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13 de Outubro de 2016   Estética

O padrão humiano do gosto1

Rompendo o círculo
Peter Kivy
Tradução de Vítor Guerreiro

I

Sem dúvida que a teoria moral de Hume tinha raízes nos escritos de Francis Hutcheson. Um exame das respectivas posições revela-o de modo suficientemente claro; mas Hume deixou-nos indícios históricos ainda mais substanciais sob a forma de cartas a Hutcheson, escritas entre 1739 e 1741 – o período em que foi publicado o Tratado da Natureza Humana. Hume foi explícito acerca do que obviamente considerava um encontro de mentes em ética. “A moralidade de acordo com a sua opinião, bem como a minha”, escreveu a Hutcheson, “é determinada meramente pelo sentimento (…)”2 Um acordo análogo existia no domínio da teoria estética, como Hume tornou manifesto nos seus escritos e em particular no ensaio “Acerca do Padrão do Gosto” (1757).

Há duas premissas fundamentais da teoria moral e estética de Hutcheson: 1) os termos valorativos “bom” e “belo” aplicam-se a objectos morais e estéticos que produzem no observador tipos particulares de “ideias” lockianas; e 2) essas ideias são percepcionadas por “sentidos internos”. Hume aceita a primeira dessas premissas, embora faça “sentimento”, “prazer” e outras semelhantes substituírem-se ao termo mais geral, “ideia”. A segunda premissa, para Hume, coalesce com a primeira: tudo o que se pode dizer acerca do sentido moral e do sentido da beleza está contido na asserção de que “bom” e “belo” se aplicam em virtude de termos “sentimentos” morais e estéticos. A posição é resumida no Tratado:

Uma acção ou sentimento, ou carácter, é virtuosa ou viciosa; porquê? Porque a sua observação causa um prazer ou desconforto de um género particular. Ao dar uma razão, portanto, para o prazer ou desconforto, explicamos suficientemente o vício ou a virtude. Ter o sentido da virtude não é senão sentir uma satisfação de um género particular na contemplação de um carácter. O próprio sentimento constitui o nosso louvor ou admiração (…). Não inferimos que um carácter é virtuoso porque agrada; mas ao sentir que agrada de um modo particular, sentimos efectivamente que é virtuoso. O mesmo sucede com os nossos juízos acerca de todos os géneros de beleza e gostos e sensações. A nossa aprovação está implícita no prazer imediato que nos dão.3

Para um empirista pleno o sentido moral e o sentido da beleza são bagagem extrafilosófica. Estamos cientes dos sentimentos, não dos sentidos; afirmar que temos um sentido moral ou um sentido da beleza só pode ser um modo elíptico de afirmar que temos sentimentos morais e estéticos.

Tendo escolhido o caminho do “sentimento” na estética, Hume enfrentou, como outros antes dele, o espectro de um relativismo subjectivo. Mas nenhum pensador anterior se apercebera das possíveis consequências da “nova estética” de um modo mais agudo ou as exprimira mais directamente do que o céptico “desapaixonado” que, nas palavras de Kant, estava “tão peculiarmente apto ao juízo equilibrado”.4 Porém, Hume reconheceu que se o relativismo no gosto parece um facto inquestionável, o mesmo sucede com a existência de padrões críticos.

A beleza não é uma qualidade nas próprias coisas: existe apenas na mente que as contempla; e cada mente percepciona uma beleza diferente. Uma pessoa pode mesmo percepcionar a disformidade onde outra é sensível à beleza; e todo o indivíduo deve aquiescer no seu próprio sentimento, sem querer regular o de outros (…).

