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Crítica
16 de Abril de 2024   Lógica

Gottlob Frege

Anthony Kenny
Tradução de Desidério Murcho

Gottlob Frege (1848–1925) foi o fundador da lógica matemática moderna. Como lógico e filósofo da lógica está a par de Aristóteles; como filósofo da matemática não teve igual em toda a história da área. Depois de se doutorar em filosofia em Gotinga, deu aulas na Universidade de Iena de 1874 até se reformar, em 1918; além da sua actividade intelectual, a sua vida foi rotineira e isolada. A sua obra foi pouco lida enquanto viveu, e durante muito tempo a sua influência na filosofia foi exercida sobretudo por meio de escritos alheios.

Por meio de Russell, Frege influenciou a filosofia analítica; por meio de Husserl, influenciou a filosofia continental. É muitas vezes considerado um filósofo de filósofos, mas foi o seu génio que tornou possível o trabalho de autores que chamaram a atenção do grande público, como Wittgenstein e Chomsky; e a sua invenção da lógica matemática foi um dos maiores contributos para os desenvolvimentos de várias disciplinas que resultaram na invenção dos computadores.

A carreira produtiva de Frege começou em 1879, com a publicação de um panfleto com o título Begriffsschrift, que podemos exprimir em português como “Notação Conceptual”. O panfleto marcou uma época na história da lógica, pois estabeleceu em algumas centenas de páginas um novo cálculo, que tem um lugar permanente no coração da lógica moderna. A notação conceptual que dá título ao livro é um novo simbolismo, concebido para revelar com clareza relações lógicas que estavam ocultas na linguagem comum.

Desde há gerações que o currículo em lógica formal começa com o estudo do cálculo proposicional. Trata-se do ramo da lógica que lida com aquelas inferências que dependem da força da negação, conjunção, disjunção, etc., quando se aplicam a frases completas. O seu princípio fundamental é considerar que o valor de verdade (ou seja, a verdade ou a falsidade) das frases que incluem conectivas como “e”, “se” e “ou” é inteiramente determinado pelos valores de verdade das frases constituintes que estão ligadas pelas conectivas. O Begriffsschrift de Frege inclui a primeira formulação sistemática do cálculo proposicional; é apresentado de maneira axiomática, na qual todas as leis da lógica são derivadas, por meio de regras de inferência especificadas, de um dado número de princípios primitivos. O simbolismo de Frege, apesar de elegante, é difícil de imprimir, e já não é usado; mas as operações que exprime continuam a ser fundamentais na lógica matemática.

O grande contributo de Frege para a lógica foi a invenção da teoria da quantificação: um método para simbolizar e exibir rigorosamente aquelas inferências cuja validade depende de expressões como “todos” e “algum”, “qualquer” ou “todo”, ou “nenhum”. Usando uma notação nova para a quantificação, Frege apresentou um cálculo de predicados de primeira ordem que estabeleceu as bases de todos os desenvolvimentos recentes da lógica e que formalizou a teoria da inferência de maneira mais rigorosa e geral do que a silogística aristotélica tradicional que, até ao tempo de Kant, era encarada como o apogeu de toda a lógica. Depois de Frege, pela primeira vez, a lógica formal podia lidar com argumentos que incluíam frases com quantificação múltipla, como “Ninguém conhece toda a gente” e “Qualquer aluno consegue dominar qualquer língua”.

No decurso do seu trabalho, Frege desenvolveu outros ramos da lógica, incluindo o cálculo de predicados de segunda ordem, e uma versão da teoria ingénua dos conjuntos. Não explorou as áreas da lógica conhecidas como lógica modal (aquela parte da lógica que lida com a necessidade, possibilidade e noções desse tipo) nem com a lógica temporal (a lógica de afirmações temporais ou significativamente temporais). Estes ramos da lógica tinham sido estudados na Idade Média, e foram de novo estudados no século XX, à luz das suas inovações.

No Begriffsschrift e em obras posteriores, Frege não estava interessado na lógica em si. A sua motivação para construir a nova notação conceptual era ajudá-lo na filosofia da matemática. (Os seus projectos predominantemente matemáticos foram responsáveis pelo seu desinteresse relativo pelos ramos da lógica que dizem respeito a inferências acerca do transitório e do mutável.) A questão a que acima de tudo queria responder era esta: será que as demonstrações da aritmética repousam na lógica pura, baseando-se unicamente em leis gerais que são operativas em todas as esferas do conhecimento, ou será que precisam do apoio de factos empíricos? Para responder a esta pergunta, Frege propôs-se ver “até onde se poderia ir na aritmética só por meio de deduções lógicas, exclusivamente com o apoio das leis do pensamento”.

