22 de Fevereiro de 2006   Filosofia política

Uma só nação de justiça e oportunidades

Peter Singer
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn

Levaremos uma mensagem de esperança e renovação a todas as comunidades deste país. Diremos a cada americano: “O sonho é para ti”. Diremos às crianças esquecidas em escolas más: “O sonho é para ti”. Diremos às famílias, dos barrios de L.A. ao Rio Grande Valley: “El sueño americano es para ti”. Diremos aos homens e às mulheres das nossas cidades degradadas: “O sonho é para ti”. Diremos aos jovens confusos, necessitados de ideais: “O sonho é para ti”. (George W. Bush, Indianápolis, Indiana, 22 de Julho de 1999)

Enquanto muitos dos nossos concidadãos prosperam, outros duvidam da promessa — e mesmo da justiça — do nosso país. Por vezes, as nossas diferenças são tão profundas que parece que partilhamos um continente, mas não um país. Não aceitamos isto e não o toleraremos. A nossa unidade, a nossa união, é o trabalho sério de líderes e cidadãos de todas as gerações. E este é o meu juramento solene: trabalharei para construir uma só nação de justiça e oportunidades. (George W. Bush, Discurso de tomada de posse, 20 de Janeiro de 2001)

O dinheiro é vosso. (George W. Bush, Evento sobre Impostos sobre as Famílias, Centro Comunitário de Kirkwood, St. Louis, Missouri, 20 de Fevereiro de 2001)

Esperança, justiça e redução de impostos

A primeira das três citações anteriores é retirada do discurso da campanha de Bush intitulado “Dever de Esperança” — um discurso inspirado que oferecia a esperança a cada americano, texto fulcral para a filosofia do “conservadorismo compassivo”. Ao proferir o discurso, Bush tinha a seu lado Steven Goldsmith, mayor de Indianápolis, um republicano elogiado pelos conservadores por trabalhar com organizações religiosas no fornecimento de serviços comunitários. Posteriormente, Goldsmith tornou-se conselheiro especial do Presidente Bush para iniciativas religiosas e com fins não lucrativos. O tema do discurso é que a prosperidade económica não basta. Referindo-se à famosa “mão invisível” de Adam Smith — que a livre concorrência do mercado faz os interesses individuais contribuírem para o bem comum — Bush diz que a mão invisível pode operar muitos milagres, “mas não pode inspirar o coração humano”. Observando que a população prisional da América triplicara nos últimos quinze anos, Bush fala dos estimados 1,3 milhões de “crianças esquecidas” que têm um ou os dois progenitores presos e cuja probabilidade de lhes seguirem as pisadas é quase seis vezes superior à das restantes crianças. Promete que a sua administração levará ajuda e esperança àquelas e outras vítimas inocentes da criminalidade, não esquecendo pessoa alguma. Numa importante declaração acerca da sua filosofia de governo, recusa a ideia de a resposta adequada a todos estes problemas ser afastar o estado e deixar as pessoas tomarem conta de si próprias. Não, insiste, o carácter nacional americano “brilha na nossa compaixão” e temos “uma visão do bem comum para lá dos lucros e das perdas […]. Os americanos nunca escreverão o epitáfio do idealismo”.

A segunda citação mostra Bush a levar este espírito de idealismo para a tomada de posse como presidente. Em duas declarações que condensam a filosofia social do conservadorismo compassivo, afirmou: “A América, no seu melhor, é compassiva” e “A América, no seu melhor, é um local onde a responsabilidade pessoal é valorizada e esperada”. A sua promessa de “construir uma só nação de justiça e oportunidades” liga a justiça ao ideal americano central de dar a cada indivíduo a oportunidade de ser bem-sucedido. Como nos seus discursos de campanha, falou de crianças em situação de risco, e sugeriu que, seja qual for a nossa opinião sobre as causas desta situação, todos podemos concordar quanto ao facto de as crianças não serem culpadas. Uma vez mais, afirmou que este não é um problema que se possa simplesmente ignorar: “No silêncio da consciência americana, sabemos que a pobreza extrema e persistente não é digna da promessa do nosso país […]. Onde há sofrimento, há dever”.

A terceira citação podia ter sido retirada de um discurso de Bush entre muitos. Enquanto candidato, nos discursos de campanha, e enquanto presidente, quando pretendia pressionar o Congresso para aprovar a redução fiscal que pretendia, disse aos americanos: “O dinheiro é vosso”. A sua mensagem era: quando o estado retém o imposto dos contribuintes, tira o dinheiro que lhes pertence e gasta-o — em vez de deixar que sejam os contribuintes a decidir como querem gastá-lo. Assim, ele transformou a questão fiscal num voto a favor ou contra um “estado obeso”. Eis um exemplo:

O dinheiro é vosso. [A redução fiscal que proponho] dar-vos-á oportunidade de estabelecerem as vossas prioridades, para as vossas famílias. Diz que nós, no governo federal, temos uma confiança fundamental no povo da América e é aí que a nossa fé deve assentar — no povo. O melhor estado é o que confia na América e não há melhor forma de tornar essa confiança explícita do que partilhar o vosso dinheiro convosco.

Noutra ocasião, Bush disse aos americanos que eles pagam mais em impostos federais, estaduais e locais do que gastam em comida, vestuário e habitação, acrescentando: “Isto não é correcto, malta. Devíamos devolver parte do vosso dinheiro às pessoas que pagam as contas”. Ao dirigir-se ao Congresso a propósito da redução fiscal, disse aos representantes que a existência de um excedente orçamental era prova de que o povo americano fora “sobretaxado” e, em nome do povo americano, ele “pedia um reembolso”. Embora alguns pudessem usar o dinheiro num “estado maior e mais obeso”, isto era, na opinião de Bush, uma escolha incorrecta. A sua opção preferida era “deixar o povo americano gastar o seu próprio dinheiro para responder às suas próprias necessidades”.

Não é necessário reflectir muito para perceber que a linha de pensamento expressa na terceira citação vai ao arrepio da expressa nas duas primeiras. Ajudar as crianças que têm os pais na prisão requer dinheiro, quer o auxílio seja prestado por um organismo do estado ou por instituições de caridade religiosas ou comunitárias subsidiadas com fundos públicos. E é necessário muito mais dinheiro ainda para pôr fim à “pobreza extrema e persistente” na América e “construir uma só nação de justiça e oportunidades”, seja isso feito como for. Parte deste dinheiro pode ter origem em instituições privadas de beneficência, mas, em termos realistas, a maioria terá de vir dos impostos. Se o dinheiro obtido com os impostos é “o vosso dinheiro” e é necessário devolvê-lo ao povo americano, de onde virão os fundos necessários à luta contra a pobreza e à promoção da justiça?

