A discussão pública é importante porque é a única maneira que temos de descobrir a verdade. Somos todos seres falíveis e por isso erramos muitas vezes. Muitas das nossas crenças mais queridas revelam-se falsas. A única maneira que temos de aumentar a proporção de crenças verdadeiras é submetê-las à discussão pública. Mas de nada adianta discutir se não discutirmos com probidade intelectual, com boa vontade e honestidade. Este processo de descoberta da verdade só funciona se cada um de nós enfrentar com boa vontade a discussão de ideias. Isto significa que não vamos para a discussão para “ganhar”, mas para descobrir.
Infelizmente, não é assim que é comum entender a discussão de ideias. Pessoas que gostariam de pensar que são democratas e defensores da liberdade de expressão não conseguem realmente conceber o que é a liberdade de expressão e a democracia, entendendo a segunda como a ditadura da maioria e a primeira como gritaria simiesca. Estas pessoas concebem a discussão pública como gritaria pública — cada qual grita palavras de ordem o mais alto que pode, como num comício — e a ideia insustentável é que da cacofonia de vários gritos diferentes surgiria a sensatez. Isto é um pensamento tão melancólico quanto esperar que vários médicos que discordam quanto ao diagnóstico conseguem salvar um doente se desatarem a gritar entre eles.
A discussão pública, se não for dotada de probidade intelectual, de nada vale. É apenas mais uma das muitas frivolidades humanas, como o futebol, a novela ou os despiques infantis dos políticos que fazem as notícias dos jornais diários. O objectivo da discussão pública é descobrir que ideias são mais plausíveis; e isso só se descobre se todas as ideias forem levadas a sério e discutidas distanciadamente. Se as ideias que consideramos ofensivas, inaceitáveis ou absurdas não forem seriamente discutidas, é porque estamos a pressupor a nossa própria infalibilidade — infalibilidade que nos permite dizer com absoluta certeza que tais ideias são inaceitáveis ou absurdas. Claro que isto é uma ilusão, e no fundo estas pessoas têm medo de não ter razão, e de isso se vir a descobrir se a discussão for aberta e honesta. O truque então é encontrar uma maneira de eliminar a discussão fingindo que não estamos a eliminá-la, e isso faz-se desviando o assunto — passa-se a discutir outra coisa, mais confortável e menos perigosa.
Esta visão da discussão pública é uma ameaça à democracia, pois só vale a pena ter democracia se esta se basear numa noção virtuosa de discussão pública. O fundamento da democracia é a ideia historicamente revolucionária — mas banal se pensarmos nela um pouco — de que todos os grandes ditadores, todos os reis absolutistas, todos os estadistas reverenciados pelas multidões são pessoas como nós e como nós estão sujeitos ao erro — de modo que é uma ilusão infantil pensar que eles têm um acesso privilegiado à verdade, estando por isso isentos da chatice que é discutir ideias pacientemente com os outros, para ver se resistem à discussão ou se pelo contrário se revelam ilusões.
A democracia e a liberdade de expressão são hoje comuns e infelizmente ninguém surge para as pôr explicitamente em causa — e é por isso mesmo que tantas pessoas têm ideias tão erradas sobre os fundamentos de ambas. Mas é precisamente este consenso que ameaça a democracia e a liberdade de expressão, que ficam aos poucos desvirtuadas, transformando-se em meras imitações de contrabando, perdendo-se o artigo genuíno. O populismo substitui a genuína democracia e a gritaria substitui a discussão pública e é tanto mais difícil defender a democracia e a liberdade de expressão quanto mais as pessoas pensam que não têm falta de qualquer delas. Descartes escreveu que por toda a gente pensar, ilusoriamente, que tem bom senso, este é o bem que parece mais amplamente distribuído pela humanidade, pois ninguém se queixa de ter falta dele — apesar de na verdade ser um dos bens mais escassos.
A comunicação global que a Internet permite ampliou o problema. Quem concebe a discussão pública como um despique para ver quem consegue gritar mais alto usa então os blogs para gritar e arregimentar outros gritadores, imitando a discussão genuína de ideias porque afinal de contas não se pode escrever artigos só com gritos e muitos pontos de exclamação. Quem tem uma concepção hobbesiana da vida política usa a Internet para arregimentar partidários, pois ganha-se politicamente em função do número bruto de evangelizadores que se conseguir granjear. Neste sentido, a Internet não aprofunda a democracia nem a liberdade de expressão — limita-se a amplificar a incompreensão profunda destes conceitos — e é tanto mais perigosa porque parece fazer precisamente isso.
O que está em causa é a diferença radical entre entender a discussão pública de ideias como instrumento de descoberta da verdade ou como forma de comício para arregimentar partidários que, se forem muitos, conseguem impor a sua vontade aos outros. Isto baseia-se na noção errada de que, se uma maioria aceitar uma ideia, tem o direito de a impor aos outros; todavia, como escreveu Mill,
se todos os seres humanos, menos um, tivessem uma opinião, e apenas uma pessoa tivesse a opinião contrária, os restantes seres humanos teriam tanta justificação para silenciar essa pessoa, como essa pessoa teria justificação para silenciar os restantes seres humanos, se tivesse poder para tal.
Desidério Murcho