Mas embora este axioma, passando a provérbio, pareça ter granjeado a sanção do senso comum; há seguramente uma espécie de senso comum que se lhe opõe, pelo menos serve para o modificar e restringir. Quem quer que afirmasse uma igualdade de génio e elegância entre Ogilby e Milton, ou Bunyan e Addison, seria visto como defendendo uma extravagância não menor do que se defendesse que um outeiro é tão alto como Tenerife, ou que um lago é tão extenso como o oceano.5

A resolução desse paradoxo, dessa “antinomia” do gosto, era tanto a tarefa de Hume, quanto é nossa; e a resolução que ele ensaiou merece a mais séria consideração.

II

Hume acreditava que um padrão do gosto só poderia ser salvaguardado por um forte compromisso com o racional. Tão-pouco o Esclarecimento tomou o sentimento e a razão como necessariamente incompatíveis. Hume fazia eco de uma multidão de moralistas e críticos setecentistas quando escreveu no Enquiry Concerning the Principles of Morals (1757): “razão e sentimento estão de acordo em quase todas as determinações e conclusões morais”, e especificamente no que diz respeito ao problema do gosto: “em muitas ordens de beleza, particularmente as das belas-artes, requer-se o uso de muito raciocínio, de modo a sentir o sentimento apropriado; e um falso sabor pode amiúde ser corrigido por argumentação e reflexão”.6 Assim, o propósito principal da crítica, segundo acreditava Hume, deve ser o de “misturar alguma luz do entendimento com os cambiantes de sentimento (…)”7

Se faço uma afirmação empírica, esta é avaliada como verdadeira ou falsa com base em aquilo que afirmo se verificar ou não. Este juízo é a província da razão. A pedra de toque de qualquer processo de raciocínio semelhante é um dado estado de coisas exterior; o “padrão” da razão aqui consiste na correspondência com os factos relevantes. “Na operação do raciocínio”, diz-nos Hume, “a mente nada faz senão rever brevemente os seus objectos, como se supõe que estes sejam na realidade, sem lhes acrescentar ou subtrair seja o que for (…) Esta operação da mente, portanto, parece ter sempre um padrão real, embora amiúde desconhecido, na natureza das coisas; tão-pouco variam a verdade e a falsidade de acordo com as diversas apreensões do género humano”.8

Mas os juízos estéticos não são deste tipo, de acordo com Hume. Não nos limitamos, quando pronunciamos o juízo “belo” ou o seu inverso, a “passar em revista” os “objectos” do pensamento “como se supõe que são na realidade, sem lhes acrescentar ou subtrair seja o que for”. Acrescentamos de facto algo: acrescentamos os nossos sentimentos – as nossas reacções emocionais aos objectos que percepcionamos: “a situação difere com as qualidades de belo e disforme, desejável e odioso, do que sucede com a verdade e a falsidade. Na situação anterior, a mente não se limita apenas a observar os seus objectos, como são em si mesmos: tem também um sentimento de deleite ou desconforto, de aprovação ou reprovação, em consequência dessa observação; e esse sentimento determina-a a afixar o epíteto belo ou disforme, desejável ou odioso”.9 Ora, os nossos sentimentos variam consoante as nossas naturezas subjectivas: “tão-pouco pode o mesmo objecto, apresentado a uma mente de todo diferente, produzir o mesmo sentimento”. Carecemos, nos nossos juízos estéticos, do “padrão exterior” que têm os nossos juízos factuais. A busca por um padrão do gosto, assim, é a busca por esse padrão exterior. O programa humiano em estética é a tradução de juízos de valor em juízos factuais – juízos de sentimento em juízos de razão. É isso que Hume pretende ao falar em misturar “alguma luz do entendimento com os cambiantes do sentimento”.

