31 de Dezembro de 2018
Ética
Antropologia filosófica
Matheus Silva
A antropologia filosófica é a subárea da filosofia que trata da natureza mais fundamental dos seres humanos. A natureza humana é o conjunto de características que os seres humanos têm independentemente da influência cultural. Essa é uma das questões mais tradicionais da filosofia, tendo sido analisada de maneira intensa por filósofos como Aristóteles, Epicuro, Sêneca, Agostinho, Hobbes, Rousseau, Hume e Mill. O estudo sofisticado da antropologia filosófica contemporânea é informado por múltiplos ramos da ciência contemporânea como a neurociência, a genética, a sociobiologia, a economia e a psicologia, sobretudo a psicologia evolutiva.
Podemos distinguir pelo menos três maneiras de compreender a natureza humana. Na primeira, as teorias sobre a natureza humana são entendidas como tentativas de descrever qual é a natureza dos seres humanos em uma acepção ampla. É nesse sentido que podemos considerar se os seres humanos são apenas animais (abordagem naturalista), criados por uma entidade divina como uma dimensão espiritual (abordagem espiritualista) ou animais que possuem algumas propriedades que não podem ser reduzidas a entidades físicas (abordagem antirreducionista).
Outra maneira de entender a natureza humana é entendê-la como um conjunto de propensões ou disposições comportamentais que são traços universais em todas as culturas. Isso é o que as pessoas geralmente têm em mente quando dizem que uma ação “é típica da natureza humana”. Elas são maneiras de agir e inclinações que tendem a ser compartilhadas por toda a humanidade.
Essa distinção entre a natureza humana em uma acepção ampla e restrita sugere que duas pessoas podem estar em acordo sobre a natureza humana em uma acepção ampla, mas ainda assim discordar sobre a natureza humana em uma acepção restrita. Por exemplo, duas pessoas podem aceitar uma concepção espiritualista cristã (acepção ampla), mas discordarem sobre se os seres humanos tendem a agir com motivações egoístas (acepção restrita).
A acepção restrita da natureza humana é particularmente importante para questões de ética e política. Envolve, por exemplo, uma tomada de posição na discussão sobre a natureza versus cultura, pois implica que a genética e a hereditariedade influenciam diretamente o comportamento humano.
Infelizmente, devido às suas implicações políticas, essa concepção de natureza humana tem sido muitas vezes atacada por ativistas políticos que a consideram imoral e reacionária, sendo por isso silenciada. A razão é simples: se os seres humanos de fato têm algumas disposições comportamentais que são impermeáveis à influência cultural, não poderão ser moldados de acordo com ideais políticos que são tidos como progressistas por alguns grupos.
A natureza humana nessa acepção restrita levanta uma série de questões. Somos animais políticos que precisam da atividade política para o seu bem-estar, ou tem a política apenas um valor instrumental para o ser humano? Somos capazes de progresso moral contínuo, ou as nossas capacidades morais e intelectuais são limitadas? Somos egoístas por natureza, ou poderíamos aceitar uma comunidade sem propriedade privada? Essas e outras questões serão vitais para determinar o que consideramos essencial para o florescimento humano.
Uma terceira maneira de compreender a natureza humana é considerá-la individual por dizer respeito a disposições e talentos individuais inatos, que variam de indivíduo para indivíduo. Nesse sentido, diferentes indivíduos têm diferentes naturezas individuais que refletem as suas aptidões predominantes. Este tipo de concepção é exemplificado pelo mito dos metais do livro III da República de Platão. Segundo o mito, todos nasceram da terra e cada indivíduo tem um tipo de metal misturado na sua alma. Os mais apropriados para governar têm ouro em sua alma, ao passo que quem é mais adequado para ser auxiliar tem prata, seguidos daqueles que têm vocação para serem produtores por terem bronze ou ferro em sua alma.
Nessa acepção, a natureza humana diz respeito aos diferentes tipos de talentos e habilidades inatas que são distribuídos de maneira desigual na população por meio de fatores hereditários. Nesse sentido, as pessoas têm diferentes aptidões que refletem as suas naturezas individuais. Podemos também incluir nessa concepção os diferentes traços de personalidade (por exemplo, o temperamento) que são variáveis na população. É por isso que dizemos que uma pessoa é naturalmente extrovertida ou tímida. Essas seriam disposições e inclinações naturais, mas que variam de pessoa para pessoa.
