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23 de Dezembro de 2015   Filosofia política

Notas sobre o nacionalismo

George Orwell
Tradução de Aluízio Couto

Byron usa algures a palavra francesa longueur e, de passagem, comenta que embora na Inglaterra por acaso não tenhamos a palavra, temos a coisa em considerável profusão. Do mesmo modo, existe agora um hábito mental tão disseminado que chega a afetar a nossa maneira de pensar sobre quase todos os assuntos, mas para o qual nenhum nome ainda foi dado. Como equivalente disponível mais próximo, escolhi a palavra “nacionalismo”, mas logo será visto que não estou usando o termo em seu sentido mais comum, e isso talvez porque a emoção sobre a qual estou falando nem sempre se vincula ao que é chamado de nação — isto é, uma única raça ou área geográfica. Ela pode se vincular a uma igreja ou classe, ou pode funcionar em um sentido meramente negativo, contra alguma coisa ou outra, sem a necessidade de qualquer objeto positivo de lealdade.

Por “nacionalismo”, em primeiro lugar, entendo o hábito de assumir que humanos podem ser classificados como insetos e que grupos inteiros de milhões ou dezenas de milhões de pessoas podem com segurança ser rotulados como “bons” ou “maus”.1 Em segundo lugar — e isto é o mais importante —, entendo o hábito de se identificar com uma única nação ou outra unidade, colocando-a além do bem e do mal, sem reconhecer qualquer outro dever que não seja o de promover os seus interesses. O nacionalismo não deve ser confundido com o patriotismo. Ambas as palavras são normalmente usadas de uma maneira tão vaga que qualquer definição é passível de ser disputada, mas é preciso estabelecer uma distinção entre elas, uma vez que duas ideias diferentes e até mesmo opostas estão envolvidas. Por “patriotismo” entendo a devoção a um lugar e um modo de vida particulares, tidos por alguém como os melhores do mundo, mas sem o desejo de impô-los às outras pessoas. A natureza do patriotismo é defensiva, tanto militar como culturalmente. O nacionalismo, por outro lado, é inseparável do desejo de poder. O propósito permanente de qualquer nacionalista é garantir mais poder e mais prestígio não para si próprio, mas para a nação ou unidade em nome da qual escolheu anular a sua individualidade.

Aplicado meramente aos movimentos nacionalistas mais notórios e identificáveis na Alemanha, Japão e outros países, tudo isso é bastante óbvio. Confrontados com um fenômeno como o nazismo, que podemos observar de fora, quase todos nós diríamos sobre ele as mesmas coisas. Mas aqui devo repetir o que já disse: estou usando a palavra “nacionalismo” por falta de uma melhor. Nacionalismo, no sentido estendido em que estou usando a palavra, inclui movimentos e tendências como o comunismo, o catolicismo político, o sionismo, o antissemitismo, o trotskismo e o pacifismo. Não significa necessariamente lealdade a um governo ou país, muito menos ao próprio país, e também não é estritamente necessário que as unidades nas quais opera existam de fato. Para indicar alguns exemplos óbvios, Judeus, Islã, Cristandade, Proletariado e a Raça Branca são todos objetos de sentimentos nacionalistas apaixonados, mas a sua existência pode ser seriamente questionada, e não há definição de qualquer uma dessas coisas que seria universalmente aceita.

Vale também enfatizar mais uma vez que o sentimento nacionalista pode ser puramente negativo. Há, por exemplo, trotskistas que se tornaram simplesmente inimigos da U.R.S.S. sem desenvolver uma lealdade correspondente a qualquer outra unidade. Quando se percebe as implicações disso, a natureza do que entendo por nacionalismo se torna bastante mais clara. Um nacionalista é aquele que pensa apenas, ou principalmente, em termos de competição de prestígio. Pode ser um nacionalista positivo ou negativo — ou seja, pode usar a sua energia mental para promover ou para denegrir. Em todo caso, sempre pensará em termos de vitórias, derrotas, triunfos e humilhações. Vê a história, especialmente a história contemporânea, como um infinita ascensão e queda de grandes unidades de poder, e cada acontecimento parece-lhe a demonstração de que seu lado está por cima e de que o outro lado, odiado, está por baixo. Por fim, é importante não confundir o nacionalismo com a mera adoração do sucesso. O nacionalista não subscreve ao princípio de se aliar ao lado mais forte. Pelo contrário, tendo escolhido seu lado, se convence de que este é o mais forte, e é capaz de manter-se fiel à sua crença mesmo quando os fatos estão massivamente contra ele. O nacionalismo é fome de poder temperada com auto-engano. Todo o nacionalista é capaz da mais flagrante desonestidade, mas tem a certeza inabalável — uma vez que pensa estar servindo algo maior do que si próprio — de estar do lado certo.

Uma vez oferecida essa longa definição, penso que será aceito que o hábito mental sobre o qual estou falando é disseminado entre a intelligentsia inglesa, e mais disseminado aí do que entre as massas. Para quem se importa profundamente com a política contemporânea, alguns tópicos se tornaram tão infectados por considerações de prestígio que abordá-los racionalmente é quase impossível. Das centenas de exemplos disponíveis, considere-se a seguinte pergunta: qual dos três grandes aliados, U.R.S.S., Grã-Bretanha e EUA, contribuiu mais para derrotar a Alemanha? Teoricamente, deveria ser possível oferecer uma resposta fundamentada e quem sabe até conclusiva. Na prática, entretanto, os cálculos necessários sequer podem ser feitos porque qualquer pessoa com alguma chance de esquentar a cabeça com o assunto o veria inevitavelmente em termos de competição de prestígio. Portanto, começaria por já decidir em favor da Rússia, Grã-Bretanha ou América, dependendo do caso, e só depois disso começaria a buscar argumentos que aparentemente suportassem a sua posição. E há grupos inteiros de perguntas da mesma natureza para as quais só se consegue uma resposta honesta de alguém indiferente ao assunto em causa, e cuja opinião é, em todo caso, provavelmente inútil. É em parte daí que vem o notável fracasso da previsão política e militar nos nossos tempos. É curioso perceber que de todos os “experts” de todas as escolas, não houve sequer um capaz de prever um evento tão provável como o Pacto Germano-Soviético, de 1939.2 Quando as notícias do Pacto surgiram, as explicações dadas divergiam ferozmente entre si e as previsões subsequentes eram falseadas quase imediatamente, pois em quase todos os casos estavam baseadas não em um estudo das probabilidades, mas em um desejo de tornar a U.R.S.S. boa ou má, forte ou fraca. Comentaristas militares ou políticos, como astrólogos, podem sobreviver a praticamente qualquer erro, uma vez que seus seguidores mais devotos não buscam neles uma avaliação dos fatos, mas sim o estímulo a lealdades nacionalistas.3 E os juízos estéticos, especialmente os literários, são frequentemente corrompidos do mesmo modo que os políticos. Seria difícil para um nacionalista indiano apreciar a leitura de Kipling ou para um conservador ver mérito em Maiakovski, e há sempre a tentação de afirmar que qualquer livro de cuja tendência se discorda tem de ser um mau livro do ponto de vista literário. Pessoas com fortes perspectivas nacionalistas praticam esse truque sem consciência da desonestidade.