O padrão do gosto é determinado por juízos baseados no sentimento. Mas nem todos os homens são iguais na sua aptidão para ajuizar pelo sentimento: “poucos estão preparados para ajuizar qualquer obra de arte, ou estabelecer o seu próprio sentimento como padrão da beleza”.10 O padrão do gosto, portanto, é estabelecido por aqueles que estão qualificados para ajuizar com base no sentimento. E assim facilmente se responde à questão “O que é boa arte?”. A boa arte é a arte que os bons críticos – os que estão aptos para ajuizar pelo sentimento – aprovam. Mas agora uma nova série de questões acerca da natureza dos bons críticos se levantam. “Onde encontramos esses críticos?” pergunta Hume. “Por que sinais os havemos de reconhecer? Como distingui-los de fingidores? Essas perguntas são embaraçosas; e parecem lançar-nos na mesma incerteza da qual (…) nos esforçámos por sair”. Porém, fizemos algum progresso. Pois, defende Hume, as questões acerca dos bons críticos “são questões de facto, não de sentimento”; e essas questões, “sujeitas ao entendimento”, são susceptíveis, pelo menos em princípio, de uma determinação racional.

Se, todavia, um juízo racional deve distinguir entre os bons e os maus críticos, tem de encontrar os seus critérios, o seu “padrão”, nos factos acerca da situação; tem de haver algum conjunto enumerável de características pelas quais se possa separar o trigo do joio. Hume dá-nos cinco qualidades distintivas:

(1) Quando o crítico não tem delicadeza ajuíza indistintamente e só é afectado pelas qualidades mais grosseiras e palpáveis do objecto: os toques mais subtis passam despercebidos e não são considerados. (2) Quando não é assistido pela prática o seu veredicto é acompanhado de confusão e hesitação. (3) Quando nenhuma comparação [entre diferentes tipos de beleza] foi usada as belezas mais frívolas, tais que antes merecem o nome de imperfeições, são o objecto da sua admiração. (4) Se está sob a influência do preconceito todos os seus sentimentos naturais estão pervertidos. (5) Onde falta o bom senso falta a qualificação para discernir as belezas de concepção e raciocínio [i.e. a relação mútua das partes da obra de arte, e o propósito da obra], que são as mais elevadas e as mais excelentes.11

III

Foi frequentemente afirmado que Hume incorre aqui num círculo vicioso, em que a boa arte é definida em termos do bom crítico e o bom crítico em termos da boa arte.12 E é na verdade fácil gerar semelhante definição circular simplesmente perguntando-nos como determinar se um indivíduo tem ou não as cinco qualidades do bom crítico, enumeradas atrás. Se a resposta é que sabemos que um bom crítico tem essas qualidades porque aprova a boa arte, então sem dúvida que pensamos em círculos, nomeadamente: (1) as boas obras de arte são obras de arte aprovadas pelos bons críticos; (2) os bons críticos são críticos que têm as cinco qualidades necessárias; e (3) os críticos que têm as cinco qualidades necessárias são críticos que aprovam boas obras de arte.

Será esta uma representação justa do que Hume tem para dizer a respeito do juízo estético? Em parte, receio que sim – mas somente em parte. Porquanto há, afinal, cinco qualidades que, de acordo com Hume, distinguem o bom crítico; e não formam todas uma unidade. Algumas deixam-nos numa definição circular; outras, creio, não. Assim, temos de examinar essas qualidades mais detalhadamente se queremos fazer jus a Hume nesta matéria.

Hume concebe a prática como “a frequente observação ou contemplação de uma espécie particular de beleza”.13 O uso de comparações exige que se justaponha “as diversas espécies e graus de excelência”.14 Mas temos de ser capazes de reconhecer a beleza antes de sermos capazes de determinar se um crítico se tem ou não entregue à “frequente observação ou contemplação de uma espécie particular de beleza”. Temos de saber o que é excelente antes de sermos capazes de determinar se um crítico comparou ou não “as diversas espécies e graus de excelência”. Assim, (1) o belo (ou excelente) é definido em termos do bom crítico; (2) o bom crítico é definido em termos da prática e uso de comparações; e (3) a prática e o uso de comparações são definidos em termos do belo (ou excelente). Obviamente, nestes dois casos a definição de beleza é circular.

