Preocupa-me uma cultura que desvaloriza a vida e acredito que, enquanto vosso presidente, tenho a importante obrigação de promover e incentivar o respeito pela vida na América e em todo o mundo.
George W. Bush, comentários do presidente a propósito da investigação sobre células estaminais, 1 de Agosto de 2001
Após a tomada de posse de George W. Bush como presidente, decorreram mais de seis meses até que surgisse uma questão suficientemente importante que o levasse a dirigir-se ao povo americano através da televisão, em horário nobre. A questão em causa foi decidir se o governo federal deveria financiar a investigação relacionada com células estaminais provenientes de embriões humanos — questão que, disse Bush aos americanos, era “uma das mais profundas dos nossos tempos”. Para contextualizar o discurso, a Casa Branca distribuiu uma “Lista de Factos sobre Células Estaminais” na qual se afirmava que muitos cientistas pensavam que as células estaminais podem oferecer novas formas de tratamento de uma vasta gama de doenças que afectam aproximadamente cento e vinte e oito milhões de americanos. Segundo o folheto, estas novas terapias poderiam conduzir à cura da doença de Parkinson, diabetes juvenil, doença de Alzheimer, lesões da medula e doenças cardíacas. Para ser possível realizar investigação sobre estas terapias potenciais, é necessário desenvolver e multiplicar células estaminais em laboratório. Só as células estaminais derivadas de embriões humanos foram dadas como possuindo capacidade para se transformarem praticamente em todos os tecidos do corpo humano. Por conseguinte, são estas que os cientistas consideram terem mais potencialidades terapêuticas. Uma vez retirada de um embrião humano, uma célula pode ser preservada em laboratório, produzindo mais células que, por sua vez, produzirão outras, e assim por diante, até haver milhões de células disponíveis para investigação. Isto cria uma linha de células possuidoras da mesma ascendência: a célula original retirada do embrião. Os cientistas falam de “linhagem celular” para referirem grupos inteiros de células, passados e presentes, que têm este tipo de relação com uma célula original específica, tal como nós podemos falar da “descendência” de um antepassado. As linhagens celulares podem aumentar indefinidamente, mas começam todas com uma célula original, retirada de um embrião. O embrião não sobrevive à recolha das células estaminais — é por isso que a utilização de células estaminais é considerada eticamente questionável por aqueles que pensam que um ser humano tem direito à vida desde o momento da concepção.
No seu discurso à nação, o Presidente Bush observou que, em resultado da utilização generalizada da fertilização in vitro (IVF), já existem muitos embriões humanos congelados em laboratórios, não desejados pelo casal doador do óvulo e do esperma. Isto sucede porque as mulheres que recorrem à IVF tomam geralmente medicamentos que levam à produção de vários óvulos. Todos estes óvulos são recolhidos, sendo adicionado esperma a cada um deles de forma a garantir a existência de suficientes embriões viáveis a serem transferidos para o útero para se conseguir uma gravidez. Mas transferir mais de três destes embriões ao mesmo tempo não é clinicamente recomendável, devido ao risco de nascimento de três ou mais bebés. Geralmente, os embriões excedentários são congelados, para o caso de a mulher não engravidar. Assim, ela poderá usá-los mais tarde, sem ter de repetir o processo de recolha de óvulos. No entanto, se conseguir engravidar da primeira vez, que destino se dá aos embriões congelados? Bush referiu que alguns embriões congelados são destruídos ou doados para fins científicos, ao passo que outros são implantados em mães adoptivas e se transformam em crianças saudáveis.
Ao reflectir sobre a questão ética da permissão ou não de utilização de fundos públicos na investigação sobre células estaminais retiradas de embriões congelados, Bush disse aos americanos que “regressava sempre a duas questões fundamentais”. A primeira é a seguinte: “Estes embriões congelados são vidas humanas e, por conseguinte, algo precioso a preservar?” A segunda é: “Se estes embriões, de qualquer modo, vão ser destruídos, não deveriam antes ser utilizados para um bem maior, na investigação que tem possibilidades de salvar e melhorar outras vidas?” Bush responde afirmativamente à primeira questão. Cita a opinião de um cientista que afirma que, com cinco dias, o grupo de células é um “pré-embrião”, não ainda um embrião mas uma entidade que encerra a potencialidade da vida, embora não seja ainda “uma vida”. Mas — porventura para dramatizar a forma como ele próprio hesitou acerca do assunto — Bush cita em seguida um estudioso de ética que declara que pensar no grupo inicial de células como um “pré-embrião” é uma racionalização insensível. Este estudioso argumenta que começámos todos as nossas vidas como embriões. Esse é o fundamento da decisão de Bush de não atribuir fundos públicos à investigação relativa a células estaminais de um modo que encoraje a destruição de embriões humanos.