Outra questão importante diz respeito ao futuro da natureza humana. Não podemos ignorar a possibilidade de alterar a natureza humana em todas as suas acepções com o uso de tecnologia em um futuro próximo. Os transhumanistas defendem que poderemos no futuro modificar e aprimorar a natureza humana com o uso da tecnologia. Argumentam que devemos ser otimistas diante da criação de um novo animal tecnológico, pois isso nos permitiria superar as limitações intrínsecas da nossa natureza. Os bioconservadores, por outro lado, consideram essa possibilidade de reinvenção despropositada e perigosa. O desenvolvimento tecnológico da nossa constituição biológica representaria na realidade a destruição da natureza humana e não o seu aprimoramento. Qualquer tentativa de alterar a condição humana com o uso de biotecnologia à revelia dos nossos instintos deve ser vista com desconfiança e trará um mal-estar imenso à humanidade.
Essa e outras questões demonstram a vitalidade e importância da antropologia filosófica. Mas a despeito de sua relevância, a antropologia filosófica é aparentemente ignorada nos principais departamentos de filosofia do mundo. Como explicá-lo? O que dá margem para essa confusão é o fato de o rótulo “antropologia filosófica” ser comumente associado à filosofia continental, sobretudo a fenomenologia. Isso explicaria por que alguns filósofos continentais atribuem a fundação da antropologia filosófica a Max Scheller. Consequentemente, as reflexões filosóficas cognitivamente relevantes sobre a natureza humana não são usualmente associadas à antropologia filosófica, ainda que tecnicamente sejam temas de antropologia filosófica.
O que é preciso é resgatar a dignidade epistêmica da antropologia filosófica enquanto disciplina. Não podemos fazer ética, filosofia política, ou estética de maneira sofisticada ignorando as contribuições da antropologia filosófica, mas também não podemos ter antropologia filosófica sofisticada sem dissociá-la desse vínculo restritivo com a filosofia continental. Propriamente compreendida, a antropologia filosófica é uma disciplina central da filosofia.
Matheus Silva
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Bibliografia sugerida
- Benthall, J. (ed.) The Limits of Human Nature. Londres: Allen Lane, 1973. [Uma compilação da visão de quatorze cientistas e filósofos sobre a natureza humana e os limites por meio dos quais ela opera.]
- Berry, C. Human Nature: Issues in Political Theory. Londres: Endeavour Media, 2018. [Aborda a natureza humana numa acepção restrita, sendo abundante em referências bibliográficas valiosas e distinções conceituais pertinentes. Uma leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema.]
- Brow, D. Human Universals. Nova York: McGraw-Hill Education, 1991. [O autor defende a existência de características que são universais em todas as culturas. Uma lista das características apresentadas no livro pode ser lida aqui.]
- Buchanan, A. “Human Nature and Enhancement”. Bioethics, v. 23, n.º 3 (2009), pp. 141–150. [O autor argumenta que não há nada de intrinsicamente errado em alterar ou destruir a natureza humana; e que alterar ou destruir a natureza não resultaria necessariamente na nossa incapacidade de fazer juízos sobre o que é bom.]
- Clack, B., Hower, T. Philosophy and the Human Condition: An Anthology. Oxford: Oxford University Press, 2017. [Uma antologia de 79 textos sobre a natureza e a condição humana. Além de incluir escrituras religiosas como o Bhagavad Gita, o Novo Testamento, e o Alcorão, também são incluídos, entre outros, textos de Epicuro, Sêneca, Epiteto, Agostinho, Boécio, Montaigne, Locke, Voltaire, Hume, Burke, Camus, Schopenhauer, Strawson, Nozick e Lewis.]
- Daniels, N. “Can Anyone Really be Talking about Ethically Modifying Human Nature?” In Savulescu, J.; Bostrom, N. (eds.). Human Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 25-42. [O autor argumenta que a discussão sobre o melhoramento humano é marcada por confusão, e tenta clarificar o conceito de natureza humana para especificar as condições que deveriam ser satisfeitas para pensarmos seriamente sobre a modificação genética de traços cognitivos e comportamentais de indivíduos.]