Se, todavia, examinamos as restantes três qualidades – delicadeza, ausência de preconceito, bom senso – deparamo-nos com uma situação completamente diferente. O que pretendo argumentar é que essas qualidades têm, para Hume, determinadas características cruciais em comum: todas são qualidades que não estão reservadas somente aos críticos; todas são qualidades exigidas não só para o juízo estético mas também para outras actividades; pelo que todas são identificáveis por sinais além da aprovação da boa arte pelo crítico. Sendo assim, o círculo é quebrado; tendo definido a boa arte em termos dos bons críticos, Hume não precisa, no que respeita a essas qualidades, definir em última análise os bons críticos em termos da boa arte.

Hume descreve a delicadeza do seguinte modo: “Sendo os órgãos tão refinados a ponto de nada lhes escapar, e ao mesmo tempo tão precisos de modo a percepcionar cada ingrediente da composição, a isto chamamos delicadeza do gosto, quer usemos estes termos em sentido literal ou metafórico”.15 Como havemos de determinar se um crítico tem ou não delicadeza de gosto no sentido estético? Em “Acerca do Padrão do Gosto” parece sugerir-se que essa delicadeza é determinada com base na capacidade de o crítico distinguir qualidades estéticas na boa arte. E isto, evidentemente, leva-nos outra vez a uma definição circular: (1) a boa arte é arte aprovada pelos bons críticos; (2) os bons críticos são críticos que têm delicadeza; e (3) a delicadeza é a capacidade de distinguir as qualidades estéticas da boa arte.

Mas no ensaio anterior, “Sobre a Delicadeza do Gosto e da Paixão” (1741), Hume relaciona a sensibilidade estética à sensibilidade emotiva em geral, sugerindo a dado ponto que os indivíduos caracterizados pela última têm provavelmente a primeira também. Escreve:

Até que ponto a delicadeza do gosto e a da paixão estão ligadas na estrutura original da mente, é difícil determinar. A mim parece-me haver conexão bastante considerável entre elas. Pois podemos observar que as mulheres, que têm paixões mais delicadas do que os homens, têm também um gosto mais delicado pelos ornamentos da vida, do vestuário, equipagem, e pelas decências comuns de comportamento. Têm um gosto mais rapidamente susceptível a qualquer excelência nestas coisas do que o nosso; e ao agradar-lhes o gosto, cedo se granjeia o seu afecto.16

Assim, a delicadeza do gosto pode ser identificada (embora talvez não em todos os casos) por uma qualidade que não é estética, nomeadamente, a delicadeza da paixão. Poder-se-ia razoavelmente supor que um indivíduo tem delicadeza de gosto não com base nos seus juízos críticos mas antes com base nas suas reacções emocionais gerais a situações que não são estéticas. Com esta qualificação em mente, podemos definir a boa arte em termos de delicadeza e no entanto evitar a circularidade anterior. A nossa definição revista será: (1) a boa arte é arte aprovada pelos bons críticos; (2) os bons críticos são críticos que têm delicadeza de gosto; e (3) a delicadeza de gosto é concomitante à delicadeza de paixão.

Quanto à exigência humiana de que o crítico esteja isento de preconceito, a sua relevância parece suficientemente óbvia; esperamos que os juízos sejam justos, sejam eles estéticos, morais ou de qualquer outro género. “É bem sabido que em todas as questões sujeitas ao entendimento, o preconceito é destrutivo do juízo sólido, e perverte todas as operações das faculdades intelectuais: não é menos contrário ao bom gosto; nem tem menor influência em corromper o nosso sentimento da beleza”.17 Há um sentido especial, todavia, em que um juízo estético deve ser isento de preconceito. Hume faz esta exigência de si próprio como crítico: “considerando-me como um ser humano em geral, [devo] esquecer, se possível, o meu ser individual, e as minhas circunstâncias peculiares”.18 Ao proferir juízos críticos, devemos despir a nossa pele particular. Através do exercício mental adoptamos a perspectiva de “um ser humano em geral” e desconsideramos o nosso “ser individual” e “circunstâncias peculiares”. Essa é essencialmente uma versão estética daquilo que na filosofia moral de Hume se tornou conhecido como teoria do “espectador desinteressado”. Hume escreve no Tratado, por exemplo:

Tão-pouco é todo o sentimento de prazer ou dor que surge dos caracteres e acções, desse tipo peculiar que nos faz louvar ou condenar (…) . É só quando um carácter é considerado em geral, sem referência ao nosso interesse particular, que causa um sentimento ou sentimento que o denomina moralmente bom ou mau.19

Procuramos, nos nossos juízos morais e estéticos, separar no pensamento aquilo que varia com a nossa personalidade e época, e atender apenas ao elemento comum em todo o sentimento humano. Só assim,

(…) isentos
De mácula da personalidade,

podemos esperar ajuizar com base no sentimento que não sejam meras expressões de preferência pessoal mas juízos universais.20

Como no caso da delicadeza o ponto crucial para o que aqui nos interessa é que a ausência de preconceito, mesmo na sua aplicação especial a juízos estéticos, não é uma qualidade singular do crítico. É portanto uma qualidade que não tem de ser determinada somente na base na aprovação ou reconhecimento da boa arte por parte do crítico. Um indivíduo que seja em geral imparcial ou capaz de adoptar a perspectiva do “espectador desinteressado” em situações morais seria igualmente capaz, supomos, de adoptar a perspectiva do “ser humano em geral” ao exercitar o juízo crítico. Aqui uma vez mais está uma qualidade dos bons críticos que pode ser reconhecida independentemente de qualquer conhecimento da destreza estética do crítico. Assim, tendo definido a boa arte em termos da aprovação pelos bons críticos, e os bons críticos em termos de ausência de preconceito, não é preciso fechar o círculo e definir ausência de preconceito em termos da boa arte.

Por fim, parece abundantemente claro que o bom senso, a última das qualidades críticas de Hume, dificilmente pode ser considerada um atributo exclusivo dos críticos. Na verdade, é precisamente a ideia de Hume aqui que a inteligência faz tanto parte da crítica como do questionamento racional: “a mesma excelência das faculdades que contribui para o aperfeiçoamento da razão, a mesma clareza de concepção, a mesma exactidão de discernimento, a mesma vivacidade de apreensão, são essenciais para a operação do gosto genuíno, e são os seus infalíveis concomitantes”.21 Os tolos raramente dão bons críticos e as pessoas inteligentes normalmente dão – e tão-pouco precisamos de fazer qualquer referência à capacidade crítica em distinguir ambos. Mais uma vez, a boa arte pode ser definida em termos da aprovação por bons críticos, e os bons críticos em termos de bom senso; mas o bom senso, tendo uma aplicação mais vasta do que meramente aos bons críticos, não tem de ser definida em termos da boa arte.

IV

A definição humiana da boa arte, ou da beleza, portanto, embora circular em alguns casos, não o é em todos. A boa arte, ou o belo, é aquilo que é aprovado pelos bons críticos; e os bons críticos são caracterizados por cinco qualidades: delicadeza, prática, uso de comparações, ausência de preconceito, bom senso. A prática e o uso de comparações levam, como vimos, ao círculo vicioso de que Hume foi amiúde acusado. Porquanto ambas são definidas em termos do belo. Mas a delicadeza, a ausência de preconceito, e o bom senso, sendo qualidades não exclusivas dos críticos, estão isentas desta circularidade; são identificáveis por outros sinais além da aprovação de objectos estéticos pelos bons críticos, e não têm de ser definidas em termos da boa arte.

Mas se a definição humiana da boa arte está isenta da acusação de circularidade, o argumento geral do ensaio sobre o gosto não fica inteiramente livre de mácula. Hume parece de facto incorrer (entre outras coisas) numa regressão ao infinito.