No resto do discurso, Bush afirmou que iria permitir a utilização de fundos públicos na investigação com colónias de células estaminais que já tivessem sido derivadas de embriões antes do seu discurso. Em resultado da investigação conduzida por organismos privados, disse ele, “existem já mais de sessenta linhas de células estaminais geneticamente diversas”. Uma vez que para estas linhas de células, “a decisão entre vida e morte já foi tomada”, admitiu que o governo federal poderia financiar a investigação que explora as potencialidades das células estaminais sem “pisar uma linha moral fundamental ao fornecer, com o dinheiro dos contribuintes, um financiamento que sancionaria ou encorajaria uma destruição adicional de embriões humanos que encerram, pelo menos, uma potencialidade de vida”. Posteriormente, os Institutos Nacionais de Saúde reconheceram a existência de setenta e oito linhas de células estaminais passíveis de utilização nos termos da política presidencial. No entanto, os cientistas que pretenderam utilizá-las descobriram que muitas destas linhas não eram adequadas à investigação ou se encontravam protegidas por direitos de propriedade que as impediam de serem utilizadas por outros cientistas, e, em Abril de 2003, The New York Times afirmava que existiam apenas onze linhas úteis disponíveis aos cientistas. Este número foi posteriormente confirmado pelo Dr. Elias Zerhouni, director dos Institutos Nacionais de Saúde, em testemunho prestado perante uma subcomissão do Congresso. Segundo o Dr. Irving Weissberg, da Universidade de Stanford, todas estas linhas celulares possuíam “as características genéticas das pessoas que recorrem às clínicas de fertilização in vitro — brancos ricos estéreis”. Citou-se ainda outro especialista, tendo este afirmado que poderiam ser necessárias entre cem e mil linhas celulares diferentes para se assegurar a compatibilidade com toda a população americana. Vários cientistas declararam perante a subcomissão do Congresso que as negociações frustrantes relativas às condições de utilização das linhas celulares os haviam impedido de trabalhar ou tinham aumentado substancialmente os custos da investigação. O Dr. George Daley, cientista de Boston a investigar a utilização de células estaminais para curar a deficiência imunitária conhecida como bubble boy disease afirmou que a política de Bush “ameaça aniquilar este campo de investigação numa altura em que este lhe é essencial ainda em maior quantidade”. Outro investigador, Dr. Gerald Schatten da Universidade de Pittsburgh, declarou: “Se vamos fazer isto, façamo-lo. Não fomos à Lua e decidimos regressar a um terço do caminho”.
Pior ainda, todas as células estaminais com existência anterior a 9 de Agosto de 2001 haviam sido desenvolvidas em tecido irradiado de rato, o que as tornava de utilização clínica insegura. Por esta razão, Art Caplan, um dos principais bioeticistas norte-americanos, afirmou que embora Bush tenha apresentado a sua decisão como um compromisso entre os opositores e os defensores de uma proibição completa da investigação com células estaminais derivadas de embriões humanos, a decisão é, “de facto, nada mais nada menos que uma proibição”. A mesma consideração levou Arlen Specter, senador republicano da Pensilvânia, sobejamente respeitado, a dirigir uma carta aberta a Bush pedindo-lhe que “ampliasse” a sua decisão de 2001 e permitisse a utilização de fundos federais na investigação de uma gama mais vasta de linhas celulares.
Contudo, pondo de lado estas questões factuais, que devemos pensar sobre os argumentos morais que Bush apresentou? Aceito a sua afirmação de que o embrião inicial é “vida humana”. Os embriões formados a partir de esperma e óvulos de seres humanos são certamente humanos, por incipiente que seja o seu desenvolvimento. Pertencem à espécie Homo sapiens e não a qualquer outra espécie. Sabemos quando se encontram vivos e quando morreram. Enquanto estão vivos, são vida humana.
O verdadeiro problema do argumento de Bush reside no seu pressuposto de que se os embriões em questão são vida humana, então, são “por conseguinte, algo precioso e a preservar”. Por que razão o facto de algo ser vida humana implica que isso seja algo precioso que devemos preservar?
Nos Estados Unidos, morrem milhões de embriões todos os anos. Cada um deles encerrava a potencialidade genética única de um ser humano individual. Estes embriões não morrem em laboratórios, nem em clínicas de interrupção voluntária da gravidez, nem sequer em consequência de as mulheres terem tomado a RU486, a chamada “pílula abortiva”. Morrem enquanto parte de um processo natural que, tanto quanto sabemos, existe desde que existem seres humanos. Alguns cientistas calculam que, para cada embrião que se transforma em criança, há quatro óvulos fertilizados que não são bem-sucedidos. Outros pensam que a relação se aproxima mais de um óvulo fertilizado perdido por cada criança nascida. Mesmo aceitando este último cálculo, morrem anualmente três milhões de embriões nos Estados Unidos, devido a causas naturais. Trata-se de embriões que não se implantaram com êxito no útero feminino. São eliminados juntamente com a hemorragia menstrual. Na maioria dos casos, a mulher nem chega a saber que concebera.
Deveremos sentir que esta perda de embriões é uma coisa terrível, uma espécie de holocausto contínuo? Se cada embrião humano for “algo precioso a preservar”, então será assim seguramente que nos deveremos sentir. Talvez o presidente devesse considerar a utilização de fundos federais na investigação destinada a compreender por que razão estes embriões se perdem tão frequentemente e a descobrir modos de lhes conceder a protecção que exige a sua natureza preciosa. Bush pode não ter ideia da quantidade de embriões humanos que morrem desta forma. Mas nomeou um Conselho Bioético para o aconselhar. Este conselho é presidido por Leon Kass, importante bioeticista da Universidade de Chicago, e entre os seus membros contam-se vários cientistas conhecedores dos factos relevantes. Será que este conselho irá informar o presidente acerca da enorme e constante perda de embriões preciosos, considerando o que pode ser feito para lhe pôr cobro? Tal hipótese parece improvável. Ninguém, nem mesmo os mais fervorosos opositores à investigação em embriões humanos presentes no Congresso planeiam financiar tal programa de investigação. A verdade é que, política à parte, praticamente ninguém — com excepção dos casais que querem ter filhos — se preocupa com a perda de embriões. E mesmo os casais que tentam conceber apenas se preocupam com o facto de conseguirem ou não ter filhos. Não se preocupam verdadeiramente com o embrião específico que se perdeu. O mais das vezes, nem sequer se apercebem de que isso aconteceu.