Na Inglaterra, se considerarmos simplesmente o número de pessoas envolvidas, é provável que a forma dominante de nacionalismo seja o antiquado jingoísmo britânico. Está certamente ainda disseminado, e muito mais do que pensariam os observadores há alguns anos. No entanto, neste ensaio estou preocupado principalmente com as reações da intelligentsia, grupo para o qual o jingoísmo e mesmo o velho patriotismo estão praticamente mortos — embora estejam, ao que parece, renascendo para uma minoria. Entre a intelligentsia, nem é preciso dizer que a forma dominante de nacionalismo é o comunismo — uso a palavra num sentido suficientemente amplo para incluir não apenas os membros do Partido Comunista, mas também simpatizantes e russófilos em geral. Um comunista, para os meus propósitos aqui, é alguém que olha para a U.R.S.S. como sua pátria e sente que é seu dever justificar as políticas russas e promover os interesses russos a todo custo. Obviamente, tais pessoas são hoje bastante numerosas na Inglaterra e sua influência direta e indireta é enorme. Mas muitas outras formas de nacionalismo também florescem, e é quando notamos as semelhanças entre correntes de pensamento diferentes e aparentemente opostas que podemos ver melhor as coisas em perspectiva.

Há dez ou vinte anos, a forma de nacionalismo que mais se aproximava do comunismo de hoje era o catolicismo político. O seu expoente mais notável — embora talvez fosse um caso extremo, e não típico — foi G. K. Chesterton. Chesterton foi um escritor de considerável talento que escolheu suprimir a sua sensibilidade e honestidade intelectual em prol da propaganda católica romana. Durante os últimos vinte anos da sua vida, aproximadamente, toda a sua produção foi na realidade uma repetição sem fim da mesma coisa — a sua refinada inteligência sendo tão simples e enfadonha como “Great is Diana of The Ephesians”. Todos os livros que escreveu, todos os parágrafos, todas as frases, todos os incidentes de todas as histórias e todos os fragmentos de diálogo tinham de demonstrar para lá da possibilidade de erro a superioridade do católico sobre o protestante ou o pagão. Mas Chesterton não estava satisfeito em conceber a sua superioridade como meramente intelectual ou espiritual: tinha de ser traduzida em termos de prestígio nacional e poderio militar, o que implicava uma idealização ignorante dos países latinos, especialmente da França. Chesterton não viveu muito tempo na França, e sua imagem do país — como uma terra de camponeses católicos a cantar incessantemente a Marselhesa regados a taças de vinho tinto — tinha tanta relação com a realidade quanto Chu Chin Chow tem com a vida cotidiana de Bagdá. E isso foi acompanhado não apenas de uma enorme sobrestimação do poderio militar francês (tanto antes como depois de 1914–18 sustentou que a França, por si só, era mais forte que a Alemanha), mas de uma glorificação tola e vulgar do processo real da guerra. Os poemas de batalha de Chesterton, como “Lepanto” ou “The Ballad of Saint Barbara”, fazem “The Charge of the Light Brigade” soar como um tratado pacifista: são talvez o que há de mais pretensioso e espalhafatoso na nossa língua. O ponto interessante é que se o entulho romântico que ele habitualmente escrevia sobre a França ou o exército francês fosse escrito por outro sobre a Grã-Bretanha ou o exército britânico, ele seria o primeiro a zombar. Em política doméstica ele era um Little Englander, alguém que legitimamente odiava o jingoísmo e o imperialismo e, em harmonia consigo mesmo, um verdadeiro amigo da democracia. No entanto, quando se voltava para a arena internacional, podia abandonar seus princípios sem sequer notar que o fazia. Assim, a sua crença quase mística nas virtudes da democracia não o impediram de admirar Mussolini. Mussolini havia destruído o regime representativo e a liberdade de imprensa em prol dos quais Chesterton tanto lutou em casa, mas Mussolini era italiano e tinha tornado a Itália forte, o que encerrava a questão. Chesterton também jamais disse uma palavra contra o imperialismo e a conquista das raças de cor quando praticadas por italianos ou franceses. O seu apego à realidade, o seu gosto literário e até em alguma medida o seu sentido moral eram afastados mal as suas lealdades nacionalistas entravam na história.