Frege não se limitou a mostrar como conduzir a lógica de maneira matemática; pensava também que se poderia mostrar que a própria aritmética era um ramo da lógica, no sentido de poder ser formalizada sem usar quaisquer noções ou axiomas que não fossem lógicos. Foi nos Grundlagen der Arithmetik (1884) que Frege se deitou pela primeira vez ao trabalho de estabelecer esta tese, que é conhecida pelo nome de “logicismo”.

Os Grundlagen começam com um ataque a ideias dos predecessores e contemporâneos de Frege (incluindo Kant e J. S. Mill) quanto à natureza dos números e da verdade matemática. Kant sustentara que as verdades da matemática eram sintéticas a priori, e que o nosso conhecimento delas dependia da intuição. Mill, pelo contrário, via as verdades matemáticas como generalizações a posteriori, empíricas, com uma aplicação muito lata e largamente confirmadas. Frege sustentava que as verdades da aritmética não são sintéticas a priori, nem sintéticas a posteriori. Ao contrário da geometria — que, concordando com Kant, Frege pensava que se apoiava na intuição a priori — a aritmética era analítica, ou seja, poderia ser definida em termos puramente lógicos e poder-se-ia demonstrar a partir de princípios lógicos puros.

A noção aritmética de número, no sistema de Frege, é substituído pela noção lógica de “classe”: os números cardinais podem ser definidos como classes de classes com o mesmo número de membros; assim, o número dois é a classe dos pares, e o número três, a classe dos trios. Apesar do que parece, esta definição não é circular, porque podemos dizer o que significa duas classes terem o mesmo número de membros sem usar a noção de número: assim, por exemplo, um criado de mesa pode saber que o número de facas é igual ao número de pratos que estão na mesa, sem saber quantos pratos nem quantas facas estão lá, se observar que há apenas uma faca à direita de cada prato. Duas classes têm o mesmo número de membros se puderem ser mapeadas uma na outra (numa função bijectiva). Podemos definir o número zero em termos puramente lógicos como a classe de todas as classes com o mesmo número de membros que a classe de objectos que não são idênticos a si próprios.

Para passar de uma definição de zero para a definição dos outros números naturais, Frege tem de definir a noção de “sucessor”, no sentido em que os números naturais se sucedem entre si na série dos números. Frege define “n é o sucessor imediato de m” como “Há um conceito F e um objecto x por ele abrangido tal que o número de F é n, e o número de F que não são idênticos a x é m”. Com a ajuda desta definição, os outros números (um, que é o sucessor de zero, dois, que é o sucessor de um, e assim por diante) podem, como o zero, ser definidos sem usar noções que não sejam lógicas, como identidade, classe e classe de equivalência.

Nos Grundlagen, há duas teses a que Frege dá grande importância. Uma é que cada número individual é um objecto auto-subsistente; a outra é que o conteúdo de uma afirmação que atribui um número é uma asserção acerca de um conceito. À primeira vista, poderá parecer que estas teses entram em conflito entre si, mas se compreendermos o que Frege queria dizer com “conceito” e “objecto” vemos que se complementam. Ao dizer que um número é um objecto, Frege não está a sugerir que um número é algo tangível como uma árvore ou uma mesa; ao invés, está negando que o número seja uma propriedade que pertença seja ao que for, seja ele um indivíduo ou uma colecção deles; e está também negando que seja algo subjectivo, um item mental ou uma propriedade de um item mental. Para Frege, os conceitos são independentes da mente, e por isso não há contradição entre a tese de que os números são objectivos, e a tese de que as afirmações numéricas são asserções sobre conceitos.

Frege ilustra esta última tese com dois exemplos:

Se eu disser que Vénus tem zero luas, não há simplesmente qualquer lua ou aglomeração de luas que sejam objecto de qualquer asserção; o que acontece é que se está a atribuir uma propriedade ao conceito “lua de Vénus”, nomeadamente, a propriedade de não incluir coisa alguma. Se eu disser que a carruagem do rei é puxada por quatro cavalos, estou a atribuir o número quatro ao conceito “cavalo que puxa a carruagem do rei”.