- Dupré, J. Human Nature and the Limits of Science. Oxford: Oxford University Press, 2001. [Uma crítica às pretensões cognitivas da psicologia evolutiva e sociobiologia de explicar a natureza humana. Dupré argumenta que essas tentativas de estender a teoria da evolução para o domínio social são inadequadas e resultam de cientismo.]
- Forbes, I., Smith, S. (eds). Politics and Human Nature. Londres: Frances Pinter, 1983. [Uma compilação de artigos sobre diferentes concepções da natureza humana e sua relevância para a política.]
- Gregory, M. et al. (eds) Sociobiology and Human Nature: An Interdisciplinary Critique and Defense. São Francisco: Jossey-Bass, 1978. [Compilação de artigos apresentados no congresso “Sociobiology: implications for human studies”.]
- Hacker, P. Natureza Humana: Categorias Fundamentais. Tradução de José Alexandre Durry Guerzoni. Porto Alegre: Artimed, 2010. [Imensamente erudito e denso, oferece explicações de conceitos fundamentais como mente, corpo, causalidade, substância, agência, etc., para então tentar explicar a natureza humana por meio de uma reconstrução sistemática. Porém, tendo a discordar dessa abordagem excessivamente sistemática, pois o tópico da natureza humana é poroso e necessita de suposições frouxas e conceitos operacionais. Não é possível oferecer uma visão minimamente interessante da natureza humana com essa abordagem conceitual amarrada e fundacionista. De qualquer modo, é mais uma referência em língua portuguesa.]
- Harris, J. No Two Alike: Human Nature and Human Individuality. Nova York: W. W. Norton, 2006. [Tenta explicar o mistério da individualidade humana. Afinal, por que as pessoas podem ser tão diferentes em sua personalidade? Harris identifica a origem da individualidade utilizando uma ideia da psicologia evolutiva: a mente humana é uma caixa de ferramentas de dispositivos de “propósitos especiais”. Esse atributo em comum é responsável pela imensa diversidade humana. O livro usa dados recentes da psicologia social e da neurociência, e é fundamental para uma melhor compreensão da natureza humana em sua acepção individual.]
- Kupperman, J. Theories of Human Nature. Indiana: Hackett Publishing Company, Inc., 2010. [Apresenta as concepções de natureza humana de Platão, Aristóteles, Spinoza, Pascal, Rousseau, Hobbes, Butler, Hume, Kant, Marx, Sartre, Arendt e Kierkegaard. Também inclui pensadores orientais como Buda, Confúcio, Mêncio, Xunzi, e Ibn Arabi, além de discutir a importância da natureza humana na filosofia e no cotidiano.]
- Lopreato, J. Human Nature and Biocultural Evolution. Boston: Allen & Unwin, 1984. [A evolução biocultural descrita pelo autor é similar à sociobiologia, que tenta explicar o comportamento social como resultado da seleção natural sobre a variação genética, e, assim, o comportamento individual como o resultado de predisposições genéticas e influências situacionais.]
- Pennock, J., Chapman, J. (eds) Human Nature in Politics. Nova York: New York University Press, 1977. [Uma compilação extensa de artigos sobre a natureza humana e sua relação com o pensamento político radical e a racionalidade. Os artigos foram publicados anteriormente neste volume do periódico NOMOS]
- Schilcher, F., Tennant, N. Philosophy, Evolution and Human Nature. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983. [Uma defesa das implicações da biologia para qualquer explicação filosófica da natureza humana, incluindo também restrições sobre qualquer explicação da ética.]
- Pinker, S. Tábula Rasa: A Negação Contemporânea da Natureza Humana. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [Defende que há uma natureza humana fundamentada na biologia, sem desconsiderar a influência cultural no comportamento humano. Porém, nega que a mente de um recém-nascido possa ser comparada a uma tábula rasa a ser preenchida pela sociedade.]