Obviamente, há semelhanças consideráveis entre o catolicismo político, exemplificado por Chesterton, e o comunismo. Tal como há entre ambos e, por exemplo, o nacionalismo escocês, o sionismo, o antissemitismo ou o trotskismo. Seria uma hipersimplificação dizer que todas as formas de nacionalismo são — mesmo na sua atmosfera mental — idênticas, mas há certas regras que valem para todos os casos. As principais características do pensamento nacionalista são as seguintes:

Obsessão. Tanto quanto possível, nenhum nacionalista jamais pensa, fala ou escreve sobre qualquer coisa que não seja a superioridade de sua própria unidade de poder. É difícil e talvez impossível para qualquer nacionalista omitir sua filiação. A menor reprovação direcionada à sua unidade ou qualquer elogio implícito a uma organização rival o preenchem de um desconforto que ele só pode aliviar por meio de uma réplica cortante. Se a unidade escolhida é um país como a Irlanda ou Índia, reivindicará geralmente a sua superioridade não apenas no que diz respeito ao poderio militar ou às virtudes políticas, mas também na arte, literatura, esporte, estrutura da linguagem, beleza física dos habitantes e talvez até mesmo no clima, na paisagem e na culinária. Será muito sensível a coisas como a correta exibição de bandeiras, o tamanho relativo das manchetes e a ordem em que os nomes de diferentes países são dispostos.4 A nomenclatura tem um papel muito importante no pensamento nacionalista. Países que conquistaram sua independência ou passaram por um processo de revolução nacionalista usualmente mudam de nome, e qualquer país ou outra unidade que suscite sentimentos fortes provavelmente terá vários nomes, cada um deles com uma implicação diferente. Os dois lados na Guerra Civil Espanhola tinham entre si nove ou dez nomes expressando diferentes graus de amor e ódio. Alguns desses nomes (e.g. “Patriotas” para os apoiadores de Franco ou “Legalistas” para os apoiadores do governo) eram claras petições de princípio, e não havia sequer um nome que as duas facções rivais concordariam em usar. Todos os nacionalistas consideram um dever a disseminação de sua própria linguagem em detrimento de linguagens rivais, e entre os falantes do inglês esse conflito reaparece mais sutilmente na forma do conflito entre dialetos. Os americanos anglófobos se recusarão a usar uma gíria caso descubram a sua origem britânica, e o conflito entre latinistas e germanistas frequentemente tem motivações de fundo que são nacionalistas. Os nacionalistas escoceses insistem na superioridade das Terras Baixas escocesas e os socialistas para quem o nacionalismo assume a forma de ódio de classe investem contra o sotaque da BBC e até mesmo contra o broad A.5 Pode-se multiplicar os exemplos. O pensamento nacionalista dá frequentemente a impressão de ser presa da crença em influências místicas — crença que provavelmente se revela pelo costume bastante comum de queimar efígies de inimigos políticos ou pelo uso das suas imagens como alvos em clubes de tiro.

Instabilidade. A intensidade com a qual são sustentadas não impede que as lealdades nacionalistas sejam transferíveis. Para começar, como já fiz notar, podem estar e frequentemente estão vinculadas a um país estrangeiro. É comum o fato de grandes líderes nacionais ou fundadores de movimentos nacionalistas nem pertencerem ao país que glorificavam. Às vezes são perfeitos estrangeiros ou, o que é mais comum, vêm de áreas periféricas nas quais a nacionalidade é incerta. Exemplos são Stálin, Hitler, Napoleão, de Valera, Disraeli, Poincaré e Beaverbrook. O movimento pangermânico foi em parte criação de Houston Chamberlain, um inglês. Nos últimos cinquenta ou cem anos, o nacionalismo transferido tem sido um fenômeno comum entre literatos. A transferência de Lafcadio Hearne foi direcionada ao Japão, a de Carlyle e de muitos outros à Alemanha e em nossa época é comum que seja direcionada à Rússia. Mas o fato particularmente interessante é que a retransferência também é possível. Um país ou unidade reverenciada por muito tempo pode repentinamente se tornar detestável e outro objeto de afeição pode tomar seu lugar quase sem interregno. Na primeira versão de Outline of History, de H. G. Wells, e noutros dos seus trabalhos do período, os Estados Unidos são reverenciados de modo quase tão extravagante quanto a Rússia é hoje reverenciada pelos comunistas: no entanto, em poucos anos essa admiração acrítica se transformou em hostilidade. O comunista fanático que em semanas ou até mesmo dias se torna um trotskista fanático é outro espetáculo comum. Na Europa Continental os movimentos fascistas foram amplamente recrutados entre comunistas, e o processo oposto pode muito bem ocorrer nos próximos anos. O que permanece constante no nacionalista é o seu estado de espírito: o objeto de seus sentimentos é mutável e pode até ser imaginário.

Mas, para um intelectual, a transferência tem uma importante função que foi brevemente mencionada por mim em relação a Chesterton. Possibilita-lhe ser muito mais nacionalista — mais vulgar, mais tolo, mais perverso, mais desonesto — do que poderia ser em prol de seu país nativo ou de qualquer unidade da qual tenha conhecimento real. Quando se vê o lixo servil e pretensioso que é escrito sobre Stálin, o Exército Vermelho, etc., por pessoas verdadeiramente inteligentes e sensíveis, percebe-se que isso só é possível porque alguma espécie de deslocamento está a atuar. Numa sociedade como a nossa não é usual que qualquer pessoa descrita como um intelectual sinta uma vinculação muito forte ao próprio país. A opinião pública — isto é, a parte da opinião pública da qual ele, como intelectual, está ciente — não irá permitir-lhe fazer tal coisa. A maior parte das pessoas que o rodeiam são céticas ou desiludidas, e ele pode adotar a mesma atitude por imitação ou pura covardia: neste caso, terá abandonado a forma de nacionalismo mais à mão sem se aproximar de uma perspectiva genuinamente internacionalista. Ainda sente a necessidade de ter uma pátria e é natural procurar por alguma no exterior. Ao encontrá-la, pode chafurdar irrestritamente nas mesmas emoções das quais achou que tinha se emancipado. Deus, o Rei, o Império, A Union Jack — todos os ídolos caídos podem reaparecer sob diferentes nomes, e uma vez que não são mais reconhecidos pelo que efetivamente são, podem ser reverenciados em boa consciência. O nacionalismo transferido, tal como o uso de bodes expiatórios, é um modo de atingir a salvação sem mudar a própria conduta.

