peso atómico 79. A identidade “o mais valioso metal = o elemento de peso atómico 79” é uma verdade contingente da facto, porque depende de propriedades superficiais.

Mas é impossível uma dor não ser sentida como dor, é impossível algo que é de facto uma dor não ser uma dor, porque o conceito de dor contém desde logo a essência da dor. A identidade “dor = oscilação no tálamo cortical” é uma verdade contingente de facto porque é possível que o que exemplifica a propriedade de ser uma dor não exemplifique a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical. É possível o que exemplifica a propriedade de ser uma oscilação do tálamo cortical não ter a fenomenologia da dor e, logo, poder existir sem ser uma dor. Por conseguinte, o que exemplifica a propriedade de ser uma dor exemplifica contingentemente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.

Como pode a distinção entre conceitos e propriedades constituir uma explicação alternativa segundo a qual as identidades psicofísicas de tipos apenas parecem contingentes sem que com tal explicação o argumento de Kripke seja disputável?

Se a distinção entre conceitos e propriedades puder ser utilizada para explicar como as identidades psicofísicas de tipos apenas parecem contingentes, então ainda assim as identidades psicofísicas de tipos não são como as identidades teóricas da física e da química, porque há ilusões de contingência explicáveis de modo diferente.

Suponha-se, para efeitos de argumentação, que o materialista identitativo tem razão ao alegar que as identidades entre tipos mentais (como dores) e tipos físicos (como a estimulação das fibras C ou a oscilação no tálamo cortical ou o disparar de tais e tais neurónios) são como as identidades teóricas “água = H2O”, “calor = movimento médio das moléculas”, “ouro = elemento de peso atómico 79”.

Então, tal como o conceito de água pode ser descrito fenomenologicamente como líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho e pode ser descrito cientificamente como H2O, assim o conceito de dor pode ser descrito fenomenologicamente como dor e pode ser descrito cientificamente como oscilação no tálamo cortical.

As identidades teóricas como “água = H2O” apenas parecem contingentes porque são erroneamente confundidas com identidades de facto contingentes como “líquido incolor, transparente, bebível, no qual se toma banho = H2O”, inferindo-se falaciosamente da contingência destas a contingência daquelas.

As identidades psicofísicas tipo-tipo como “dor = oscilação no tálamo cortical” apenas parecem contingentes porque “dor” e “oscilação no tálamo cortical” denotam a mesma propriedade mas expressam conceitos diferentes, inferindo-se falaciosamente de uma diferença entre conceitos uma diferença entre propriedades.

Isto é, as identidades psicofísicas tipo-tipo como “dor = oscilação no tálamo cortical” apenas parecem contingentes porque a diferença entre o conceito fenomenológico de dor e o conceito científico de oscilação no tálamo cortical é erroneamente confundida com uma diferença entre propriedades.

Tal como um utente competente da linguagem pode compreender “a porção de água neste copo” e “a porção de H2O neste copo” e não saber que “água = H2O”, e não saber que são conceitos da mesma coisa, assim um utente competente da linguagem pode compreender “dor” e “oscilação no tálamo cortical” e não saber que “dor = oscilação no tálamo cortical”, e não saber que são conceitos da mesma propriedade.

Tal como é falaciosa a confusão entre uso e menção, é falaciosa a confusão entre propriedades e conceitos.

Tal como é falaciosa a confusão entre água e “água” e entre H2O e “H2O”, é falaciosa a confusão entre a propriedade de ser água e o conceito comum de água e entre a propriedade de ser H2O e o conceito científico de H2O. Em particular, a água não tem 4 letras como “água” e o H2O não é uma fórmula da química como “H2O”: a molécula de 2 átomos de hidrogénio e de 1 átomo de oxigénio não é uma fórmula da química.

Tal como é falaciosa a confusão entre dor e “dor” e entre oscilação no tálamo cortical e “oscilação no tálamo cortical”, é falaciosa a confusão entre a propriedade de ser dor e o conceito comum de dor e entre a propriedade de ser oscilação no tálamo cortical e o conceito científico de oscilação no tálamo cortical.

Ora, de uma diferença de conceitos não se segue uma diferença de propriedades. Não há propriamente um critério de identidade para conceitos — por exemplo, o conceito de água é diferente do conceito de H2O e o conceito de dor é diferente do conceito de oscilação no tálamo cortical —, mas há o critério de identidade para propriedades segundo o qual o que exemplifica a propriedade de ser água exemplifica necessariamente a propriedade de ser H2O e, supondo que o materialista identitativo tipo-tipo tem razão, o que exemplifica a propriedade de ser uma dor exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.

A propriedade de a água ser H2O pode ser descrita com conceitos diferentes, conceitos diferentes da mesma propriedade.

A propriedade de a dor ser oscilação no tálamo cortical pode ser descrita com conceitos diferentes, conceitos diferentes da mesma propriedade, supondo que o materialista identitativo tipo-tipo tem razão.

De uma diferença conceptual entre conceitos fenomenológicos e conceitos científicos não se segue uma diferença entre a propriedade de a água ser H2O e a propriedade de a dor ser oscilação no tálamo cortical. Independentemente de qualquer utente competente da linguagem, o que exemplifica a propriedade de ser água exemplifica necessariamente a propriedade de ser H2O e, supondo que o materialista identitativo tipo-tipo tem razão, o que exemplifica a propriedade de ser uma dor exemplifica necessariamente a propriedade de ser uma oscilação no tálamo cortical.

A diferença existente não é entre propriedades, mas em compreensão da mesma propriedade por um utente competente da linguagem.

Conclusão

A ilusão de contingência que a distinção entre conceitos e propriedades é suposta explicar não é a ilusão de contingência cuja explicação é requerida a quem pretenda disputar o argumento de Kripke contra o materialismo identitativo tipo-tipo.

Logo, como Kripke argumenta, não há uma explicação para a aparência de contingência de identidades psicofísicas tipo-tipo análoga à explicação para a aparência de contingência de identidades teóricas da física e da química.

Vítor Pereira

Bibliografia

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ISSN 1749-8457