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Crítica
23 de Setembro de 2008   Filosofia da religião

A origem da realidade

Desidério Murcho

Eis uma cadeia de raciocínio familiar, e que de facto foi formulada por diferentes filósofos, nomeadamente Leibniz: para explicar seja o que for temos de recorrer a outras coisas. Um ovo existe porque a galinha o pôs, a galinha existe porque veio de outro ovo, e assim por diante. Como explicar de maneira completa, então, a existência da realidade? Só temos duas alternativas igualmente desagradáveis: ou a realidade é infinita, ou é afinal o nada que está na origem de tudo.

Entra então em cena um deus ou um grupo de deuses e afirmamos que o universo é criação sua. Assim resolvemos o dilema e afastamos as duas alternativas desagradáveis.

Só que isto é incoerente. Senão vejamos. Esse tal deus fez a primeira coisa como e a partir do quê? Bom, não podia ter feito a primeira coisa a partir de coisa alguma, pois nada havia antes de ele ter criado as primeiras coisas. E não podia ter criado o universo do modo como comummente entendemos o que é criar algo, que é sempre fazer uma coisa a partir de outra. De modo que dizer que um deus criou o universo é voltar a dizer que o fez a partir de coisa nenhuma.

Podemos argumentar que tal acto de criação é sobrenatural e que o próprio deus é sobrenatural, pelo que é de uma natureza (perdão?) totalmente diversa do universo.

Mas esta manobra não funciona. Pois o que queríamos realmente saber é de onde vem a realidade, e por realidade queremos dizer tudo o que há, tenha ou não localização espaciotemporal, seja ou não eterno, seja ou não sobrenatural ou antenatural ou pré-natural. A pergunta pela origem da natureza é demasiado modesta e não era isso que se estava a perguntar.

Como explicar então a realidade, toda ela, seja ela qual for? Podemos explicar a parte natural da realidade recorrendo a um deus ou a uma assembleia deles reunidos em alegre cavaqueira sobrenatural, mas teremos agora de explicar a parte sobrenatural da realidade: os próprios deuses. Como fazer tal coisa?

Ou dizemos que essa parte da realidade surgiu a partir do nada ou que não surgiu porque é eterna. Mas é incoerente exigir explicações no caso de uma parte da realidade, insistindo que a resposta da eternidade ou da origem no nada é inaceitável, ao mesmo tempo que se aceita para a sobrenatureza o mesmo tipo de explicação com base no nada ou na eternidade que antes se recusou para a natureza. Se podemos dizer que a sobrenatureza é uma parte da realidade que é eterna, podemos com certeza também dizer que a própria realidade natural é eterna. Dizê-lo tem até a vantagem de não ter de explicar como pode um deus que está fora do tempo e do espaço ter estados mentais como intenções e planos, que são ocorrências temporais e espaciais.

Quando se pensa outra vez, compreendemos que algumas respostas religiosas a questões filosóficas últimas são puro vento. E por isso ter esperança na verdade destas periclitantes respostas não pode ser peculiarmente reconfortante — a menos que paremos cuidadosamente de pensar no ponto certo.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457