Indiferença à Realidade. Todos os nacionalistas têm o poder de não perceber semelhanças entre conjuntos similares de fatos. Um tory britânico defenderá a autodeterminação na Europa e se oporá a ela na Índia sem qualquer sensação de inconsistência. As ações são encaradas como boas ou más não segundo os seus próprios méritos, mas segundo quem as pratica, e quase não há espécie de ultraje — tortura, o uso de reféns, trabalho forçado, deportação em massa, prisão sem julgamento, fraude, assassinato, bombardeio de civis — que não mude o seu perfil moral quando é cometido pelo “nosso” lado. O progressista News Chronicle publicou como exemplo de barbaridade chocante as fotografias de russos enforcados pelos alemães, e após um ou dois anos publicou com calorosa aprovação fotografias perfeitamente similares de alemães enforcados pelos russos.6 É a mesma coisa com eventos históricos. A história é pensada em termos amplamente nacionalistas, e coisas como a Inquisição, as torturas na Câmara Estrelada, as proezas dos corsários ingleses (Sir Francis Drake, por exemplo, era dado a afogar os prisioneiros espanhóis), o Reinado do Terror, os heróis da Insurreição despedaçando com o auxílio de canhões centenas de indianos ou os soldados de Cromwell retalhando os rostos de mulheres irlandesas com navalhas se tornam moralmente neutras ou até mesmo meritórias quando se sente que foram praticadas em nome da causa “justa”. Ao olhar retrospectivamente para o último quarto de século, percebe-se que dificilmente houve um ano em que histórias de atrocidades não foram relatadas de alguma parte do mundo: e, no entanto, em nenhum caso — Espanha, Rússia, China, Hungria, México, Amritsar, Smyrna — essas atrocidades foram reconhecidas e reprovadas pela intelligentsia inglesa como um todo. Se essas façanhas eram repreensíveis ou mesmo se chegaram a ocorrer foi algo sempre decidido de acordo com a predileção política.

O nacionalista não se limita a não desaprovar as atrocidades cometidas pelo seu próprio lado; é também dotado de uma notável capacidade de nem ouvir falar delas. Por seis anos os admiradores ingleses de Hitler foram bem-sucedidos em não perceber a existência de Dachau e Buchenwald. E aqueles que denunciam com mais veemência os campos de concentração alemães são completamente ignorantes ou vagamente cientes de que também há campos de concentração na Rússia. Acontecimentos gigantescos como a Grande Fome da Ucrânia, que envolveu a morte de milhões de pessoas, escaparam à atenção da maioria dos russófilos ingleses. Muitos ingleses não ouviram quase nada acerca do extermínio de judeus alemães e poloneses durante a presente guerra. O seu próprio antissemitismo fez esse vasto crime escapar das suas consciências. No pensamento nacionalista há fatos que são ao mesmo tempo verdadeiros e falsos, conhecidos e desconhecidos. Um fato conhecido pode ser tão intolerável que é habitualmente colocado de lado, sem que se permita a sua entrada no processo lógico. Ou, por outro lado, pode até ser admitido nos cálculos, mas jamais aceito pelo espírito como um fato.

Todo o nacionalista é assombrado pela crença de que o passado pode ser alterado. Ele passa parte do seu tempo num mundo de fantasia no qual as coisas acontecem como deveriam — no qual, por exemplo, a Armada Espanhola foi um sucesso ou a Revolução Russa foi esmagada em 1918 — e irá transferir fragmentos desse mundo para os livros de história sempre que possível. Muito da escrita de propaganda de nossos tempos é pura e simples fraude. Fatos materiais são suprimidos, datas alteradas, citações removidas do contexto e adulteradas para que o sentido se altere. Acontecimentos que se sente que não deveriam ter ocorrido, não são mencionados e são em última instância negados.7 Em 1927, Chiang Kai-Shek ferveu vivos centenas de comunistas, e mesmo assim em dez anos tinha-se tornado um dos heróis da esquerda. O realinhamento da política mundial trouxe-o para o campo antifascista, e então o sentimento foi que cozer os comunistas “não contava” ou talvez não tivesse acontecido. O primeiro objetivo da propaganda é, obviamente, influenciar a opinião contemporânea, mas aqueles que reescrevem a história provavelmente acreditam com alguma parte dos seus espíritos que estão realmente introduzindo fatos no passado. Ao se considerar as sofisticadas fraudes que têm sido cometidas com a finalidade de mostrar que Trotsky não desempenhou um papel valioso na Guerra Civil Russa, é difícil pensar que estão apenas mentindo. É mais provável que sintam que a sua própria versão foi o que aconteceu perante Deus e que têm assim justificação para rearranjar as coisas em harmonia com ela.

A indiferença à realidade objetiva é encorajada pelo isolamento de uma parte do mundo em relação à outra, o que torna mais e mais difícil descobrir o que realmente está acontecendo. É comum que haja dúvida genuína sobre os acontecimentos mais gigantescos. Por exemplo, é impossível calcular na casa dos milhões, talvez mesmo na de dezenas de milhões, o número de mortes causadas pela presente guerra. As calamidades constantemente relatadas — batalhas, massacres, fomes, revoluções — tendem a inspirar na pessoa média um sentimento de irrealidade. Não há maneira de verificar os fatos, não se está nem completamente certo de que eles aconteceram e sempre são apresentadas interpretações totalmente diferentes da parte de fontes diferentes. Quem tinha razão e quem não a tinha no levantamento de Varsóvia de agosto de 1944? É verdadeiro que há câmaras de gás na Polônia? De quem é realmente a culpa pela Fome de Bengala? Provavelmente, a verdade pode ser descoberta, mas os fatos serão apresentados de forma tão desonesta em quase qualquer jornal que se pode perdoar ao leitor comum que engula mentiras ou que não forme uma opinião. A incerteza geral sobre o que está realmente acontecendo facilita a adoção de crenças lunáticas. Já que nada é realmente provado ou refutado, o fato mais inequívoco pode ser negado desavergonhadamente. Além disso, apesar da obsessão pelo poder, vitória, derrota e vingança, o nacionalista muitas vezes não tem interesse com o que acontece no mundo real. O que ele quer é sentir que sua unidade está levando a melhor sobre outra unidade, e pode fazer isso mais facilmente ao rebaixar um adversário do que pelo exame dos fatos para ver se estes o apoiam. Todas as polêmicas nacionalistas estão ao nível das associações de debates. São sempre inconclusivas, uma vez que cada um dos debatedores invariavelmente pensa que venceu. Alguns nacionalistas não estão muito longe da esquizofrenia, vivendo felizes entre sonhos de poder e conquista sem conexão com o mundo físico.