Mas se as afirmações numéricas deste tipo são acerca de conceitos, que tipo de objecto é um número em si? A resposta de Frege é que um número é a extensão de um conceito. O número que pertence ao conceito F, afirma, é a extensão do conceito “equinumérico do conceito F”. Isto equivale a dizer que é a classe de todas as classes que têm o mesmo número de membros que a casse dos F, como se explicou já. De modo que a teoria de Frege de que os números são objectos depende da possibilidade de encarar as classes como objectos.

Como se verá, a filosofia da matemática de Frege está intimamente ligada ao entendimento que tinha de vários termos nucleares da lógica e da filosofia; e efectivamente, no Begriffsschrift e nos Grundlagen, Frege não só fundou a lógica moderna como fundou a disciplina filosófica moderna da filosofia da lógica. Fê-lo ao distinguir claramente entre o tratamento filosófico da lógica e a psicologia (com a qual tinha amiúde sido confundida pelos filósofos da tradição empirista), por um lado, e, por outro lado, a epistemologia (com a qual era por vezes identificada pelos filósofos da tradição cartesiana). Neste aspecto, Frege alinhava-se com outra tradição ainda mais antiga, com origem no De Interpretatione de Aristóteles; mas no Begriffsschrift e nos Grundlagen, Frege investiga noções como nome, frase e predicado com uma abrangência e subtileza superiores às de Aristóteles.

Um dos dispositivos mais férteis de Frege foi a aplicação das noções matemáticas de função e argumento para substituir a análise de frases da linguagem comum em termos de sujeito e predicado. Considere-se uma frase como “William derrotou Harold” — uma descrição lacónica, talvez, da batalha de Hastings. A gramática tradicional irá dizer que “William” é o sujeito, e “derrotou Harold” o predicado. Dizer, como Frege, que devemos ver “William” como o argumento e “derrotou Harold” como uma função, poderá à primeira vista parecer simplesmente uma terminologia alternativa — e, na verdade, durante grande parte da vida, Frege estava disposto a chamar predicado a uma expressão como “derrotou Harold”. Mas tratar um predicado como função acarreta uma mudança profunda na compreensão da construção de frases.

Para ver porquê, suponha-se que tomamos a frase “William derrotou Harold” e inserimos, no lugar da palavra “Harold”, a palavra “Canute”. Isto muda claramente o sentido da frase, e na verdade transforma-a numa falsidade, quando antes era uma verdade. Deste modo, podemos considerar que a frase é constituída por uma componente constante, “William derrotou” e um símbolo, “Harold”, substituível por outros símbolos semelhantes — nomes que nomeiam outras pessoas, como “Harold” nomeia Harold. Quando concebemos a frase desde modo, Frege chama à primeira componente uma função, sendo a segunda o argumento; Frege está a alargar a terminologia matemática, segundo a qual 6 é o valor da função x ✕ 3 para o argumento 2, e 9 é o valor da mesma função para o argumento 3. A frase “William derrotou Harold” resulta de completar a expressão “William derrotou” com o nome “Harold”, e a frase “William derrotou Canute” resulta de completar a mesma expressão com o nome “Canute”. Ou seja, na terminologia de Begriffsschrift, “William derrotou Harold” é o valor da função “William derrotou” para o argumento “Harold”, e “William derrotou Canute” é o valor da mesma função para o argumento “Canute”.

A frase “William derrotou Harold” é também, é claro, o valor da função “derrotou Harold” para o argumento “William”. Do mesmo modo, 6 não é apenas o valor da função x ✕ 3 para o argumento 2, mas também o valor da função 2 ✕ x para o argumento 3. Toda a frase, para Frege, pode ser analisada em argumento e função pelo menos de uma maneira, mas muitas podem ser analisadas em mais de uma maneira.

Correspondendo à distinção linguística entre funções deste tipo e os seus argumentos, defendia Frege, tem de se fazer uma distinção sistemática entre conceitos e objectos, que são os seus homólogos ontológicos. Os objectos são o que os nomes próprios representam; são de muitos tipos, de seres humanos a números. Os conceitos são itens que têm uma incompletude fundamental, que corresponde aos lugares vazios de um predicado, tal como Frege os entende (isto é, uma frase com um nome próprio que lhe foi subtraído). Onde os outros filósofos falam de maneira ambígua do significado de uma expressão, Frege introduziu uma distinção entre a referência de uma expressão (o objecto que esta refere, como o planeta Vénus é a referência de “a Estrela da Manhã”) e o seu sentido. (“A Estrela da Tarde” difere em sentido de “a Estrela da Manhã” apesar de também esta referir Vénus, como os astrónomos descobriram.)

