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22 de Maio de 2006   Filosofia da religião

Que Deus, Hume?

Desidério Murcho
Diálogos sobre a Religião Natural
de David Hume
Tradução, introdução e notas de Álvaro Nunes
Lisboa: Edições 70, 2005, 160 pp.

Obras sobre Religião
de David Hume
Tradução de Francisco Marreiros e Pedro Galvão
Lisboa: Gulbenkian, 2005, 242 pp.

David Hume (1711–1776) foi um dos mais influentes filósofos e um dos intelectuais que mais marcou o nosso tempo. Escocês refinado, homem de letras, não teve lugar na universidade do seu tempo — como tantos outros numa altura em que as universidades não contratavam as pessoas pelas suas competências académicas, mas pelas suas filiações religiosas e pelas suas opiniões favoráveis ou não ao sistema vigente. Autor do Tratado da Natureza Humana (1740), que depois reescreveu, dando origem à Investigação Sobre o Entendimento Humano (1748) e à Investigação Sobre os Princípios da Moral (1751), foi no seu tempo conhecido sobretudo pelos seus Ensaios: Morais, Políticos e Literários (1741–1742) e pela monumental A História da Inglaterra (1754-1762), em seis volumes. Fez fama nos círculos literários parisienses (onde era conhecido como “le bon David”, por causa da sua afabilidade) quando trabalhou como secretário do embaixador britânico naquela cidade, e salvou Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) das perseguições de que era alvo, dando-lhe abrigo político no Reino Unido.

As suas opiniões sobre a religião não lhe foram favoráveis. Sabia-se que era um céptico, talvez mesmo ateu, e precisamente para não acirrar a opinião pública resolveu não publicar em vida os seus Diálogos, que viriam a ser publicados postumamente em 1779. 226 anos depois foram publicados entre nós, e a dobrar: nas Edições 70 e na Gulbenkian. As Edições 70 apresentam uma tradução precisa, cuidada e clara de Álvaro Nunes, precedida de uma excelente introdução (das melhores coisas escritas entre nós durante 2005), notas informativas e nunca exibicionistas (como tantas vezes acontece), uma informativa bibliografia selecta e um útil índice remissivo. A introdução é um modelo do que devem ser as introduções a obras deste género, e está ao nível do que de melhor se faz no mundo: numa linguagem directa e sem ademanes pseudo-académicos, transmite informação realmente importante de forma clara, tanto sobre o autor em geral como sobre esta obra em particular. Tem além disso a virtude de mostrar a actualidade filosófica dos Diálogos. Efectivamente, os argumentos discutidos nesta obra são ainda hoje objecto de disputa entre os especialistas, apesar da sua leitura enganadoramente simples e até com sabor a literatura.

Tratando-se de um diálogo, Hume faz brilhar os seus dotes literários e retóricos, acabando por tornar a leitura um tanto irritante para quem está interessado sobretudo na substância filosófica. Os diálogos ocupam-se quase exclusivamente do chamado argumento do desígnio a favor da existência de Deus. Este argumento era um dos mais populares, entre intelectuais e religiosos, no tempo de Hume — e continua a sê-lo. Em 1802 (vinte e três anos depois dos Diálogos) o teólogo e pregador William Paley publicou a famosa obra Teologia Natural na qual apresenta, de forma exaustiva e com muitos floreados de retórica, o mesmíssimo argumento que Hume pretendera refutar, aparentemente no mais completo desconhecimento da sua obra. Hoje em dia, o argumento do desígnio está na ordem do dia porque os criacionistas bíblicos literalistas defendem precisamente uma versão moderna do mesmo argumento básico. Nos seus traços mais gerais, o argumento do desígnio é o seguinte: Existe ordem, complexidade e estrutura da natureza; estas características não seriam possíveis sem a existência de um criador inteligente; logo, existe um criador inteligente — Deus. Uma das objecções mais visionárias de Hume é que o nosso desconhecimento da natureza não nos permite aceitar o argumento porque nada nos garante que a natureza não contém em si a capacidade para se auto-organizar, tornando-se cada vez mais complexa. Este argumento é visionário porque em 1859, precisamente oitenta anos depois da publicação dos Diálogos, Charles Darwin publicou A Origem das Espécies. Nesta obra, Darwin apresenta pela primeira vez uma explicação científica da complexidade e aparente “design” das plantas e animais. Para quem pensa que em filosofia não há evolução, estudar a história do argumento do desígnio poderá ser um bom ponto de partida; hoje em dia, os mais reputados filósofos da religião, como Richard Swinburne, defendem versões sofisticadas do argumento do desígnio que são compatíveis com o evolucionismo darwinista e imunes às principais objecções de Hume.

Por vezes, Hume é tendencioso e demasiado apressado nos seus argumentos. Ao discutir brevemente o argumento cosmológico de Leibniz, parece não compreender cabalmente o argumento original, apressando-se a reafirmar a sua ideia de que todo o juízo de existência tem de se basear na experiência. É verdadeiro que este discutível princípio filosófico está em conflito com qualquer argumento que pretenda, sem apoio na experiência, provar a existência de algo. Mas a melhor refutação de tal princípio é precisamente um argumento cuja única objecção consista em apelar ao princípio geral de Hume.

A edição da Gulbenkian é acompanhada da História Natural da Religião (1757), uma obra de menor interesse filosófico, mas de inegável interesse histórico, nomeadamente para os estudos religiosos. Trata-se de um dos primeiros estudos de religião comparada, estudo que se tornaria mais tarde muitíssimo popular. Nesta obra, Hume desenvolve o seu poder de observação e análise de pendor naturalista, comparando várias religiões, na altura documentadas, e procurando avaliar os seus pontos fortes e fracos. Lido conjuntamente com os Diálogos, esta obra oferece uma compreensão aprofundada das posições de Hume sobre a religião — posições que infelizmente nunca exprimiu com toda a frontalidade, para não afrontar aqueles que a ele o afrontaram.

Desidério Murcho
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ISSN 1749-8457