Examinei tão bem quanto consigo os hábitos mentais comuns a todas as formas de nacionalismo. O próximo passo é classificá-las. Obviamente, isso não pode ser feito de modo abrangente. O nacionalismo é um assunto enorme. O mundo é atormentado por inúmeras ilusões e ódios que se entrecruzam de um modo extremamente complexo, e alguns dos mais sinistros sequer se imiscuíram na consciência europeia. Neste ensaio estou preocupado com o nacionalismo tal como ocorre entre a intelligentsia inglesa. Nela, com muito mais frequência do que com os ingleses comuns, não se mistura com o patriotismo e pode, assim, ser estudado na sua forma pura. Abaixo faz-se a lista das variedades de nacionalismo emergente entre os intelectuais ingleses e, caso pareça necessário, alguns comentários. É conveniente usar três tópicos — Positivo, Transferido e Negativo —, embora algumas variantes irão se encaixar em mais de uma categoria:

Nacionalismo Positivo

  1. Neo-torysmo. Exemplificado por pessoas como Lord Elton, A. P. Herbert, G. M. Young, professor Pickthorn, pela literatura do Comitê de Reforma Tory e por revistas como New English Review e Nineteenth Century and After. A força motivacional real do neo-torysmo, que lhe dá o seu caráter nacionalista e que o diferencia dos conservadores comuns é o desejo de não reconhecer que a influência e o poder britânicos declinaram. Mesmo os que são suficientemente realistas para perceber que a posição do poder militar britânico não é mais o que era tendem a defender que as “ideias inglesas” (geralmente deixadas sem definição) têm de dominar o mundo. Todos os neo-tories são anti-russos, mas às vezes a ênfase é antiamericana. O aspecto interessante é que essa escola de pensamento parece estar ganhando espaço entre jovens intelectuais, às vezes ex-comunistas que passaram pelo processo de desilusão e se tornaram desiludidos com isso. O anglófobo que subitamente se torna pró-britânico é uma figura bem comum. Escritores que ilustram essa tendência são F. A. Voigt, Malcolm Muggeridge, Evelyn Waugh, Hugh Kingsmill, e um desenvolvimento psicológico similar pode ser observado em T. S. Eliot, Wyndham Lewis e vários de seus seguidores.
  2. Nacionalismo Celta. Os nacionalismos galês, irlandês e escocês têm diferenças, mas são idênticos na sua orientação anti-inglesa. Membros dos três movimentos se opuseram à guerra enquanto continuavam a descrever-se como pró-russos, e os mais lunáticos conseguiram ainda ser pró-russos e pró-nazistas simultaneamente. Mas o nacionalismo celta não é a mesma coisa do que a anglofobia. A sua força motivadora é a crença na grandeza passada e futura dos povos celtas, e tem uma forte matiz racialista. Supõe-se que o celta é espiritualmente superior ao saxão — mais simples, mais criativo, menos vulgar, menos esnobe, etc. — mas a fome de poder usual está lá, sob a superfície. Um sintoma disso é a ilusão de que o Eire, a Escócia e mesmo o País de Gales poderiam preservar a sua independência e de que nada devem à proteção britânica. Entre escritores, bons exemplos dessa escola de pensamento são Hugh MacDiarmid e Sean O’Casey. Nenhum escritor irlandês moderno, mesmo da estatura de Yeats ou Joyce, está completamente livre de traços de nacionalismo.
  3. Sionismo. Tem as características usuais de um movimento nacionalista, mas sua variante americana parece mais violenta e perniciosa do que a britânica. Classifico-o como Direto e não como Transferido porque floresce quase exclusivamente entre os próprios judeus. Na Inglaterra, por várias razões incongruentes, a intelligentsia é majoritariamente pró-judeus na Questão Palestina, mas não tem sentimentos muito fortes sobre isso. Todos os ingleses de boa vontade são também pró-judeus no sentido de reprovarem a perseguição nazista. Mas qualquer lealdade nacionalista real ou crença na superioridade inata dos judeus dificilmente se encontra entre os gentios.

Nacionalismo Transferido

  1. Comunismo.
  2. Catolicismo político.
  3. Sentimento de cor. A velha atitude de desprezo pelos “nativos” tem-se enfraquecido muito na Inglaterra e várias teorias pseudocientíficas enfatizando a superioridade da raça branca vêm sendo abandonadas.8 Entre a intelligentsia, o sentimento de cor ocorre apenas na sua forma transposta, isto é, como uma crença na superioridade inata das raças de cor. Isso é cada vez mais comum entre intelectuais ingleses, sendo provavelmente com mais frequência resultado de masoquismo ou frustração sexual do que do contato com movimentos nacionalistas orientais e negros. Mesmo entre quem não tem sentimentos muito fortes a respeito da questão racial, o esnobismo e a imitação têm uma influência poderosa. Quase qualquer intelectual inglês ficaria escandalizado com a afirmação de que as raças brancas são superiores às de cor, ao passo que a afirmação oposta lhe pareceria inatacável mesmo que discordasse dela. A vinculação nacionalista às raças de cor está usualmente misturada com a crença de que suas vidas sexuais são superiores, e há uma vasta lenda sobre a vitalidade sexual dos negros.
  4. Sentimento de classe. Entre intelectuais das classes alta e média, ocorre apenas na forma transposta — i.e. como a crença na superioridade do proletariado. Mais uma vez, na intelligentsia, a pressão da opinião pública é esmagadora. A lealdade nacionalista ao proletariado e o ódio teórico mais vicioso à burguesia podem coexistir e frequentemente coexistem com o esnobismo comum da vida diária.
  5. Pacifismo. A maior parte dos pacifistas pertence a uma facção religiosa obscura ou são simplesmente humanitários que se opõem a que se tire a vida e preferem não seguir as suas ideias muito além desse ponto. Mas há uma minoria de intelectuais pacifistas cuja motivação real, porém não admitida, parece ser o ódio à democracia ocidental e a admiração do totalitarismo. A propaganda pacifista frequentemente se resume a dizer que um lado é tão ruim quanto o outro, mas ao se reparar detidamente nos escritos de jovens intelectuais pacifistas, percebe-se que eles de maneira alguma expressam uma reprovação imparcial; antes a direcionam quase somente à Inglaterra e aos Estados Unidos. Além disso, não condenam a violência enquanto tal, mas apenas a violência usada em defesa dos países ocidentais. Os russos, diferentemente dos britânicos, não são culpados por se defenderem por meios bélicos, e de fato toda propaganda pacifista desse tipo evita mencionar a Rússia ou a China. Mais uma vez, não se defende que os indianos deveriam renunciar à violência na sua luta contra os britânicos. Os livros pacifistas abundam em comentários equivocados que, caso digam algo, parecem querer dizer que estadistas como Hitler são preferíveis a estadistas como Churchill, e que a violência talvez seja desculpável caso seja suficientemente violenta. Após a queda da França, os pacifistas franceses, perante uma escolha real que os seus colegas britânicos não tiveram de fazer, passaram a apoiar os nazistas, e na Inglaterra parece ter havido uma ligeira justaposição entre os filiados da Peace Pledge Union e os Camisas Negras. Escritores pacifistas têm escrito em louvor de Carlyle, um dos pais intelectuais do fascismo. No fim, é difícil não ter a sensação de que o pacifismo, tal como surge numa parte da intelligentsia, é secretamente inspirado por uma admiração do poder e da crueldade bem-sucedida. Cometeu-se o erro de fixar esse sentimento em Hitler, mas é fácil retransferi-lo.