A defesa moral de Bush de uma redução fiscal

Se não fossem os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, a presidência de Bush poderia ficar sobretudo marcada pelas suas substanciais reduções fiscais. Um dos principais cavalos de batalha da campanha de Bush foi uma diminuição drástica dos impostos sobre os indivíduos. Defendia que se tratava não apenas de algo economicamente razoável como da coisa certa, da coisa justa, a fazer. Enquanto candidato, Bush disse que reduziria os impostos em 1,6 biliões de dólares, em dez anos. Era a favor da diminuição das taxas do imposto sobre o rendimento e da abolição do imposto sucessório. No início da presidência, exortou o Congresso a aprovar a sua redução fiscal e o resultado foi a Lei de Conciliação da Redução Fiscal com o Crescimento Económico, de 2001, que reduzia as taxas dos impostos sobre o rendimento e abolia o imposto sucessório, perfazendo um total de 1,35 biliões de dólares em reduções fiscais em dez anos. Menos de dois anos depois, instou o Congresso a diminuir os impostos em mais setecentos e vinte e seis mil milhões de dólares, em dez anos. O Senado insistiu em minorar a redução, mas, ainda assim, o resultado foi outra importante redução fiscal na ordem dos trezentos e vinte mil milhões de dólares, em dez anos. Uma vez que este valor depende de algumas “cláusulas de abolição” artificiais, estabelecendo limites temporais às reduções que os Congressos posteriores sofrerão grandes pressões para manter, o impacto total da segunda ronda de reduções poderia, em dez anos, igualar ou mesmo exceder o que Bush pedira — uma estimativa aponta para custos na ordem dos oitocentos mil milhões de dólares. A aprovação de uma redução fiscal desta envergadura quando o excedente orçamental já fora substituído por um défice chocou muitos comentadores económicos. O diário londrino Financial Times, geralmente conservador e discreto, comentou: “Na gestão da política fiscal, os loucos governam agora o manicómio”. Digam os cínicos o que disserem sobre as promessas dos políticos, na redução fiscal Bush cumpriu o prometido.

É aqui, nas ideias de Bush acerca dos impostos, que a sua filosofia de governo, distintamente americana, se torna mais clara. Os políticos europeus, canadianos ou australianos também podem querer reduzir os impostos, mas é difícil imaginá-los a defender em termos morais uma redução fiscal do mesmo modo que Bush defendeu a sua primeira diminuição dos impostos. A linguagem de Bush parece fazer eco da perspectiva anarquista de que todo o imposto é um roubo, pois se se trata do “vosso dinheiro”, então não será roubo o estado exigir-nos o nosso dinheiro sob ameaça de aplicação de multas ou sentenças de prisão se nos recusarmos a entregá-lo? Na verdade, o redactor dos discursos de Bush para as questões económicas — David Frum — referiu-se à utilização de Bush da expressão “O dinheiro é vosso!” como “anarquismo popular”. A mais conhecida defesa recente da perspectiva anarquista da função legítima do estado foi apresentada por Robert Nozick, professor de filosofia de Harvard já falecido. Na opinião de Nozick, a menos que existam injustiças históricas a corrigir, o estado deve limitar-se a funções de “guarda-nocturno”: defesa da nação relativamente a inimigos externos e manutenção da ordem pública. Mas Bush não pretende um estado tão minimalista. No seu discurso de tomada de posse, após fazer referência ao dever de aliviar o sofrimento, Bush disse: “Os americanos necessitados não são estranhos, são cidadãos; não são problemas, são prioridades”. Também se manifesta favorável à despesa pública com a educação, insistindo apenas em que as escolas que recebem os fundos federais sejam testadas de modo a provarem que estão a ensinar os seus estudantes. Portanto, ajudar os americanos necessitados e facultar educação a todas as crianças parece fazer parte das suas prioridades. A proporção dos nossos impostos que se destina a estas prioridades, então, não é, presumivelmente, “o vosso dinheiro”, mas dinheiro do estado. Assim, o estado deveria apenas devolver aos contribuintes o dinheiro que resta depois de ter tratado das suas “prioridades” ou “necessidades”.

Mas como se poderá traçar esta linha entre “o vosso dinheiro” e “o dinheiro do estado”? Ao defender a sua redução fiscal inicial, Bush observou que o estado tinha um excedente. Assim, uma interpretação plausível da sua posição é que quando as prioridades ou necessidades foram satisfeitas, e o excedente se mantém, o estado dever-se-ia lembrar de onde viera inicialmente o dinheiro e deveria devolvê-lo à procedência. Mas o excedente que o estado norte-americano tinha em 2000 não era um excedente depois de terem sido satisfeitas todas as necessidades e prioridades reconhecidas por Bush, pois ele também falara das necessidades não satisfeitas, por exemplo, das crianças menos favorecidas. Se o estado tivesse gasto mais em formas de proporcionar a estas crianças uma melhor oportunidade de realizar o sonho americano e gasto mais noutros programas visando pôr fim à pobreza extrema e persistente, não haveria excedente. Poderia mesmo haver um défice, a exigir um aumento substancial dos impostos para o seu financiamento.

O argumento de Bush a favor de uma diminuição dos impostos cai, assim, num dilema. Se ele não adoptar a opinião radical de que o estado não tem qualquer direito a lançar impostos sobre os cidadãos, e se também recusar a visão minimalista do estado que defende que este apenas pode exigir o imposto necessário para manter a paz interna e externamente, então o seu recurso frequente à ideia de que “o dinheiro é vosso” é enganador. Pois aquilo que esta abordagem diz é: “O dinheiro é vosso, mas o estado pode e deve usar o vosso dinheiro para responder a necessidades e prioridades”. Assim, se o orçamento regista um excedente, decidir se o excedente deve ser usado para uma redução fiscal ou para responder a outras necessidades e prioridades é uma questão de juízo ou de pesar os prós e os contras. É esse juízo, e não o simples slogan: “é o vosso dinheiro”, que decide se deve ou não haver uma redução fiscal. O slogan apresenta uma visão do problema tão excessivamente simplificada que se torna enganadora.

Será o dinheiro mesmo vosso?

Quando Bush disse aos contribuintes americanos que os excedentes orçamentais acumulados nos anos recentes eram “o vosso dinheiro”, a maioria deles deve ter considerado a afirmação uma evidência. Claro que o dinheiro era deles — a que outro sítio vai o estado buscar dinheiro, senão aos impostos sobre o dinheiro que eles ganharam? Contudo, este pressuposto baseia-se naquilo que Liam Murphy e Thomas Nagel — professores da Faculdade de Direito da Universidade de Nova Iorque que se contam entre os poucos filósofos que prestaram atenção às declarações éticas de Bush — chamaram “mito da propriedade”. A propriedade não é uma relação natural entre uma pessoa e uma coisa. É uma convenção social e, nas sociedades detentoras de um sistema jurídico, encontra-se consagrada na lei.

Consideremos um exemplo simples. Se eu apanhar amoras na floresta, possuirei as amoras que colhi? Hoje em dia, pode depender de quem é proprietário da floresta. Se for eu, as amoras são minha propriedade. Se for o leitor, e não me tiver dado permissão para colher seja o que for na floresta, terei roubado as suas amoras. E se a floresta for pública? Nesse caso, as leis e os costumes podem determinar a propriedade dos produtos florestais. Suponhamos que a utilização da floresta se encontra regulada por antigos costumes, interpretados quando necessário por um conselho de representantes de todas as aldeias das redondezas. Nesse caso, a minha posse das amoras depende dos usos e costumes. O costume pode determinar que todas as amoras sejam colhidas em conjunto e depois divididas em partes iguais pelos aldeãos. Nesse caso, não possuirei as amoras que colhi. Em alternativa, poder-se-á permitir que quem colhe as amoras guarde para si o produto desse trabalho, após entregar uma percentagem ao conselho que usa as receitas assim obtidas na remuneração dos guardas florestais. Os guardas florestais impedem que os caminhos que utilizo se tornem impraticáveis e protegem os aldeãos honestos dos salteadores que, de outro modo, poderiam roubar-lhes o fruto do seu trabalho.

Suponhamos que os usos e costumes ditam que o conselho receba um cesto de amoras por cada dez, mas alguns aldeãos pensam que o conselho poderia fornecer bastante adequadamente os serviços necessários se recebesse apenas um cesto em cada vinte. No último domingo, colhi vinte cestos de amoras. Poderia alguém que discordasse do costume “um cesto em cada dez” apontar para os meus cestos e dizer: “As amoras são tuas!”? Não. Se o conselho não tivesse pago os salários aos guardas florestais, eu poderia não ter conseguido atravessar a floresta até aos locais onde há amoras. Mesmo que tivesse feito isso, poderia ainda assim não ter conseguido evitar os salteadores e ter perdido as amoras colhidas. Mesmo que o conselho receba mais do que precisa, não há qualquer sentido segundo o qual as amoras colhidas sejam todas minhas.