- Pojman, L. Who Are We? Theories of Human Nature. Oxford: Oxford University Press, 2005. [Discute uma série de concepções sobre a natureza humana, incluindo as visões religiosas (judaísmo, cristianismo, hinduísmo e budismo) além de incluir diversos pensadores como Platão, Hobbes, Rousseau, Kant, Nietzsche, Freud, Marx e Wilson. O diferencial desse livro em relação aos demais que incluem os mesmos autores é a abordagem mais detida e aprofundada de cada concepção discutida.]
- Prinz, J. Beyond Human Nature: How Culture and Experience Shape the Human Mind, 2012. [Uma defesa apaixonada da predominância da influência cultural no debate natureza versus cultura. Se valendo de dados da neurociência, antropologia e psicologia, Prinz argumenta que somente por meio da influência do meio podemos explicar a imensa diversidade humana.]
- Scruton, R. A Natureza Humana. Tradução de Maria de Fátima Carmo. Lisboa: Gradiva, 2017. [Numa prosa clara e elegante, Scruton procura oferecer uma caracterização sofisticada do ser humano por meio de uma análise conceitual refinada e informada dos resultados científicos (biologia, psicologia, ciência cognitiva, etologia) sem desmerecer a relevância das artes e a cultura em geral. Talvez o único problema desse livro seja o fato de não ser tão útil quanto um manual, uma vez que resulta de uma série de palestras.]
- Shapiro, I. “Human Nature”. Routledge Encyclopaedia of Philosophy. Londres e Nova York: Routledge, 1998. [Verbete introdutório sobre a natureza humana que dá ênfase aos seguintes debates: 1) as diferenças entre visões perfeccionistas, nas quais a natureza humana é vista como maleável, e as visões restritivas, em que não é; 2) a controvérsia natureza/criação, que gira em torno do grau em que a natureza humana é uma consequência da biologia em oposição à influência social, e as implicações dessa questão para a filosofia política; 3) a oposição entre concepções autorreferenciais e outro-referenciais da natureza humana e motivação — se somos mais afetados por nossa própria condição considerada em si mesmo, ou por comparações entre nossa própria condição e aquela de outros; e 4) as tentativas de separar o pensamento filosófico sobre a associação política de todas as suposições controversas sobre a natureza humana.]
- Sowell, T. Conflito de Visões. Origens Ideológicas das Lutas Políticas. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É Realizações, 2011. [Explica como visões diferentes da natureza humana levam a concepções políticas divergentes. No centro do conflito estão as visões restrita e irrestrita da natureza humana. A visão restrita enfatiza as limitações das capacidades morais e intelectuais dos seres humanos, o recurso a incentivos e a coordenação de processos sistêmicos, ao passo que a visão irrestrita enfatiza uma visão confiante das capacidades intelectuais do ser humano, sobretudo de intelectuais, e a maior importância de resultados e ideais políticos.]
- Stevenson, L., Heberman, D. Dez Teorias da Natureza Humana. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [Inclui não só uma tentativa sóbria de caracterizar o problema, como apresenta concepções distintas da natureza humana ao longo da história, incluindo não só tradições religiosas (confucionismo, hinduísmo, e cristianismo), mas também pensadores influentes (Platão, Kant, Marx, Freud, Sartre), sem descuidar de abordagens científicas sobre o tema (psicologia behaviorista, psicologia evolutiva, etc.).]
- Thorpe, W. Animal Nature and Human Nature. Londres: Methuen, 1974. [A tese central do livro é de que o que distingue os seres humanos dos demais animais é capacidade para a religião.]
- Wallas, G. Human Nature in Politics. Londres: Constable, 1924. [É um livro antigo, mas as suas críticas ao intelectualismo no pensamento político e a importância da compreensão dos impulsos e instintos políticos continuam atuais.]
- Wilson, E. Da Natureza Humana. Tradução de Geraldo Florsheim e Eduardo d Ambrosi. São Paulo: EDUSP, 1981. [Uma defesa influente do estudo científico da natureza humana contra os seus críticos, que preferem ignorá-la por considerar as suas limitações um problema para os seus projetos políticos. É sem dúvida um dos livros de sociobiologia mais influentes das últimas décadas.]