Bush diz-nos que cada embrião é único, “como um floco de neve”. Tem razão: tanto os embriões como os flocos de neve são únicos. Mas o facto de algo ser único não constitui em si razão para tentar preservá-lo. (Não tentamos preservar os flocos de neve.) Bush precisava de nos dizer por que motivo o carácter único de cada embrião humano é razão para a sua preservação. Uma vez que não o faz, resta-nos especular. Pensará que é bom que nasçam mais seres humanos únicos? Mas, uma vez que cada ser humano, com excepção dos gémeos idênticos, é geneticamente único, para alcançar esse objectivo só teríamos de incentivar as pessoas a terem mais filhos. No entanto, nos seus discursos sobre as questões sociais, Bush exorta geralmente os jovens a não se tornarem pais solteiros — o que sugere que a produção de mais crianças únicas não constitui uma prioridade suficientemente importante para o presidente. Pelo menos, não se trata de uma prioridade que consiga impor-se aos problemas sociais que, segundo o presidente, são causados por essas crianças. Por que razão, então, a produção de mais crianças únicas deve sobrepor-se ao valor da investigação que poderia salvar ou melhorar drasticamente as vidas de dezenas de milhões de americanos?
Tentemos de novo. Talvez a verdadeira razão de Bush para se opor à destruição de embriões humanos não seja o aumento do número de crianças únicas, mas o facto de, uma vez existindo vida humana, esta dever ser preservada. A ser assim, subsiste uma lacuna no argumento. A passagem de Bush de “o embrião é vida humana” para “o embrião é algo precioso e a preservar” baseia-se no pressuposto não fundamentado que tornou o debate sobre o aborto tão problemático na América: a ideia de que ser membro da espécie Homo sapiens basta para tornar preciosa a vida de um ser. É preciso que nos expliquem por que razão tem isto de ser assim — por que razão, por exemplo, a vida de um membro da espécie Homo sapiens tem mais direito a exigir protecção do que a vida de um membro da espécie Pan troglodytes, o chimpanzé. Bush não propôs a proibição de utilização de fundos federais na destruição de embriões de chimpanzé — nem mesmo, já agora, na inflicção deliberada de doenças fatais em chimpanzés adultos.
Por que razão pensa Bush que toda a vida humana é preciosa e tem de ser preservada? Obviamente, neste passo estamos a entrar numa questão fundamental para a perspectiva a que Bush se refere como algo que promove a “cultura da vida” — não apenas para a sua decisão relativa aos embriões, mas também à condenação do aborto, de que advêm muitas outras medidas tomadas pelo seu governo. (No seu primeiro dia no cargo, pôs novamente em vigor a ordem presidencial de Reagan que impedia o acesso ao financiamento norte-americano a todas as organizações de cuidados médicos do mundo que realizassem abortos — mesmo quando estes serviços eram financiados separadamente — ou que fornecessem sequer informação às mulheres sobre o aborto. Subsequentemente, e pela mesmo razão, congelou milhões de dólares de ajuda americana aos programas da Organização Mundial de Saúde e do Fundo das Nações Unidas para a População destinados à promoção da saúde na reprodução.) Uma das razões para Bush considerar preciosa toda a vida humana assenta evidentemente nas suas crenças religiosas — como ele próprio nos diz bastante explicitamente no seu discurso de Agosto de 2001, ao afirmar: “Também acredito que a vida humana é uma dádiva sagrada do nosso Criador”. A religião de Bush e o papel que esta desempenha — e devia desempenhar — nas suas decisões enquanto presidente constituem o tema do Capítulo 5 do presente livro. Mas antes de explorarmos esta questão, precisamos de considerar a possível existência de outros motivos, não religiosos, que pudessem levar à defesa do argumento de que toda a vida humana é preciosa e tem de ser preservada. Não poderá esta perspectiva ser defendida em termos seculares?
Bush avança outro argumento — aparentemente não religioso — em defesa do respeito pela vida humana. Como vimos, preocupa-o “uma cultura que desvaloriza a vida” e pensa que, enquanto presidente, tem a obrigação de “promover e incentivar o respeito pela vida”. Mais adiante, ainda neste capítulo, veremos como Bush cumpre esta importante obrigação. Mas em primeiro lugar devemos sublinhar que quando Bush fala de “respeito pela vida” nestes contextos, refere-se ao “respeito pela vida humana”. Bush encabeça um governo que financia investigação que mata todos os anos milhões de animais não-humanos, de ratinhos e ratos a hamsters, gatos, cães, babuínos e chimpanzés. Bush nunca questionou o financiamento nem mencionou a profunda questão ética que este coloca. Há uma linha de demarcação no que toca ao tipo de vida em relação ao qual Bush pretende incentivar o respeito. Se nos encontrarmos de um dos lados da linha de demarcação, a nossa vida tem de ser respeitada e preservada da destruição, mesmo significando isso a colocação de obstáculos à investigação que poderia salvar muitas mais vidas. Se estivermos do outro lado da linha, a nossa vida não tem de ser respeitada e poderemos ser feridos ou mortos por uma qualquer razão menor, incluindo o teste de um novo corante alimentar. Neste aspecto, claro, Bush partilha a visão padronizada de que a vida humana é especial, visão que é defendida pela esmagadora maioria dos americanos e das pessoas de todo o mundo. Ainda assim, se quisermos compreender verdadeiramente as questões éticas que estão em jogo, teremos de perguntar por que razão Bush ou qualquer outra pessoa se opõe à destruição de embriões humanos incipientes para fins de investigação ao mesmo tempo que apoia a destruição de outras formas de vida para fins semelhantes.