Imaginemos que Smith e Jones discordam acerca de um poema: Smith aprova-o e Jones não. Smith sustenta o seu juízo por referência ao veredicto favorável de um crítico, ao que Jones responde que o crítico em causa carece de bom senso. Essa pode ser pelo menos um género de disputa em estética que Hume tem em mente; e aqui ele afirmaria, como parece que o fez ocasionalmente no que diz respeito a disputas éticas, que (para usar a terminologia ética do Professor Stevenson) os desacordos acerca de valor estão até um certo ponto “enraizados no desacordo quanto a crenças”. É isto o que Hume pretende dizer ao afirmar que um juízo crítico baseado no “sentimento” pode ser reduzido a um juízo racional envolvendo “factos”. Se Smith e Jones estiverem completamente inteirados dos factos, concordarão a respeito do agora disputado poema – sendo os factos, neste caso, as credenciais do crítico que Smith invoca como autoridade.

Mas suponha-se que examinamos os factos (assim chamados) acerca do caso, o bom senso, por exemplo, que se diz que o crítico tem. A expressão bom senso descreve; também aprova. O que sucedeu é que nesta tentativa de reduzir desacordos acerca de valores estéticos a desacordos acerca de factos, Hume simplesmente fez o juízo de valor recuar um passo: a questão “Será x um bom poema?” tornou-se: “Será que y tem bom senso?” E ambas são questões valorativas, questões de “sentimento”, não (somente) questões de facto. Smith e Jones (para usar mais uma vez a terminologia ética de Stevenson) não só discordam nas suas “crenças” acerca do crítico, como Hume nos sugere, mas nas suas “atitudes” para com o crítico. Assim, deparamo-nos agora com a tarefa de reduzir o bom senso a questões de facto; e o resultado dessa redução sem duvida exigirá uma redução por seu turno.

Muitos afirmariam que a tentativa humiana de reduzir questões de sentimento estético a questões de facto está condenada à partida: simplesmente não há garantia de que o acordo acerca de factos resultará num acordo acerca do que é belo. E o próprio Hume parece em última análise ter pensado o mesmo. Pois embora Hume tenha afirmado que algumas disputas estéticas estão enraizadas no desacordo acerca de factos, não acreditava, ao que parece, que todas estão. Muito próximo da conclusão do ensaio sobre o gosto escreveu:

Os princípios gerais do gosto são uniformes na natureza humana: onde os homens variam nos juízos que fazem, alguma imperfeição ou perversão nas faculdades [uma questão de facto] pode comummente ser notada; proceder com base ou no preconceito, da ausência de prática, ou de delicadeza: e há precisamente razão para aprovar um gosto e condenar outro. Mas onde há tal diversidade na estrutura interna ou situação exterior de modo que não seja culpável de ambas as partes, não deixando espaço para que se dê preferência a um sobre o outro [onde, por outras palavras, há desacordo substancial no que respeita aos factos]; nesse caso um certo grau de diversidade no juízo [desacordo em atitudes] é inevitável, e procuramos em vão por um padrão, pelo qual pudéssemos reconciliar os sentimentos contrários.22

Quando surge uma disputa artística os factos acerca da situação, que para Hume são as credenciais do crítico, são relevantes; e o acordo acerca delas pode levar a uma resolução da disputa. Isso ocorrerá quando os factos ou claramente condenam ou claramente autorizam o crítico aos olhos das partes em disputa. Mas quando as credenciais do crítico foram examinadas, ou quando dois críticos rivais apresentam credenciais igualmente dignas de crédito e ainda assim discordam no seu juízo, os factos acerca da situação foram exaustivamente considerados. Se a disputa continua, trata-se de uma disputa de sentimento, não de razão; trata-se de um desacordo em atitudes, não em crenças, e “nenhuma resolução racional de qualquer género é possível”.23 Fizemos tudo o que podíamos racionalmente fazer quando expusemos os factos acerca da situação. Se o desacordo permanece – e, para Hume, não temos garantia de que não sucederá – trata-se de um desacordo que não é susceptível de resolução por métodos racionais.