Nacionalismo Negativo

  1. Anglofobia. Na intelligentsia, uma atitude pejorativa e levemente hostil em relação à Grã-Bretanha é mais ou menos obrigatória, mas em muitos casos é uma emoção genuína. Durante a guerra era manifesta no derrotismo da intelligentsia, que persistiu por muito tempo depois de se tornar claro que o Eixo não poderia vencer. Muitas pessoas ficaram indisfarçavelmente felizes quando Singapura caiu ou quando os britânicos foram expulsos da Grécia, e havia uma indisposição notável para acreditar em boas notícias, e. g. El Alamein ou o número de aviões alemães derrubados na Batalha da Grã-Bretanha. Os intelectuais de esquerda ingleses, é claro, não queriam que os alemães ou os japoneses vencessem a guerra, mas muitos não conseguiram conter uma certa alegria em ver o seu próprio país humilhado e queriam sentir que a vitória final seria graças à Rússia ou aos Estados Unidos, e não à Grã-Bretanha. Em política externa muitos intelectuais seguem o princípio segundo o qual qualquer lado apoiado pela Grã-Bretanha tem de estar errado. Em resultado disso, a opinião “esclarecida” é em grande parte uma imagem de espelho da política conservadora. A anglofobia é quase sempre passível de reversão, daí o espetáculo comum de o pacifista de uma guerra ser o belicista da seguinte.
  2. Anti-semitismo. Há poucos indícios dele no presente porque os perseguidores nazistas tornaram uma necessidade para qualquer pessoa pensante colocar-se ao lado dos judeus contra os seus opressores. Qualquer pessoa suficientemente educada para ter ouvido a palavra “anti-semitismo” tem por rotina dizer-se acima disso, e os comentários anti-semitas são cuidadosamente eliminados de todas as classes de literatura. De fato, o anti-semitismo parece estar disseminado mesmo entre os intelectuais, e a conspiração geral de silêncio provavelmente ajuda a exacerbá-lo. Pessoas com opiniões de esquerda não lhe são imunes, e a sua atitude é por vezes afetada pelo fato de os trotskistas e os anarquistas tenderem a ser judeus. Mas o anti-semitismo surge mais naturalmente em pessoas de tendência conservadora, pois suspeitam que os judeus enfraquecem a moral nacional e diluem a cultura nacional. Neo-tories e católicos políticos sempre são suscetíveis de sucumbir ao anti-semitismo, pelo menos intermitentemente.
  3. Trotskismo. A palavra é usada de modo amplo para incluir anarquistas, socialistas democráticos e até mesmo liberais. Uso-a aqui para me referir ao marxista doutrinário cuja principal motivação é a hostilidade ao regime de Stálin. O trotskismo pode ser mais bem estudado em panfletos obscuros ou em jornais como o Socialist Appeal do que a partir dos trabalhos do próprio Trotsky, que de modo algum era homem de uma ideia só. Embora em alguns lugares como, por exemplo, os Estados Unidos, o trotskismo seja capaz de atrair um grande número de partidários e se desenvolver como um movimento organizado relativamente autônomo dotado de um insignificante führer próprio, sua inspiração é essencialmente negativa. O trotskista é contra Stálin tal como o comunista lhe é favorável e, como a maioria dos comunistas, não quer tanto mudar o mundo externo, mas sim sentir que a batalha pelo prestígio está a seu favor. Em cada caso há a mesma fixação obsessiva por um mesmo assunto, a mesma incapacidade para formar uma opinião racional baseada em probabilidades. O fato de os trotskistas serem uma minoria perseguida em todos os lugares e de a acusação habitualmente feita contra eles, i.e. colaborar com os fascistas, ser absolutamente falsa, cria a impressão de que o trotskismo é moralmente superior ao comunismo. Mas é discutível se há muita diferença. Os trotskistas mais típicos, de qualquer maneira, são ex-comunistas, e ninguém chega ao trotskismo exceto por meio de algum dos movimentos de esquerda. Nenhum comunista, a menos que esteja acorrentado ao seu partido por anos de hábito, está livre de cair subitamente no trotskismo. O processo contrário não parece ocorrer com a mesma frequência, embora não seja claro o porquê.