John Locke, filósofo do século XVII que teve grande influência no pensamento político americano dos primeiros tempos, afirmou que adquirimos um direito de propriedade “misturando o nosso trabalho” com os objectos naturais, desde que deixemos “o suficiente e de qualidade igual” para os outros. Se transformei um pedaço de madeira numa cadeira, trabalhei a terra ou colhi amoras, estas tornam-se minhas — desde que haja ainda madeira, terra e amoras para os outros fazerem o mesmo. Mas por que razão misturar o meu trabalho com algo que não me pertence torna meu todo o objecto? Misturar o que me pertence com algo que não é meu não poderá igualmente significar que perco o que detinha? (Se possuir sal e o colocar num lago não passo a ser proprietário de todo o lago.) Não há uma boa resposta a esta crítica a Locke, ou, pelo menos, não há resposta que prove a existência de um direito natural à propriedade. Para mais, o requisito de deixarmos o suficiente para os outros quando nos apoderamos de objectos da natureza não pode ser satisfeito, nos tempos que correm. A melhor justificação de um direito à propriedade privada é a afirmação de que ficaremos todos melhor, se o reconhecermos como tal. Mas se for o bem comum a justificar o reconhecimento de um direito à propriedade privada, então o bem comum também pode estabelecer limites a esse direito.

Consideremos agora uma sociedade moderna baseada na propriedade privada e na livre iniciativa. Em vez de colher amoras, trabalho para uma grande empresa que constrói automóveis, muito apreciados em todo o mundo por aqueles que os conseguem comprar. A empresa está cotada na Bolsa de Valores nacional e financiou a sua moderna fábrica emitindo obrigações. Pelo meu trabalho, a empresa paga-me um salário, sobre o qual incidem os impostos. Digamos que tenho um salário semanal de mil dólares, dos quais duzentos são deduzidos para impostos. Se alguém que discordasse desta taxa de imposto apontasse para o cheque de mil dólares e dissesse “O dinheiro é seu!”, essa afirmação seria ainda mais difícil de sustentar do que a afirmação semelhante relativa às amoras: a empresa não poderia construir os seus automóveis sem um sistema jurídico que fomente e proteja os direitos de exploração mineira, a propriedade privada da terra, uma moeda aceite por todos, os sistemas de transporte, a produção e venda de energia, a existência de uma força de trabalho especializada, a fiscalização das empresas, a protecção de patentes e a prevenção de monopólios, a resolução judicial de disputas, a defesa nacional, a protecção de rotas comerciais. Mesmo que conseguisse construir os automóveis, sem segurança e pelo menos um grau moderado de prosperidade poucas pessoas os comprariam. Por outras palavras, sem os impostos e o sistema de regulação que não poderia existir sem estes, a empresa não conseguiria pagar-me mil dólares semanais — e se, por alguma razão obscura, eu os recebesse, o dinheiro teria pouco valor porque eu não poderia possuir em segurança o que quer que fosse que comprasse com ele.

Herbert Simon, economista laureado com o Prémio Nobel, calculou a proporção do rendimento dos países ricos que é resultado do capital social — incluindo a tecnologia e competências de organização e governo — e não do esforço individual. Considerando as enormes diferenças existentes entre os rendimentos médios dos países ricos e pobres que não podem ser explicadas por diferenças de esforço, ele sugere que o capital social é provavelmente responsável por, pelo menos, noventa por cento do rendimento das sociedades ricas como os Estados Unidos. Assim, para os países ricos, afirma o economista, “Em termos morais, então, poderíamos defender um imposto sobre o rendimento de noventa por cento para devolver essa riqueza aos seus verdadeiros proprietários”. Este argumento moral não contempla os efeitos de um tal imposto sobre os incentivos. Essa, pensa Simon, é uma questão a definir através de experimentação e observação, e não através de debate filosófico. Mas subsiste o argumento de que as pessoas dos países ricos obtêm apenas uma pequena proporção do seu rendimento bruto através da produtividade individual não auxiliada pelo capital social, e que poderá ser legítimo impor-lhes taxas de imposto elevadas.

A conclusão a retirar é que, se pusermos de lado fantasias utópicas que não têm relevância para o mundo real, não faz sentido falar do dinheiro que teríamos se o estado não cobrasse impostos. O sistema de governo é conceptualmente anterior aos direitos de propriedade — e um sistema de governo requer tributação. A frase de Oliver Wendell Holmes, juiz do Supremo Tribunal, é muitas vezes citada: “Os impostos são o preço que pagamos pela civilização”. E sem civilização, poderia ele ter acrescentado, não teríamos dinheiro. Em especial numa sociedade moderna complexa, não há forma de saber quais seriam os nossos direitos de propriedade se não existisse governo nem impostos. O slogan de Bush, “É o vosso dinheiro!”, baseia-se, como observam Murphy e Nagel, na noção de uma distribuição de recursos anterior à fiscalidade que é “profundamente incoerente”.

Equidade na tributação?

Além de afirmar que a redução dos impostos é a coisa correcta a fazer porque o excedente orçamental é constituído pelo dinheiro dos contribuintes, Bush também defendeu como justas as reduções específicas de impostos que propôs. Enquanto candidato, houve dois elementos das reduções fiscais em que se centrou: um corte nos impostos sobre o rendimento e a abolição daquilo que chamou “imposto da morte”. Posteriormente, defendeu também que era injusto colectar dividendos a empresas que já haviam pago os seus impostos.

Bush insistiu que todos deviam ver os seus impostos reduzidos — tanto os ricos como aqueles que se debatiam com dificuldades económicas. Além do mais, queria que as taxas marginais do imposto sobre o rendimento diminuíssem um número semelhante de pontos percentuais para todos aqueles que pagam impostos sobre o rendimento. Assim, a mais elevada taxa marginal do imposto sobre o rendimento, de 39,6 por cento, deveria baixar para os trinta e cinco por cento, e a taxa mais reduzida de quinze para dez por cento. Quando Bush propôs esta diminuição, o Vice-Presidente Al Gore observou que o plano fiscal de Bush concedia os maiores benefícios a um por cento de americanos, os mais ricos. No derradeiro debate presidencial, Jim Lehrer interrogou Bush sobre esta afirmação e recebeu a seguinte resposta:

Lehrer: O que tem a dizer especificamente sobre aquilo que o vice-presidente disse esta noite? Ele afirmou-o muitas vezes: a sua redução fiscal beneficia um por cento de americanos, os mais ricos. Bush: Claro que beneficia. Quando se paga impostos, é-se beneficiado. As pessoas que pagam impostos beneficiarão de uma redução fiscal.

A resposta de Bush não corresponde à verdade. Dezenas de milhões de americanos com baixos rendimentos não pagam imposto sobre o rendimento, mas todas as pessoas que compram produtos tributados são contribuintes. Estes contribuintes não beneficiam de qualquer redução, nos termos do seu plano. Bush conseguiu iludir a verdadeira acusação de Gore graças ao modo como Lehrer formulou a pergunta: não se tratava de o seu plano fiscal “beneficiar” simplesmente um por cento de americanos, os mais ricos, mas de a maior parte dos benefícios recair sobre estes. Reduzir apenas a menor taxa marginal do imposto sobre o rendimento já beneficiaria os mais ricos, pois essa taxa é aplicada a uma parte do seu rendimento. Portanto, porquê reduzir também as taxas marginais mais elevadas do imposto?