Uma razão possível para traçar a linha entre seres humanos e chimpanzés é o facto de nós sermos humanos e, portanto, devermos proteger todos os membros da nossa própria espécie e não termos qualquer dever de proteger os membros de outras espécies. Esta resposta é má porque se baseia numa preferência simples e não fundamentada pelos “nossos”. Se nos basearmos na afirmação simples de que somos humanos e devemos proteger os membros da nossa espécie, ficaremos sem resposta para os racistas que afirmam ter de defender os seus iguais — que, para eles, são os membros da sua raça, mas não os membros das outras raças.
Uma resposta melhor consiste em afirmar que os seres humanos são mais preciosos do que os outros animais porque possuem capacidades mentais que lhes tornam possível viver de um modo que, tanto quanto sabemos, os gatos, cães, babuínos e mesmo chimpanzés não conhecem. Só os seres humanos têm suficiente consciência do futuro para planear as suas vidas, com uma deliberação cuidadosa, e não apenas à distância de um dia ou uma semana, mas de anos. Só os seres humanos podem reflectir nas suas escolhas morais e ser considerados moralmente responsáveis pelo que fazem. Esta resposta evita o egoísmo generalizado de afirmar que “o meu dever é para com o meu grupo apenas porque é o meu grupo”. Ao invés, aponta para características dos seres humanos que podem plausivelmente considerar-se que têm alguma importância moral. Claro que somos nós, seres humanos, que pensamos serem estas características particulares especialmente valiosas e podemos ser parciais ao seleccionarmos apenas as características que mencionei. Se, por exemplo, valorizarmos os seres que conseguem correr ou voar bem, poderemos pensar que os falcões e as chitas são particularmente preciosos e necessitam de ser preservados. Contudo, a escolha das características que dependem das nossas capacidades mentais superiores como base de valor especial, ou de maior necessidade de protecção, não parece arbitrária. As nossas capacidades mentais, quando funcionam adequadamente, tornam as nossas vidas substancialmente diferentes das vidas dos outros animais. Partilhamos com muitos outros animais a capacidade de sentir dor e também de sentir emoções como amor e medo, mas talvez não a capacidade de compreender que temos um passado e um futuro — excepto algumas espécies, das quais os chimpanzés constituiriam o caso mais documentado. Talvez essa capacidade de ver a nossa própria vida como algo que sucede ao longo do tempo e, portanto, de ter desejos orientados para o futuro, possa constituir uma razão para considerar a morte uma tragédia maior quando ocorre em seres como nós do que quando sucede a seres desprovidos desta capacidade.
Bush, como vimos, afirmou que, se os embriões eram vida humana, eram preciosos e precisavam de ser preservados. Consegue-se perceber agora o que está errado no seu argumento. Se a vida humana é mais preciosa do que a vida não-humana, é porque os seres humanos possuem capacidades mentais superiores que se encontram ausentes nos animais não-humanos. No entanto, os embriões são completamente desprovidos dessas capacidades mentais. Assim, se é a posse de capacidades mentais superiores que traça a linha entre seres cujas vidas precisam de ser preservadas e seres cujas vidas não precisam de ser preservadas, os embriões humanos — e, já agora, os fetos humanos — encontram-se do lado errado da linha. Nenhum deles planeia com antecedência, reflecte sobre escolhas ou pode ser considerado moralmente responsável. A posição de Bush requer uma linha de demarcação moralmente relevante que abarque os embriões humanos e exclua os animais não-humanos. A linha de demarcação plausível que estivemos a analisar não serve.
É verdadeiro que a ideia de que apenas os seres que conseguem planear com antecedência, reflectir nas escolhas e ser considerados moralmente responsáveis são preciosos e devem ser preservados tem implicações que vão muito além do estatuto dos embriões humanos incipientes. Os recém-nascidos humanos também não possuem essas capacidades. Mas quase todos os bebés humanos são amados e queridos pelos seus progenitores e isso é razão bastante para os considerar preciosos e os preservar. Uma vez que a lei exige linhas claras e o nascimento fornece uma linha mais clara e evidente do que qualquer outro ponto que pudéssemos considerar para assinalar o momento em que se inicia o direito à vida, há razões para instituir o nascimento como ponto a partir do qual matar um ser humano em desenvolvimento se torna crime.
Será relevante que os embriões que Bush procura preservar sejam potencialmente os seres com capacidades mentais superiores que estivemos a discutir? Ele pode ter sugerido a importância disto quando afirmou que alguns dos embriões congelados que sobraram após a fecundação in vitro foram implantados com êxito em mães adoptivas e produziram crianças saudáveis. Mas a afirmação de Bush de que as potencialidades dos embriões congelados existentes em clínicas de fertilidade os tornam preciosos e lhes dá o direito à preservação defronta-se com grandes problemas. Com efeito, este argumento é confrontado com duas objecções insuperáveis: a primeira é que, simplesmente, não existe um argumento geral do tipo “X é um Y em potência; por conseguinte, X tem agora os direitos de um Y”. No sistema eleitoral norte-americano, por exemplo, os vencedores das eleições presidenciais não têm os direitos do presidente até terem tomado posse. Portanto, não podemos pressupor que um ser com potencialidades de desenvolver capacidades mentais superiores tem os direitos de um ser que desenvolveu essas capacidades.