Estas teorias de lógica filosófica foram trabalhadas por Frege numa série de artigos no início da última década do século XIX: “Funktion und Begriff” (Função e Conceito, 1891), “Begriff und Gegenstand” (Conceito e Objecto, 1892), “Sinn und Bedeutung” (“Sentido e Referência”, 1892). A aplicação mais controversa da distinção de Frege entre sentido e referência foi a sua teoria de que a referência de uma frase era o seu valor de verdade (ou seja, o Verdadeiro, ou o Falso), e as teses relacionadas de que numa linguagem cientificamente respeitável todo o termo tem de ter uma referência e toda a frase tem de ser verdadeira ou falsa. Estas teses levantam muitas dificuldades.

Nos últimos anos da sua vida, entre 1918 e a sua morte, Frege tentou escrever um tratado completo de lógica filosófica. Tudo o que completou foi uma série de artigos ( Logische Untersuchungen, 1919–1923) em que regressa à relação entre lógica e psicologia filosófica ou filosofia da mente, e discute a natureza do pensamento e da inferência. O trabalho que levou a cabo nesta área foi em larga medida superado pelos escritos tardios de Wittgenstein, um filósofo muito influenciado ao longo da vida, como ele próprio reconhecia, pelos projectos de Frege e pela sua maneira de pensar.

O clímax da carreira de Frege como filósofo deveria ter sido a publicação dos dois volumes de Die Grundgesetze der Arithmetik (1893–1903), nos quais se propõe apresentar de maneira formal a construção logicista da aritmética, com base na lógica pura e na teoria de conjuntos. Este trabalho consistia em levar a cabo a tarefa esboçada nos livros anteriores sobre filosofia da matemática: tratava-se de enunciar um conjunto de axiomas que fossem reconhecivelmente verdades da lógica, para propor um conjunto de regras de inferência indubitavelmente sólidas, e depois apresentar, uma a uma, derivações das verdades comuns da aritmética, usando essas regras e axiomas.

Esse portentoso projecto foi abortado antes de chegar ao fim. O primeiro volume foi publicado em 1893; o segundo só apareceu em 1903 e, quando estava no prelo, Frege recebeu uma carta de Russell fazendo notar que o quinto dos axiomas iniciais tornavam todo o sistema inconsistente. Tratava-se do axioma que, nas palavras de Frege, permitia “a transição de um conceito para a sua extensão”, transição essa essencial para estabelecer que os números eram objectos lógicos. O sistema de Frege, com este axioma, permitia formar a classe de todas as classes que não são membros de si mesmas. Mas a formação dessa classe, fez Russell notar, leva a um paradoxo: se é membro de si próprio, então não é membro de si próprio; se não é membro de si próprio, então é membro de si próprio. Um sistema que leva a tal paradoxo não pode ser logicamente sólido.

Frege ficou destroçado com esta descoberta, e com razão, apesar de ter tentado remendar o seu sistema, enfraquecendo o axioma culposo. Sabemos hoje que este programa logicista não pode ser levado correctamente a cabo. O caminho dos axiomas da lógica para os teoremas da aritmética está obstruído em dois pontos. Primeiro, como o paradoxo de Russell mostrou, a teoria ingénua de conjuntos que fazia parte da base lógica de Frege era inconsistente em si, e as curas propostas por Frege mostraram-se ineficazes. Assim, os axiomas da aritmética não podem ser derivados de axiomas puramente lógicos, da maneira que Frege imaginara. Segundo, a própria noção de “axiomas da aritmética” foi posta em questão quando Gödel mostrou que era impossível dar à aritmética uma axiomatização completa e consistente. Apesar disso, os conceitos e ideias perspicazes desenvolvidos por Frege no decurso da exposição da sua tese logicista têm um interesse perene que não é posto em causa pela derrota desse programa às mãos de Russell e Gödel.

Certa vez, Wittgenstein falou a Geach do último encontro que teve com Frege:

A última vez que vi Frege, enquanto esperávamos na estação pelo meu comboio, disse-lhe: “Nunca vê dificuldade alguma na sua teoria de que os números são objectos?” Ele respondeu: “Às vezes parece que vejo uma dificuldade — mas depois perco-a de vista.”

Anthony Kenny
Oxford Companion to Philosophy, ed. Ted Honderich (Oxford University Press, 1995), pp. 316–319.

Bibliografia

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ISSN 1749-8457