Após a sua eleição, Bush continuou a defender a equidade da redução que planeara desta forma enganadora. Em Fevereiro de 2001, afirmou: “O meu plano […] não selecciona alguns americanos, deixando outros de fora, na redução fiscal. Todos os que pagam impostos verão as suas contribuições reduzidas. É isso que os tempos e a equidade básica exigem”. Dois dias mais tarde, reiterou que é justo que “todos os que pagam impostos recebam uma compensação. E é por isso que baixamos todas as taxas. Baixamos a taxa mais alta e baixamos a taxa mais baixa”. Um porta-voz de Bush disse que, nos termos do seu “plano justo e responsável de redução fiscal, a família típica americana conseguirá conservar mais mil e seiscentos dólares do seu dinheiro arduamente ganho”. Não é claro quem será “típico”, mas os quatro em cada cinco contribuintes que pagam imposto sobre o rendimento que ganharam menos de setenta e três mil dólares no ano 2001, o que conservaram, em média, foi trezentos e cinquenta dólares e, nos próximos dez anos, as suas poupanças anuais não irão muito além destes valores, ficando geralmente abaixo dos quinhentos dólares. Por outro lado, em 2010 o plano terá permitido que um por cento de americanos, os mais ricos, tenham conservado, em média, mais quarenta e cinco mil dólares do “seu dinheiro”, que pode ou não ter sido arduamente ganho. Nesse ano, cinquenta e dois por cento das reduções fiscais totais irão para um por cento de americanos, os mais ricos. Da redução total de receitas fiscais nesse ano, duzentos e trinta e quatro mil milhões de dólares, os 1,4 milhões de contribuintes mais ricos arrecadarão cento e vinte e um mil milhões, ao passo que os restantes cento e trinta e nove milhões de contribuintes americanos terão de dividir entre si cento e vinte e um mil milhões de dólares. Isto dará aos 1,4 milhões de contribuintes mais ricos, em média, mais de cem vezes a poupança em impostos que os restantes obtêm.

A redução fiscal de 2003 também concede os maiores benefícios aos ricos. Em 2005, um casal com dois filhos que ganhe quarenta mil dólares por ano estará a pagar menos trezentos e vinte e três dólares em impostos do que pagaria se a redução fiscal de 2003 não tivesse sido aprovada. Um casal nas mesmas condições que ganhe quinhentos e trinta mil dólares poupará doze mil e setecentos e setenta e dois dólares. Portanto, o casal mais rico, a ganhar doze vezes mais do que o casal de rendimentos inferiores, poupa quarenta vezes mais nos impostos. Para a maioria dos contribuintes, a redução significará um aumento do rendimento líquido inferior a um por cento; mas para aqueles que ganham anualmente mais de um milhão de dólares, o aumento será de 4,4 por cento. Esta não é uma redução imparcial do peso fiscal para todos os contribuintes.

Segundo tudo leva a crer, Bush pensa que uma redução fiscal justa é aquela que diminui as taxas marginais do imposto sobre o rendimento aproximadamente o mesmo número de pontos percentuais no topo e na base dos escalões de rendimentos. Mas a diminuição das taxas marginais do imposto sobre o rendimento aproximadamente no mesmo número de pontos percentuais no topo e na base dos escalões de rendimentos não contribui para a atenuação das diferenças entre os americanos que ele tão comovedoramente descreveu no seu discurso de tomada de posse — as diferenças “tão profundas que parece que partilhamos um continente, mas não um país”. Na verdade, aumenta essas diferenças, ampliando as desigualdades de rendimento, tanto em termos de dólares absolutos como em termos percentuais. Ao negar ao estado os recursos necessários à redução da desigualdade, também torna menos provável que estas diferenças sejam ultrapassadas num futuro próximo. Então, por que razão pensará Bush que as reduções são justas? Uma vez que a sua exposição da equidade na tributação nunca vai além de umas quantas frases curtas, resta-nos arriscar uma reconstituição que pareça compatível com outras coisas que ele afirmou acerca da tributação.

Se quisermos levar a sério a frase “O dinheiro é vosso”, poderemos pensar na equidade da tributação como algo semelhante à distribuição do produto de um roubo recuperado pela polícia. Suponhamos que o ladrão roubara dez mil dólares, em quantias variáveis, a inúmeras pessoas, mas antes de ser apanhado gastou grande parte desse dinheiro e o esconderijo já tinha apenas mil dólares. Então, poderíamos pensar que o que era justo fazer era dar a cada uma das vítimas dez por cento do dinheiro que esta perdera. De modo semelhante, se Bush acredita que o estado se apropriou de dinheiro que não deveria ter tirado aos contribuintes, talvez pense que o estado deve devolver esse dinheiro às pessoas a quem o tirou, numa base proporcional à quantia retirada inicialmente. Isso não é exactamente o que faz a sua redução fiscal, mas parece ser isso que as suas palavras indicam que deve ser feito.

Se esta é a noção intuitiva de equidade de que Bush se socorre quando diz que uma redução fiscal justa será aquela que diminui todas as taxas do imposto em igual valor, não pode ser defendida. Regressando ao produto do roubo, podemos pensar que não nos compete investigar as necessidades das vítimas do ladrão e, nessa base, poderemos simplesmente decidir dar a todas as pessoas a mesma percentagem do que perderam. Este poderá ser o procedimento justo a adoptar na ausência da informação de que precisaríamos para produzir um resultado substancialmente mais justo. Contudo, suponhamos que sabemos que os duzentos dólares que o ladrão roubou à Ângela estão a fazê-la correr o risco de ser despejada e ir viver para a rua porque, embora não tenha culpa, faltam-lhe cem dólares para pagar a renda de casa. Por outro lado, os mil dólares que foram roubados à Bárbara representam menos do que aquilo que ela gasta numa semana a comprar roupas de marca em lojas de luxo. A ideia de Bush de que devemos devolver o dinheiro a todas as pessoas a quem ele foi tirado, de uma forma proporcional à quantia roubada, significaria que entregávamos cem dólares a Bárbara e apenas vinte a Ângela. É verdadeiro que todas as pessoas beneficiam com esta distribuição, mas será justo que, por causa dos roubos, Ângela fique sem abrigo, enquanto Bárbara poderá, na pior das hipóteses, ter de prescindir daquela fabulosa malinha de mão que viu numa loja do Soho? Não há qualquer razão inerente por que devolver a mesma proporção do dinheiro roubado seja mais justo do que tentar sanar, tanto quanto possível, os prejuízos provocados pelos roubos, dando prioridade aos prejuízos maiores em detrimento dos menores. Se escolhermos este último princípio, assegurar-nos-emos de que Ângela poderá pagar a sua renda antes de contribuirmos com o que quer que seja para a tendência de Bárbara para usar roupas e acessórios de marca.

Há algo mais a dizer acerca da equidade das reduções fiscais de Bush mas, primeiro, precisamos de considerar outro aspecto da sua opinião sobre tributação injusta.

O “imposto da morte” e a igualdade de oportunidades

Bush defendeu em campanha a eliminação do imposto sucessório, que refere geralmente como “o imposto da morte”. O imposto sucessório é, na verdade, um imposto sobre a riqueza herdada — e, na América, visa apenas os bens daqueles que morrem extraordinariamente ricos. Em 1999, só os primeiros um por cento de bens, em termos de valor, pagaram imposto. Uma vez que o imposto é progressivo, com a taxa a aumentar à medida que o valor dos bens aumentam, mais de metade das receitas totais em imposto sucessório provinham não só do um por cento superior mas dos estratos de riqueza ainda mais rarefeitos a que pertencem apenas um em cada setecentos americanos — bens avaliados em pelo menos cinco milhões de dólares. Como afirma Paul Krugman, professor de economia na Universidade de Princeton, “As histórias sobre explorações agrícolas e empresas familiares que foram à falência para pagar o imposto sucessório são basicamente lendas rurais: quase não se encontraram exemplos reais, apesar de ter procurado diligentemente”. Apesar disto, durante os debates presidenciais Gore propôs a alteração do imposto sucessório de forma a isentar ainda mais explorações agrícolas e empresas familiares. Mas, ao invés, invocando a equidade, Bush insistiu que isto não bastava: “Elimine-se por completo o imposto sucessório”, disse, “pois as pessoas não devem ver os seus bens duplamente tributados. Ou é injusto para alguns ou é injusto para todos”.