Isto conduz-nos à segunda objecção: os casais estéreis que querem ter filhos valorizam os embriões que poderão tornar-se o seu almejado rebento mas, uma vez tidos todos os filhos que desejam, a maioria deixa completamente de valorizar os embriões. Alguns estão dispostos a cedê-los a outros casais estéreis. Há outros a quem não agrada a ideia de os seus filhos genéticos serem criados por estranhos e, por isso, preferem mandar destruir os embriões congelados excedentários. Se Bush pensa que estes embriões são preciosos e devem ser preservados, que propõe fazer-lhes? Pensará que a parte feminina desses casais deveria ser obrigada a aceitar a transferência do embrião para o seu útero? Considerará que os embriões deveriam ser retirados ao casal em questão e dados a uma mulher disposta a desenvolver o embrião até ao nascimento? Se houver mais embriões congelados nos laboratórios do que mulheres dispostas a oferecer-se como voluntárias para o cumprimento deste dever, deveria o governo federal pagar a mulheres dispostas a tornarem-se mães adoptivas? Poderiam os pais que planeiam doar os seus embriões para investigação ser levados a julgamento e considerados progenitores incapazes que maltratam os filhos? Ou deveria o governo proibir simplesmente a fecundação in vitro, uma vez que esta leva à destruição de embriões?
Segundo a ordem natural das coisas, o embrião implantado tornar-se-á uma criança se não houver intervenção humana deliberada. O embrião congelado na clínica só pode tornar-se uma criança se várias pessoas agirem cooperantemente para fazer isso suceder — e, mesmo então, pode não chegar a ser criança, pois a probabilidade de um dado embrião a ser usado na fecundação in vitro chegar ao nascimento ainda é bastante inferior a cinquenta por cento e, em muitas clínicas, inferior a dez por cento. No actual quadro jurídico e clínico, como o próprio Bush afirmou, a maioria destes embriões, “de qualquer modo, vão ser destruídos”. Enquanto a situação for esta — e ninguém está a propor legislação para a alterar — como pode Bush defender que os embriões congelados são demasiado preciosos para serem utilizados na investigação?
Podemos perguntar por que razão Bush não apelou aos legisladores federais para que aprovassem uma lei que impedisse os pais e as clínicas de fertilidade de destruir embriões. Esta lei poderia ser constitucional, pois não interfere directamente com o controlo da mulher sobre o seu corpo e, portanto, não viola o direito desta à privacidade da forma que a maioria do Supremo Tribunal, em Roe contra Wade, considerou acontecer no caso das leis que proibiam o aborto. A verdadeira razão parece residir no facto de Bush e os seus aliados “pró-vida” saberem que há poucas pessoas que se preocupem verdadeiramente com os embriões incipientes. Isto aplica-se até aos opositores ao aborto, como Orrin G. Hatch, Senador do Utah. Este falava em nome de muitos quando, apoiando a investigação sobre células estaminais, afirmou: “Não consigo considerar em termos iguais uma criança a viver num útero, a mexer dedos dos pés e das mãos e com um coração a bater, com um embrião num congelador”.
Mas, pensando melhor, vemos que ter dedos a mexer e um coração a bater também não é realmente decisivo em termos morais. Os fetos dos símios e dos macacos também os têm. Pondo de parte as razões religiosas, faz sentido ver a vida humana como algo intrinsecamente precioso e necessitado de preservação apenas quando desenvolveu outras capacidades — no mínimo, a capacidade de sentir algo, possivelmente um certo grau de consciência de si próprio. Os embriões que são utilizados para gerar células estaminais estão ainda longe do ponto no qual adquirem a capacidade mínima de sentir algo. É por isso que a oposição de Bush à utilização de embriões para criar células estaminais não pode ser adequadamente defendida em termos seculares.
Além dos Estados Unidos, há poucos países onde vigore a pena de morte. Só a China e o Irão executam mais pessoas do que os Estados Unidos. Nenhum país membro da União Europeia a utiliza. Nos termos da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, é considerada uma violação dos direitos humanos e nenhum país pode ser admitido na União Europeia se ainda mencionar a pena de morte na sua legislação.
Quando Bush foi eleito presidente, o governo federal não recorria à pena de morte havia trinta e oito anos. Bush restabeleceu-a. Quando era governador do Texas, este estado realizou mais execuções que qualquer outro e Bush assinou cento e cinquenta e duas ordens de execução de pena de morte — mais do que qualquer anterior governador do Texas e qualquer outro governador americano dos tempos modernos. Geralmente, tomava a sua decisão de vida ou morte após meia hora de reunião com o seu conselheiro jurídico. Enquanto ocupou o cargo de governador, só uma vez impediu uma execução.
Em Outubro de 2000, milhões de telespectadores que acompanhavam o segundo debate presidencial ficaram chocados quando Bush descreveu o destino dos três homens que haviam assassinado James Byrd: “Adivinhem o que lhes vai acontecer. Vão ser mortos. O júri considerou-os culpados e... vai ser difícil castigá-los ainda mais depois de serem executados”. Só por si, as palavras não transmitem a exultação, quase regozijo, que surgiu no rosto de Bush quando falou da execução iminente dos homens que tinham sido condenados por homicídio. (Como disse uma pessoa que o interrogou da assistência, no terceiro debate presidencial, Bush parecia “regozijar-se francamente” com o facto de o Texas ser o primeiro estado na execução de prisioneiros. Bush negou que assim fosse, mas os que haviam visto a sua expressão no debate anterior devem ter tido dificuldade em acreditar na sua convicção.) Sem dúvida que o crime fora horrendo, mas uma tal leviandade na aplicação da pena de morte não se enquadra facilmente na ideia de promoção de uma cultura de vida.