Hume, assim, não detinha qualquer garantia absoluta de resolução de questões estéticas; e para uma época que procurava essas garantias com a tenacidade de uma Demanda do Graal, tal foi uma decepção. Como um revisor anónimo do ensaio sobre o gosto tristemente observou pouco depois da sua publicação, “em vez de fixar e certificar o padrão do gosto, como esperávamos, o nosso autor apenas nos deixa na mesma incerteza em que nos encontrou: e conclui com o filósofo de outrora, que tudo o que sabemos é que nada sabemos”.24 Hume poderia muito bem ter respondido com as palavras de outro “filósofo de outrora”: “é característica de uma mente ilustrada procurar somente aquela precisão em cada tipo de questionamento que a natureza do assunto pode permitir”.25

Peter Kivy
British Journal of Aesthetics, 1967, Vol. 7, n.º 1, pp. 57–66.

Notas

  1. Estou em dívida para com os Professores Albert Hofstadter, James J. Walsh, e Richard F. Kuhns, Jr., da Universidade de Columbia, que leram versões anteriores deste artigo. A exclusiva responsabilidade por quaisquer erros é, evidentemente, minha. ↩︎

  2. The Letters of David Hume, org. J. Y. T. Grieg (1932), Vol. I, p. 40. ↩︎

  3. Treatise of Human Nature, III, I, 2. ↩︎

  4. Critique of Pure Reason, trad. Norman Kemp Smith (1950), p. 597. ↩︎

  5. “Of the Standard of Taste”, Essays (1903), p. 235. ↩︎

  6. Enquiry Concerning the Principles of Morals, I. ↩︎

  7. “Of the Standard of Taste”. ↩︎

  8. “The Sceptic”, Essays (1903). ↩︎

  9. Ibid.↩︎

  10. “Of the Standard of Taste”. ↩︎

  11. Ibid. Itálicos meus. ↩︎

  12. Ver, por exemplo, S. G. Brown, “Observations on Hume’s Theory of Taste”, English Studies, XX (1938); e James Noxon, “Hume’s Opinion of Critics”, Journal of Aesthetics and Art Criticism, XX (1961). ↩︎

  13. “Of the Standard of Taste”. ↩︎

  14. Ibid.↩︎

  15. Ibid.↩︎

  16. “Of the Delicacy of Taste and Passion”, Essays (1903). ↩︎

  17. “Of the Standard of Taste”. ↩︎

  18. Ibid↩︎

  19. Treatise of Human Nature, III, I, 2. ↩︎

  20. Cf. Kant, Critique of Aesthetic Judgement, trad. J. C. Meredith (1911): “pelo nome sensus communis deverá entender-se a ideia de um sentido público, i.e., uma faculdade crítica que no seu acto reflexivo considera (a priori) o modo da representação de todos os outros, de maneira, por assim dizer, a ponderar o seu juízo com a razão colectiva da humanidade, e assim evitar a ilusão que surge das condições subjectivas e pessoais que facilmente se poderia tomar por objetivas, uma ilusão que teria uma influência prejudicial no seu juízo. Consegue-se isto ponderando o juízo, não tanto com os juízos efectivos como com os juízos meramente possíveis de outros, e colocando-nos na posição de todos os demais, em resultado de mera abstracção das limitações que contingentemente afectam a nossa avaliação” (p. 151). ↩︎

  21. “Of the Standard of Taste”. ↩︎

  22. Ibid↩︎

  23. C. L. Stevenson, Ethics and Language (1953), p. 138. A observação de Stevenson faz referência a disputas éticas e apropriei-me dela para os fins desta análise da teoria estética de Hume. ↩︎

  24. Critical Review, III (1757), p. 213. ↩︎

  25. Aristóteles, Nichomachean Ethics, 1094b, trad. Philip Wheelwright. ↩︎

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