Uma vez mais, os juízos morais intuitivos de Bush não são automaticamente correctos. A objecção da dupla tributação diz presumivelmente respeito à ideia de que as pessoas já tiveram de pagar imposto sobre o seu rendimento e depois são novamente sujeitas a tributação sobre a riqueza acumulada, construída a partir do seu rendimento líquido, quando morrem. Mas se as pessoas mortas não falam, também não pagam impostos. Legalmente, o “imposto da morte” é um imposto que incide sobre os bens de pessoas que morreram. Na verdade, é um imposto cobrado aos herdeiros da pessoa que faleceu. Ora estes não estão a pagar duplo imposto pelos bens que recebem. Claro que é possível imaginar um sistema sem imposto sucessório, no qual o dinheiro obtido através de herança fosse tratado como rendimento, para fins fiscais. Mas para muitos contribuintes isso seria ainda pior do que um imposto sucessório, porque herdar bens ainda que de modesto valor colocá-los-ia num escalão fiscal superior no ano em que os tivessem herdado.

De qualquer modo, mesmo que o “imposto da morte” taxasse duplamente os contribuintes, não há regra moral que determine que ninguém pode ser taxado mais de uma vez. Bush utilizou o mesmo argumento da dupla tributação para promover a sua proposta de 2003 para uma isenção fiscal relativa a dividendos, afirmando que as empresas que pagavam dividendos tinham já pago impostos sobre os seus lucros. (Esta foi outra redução fiscal que beneficiou os ricos, pois oitenta e cinco por cento das acções e obrigações, em valor, são detidas por pessoas que se situam nos dez por cento cimeiros do espectro do rendimento. No final, o Congresso diminuiu os impostos sobre os dividendos para a maioria dos contribuintes para quinze por cento, mas não os aboliu por completo.) Há muitos impostos que incidem duas vezes sobre a mesma pessoa ou, para ser mais preciso, incidem duas vezes sobre um rendimento específico. Quando as pessoas adquirem bens ou serviços, o dinheiro que gastam é aquele que lhes sobra após o pagamento do imposto sobre o rendimento, por isso um imposto sobre vendas também “taxa duas vezes as pessoas”. Poucas pessoas lhe colocam objecções por essa razão. Se não é incorrecto fazer as pessoas pagarem impostos pelo que gastam enquanto vivas, apesar de já terem pago imposto sobre o rendimento sobre o dinheiro que estão a gastar, por que razão seria incorrecto tributar o que as pessoas legam quando morrem?

O discurso de tomada de posse de Bush apresenta precisamente a imagem de uma sociedade justa que fornece uma base moral ao imposto sucessório: a ideia de uma só nação de justiça e oportunidades. Bush teve razão ao afirmar que as diferenças entre americanos prósperos e americanos pobres “são profundas”. São muito mais profundas do que noutros países desenvolvidos, e tornaram-me mais profundas nos últimos vinte anos. Embora a América seja um dos países mais ricos do mundo, a proporção da população adulta norte-americana que vive na pobreza relativa é mais de duas vezes superior à da França, da Alemanha ou da Itália — dezanove por cento contra cerca de oito por cento. As crianças americanas passam ainda pior: um quarto vive na pobreza, comparado com cerca de um décimo ou menos nos principais países da Europa Ocidental. E isto não sucede por os Estados Unidos abastados terem uma fasquia mais elevada abaixo da qual consideram que as pessoas são pobres — pelo contrário, os dez por cento mais pobres da população norte-americana estão pior, em termos absolutos, que o décimo mais pobre das populações da Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália, Japão, Países Baixos, Noruega, Suécia e Suíça. Uma família sueca com filhos que se encontre no limiar daqueles dez por cento mais pobres terá um rendimento sessenta por cento mais elevado do que o de uma família semelhante no limiar dos dez por cento mais pobres da América. A família sueca beneficiará ainda da segurança de uma rede de complementos ao rendimento e cuidados de saúde gratuitos que ultrapassam em muito tudo o que está à disposição dos pobres na América. O fornecimento público destes serviços já foi tomado há muito como adquirido em todos os países da Europa Ocidental.

Não por coincidência, os americanos têm, à nascença, a esperança de vida mais reduzida dos principais países industrializados: três anos menos do que os suecos, dois menos que os canadianos, e mais reduzida, também, do que a dos japoneses, alemães, franceses, britânicos, holandeses e italianos. Se comparada com o quadro europeu, a esperança de vida americana situar-se-ia algures entre a da Grécia e a de Portugal.

No outro extremo da tabela, um por cento de americanos, os mais ricos, detêm mais de trinta e oito por cento da riqueza nacional, concentração sem paralelo noutro qualquer país desenvolvido. E o fosso entre os ricos e o resto da sociedade está a aumentar. O Gabinete do Congresso para o Orçamento afirmou que entre 1979 e 1997 o rendimento líquido dos americanos mais ricos aumentou cento e cinquenta e sete por cento, ao passo que o rendimento dos que se encontram no intervalo do rendimento médio aumentou apenas cinco por cento, e o do quinto mais pobre da população nem sequer aumentou: decresceu. Os dados do censo americano mostram uma parte crescente de rendimento a deslocar-se para os vinte por cento mais ricos da população, em especial para os cinco por cento mais ricos de entre estes. Em 1970, segundo a revista Fortune, a remuneração média anual dos cem presidentes de empresas de topo era trinta e nove vezes superior ao salário de um trabalhador banal. Em 1999, aumentara para mais de mil vezes o salário dos trabalhadores vulgares.

Estas diferenças profundas de rendimento e riqueza colocam, como Bush muito bem notou, sérias dúvidas quanto ao facto de a América ser uma sociedade justa. Efectivamente, para aqueles que defendem uma ética igualitária — que afirma que as pessoas deviam ser iguais em riqueza — é evidente que a América está muito longe de ser uma sociedade justa. Mas a igualdade de riqueza nunca teve importância entre os valores americanos. Ao invés, a forma de igualdade distintamente americana sempre foi a igualdade de oportunidades. Bush prestou homenagem a esta ideia no seu discurso de tomada de posse, ao proclamar que o mais grandioso de todos os ideais americanos é “uma contínua promessa americana de que todos têm o seu lugar e todos merecem uma oportunidade”. Noutros contextos, afirmou que a igualdade de oportunidades é “o cerne da América” e que “todas as crianças devem ocupar posições iguais na linha de partida”. Segundo o ideal americano, o que interessa é que todos tenham igual oportunidade de serem bem-sucedidos, quer isso signifique tornar-se rico ou ser eleito presidente. Uma vez assegurada a igualdade de oportunidades, o facto de uma pessoa ser rica e outra ser pobre não é, por si só, sinal de injustiça. Algumas escolhem trabalhar arduamente e poupar o que ganham para prosperarem, ao passo que outras são menos diligentes ou gastam o que ganham mal o recebem. Os defensores da igualdade de oportunidades pensam geralmente que é correcto que os que trabalham e poupam sejam recompensados pelo seu esforço e restrição nos gastos. Mas se a pessoa que é pobre não tiver as mesmas oportunidades de ser bem-sucedida do que a pessoa que é rica, então a sociedade é injusta.