Defender a pena de morte ao mesmo tempo que se rejeita a morte de embriões ou fetos não é necessariamente incompatível. Como Bush disse em A Charge to Keep: “Alguns defensores da vida perguntarão por que razão me oponho ao aborto e, contudo, defendo a pena de morte. Para mim, é a diferença entre inocência e culpa”. Mas para defender as duas posições consistentemente é, pelo menos, preciso ser muito cuidadoso na defesa da pena de morte. Uma vez que os seres humanos são falíveis, qualquer sistema legal que determine a morte de um grande número de pessoas arriscar-se-á a executar indivíduos inocentes dos crimes pelos quais são acusados. Há vários estudos que fornecem listas de pessoas que foram condenadas à morte, e nalguns casos executadas, e cuja inocência se provou posteriormente. O Centro de Informação sobre a Pena de Morte tem uma lista de cento e duas pessoas erradamente condenadas à morte nos Estados Unidos entre 1973 e 2000. Uma investigação conduzida pelo Chicago Tribune sobre todas as seiscentas e oitenta e duas execuções realizadas nos Estados Unidos entre 1976 e 2000 descobriu que pelo menos cento e vinte pessoas haviam sido executadas enquanto ainda se proclamavam inocentes e em quatro destes casos havia provas a apoiar os protestos de inocência. Quando Gerald Kogan, Juiz do Supremo Tribunal da Florida, se reformou, reconheceu que houve vários casos em que teve “sérias dúvidas” sobre a culpa de pessoas executadas na Florida. Se Kogan teve dúvidas, também nós as devemos ter — ele foi promotor principal da Divisão de Homicídios e Crimes Capitais do Gabinete do Procurador Estadual do Condado de Dade, tornando-se juiz de círculo e depois Presidente do Supremo Tribunal. Mesmo um estudo altamente crítico da lista do Centro de Informação sobre a Pena de Morte, publicado num sítio da Web pró-pena de morte, reconhece a existência de trinta e quatro pessoas condenadas à morte que foram posteriormente libertadas com base em sérios protestos de inocência. Após atingir este valor, o estudo afirma que isto é menos de um por cento de todos os réus condenados à morte no mesmo período. Mas mesmo que cento e noventa e nove pessoas em cada duzentas condenadas à morte sejam culpadas, isso não apaga o mal feito àquela que estava inocente.
A atitude de Bush em relação ao risco de matar o inocente contrasta com a de outro governador republicano que foi em tempos defensor da pena de morte. Em 1999, o Governador George Ryan, do Illinois, começou a preocupar-se com o risco de condenar à morte pessoas inocentes quando uma investigação realizada pelos estudantes de jornalismo da Universidade Northwestern provou que era outro o homem culpado do homicídio pelo qual Anthony Porter, no corredor da morte havia dezasseis anos, estava prestes a ser executado. Ryan nomeou uma comissão que, durante mais de três anos, conduziu o estudo mais completo sobre a pena de morte alguma vez realizado num só estado. Este concluiu que treze prisioneiros condenados estavam inocentes. As conclusões da comissão, disse Ryan mais tarde, mostraram que “O nosso sistema de pena capital está assombrado pelo demónio do erro — erro na atribuição da culpa e erro na determinação de quem, entre os culpados, merece morrer”. A comissão propunha alterações ao sistema penal que foram repetidamente rejeitadas pela legislatura do Illinois. Por fim, mesmo antes de abandonar o cargo, Ryan sentiu que já não conseguia viver com o risco de executar um inocente: comutou todas as sentenças de morte no Illinois para sentenças de prisão.
Por muito cuidadoso que Bush tenha sido, é possível — e a experiência do Illinois sugere que, dado o grande número de execuções no Texas, se possa dizer “provável” — que durante o seu mandato como governador do Texas, tenha sido condenado à morte um inocente. Para justificar correr este risco de executar o inocente, seria preciso estar-se muito seguro das razões da defesa da sentença de morte. Quão seguro pode Bush estar? Este escreveu: “Defendo a pena de morte porque é minha convicção que, se aplicada rápida e justamente, a pena capital desencoraja a violência futura e poupa outras vidas inocentes”. No terceiro debate com o Vice-Presidente Al Gore, quando Jim Lehrer, o moderador, lhe perguntou se acreditava mesmo que a pena de morte “desencoraja o crime”, Bush mostrou-se ainda mais veemente, afirmando: “Acredito, é essa a única razão para a defender. Deixe-me terminar... Não creio que se deva defender a pena de morte como vingança. Não creio que isso seja correcto. Penso que a razão para defender a pena de morte é o facto de ela poupar as vidas de outras pessoas”.
O problema com esta defesa da pena capital é a maior parte das provas apontar no sentido inverso. Se a pena de morte constitui ou não um desincentivo é uma questão factual. Uma vez que não é difícil comparar as taxas de homicídio antes e depois da abolição ou reinstituição da pena de morte, ou em diferentes jurisdições que tenham e não tenham a pena de morte, existem dados relevantes. Por exemplo, após o parecer emitido em 1976 pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos a atestar a constitucionalidade da pena de morte, houve doze estados que decidiram não implementar leis a permiti-la. Estes estados não registaram taxas de homicídios mais elevadas do que os estados que implementaram essas leis — na verdade, dez deles tiveram taxas de homicídio inferiores à média nacional. O Dacota do Sul tem a pena capital, o Dacota do Norte não. A taxa de homicídios é mais elevada no Dacota do Sul do que no Dacota do Norte. O Connecticut tem-na e o Massachusetts não. Uma vez mais, a taxa de homicídios é superior no estado que tem a pena de morte. Estes estados são comparáveis em termos de composição económica e étnica. Além disso, as taxas de homicídios aumentaram e diminuíram em padrões aproximadamente simétricos nos estados que têm e não têm a pena de morte, sugerindo que a existência ou inexistência da pena de morte tem poucos efeitos na incidência dos homicídios.