Na classificação que esbocei irá parecer que muitas vezes exagerei, hiper-simplifiquei, aceitei coisas sem justificação e deixei de fora a existência de motivações comuns decentes. Isso foi inevitável, pois neste ensaio estou tentando isolar e identificar tendências que existem nos espíritos de todos nós e pervertem o nosso pensamento sem necessariamente ocorrerem em estado puro ou operarem continuamente. É importante nesta altura corrigir a perspectiva hiper-simplificada que fui obrigado a oferecer. Para começar, não se tem o direito de pressupor que todos, ou mesmo todos os intelectuais, estão infectados com o nacionalismo. Em segundo lugar, o nacionalismo pode ser intermitente e limitado. Um homem inteligente pode sucumbir parcialmente a uma crença que o atrai mas que sabe ser absurda, e pode mantê-la longe do espírito por longos períodos, voltando a cair nela apenas em momentos de raiva ou de sentimentalismo, ou quando tem a certeza de que nenhum assunto importante está envolvido. Em terceiro lugar, um credo nacionalista pode ser adotado de boa-fé por motivações não-nacionalistas. Em quarto lugar, vários tipos de nacionalismo, mesmo tipos que se anulam, podem coexistir na mesma pessoa.

Durante todo o percurso disse “O nacionalismo faz isso” ou “O nacionalista faz aquilo”, usando para propósitos de ilustração um tipo extremo e pouco sensato de nacionalista — que não tem áreas mentais neutras e nenhum interesse distinto da luta por poder. Essas pessoas são realmente bem comuns, mas não valem sequer pólvora e chumbo. Na vida real Lord Elton, D. N. Pritt, Lady Houston, Erza Pound, Lord Vansittart, padre Coughlin e todo o resto de sua tribo sombria devem ser combatidos, mas as suas deficiências intelectuais praticamente não precisam ser apontadas. A monomania não é interessante, e o fato de nenhum nacionalista do tipo mais fanático poder escrever um livro que ainda pareça digno de leitura após alguns anos tem um certo efeito desinfetante. Mas quando se admite que o nacionalismo não triunfou em todos os lugares, que ainda há pessoas cujos juízos não estão à mercê dos próprios desejos, permanece o fato de que os problemas urgentes — Índia, Polônia, Palestina, a Guerra Civil Espanhola, os julgamentos de Moscou, os negros americanos, o Pacto Germano-Soviético ou o que você pensar — não podem ser, ou pelo menos nunca são, discutidos num nível razoável. Os Eltons e os Pritts e os Coughlins, cada um dos quais simplesmente uma enorme boca mugindo mais e mais vezes a mesma mentira, são casos obviamente extremos, mas nos enganamos se não nos damos conta de que podemos ser semelhantes a eles quando nos distraímos. Assopre uma determinada opinião, pise neste ou naquele calo — e pode ser um calo de cuja existência nem se desconfiava até então — e a pessoa mais razoável e tranquila pode repentinamente ser transformada num partidário vicioso, cuja única ansiedade é “marcar pontos” contra o adversário, sendo indiferente a quantas mentiras diz ou a quantos erros lógicos comete. Quando Lloyd George, que era um oponente da Guerra dos Bôeres, anunciou na Câmara dos Comuns que os comunicados oficiais, caso fossem colocados juntos, reivindicavam a morte de mais Bôeres do que a nação Bôer continha, há o registro de que Arthur Balfour se levantou e gritou “mulherengo!”. Poucas pessoas mantêm a calma depois de deslizes desse tipo. O negro esnobado por uma mulher branca, o inglês que ouve a Inglaterra ser criticada de modo ignorante por um americano, o católico espanhol recordado da Armada Espanhola: todos irão reagir quase da mesma forma. Basta espetar o nervo do nacionalismo para que a decência intelectual desapareça, o passado seja alterado e os fatos mais óbvios negados.

Ao abrigar em algum lugar do espírito uma lealdade ou ódio nacionalista, alguns fatos, embora de certa maneira reconhecidos como verdadeiros, são inadmissíveis. Aqui vão alguns poucos exemplos. Faço abaixo a lista de cinco tipos de nacionalista, e contra cada um deles acrescento um fato que é impossível para este tipo de nacionalista aceitar mesmo nos seus pensamentos mais secretos:

Todos esses fatos são grosseiramente óbvios se a emoção não estiver envolvida: mas para as pessoas nomeadas em cada caso são também intoleráveis, e assim é preciso que sejam negados e que se construa teorias falsas para acomodar a sua negação. Volto à assombrosa falha da previsão militar na presente guerra. Penso que é verdadeiro dizer que a intelligentsia tem errado mais sobre o progresso da guerra do que as pessoas comuns, e que foi mais seduzida por sentimentos sectários. O intelectual médio de esquerda acreditava, por exemplo, que a guerra foi perdida em 1940, que os alemães certamente dominariam o Egito em 1942, que os japoneses jamais seriam expulsos das terras que conquistaram e que a ofensiva anglo-americana de bombardeamentos não impressionavam a Alemanha. Podia acreditar nessas coisas porque o seu ódio à classe dirigente britânica o proibia de admitir que os planos britânicos poderiam ter sucesso. Não há limite para as tolices que podem ser engolidas caso se esteja sob sentimentos desse tipo. Tenho ouvido dizer com confiança, por exemplo, que as tropas americanas foram trazidas à Europa não para lutar contra os alemães, mas para esmagar uma revolução inglesa. É preciso pertencer à intelligentsia para acreditar em coisas assim: nenhum homem comum poderia ser tão tolo. Quando Hitler invadiu a Rússia, os oficiais do Ministério da Informação expediram “como informação de fundo” a advertência de que se previa que a Rússia cairia em seis semanas. Por outro lado, os comunistas consideraram cada fase da guerra uma vitória russa mesmo quando os russos foram empurrados de volta quase até ao Mar Cáspio e tinham perdido vários milhões de prisioneiros. Não há necessidade de multiplicar os exemplos. O ponto é que tão logo medo, ódio, inveja e adoração ao poder estão envolvidos, o sentido de realidade degenera. E, como já fiz notar, a noção do bem e do mal também degenera. Não há crime, absolutamente nenhum, que não possa ser perdoado quando o “nosso” lado o comete. Mesmo que não se negue que o crime aconteceu, mesmo que se saiba que é exatamente o mesmo tipo de crime que se condenou noutro caso, mesmo que se admita num sentido intelectual que o ato é injustificado — ainda assim não se sente que é errado. A lealdade está envolvida e assim a piedade deixa de operar.