Embora o ideal da igualdade de oportunidades goze de ampla aceitação entre os americanos, todas as provas apontam para que, mesmo por este padrão, a América seja uma sociedade extremamente injusta. Afinal de contas, um país com uma percentagem particularmente elevada de crianças a viver na pobreza relativa terá grande dificuldade em garantir a todas as crianças “uma posição igual na linha de partida”. Algumas crianças têm abundância de comida nutritiva, uma casa aquecida onde dormir no Inverno e ar condicionado no Verão. Desde os primeiros anos de escolaridade, têm um quarto próprio, uma secretária e um computador ligado à Internet. Outras não têm qualquer destas vantagens. Como podem crianças a viver em circunstâncias tão diversas ocupar uma posição igual na linha de partida?

A América sempre se orgulhou de facultar educação a todos os seus cidadãos. A atribuição de fundos extraordinários a escolas localizadas em bairros menos favorecidos seria uma ajuda, embora mesmo assim não se ultrapassassem as diferenças existentes no ambiente familiar. Diversamente do que se passa na maioria dos países desenvolvidos — que financiam as escolas através de impostos nacionais ou, pelo menos, regionais — o financiamento do ensino nos Estados Unidos é geralmente local e está relacionado com os impostos sobre o património. Isto significa que as escolas situadas em distritos ricos recebem mais, por criança, do que as escolas dos distritos pobres — precisamente o inverso daquilo que seria necessário para atribuir a todas as crianças uma posição igual na linha de partida. É verdadeiro que existem alguns programas federais e estaduais de financiamento que mitigam os efeitos deste sistema de financiamento “quanto mais tens, mais recebes”, mas o governo federal precisaria de gastar muito mais no ensino básico e secundário para ultrapassar as desvantagens sentidas pelas crianças que vivem em zonas pobres.

Para se tirar partido das melhores oportunidades económicas e de carreira existentes actualmente, é praticamente indispensável possuir uma licenciatura. Em 1994, último ano para o qual há valores conhecidos, um aluno com uma idade compreendida entre dezoito e vinte e quatro anos, oriundo de uma família dos vinte e cinco por cento de americanos mais ricos, tinha uma probabilidade dez vezes maior de obter uma licenciatura até aos vinte e quatro anos do que um aluno pertencente a uma família dos vinte e cinco por cento de americanos mais pobres. Ainda pior, este rácio de dez para um aumentara drasticamente desde 1979, quando era apenas de quatro para um. A América tem de render-se perante países como o Canadá, a Alemanha, a Holanda, a Suécia e o Reino Unido no que diz respeito à probabilidade de uma pessoa pobre sair da pobreza num dado ano. Além disso, os pobres que, na América, conseguem fugir da pobreza têm maior probabilidade de voltar a cair nela nos cinco anos subsequentes do que os seus congéneres dos referidos países.

A verdadeira igualdade de oportunidades é muito difícil de alcançar numa sociedade que possua grandes desigualdades em termos de riqueza, pois os pais ricos, cultos e bem relacionados podem sempre proporcionar aos seus filhos vantagens que os filhos de pais pobres e sem escolaridade não terão. Ainda assim, a querermos promover a igualdade de oportunidades, é difícil pensar numa forma melhor de começar a fazê-lo do que lançar um imposto sobre a riqueza herdada. Este imposto torna a sociedade mais justa, pois incide sobre pessoas que recebem um benefício que nada fizeram para merecer. Uma herança é um golpe de sorte, algo que é tão provável ocorrer ao ocioso como ao trabalhador. Os conservadores que se preocupam com potenciais efeitos adversos das prestações sociais sobre os pobres não deviam ter qualquer dificuldade em aceitar que receber o que Warren Buffett chamou “vales de refeição vitalícios por ter saído do útero certo” poderá ter um efeito similar. Há vários estudos que demonstram que as pessoas que crescem a saber que nunca precisarão de ganhar o seu sustento consomem mais e trabalham menos — em boa linguagem antiquada, são mais preguiçosas e esbanjadoras — do que aquelas que não têm tal garantia. Mas mesmo que isto não se verifique, enquanto as pessoas conseguirem transmitir uma riqueza substancial aos seus descendentes, nunca poderá haver uma verdadeira igualdade de oportunidades.

Algumas das pessoas mais ricas da América opõem-se à abolição do imposto sucessório. Uma organização denominada Riqueza Responsável lançou uma petição a favor da sua conservação. Posta a circular por William Gates, Sr., pai do homem mais rico do mundo, a petição foi subscrita por cento e vinte milionários e bilionários, incluindo Gates, Sr., George Soros (investidor e filantropo), Ted Turner (fundador da CNN), Steven C. Rockefeller e outros elementos da família Rockefeller, Ben Cohen (da Ben & Jerry's) e os herdeiros da família Roosevelt. Warren Buffett, a quarta pessoa mais rica do mundo, não subscreveu o documento mas apoiou a ideia, afirmando a The New York Times que o imposto sucessório tinha um papel importantíssimo na promoção do crescimento económico, ao ajudar a criar uma sociedade na qual o sucesso se baseava no mérito, e não na herança. A eliminação do imposto sucessório, afirmou, equivaleria a “escolher a equipa olímpica de 2020 seleccionando os filhos mais velhos dos vencedores das medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 2000”. Gates, Sr., disse perante uma Comissão de Finanças do Senado, a propósito do imposto sucessório: “Embora não possamos garantir que todas as crianças começarão as suas vidas num terreno competitivo justo, isso é algo por que devemos lutar e o imposto sucessório mantém-nos mais próximos desse ideal”. Evidentemente, o sentido de justiça daqueles indivíduos ricos é mais poderoso do que o desejo de transmitir aos seus herdeiros a respectiva riqueza intacta. É impossível não nos perguntarmos por que razão este sentido de justiça não é partilhado pelo presidente, que se pronunciou tão eloquentemente sobre justiça e oportunidades no seu discurso de tomada de posse.

A escolha de Bush

A ideia de Bush de “uma só nação de justiça e oportunidades” não se pode conciliar com a sua oposição aos impostos sobre um pequeno número de heranças particularmente substanciais e sobre os dividendos, nem com o seu apoio à devolução aos contribuintes que não têm necessidade de grande parte do excedente orçamental existente quando foi eleito para a presidência, nem com a sua defesa contínua das reduções fiscais favoráveis aos ricos, após o desaparecimento do excedente. Se “não aceitamos” e “não toleraremos” as profundas desigualdades entre os americanos que Bush descreveu no seu discurso de tomada de posse, deveríamos ter visto o excedente orçamental — quando este existia — como resultado, não de uma sobrecarga fiscal, mas de uma contenção demasiado férrea da despesa. É impossível responder às prioridades de que Bush fala — prioridades como garantir que todas as crianças americanas ocupem posições iguais na linha de partida — sem recursos.

A isto, Bush e os seus defensores responderiam certamente que imaginar que se pode combater a pobreza ou promover a igualdade de oportunidades através do aumento da despesa pública é repetir os erros das gerações anteriores. No prefácio à obra de Melvin Olasky, Compassionate Conservatism, Bush escreveu que era um erro pensar que a compaixão significa o estado “gastar grandes quantias de dinheiro e construir uma imensa burocracia para ajudar os pobres”. O resultado desta despesa era “prejudicar as pessoas que queríamos ajudar”. Isso, no entanto, é um mito. Os estudos sobre as políticas nacionais fiscais e de despesa mostraram que as sociedades nas quais o estado cobra mais impostos, proporcionalmente ao produto interno bruto, são também as sociedades com menor desigualdade de rendimentos. Uma maior despesa social faz reduzir a desigualdade. E uma vez que entre os países mais ricos (por exemplo, os vinte e três membros com maior rendimento da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico) os mais iguais têm, em média, um rendimento mais elevado per capita, uma maior redistribuição feita pelo estado conduz a uma taxa inferior de pobreza absoluta, assim como a uma maior igualdade e a uma taxa inferior de pobreza relativa. De qualquer modo, uma maior despesa pública consagrada ao combate à pobreza e à promoção da igualdade de oportunidades não significa necessariamente programas postos em prática pelo estado. Se o combate à pobreza e o auxílio prestado a todas as crianças para que estas tenham um ponto de partida igual forem mais conseguidos por instituições privadas e religiosas do que pelo estado, então é para aquelas que o dinheiro deve ser canalizado.