Em 1992, a Califórnia fez a sua primeira execução em vinte e cinco anos. As taxas de homicídios aumentaram em Los Angeles. Sucedeu algo semelhante em Oklahoma quando este estado reinstaurou a pena de morte. Keith Harries e Derral Cheatwood levaram a investigação ao nível dos condados, comparando duzentos e noventa e três pares de condados adjacentes que diferiam na utilização da pena de morte mas, em tudo o resto, cuidadosamente seleccionados para serem semelhantes em termos de localização, história, economia e habitantes. Não encontraram qualquer efeito dissuasor na pena capital, nas execuções nem no facto de o condado ter população no corredor da morte. Contudo, encontraram taxas superiores de criminalidade nos condados com pena de morte. Por fim, é digno de nota que um estudo do efeito das execuções no Texas entre 1982 e 1997 (incluindo, assim, parte do mandato de Bush como governador) tenha concluído que o número de execuções não estava relacionado com as taxas de homicídio.
É verdadeiro que há alguns estudos que sugerem que a pena de morte tem um efeito dissuasor. Analisando-os mais detidamente, apercebemo-nos geralmente de que contêm erros graves. De qualquer modo, se Bush defende a pena de morte apenas porque “poupa as vidas de outras pessoas”, devia, antes de assinar cento e cinquenta e duas ordens de execução, ter analisado cuidadosamente as provas para ver se realmente poupa vidas. Se o tivesse feito, teria provavelmente concluído que a pena de morte não poupa vidas inocentes. Ou, pelo menos, mesmo que adoptasse a perspectiva mais céptica em relação às abundantes provas desfavoráveis ao efeito dissuasor da pena de morte e abraçasse a visão mais favorável dos poucos estudos que sugerem a existência de tal efeito, ter-se-ia apercebido de que não podia, de modo nenhum, acreditar que a pena de morte poupa efectivamente as vidas de outras pessoas. Considerando isto, e o risco — porventura ténue num caso particular, mas substancial quando a pena de morte é aplicada frequentemente, como o foi no Texas durante o seu mandato como governador — de que um inocente seja executado, qualquer pessoa preocupada com a preservação da vida humana inocente deveria opor-se à pena de morte.
Há ainda outro aspecto no qual a defesa sem reservas da pena de morte por parte de Bush não se enquadra na sua defesa da preservação da vida humana inocente. É provável que um deficiente mental seja incapaz de distinguir o bem do mal e, portanto, seja moralmente inocente, mesmo que tenha praticado um crime. Quando se começou a formar um consenso nacional contra a execução de deficientes mentais, Bush, então governador do Texas, afirmou publicamente o seu desacordo em relação a uma lei que teria proibido a aplicação da pena de morte a criminosos deficientes mentais profundos, com QI inferior a sessenta e cinco. A explicação que forneceu para essa posição foi, simplesmente: “Gosto da lei tal como é agora”. Embora os texanos sejam convictamente a favor da pena de morte, neste aspecto Bush mostrou-se mais extremista do que a maioria dos seus eleitores — uma sondagem realizada em 1998 revelou que setenta e três por cento dos texanos eram contra a execução de deficientes mentais. A lei foi aprovada pelo Senado do Texas, dominado por republicanos, mas, com a oposição de Bush, não passou na Câmara. Em Maio de 1997, Bush não deferiu um apelo de clemência em nome de Terry Washington, deficiente mental de trinta e três anos com as competências de comunicação de uma criança de sete anos. Washington foi executado.
Se Bush defende a pena de morte porque está convencido de que esta poupa vidas ao dissuadir potenciais assassinos, e se os deficientes mentais são moralmente inocentes, ao assinar a ordem de execução de Terry Washington Bush provocou deliberadamente a morte de um homem moralmente inocente como forma de poupar as vidas de outras pessoas. Claro que isto é exactamente o que ele se recusa a defender no caso dos embriões humanos.
Em Junho de 2002, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos legislou que, dado o crescente consenso nacional, a execução de deficientes mentais é “uma punição cruel e invulgar” e, portanto, constitui uma violação da Oitava Emenda da Constituição dos Estados Unidos.
Na defesa da sua decisão de recusar a atribuição de fundos federais à investigação que envolvesse a destruição de embriões humanos, Bush afirmou, conforme vimos: “Preocupa-me uma cultura que desvaloriza a vida e acredito que, enquanto vosso presidente, tenho a importante obrigação de promover e incentivar o respeito pela vida na América e em todo o mundo”. No entanto, desencadeou guerras no Afeganistão e no Iraque que, segundo os cálculos mais prudentes, provocaram a morte de mais de quatro mil civis — pelo menos mil no Afeganistão e três mil no Iraque. Discutiremos mais adiante se estas eram guerras justificáveis. Por agora, admitirei que tanto no Afeganistão como no Iraque havia uma causa justa para a guerra. Será coerente que alguém que defende as opiniões de Bush sobre a sacralidade da vida humana seja o comandante supremo de forças armadas que utilizam bombas e mísseis em áreas onde é certo que morrerão civis?