A razão da ascensão e disseminação do nacionalismo é uma questão demasiado vasta para ser levantada aqui. É suficiente dizer que, nas formas em que surge entre os intelectuais ingleses, trata-se de um reflexo distorcido das batalhas terríveis que estão acontecendo no mundo externo, e as suas piores tolices foram possíveis devido ao colapso do patriotismo e da crença religiosa. Ao seguir essa linha de raciocínio, há o perigo de ser levado a uma espécie de conservadorismo ou a um quietismo político. É possível argumentar plausivelmente, por exemplo — e é provavelmente verdadeiro —, que o patriotismo é uma inoculação contra o nacionalismo, que a monarquia é uma segurança contra a ditadura e que a religião organizada é uma proteção contra a superstição. Ou, mais uma vez, pode-se argumentar que nenhuma perspectiva não-tendenciosa é possível, que todos os credos e causas envolvem as mesmas mentiras, tolices e barbaridades; e isso é frequentemente defendido como uma razão para nos mantermos à parte da política. Não aceito esse argumento talvez pela única razão de que no mundo moderno ninguém que se descreva como pode se manter-se à parte da política no sentido de não se importar com ela. Penso que é um dever envolver-se na política — usando a palavra num sentido amplo — e que deve-se ter preferências: isto é, deve-se reconhecer que algumas causas são objetivamente melhores do que outras mesmo que sejam defendidas por meios igualmente maus. Sobre os amores e ódios nacionalistas de que falei, são constitutivos da maior parte de nós, gostemos disso ou não. Não sei se é possível livrar-mo-nos deles, mas acredito que é possível lutar contra eles e que isso é essencialmente um esforço moral. É uma questão de, em primeiro lugar, descobrir o que se é, os sentimentos que realmente se tem e por fim levar em consideração o tendenciosismo inevitável. Se odiamos e tememos a Rússia, se temos inveja da riqueza e poder da América, se desprezamos os judeus, se temos um sentimento de inferioridade perante a classe dirigente britânica, não podemos livrar-nos desses sentimentos simplesmente pela força do pensamento. Mas podemos ao menos reconhecer que os temos e impedi-los de contaminar o nosso processo mental. Os impulsos emocionais inelutáveis, e que são talvez até mesmo necessários para a ação política, devem existir lado a lado com a aceitação da realidade. Mas isso, repito, requer esforço moral, e a literatura britânica contemporânea, na medida em que está atenta aos temas mais importantes da nossa época, mostra como poucos de nós estão preparados para fazê-lo.

George Orwell
Polemic (Outubro de 1945).

Notas

  1. Nações, e mesmo entidades ainda mais vagas como a igreja católica ou o proletariado, são comumente tidas como indivíduos e frequentemente referidas como “ele/a”. Comentários patentemente absurdos como “A Alemanha é naturalmente traiçoeira” encontram-se em qualquer jornal que se abra, e generalizações imprudentes sobre o caráter nacional (“O espanhol é um aristocrata natural” ou “Todo o inglês é um hipócrita”) são enunciadas por quase todos. Por vezes, percebe-se que essas generalizações são infundadas, mas o hábito de fazê-las persiste e pessoas internacionalmente reconhecidas, como Tolstói ou Bernard Shaw, com frequência as cometem. ↩︎

  2. Uns poucos autores de tendência conservadora, como Peter Drucker, previram um acordo entre a Alemanha e a Rússia, mas esperavam uma aliança ou uma fusão permanente. Nenhum marxista ou qualquer outro autor de esquerda de qualquer matiz chegou perto de prever o Pacto. ↩︎

  3. Os comentaristas de assuntos militares da imprensa popular podem majoritariamente ser classificados como pró-russos ou anti-russos, pró-Blimp ou anti-Blimp. Erros como acreditar que a Linha Maginot é inconquistável ou prever que a Rússia conquistaria a Alemanha em três meses não conseguiram abalar a sua reputação porque estavam sempre dizendo o que sua audiência particular queria ouvir. Os dois críticos militares mais bem quistos pela intelligentsia são o Capitão Liddell Hart e o Major-General Fuller, o primeiro dos quais ensina que a defesa é mais forte do que o ataque. Já o segundo que o ataque é mais forte que a defesa. Essa contradição não impediu que os dois fossem tidos pelo mesmo público como autoridades. A razão secreta para a sua voga em círculos de esquerda é que nenhum se alinha pelo Departamento de Guerra. ↩︎

  4. Alguns americanos tem expressado insatisfação porque “anglo-americano” é a forma normal de combinar essas duas palavras. Propôs-se a sua substituição por “américo-britânico”. ↩︎

  5. Trata-se da expressão bastante marcada do fonema /ɑː/. (N. do T.) ↩︎

  6. O News Chronicle recomendou que seus leitores assistam à filmagem em que a execução inteira pode ser testemunhada em grande plano. O Star publicou com aparente aprovação fotografias de mulheres colaboracionistas praticamente nuas sendo espancadas pela turba em Paris. Estas fotografias tinham uma marcante semelhança com as fotografias nazistas de judeus sendo espancados pela turba em Berlim. ↩︎

  7. Um exemplo é o Pacto Germano-Soviético, que está sendo apagado tão rapidamente quanto possível da memória pública. Um correspondente russo me informa que a menção ao Pacto já está sendo omitida dos anuários russos de eventos políticos recentes. ↩︎

  8. Um bom exemplo é a superstição sobre a intermação. Até recentemente acreditava-se que as raças brancas eram muito mais passíveis de intermação do que as de cor, e que um homem branco não poderia andar em segurança sob o sol tropical sem chapéu. Não havia qualquer prova em favor dessa teoria, mas serviu o propósito de acentuar as diferenças entre “nativos” e europeus. Durante a presente guerra, a teoria foi silenciosamente abandonada e exércitos inteiros manobram nos trópicos sem chapéu. Enquanto a superstição sobreviveu, os médicos ingleses na Índia parecem ter acreditado nela tão firmemente quanto os leigos. ↩︎

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