Uma vez que Olasky tem sido a influência principal de Bush nesta área, vale a pena passar em revista o livro prefaciado pelo presidente. Grande parte de Compassionate Conservatism é uma espécie de visita guiada à pobreza da América. Viajando acompanhado pelo filho, Daniel, Olasky visita organizações religiosas e outras sem fins lucrativos que lutam contra a pobreza em zonas urbanas degradadas. Reconstituindo a sua viagem, conta ao leitor histórias comoventes do trabalho de indivíduos abnegados que lutam contra a violência, a droga e um sentimento geral de desespero. Estas pessoas são realmente importantes — mas, como o próprio Olasky observa, os escassos recursos de que dispõem reduzem imenso a sua importância, em comparação com o que precisa de ser feito.

Vejamos alguns exemplos. Melvin e Daniel Olasky visitam o Centro de Amizade de Fair Park, no Sul de Dallas, dirigido pelo Reverendo Stephan Broden. O seu “programa de cursos de Verão e evangelização” destinado a crianças com idade para frequentar o 1.º ciclo do ensino básico, está a “prestar um serviço maravilhoso mas limitado”, enquanto milhares de crianças vagueiam pelas ruas. No Oeste de Dallas, Kathy Dudley, chefe comunitária cristã empenhada e trabalhadora, “deseja fazer mais e sabe que são necessários mais recursos”. Outro “combatente lendário contra a pobreza” de Dallas é Ben Beltzer, presidente da Coligação Ecuménica para a Habitação. Os esforços de Beltzer e de outros como ele precisam de dinheiro do estado, escreve Olasky, mas sem burocracias a impedir-lhes o trabalho.

Em seguida, pai e filho vão a Indianápolis, testemunhar o impacto dos esforços do Mayor Goldsmith para conseguir apoio estatal para instituições de carácter religioso. A “Aliança do Pórtico Principal” de Goldsmith é elogiada por ajudar a reduzir a burocracia estatal, mas ainda não tem o dinheiro suficiente para fazer o que é preciso. Um programa posto em prática pelo “aparentemente incansável” Reverendo Jay Height, no seu Centro Comunitário de Shepherd, apenas abrange um pequeno número de pessoas. Isto leva Olasky a colocar a hipótese de “usar o dinheiro dos contribuintes para ampliar bons programas, que poderiam abranger mais pessoas”. Dirigindo-se para a capital do país, Olasky refere a existência de cento e vinte e nove organizações diferentes de carácter religioso a trabalhar especificamente com os jovens de Washington D.C., e pergunta: “Imagine-se o que aconteceria se o estado aprendesse a ajudar, em vez de refrear, estes grupos”.

Uma vez em Washington, Melvin e Daniel conhecem Hannah Hawkins, que ajuda crianças abandonadas. Esta não quer aceitar dinheiros públicos, porque depois não poderia rezar com as crianças, o que leva Olasky a observar que, se os funcionários do estado dessem o dinheiro a Hawkins sem condições, as suas crianças teriam “novos brinquedos e livros, receberiam ajuda para pagar os serviços públicos, e assim por diante”. Por outras palavras, a necessidade de mais recursos e a ideia de que os estados seriam capazes de fornecer esses recursos se não fossem tão relutantes em financiar organizações de carácter religioso é um estribilho constante nas páginas do livro que Bush descreve, no prefácio, como uma síntese clara dos princípios do conservadorismo compassivo realizada pelo seu principal teorizador.

Poder-se-ia pensar, então, que a prioridade máxima da nova administração compassiva que prometera construir uma só nação de justiça e oportunidades seria a entrega de fundos adicionais, muito substanciais, a instituições de carácter religioso e outras sem fins lucrativos. Uma vez que o orçamento registava um excedente quando Bush tomou posse, estes fundos estavam disponíveis mesmo sem um aumento de impostos. Ao invés, a prioridade máxima foi a redução fiscal. Quando o informaram, sete meses após tomar posse, de que o excedente estava a diminuir rapidamente, Bush disse que isto era “uma notícia extremamente boa” porque iria criar “um colete-de-forças fiscal” ao Congresso, evitando o crescimento do estado. Esta declaração mostra que a diminuição da dimensão do estado constituía para Bush uma prioridade mais importante do que a construção de uma só nação de justiça e oportunidades. Mas reduzir o tamanho do estado não é, em si, uma coisa boa. Se a secção do estado que foi reduzida estava a fazer algo desejável que não pode ser feito senão pelo estado, é uma coisa má. A educação, por exemplo, foi uma das prioridades de Bush, tendo este apresentado rapidamente ao Congresso legislação a ela respeitante. Contudo, após o desaparecimento do excedente, Bush disse que tinha de reduzir a despesa, indo gastar apenas vinte e dois mil milhões de dólares, dos vinte e oito mil milhões que a legislação autorizava a gastar com a educação em 2002. Outra medida específica que Bush prometeu tomar caso fosse eleito era permitir que os contribuintes que não apresentassem uma lista de deduções à colecta pudessem deduzir as contribuições destinadas a instituições de beneficência. Geralmente, as pessoas com rendimentos mais elevados apresentam cada contribuição específica, ao passo que as pessoas com menores rendimentos apresentam uma dedução pré-estabelecida sem fornecer uma lista daquilo que doaram. Por conseguinte, as pessoas com rendimentos inferiores não reduzem os seus impostos contribuindo para instituições de beneficência. Bush quis alterar isto, incentivando, assim, as doações a essas instituições. Mas, como notou The Washington Post, a redução fiscal de Bush limitou-lhe a capacidade de cumprir das suas próprias promessas eleitorais: uma vez que a redução dos impostos já tinha diminuído as receitas fiscais esperadas, a dedução tinha de ser limitada. Para a maioria das famílias afectadas, a poupança máxima nos impostos do ano seguinte era de 7,50 dólares. Em 2010, este valor aumentaria para uma poupança anual de trinta dólares. Ora isto não iria certamente fornecer muitos dos recursos necessários, como Olasky percebeu, às instituições de beneficência. Efectivamente, o muito modesto aumento em donativos que esta mudança poderia alcançar seria provavelmente aniquilado pela muito maior diminuição que resulta da abolição do imposto sucessório. John J. DiIulio, Jr., o homem que Bush nomeou para dirigir a mais tangível das suas iniciativas de conservadorismo compassivo — o Gabinete da Casa Branca para as Iniciativas Comunitárias e de Carácter Religioso — afirmou isto de forma contundente: “A eliminação [do imposto sucessório] poderá impossibilitar outra prioridade da administração: encorajar as contribuições privadas a instituições de beneficência, religiosas ou não religiosas, que ajudam os pobres”.

No prefácio a Compassionate Conservatism, Bush exorta-nos a “partilhar os nossos recursos — tanto materiais como espirituais — com os que mais precisam”. Não se sabe quanta partilha dos nossos recursos materiais seria necessária para começarmos mesmo a criar uma só nação de justiça e oportunidades, mas parece razoável supor que seria preciso todo o excedente orçamental de 2000 e ainda mais. Aquele excedente era um recurso material substancial que podia ter sido partilhado com quem precisava mais. Poderia ter sido usado para galvanizar os americanos para a causa da compaixão e para prestar às instituições de carácter religioso e outras sem fins lucrativos o auxílio de que estas necessitam para combater a pobreza eficazmente. Poderia ter financiado iniciativas que dessem às crianças esquecidas em escolas más, às famílias dos barrios de L.A. e aos homens e às mulheres das cidades degradadas da América razões para acreditar no que o presidente lhes dissera: “O sonho é para ti”. Em vez disso, Bush decidiu diminuir os impostos de uma forma que só acentuou a desigualdade económica que já desde a década de 1970 vinha a aumentar rapidamente na América. O número de americanos a viver na pobreza aumentou em 2001 e subiu de novo em 2002.

Mas o pior estava para vir. Em 2003, quando se tornou claro que o excedente orçamental se transformara num défice substancial, sendo necessário despender mais devido à guerra com o Iraque, Bush, apesar disso, conseguiu levar o Congresso a aprovar nova diminuição drástica dos impostos. Agora, sem excedente, Bush não podia dizer com o mesmo desembaraço: “O dinheiro é vosso”. Em vez disso, promoveu a redução dos impostos como um meio de acelerar a recuperação económica e de criar mais postos de trabalho. No seu discurso do Estado da União de 2003, Bush afirmou: “A economia cresce quando os americanos têm dinheiro para gastar e investir, e a melhor e mais justa forma de garantirmos que os americanos têm esse dinheiro é não o tributar logo à partida”. Mas, na altura em que escrevo, apesar de todas as reduções de impostos, parece provável que haja menos americanos empregados quando Bush terminar o seu primeiro mandato do que havia quando o iniciou. A última vez que isto aconteceu num mandato presidencial foi durante a presidência de Herbert Hoover, de 1929 a 1933 — e Hoover teve de enfrentar uma situação económica bastante mais grave do que Bush. A resposta de Bush a isto é a seguinte: “Se o Congresso estiver mesmo interessado em criar emprego, tornará permanentes todas as medidas de abrandamento fiscal que aprovámos”. Nos termos da legislação em vigor, as reduções de impostos têm vários anos à sua frente. É difícil ver em que medida torná-las permanentes ajudaria os americanos que estão agora sem emprego.

Bush poderia ter feito mais pela criação de postos de trabalho se, em vez de diminuir os impostos, tivesse estimulado a economia através do aumento da despesa pública. Uma vez que os pobres vão certamente gastar o seu dinheiro, e não poupá-lo, o aumento dos vários tipos de prestações que estes recebem tem maior probabilidade de animar rapidamente a economia do que a implementação de reduções de impostos que beneficiam sobretudo os ricos. Por conseguinte, teria sido simultaneamente melhor e mais justo do que as reduções fiscais propostas por Bush. De qualquer modo, duas semanas mais tarde, o Presidente da Federal Reserve, Alan Greenspan, discordou veementemente do argumento económico favorável à diminuição dos impostos invocado pelo presidente, sugerindo que “Seria de esperar um consenso, no que diz respeito à necessidade de restabelecer a disciplina orçamental” e alertando para o facto de tudo o que aumentasse o défice orçamental constituir má política económica. As altas credenciais económicas de Greenspan, assim como as dúvidas acerca da inteligência das acções de Bush sentidas por outros importantes economistas — alguns mesmo militantes do seu próprio partido —, não fizeram Bush hesitar em viajar pelo país promovendo a sua diminuição dos impostos e rejeitando uma proposta de compromisso apresentada pelo Senado, considerando-a “insignificante”. Não controlar um grande défice é eticamente duvidoso, pois é como se uma geração organizasse uma festa e deixasse o lixo para a seguinte limpar. O facto de a geração seguinte consistir numa proporção mais pequena de contribuintes a sustentar uma proporção maior de idosos agrava ainda mais a situação. George Akerlof, professor de economia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e laureado em 2001 com o Prémio Nobel da Economia, descreveu o défice actual como “uma forma de saque” e avisou que no futuro, se a América quer evitar a ameaça da bancarrota, a Medicare1 e a Segurança Social têm de ser reduzidas drasticamente.

Por que razão defendia ainda Bush uma redução substancial nos impostos depois de o excedente ter desaparecido e contra as opiniões fundamentadas de Greenspan e muitos outros? Se a justificação ética que aduziu para a sua redução fiscal de 2001 — quando se registava um excedente orçamental — era inadequada, parece completamente ausente uma justificação ética para a redução fiscal de 2003. A menos, especulou o Financial Times, que a verdadeira intenção fosse provocar deliberadamente aquilo para que Akerlof alertara: uma crise fiscal que constituiria uma justificação para diminuir drasticamente a despesa pública em programas sociais populares como o Medicaid, o Medicare e a Segurança Social. Se aquela especulação se revelar correcta, o “conservadorismo compassivo” ter-se-á transformado no seu oposto: um conservadorismo que aumenta o poder e a abastança dos ricos e está disposto a ser profundamente impiedoso para com os pobres e os idosos.

Uma última nota: será suficiente a igualdade de oportunidades?

Embora o propósito deste capítulo tivesse sido demonstrar a incoerência entre a política fiscal de Bush e a sua defesa da igualdade de oportunidades, seria um erro acreditar que o ideal da igualdade de oportunidades oferece uma concepção adequada de uma sociedade justa. Mesmo que todas as crianças ocupassem uma posição igual na linha de partida, isso não tornaria a sociedade justa. A metáfora da linha de partida sugere que a vida é uma corrida. Em qualquer competição desportiva, as diferenças naturais de competência e temperamento desempenham um papel importante na determinação do vencedor. Tenho a certeza de que nunca poderia ter sido bom jogador de futebol, por muito que treinasse, e também duvido muito que tivesse chegado a pianista profissional. Talvez tivesse tido mais êxito numa profissão que exigisse competências matemáticas ou linguísticas — áreas em que alguns indivíduos mais dotados para o desporto e a música poderiam não ter singrado. Não merecemos mais as nossas capacidades naturais do que merecemos herdar a riqueza dos nossos pais. A nossa sociedade recompensa as pessoas que são boas no desporto, ou na análise financeira, ou são bonitas, ou sabem representar e cantar bem, mas dá muito pouco àquelas que nada mais têm para oferecer do que o seu trabalho físico — e ainda menos àquelas incapazes de trabalhar. Nada há de inerentemente justo nesta ordem de coisas. O reconhecimento de que as recompensas que as pessoas recebem são significativamente influenciadas pela sorte das capacidades herdadas devia levar-nos a olhar para lá da igualdade de oportunidades. Mesmo numa sociedade em que todos começassem com uma oportunidade igual de prosperar, na medida das suas capacidades naturais, poderia ser justo aliviar o sofrimento daqueles que se vêem no fundo da escala. Também neste sentido a maioria dos países desenvolvidos, incluindo os países da União Europeia, o Canadá e a Austrália, estão mais próximos de serem sociedades justas do que os Estados Unidos. As políticas defendidas por Bush aumentarão o “fosso da justiça” entre estas diferentes sociedades e levarão os Estados Unidos a afastar-se ainda mais do objectivo anunciado por Bush de se tornar “uma só nação de justiça e oportunidades”.

Peter Singer
The President of Good and Evil: Questioning the Ethics of George W. Bush (Plume Books, 2004)

Nota

  1. Medicare e Medicaid (abaixo): Programas do serviço público de saúde norte-americano destinados a idosos, deficientes, doentes renais crónicos e pessoas de rendimentos reduzidos. (N. do T.)