De modo a avaliar a importância destas guerras — e a forma como são travadas — em termos de perdas de vidas inocentes, precisamos de saber alguns pormenores sobre o que sucedeu. Eis alguns exemplos da guerra que Bush encetou no Afeganistão para destruir as bases da Al Qaeda naquele país e derrubar o regime taliban que lhes dera guarida. A 22 de Outubro de 2001, em Chukar Kariz, uma pequena aldeia não muito distante de Kandahar, as bombas norte-americanas provocaram a morte de pelo menos trinta e seis civis. Um dos sobreviventes, Nasir Ahmad, perdeu vinte familiares. Não havia combatentes naquela zona. Em Kandahar, a 27 de Outubro, uma bomba destinada ao Ministério Taliban para a Promoção da Virtude e a Supressão do Vício atingiu uma casa do outro lado da rua, provocando a morte de três irmãos e dois transeuntes. A 1 de Novembro, os aviões americanos bombardearam Ishaq Suleiman, um grupo de cabanas feitas com lama, porque um camião taliban estivera estacionado numa das ruas. O camião partiu antes do bombardeamento, mas doze aldeãos morreram e catorze ficaram feridos. Na noite de 10 de Novembro, após os aviões norte-americanos terem sido atacados por baterias anti-aéreas, as bombas e os mísseis de cruzeiro destruíram a aldeia de Khakriz, a cerca de um quilómetro do local dos disparos. Morreram cerca de setenta pessoas. Não havia combatentes talibans nem elementos da Al Qaeda na aldeia. Em Bekhere, a 20 de Dezembro, Musa Khan, um jovem pastor, perdeu quatro irmãos e três irmãs quando os bombardeiros alvejaram a sua casa. “Somos apenas pessoas pobres”, disse ele. Morreram mais de quarenta pessoas no ataque à aldeia, que os aldeãos pensam ter sido provocado pelos faróis de um comboio de veículos que se detivera perto da aldeia porque a neve estava a bloquear a estrada. O próprio comboio foi atacado, pois os militares pensaram que transportava chefes talibans, mas os sobreviventes disseram que se tratava de anciãos tribais a caminho da tomada de posse do primeiro-ministro interino apoiado pelos Estados Unidos, Hamid Karzai. Há muitas mais histórias destas, de vidas inocentes que se perderam. Entre as vítimas, contam-se centenas de crianças. Além disso, apesar de se considerar geralmente que a guerra foi breve, as hostilidades prosseguem em muitas zonas do país, reclamando vidas civis. Em Abril de 2003, por exemplo, um ataque aéreo norte-americano que tinha como alvo um grupo de rebeldes provocou, ao invés, a morte de uma família de onze pessoas durante o sono. Em Dezembro de 2003, morreram quinze crianças em dois incidentes distintos, quando os ataques norte-americanos a suspeitos talibans falharam os seus alvos.
Também no Iraque a maior parte das baixas civis foi provocada por bombas e mísseis. Bush disse que “os alvos são cuidadosamente examinados, para proteger os inocentes do perigo”. Sabemos agora que esta declaração foi muitíssimo enganadora. Havia um procedimento de rotina que requeria a aprovação do Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, para ataques aéreos em que se considerasse provável a morte de mais de trinta civis. Foram propostos mais de cinquenta desses ataques e Rumsfeld aprovou-os todos — pondo em risco a vida de pelo menos mil e quinhentos civis. Isto não parece de modo algum um exame cuidadoso de alvos para proteger os inocentes do perigo.
Eis um exemplo do que pode ter sido um desses ataques — ou talvez este nem sequer tenha precisado da aprovação de Rumsfeld, pois calculara-se que não provocaria a morte de mais de vinte e nove civis. Na manhã de 5 de Abril de 2003, foi bombardeado um bairro residencial em Bassorá. Os oficiais britânicos disseram que as bombas se destinavam ao general Ali Hassan al-Majid, conhecido como “Ali Químico” devido à utilização que fizera de armas químicas contra os iraquianos. Quatro meses mais tarde, quando al-Majid foi capturado vivo, percebeu-se que as bombas tinham falhado o alvo desejado. Mas uma delas atingiu a casa da família Hamoodi, uma família respeitada e culta de Bassorá cujos membros não pertenciam ao Partido Baath, no poder. Da numerosa família de catorze pessoas, morreram dez. Um repórter do New York Times que relatou a tragédia viu uma fotografia de Zeena Akram, de doze anos, a sorrir alegremente envergando um vestido cor-de-rosa. Morreu. O mesmo sucedeu aos seus irmãos: Mustafá Akram, de treze anos, leitor ávido, e Zain El Abideen Akram, de dezoito anos, que queria ser médico como o pai. A irmã de dezanove anos, Zainab Akram, entusiasta da moda e das novidades musicais europeias, foi outra das vítimas. Hassan Iyad, de dez anos, morreu porque implorou ao pai que o deixasse ficar na casa do avô. Uma criança mais pequena, Ammar Muhammad, com dois anos incompletos, morreu apesar das tentativas de reanimação do avô, que lhe fez respiração boca a boca. Também morreu um bebé, Noor Elhuda Saad. E o mesmo aconteceu a Wissam Abed, de quarenta anos, que se casaria em Junho, e à Dra. Ihab Abed, de trinta e quatro anos, que se refugiara em casa do pai porque se tinha assustado com os combates que decorriam nas proximidades da sua própria casa. A matriarca da família, Khairiah Mahmoud, mãe de dez filhos e avó de muitos mais, foi a décima vítima.
O Sr. Abed Hamoodi, patriarca da família com setenta e dois anos, sobreviveu e afirmou ao New York Times: “Considero que o que foi feito foi um crime de guerra. Como se sentiria o Presidente Bush, se tivesse de retirar as filhas de um monte de escombros?” A pergunta do Sr. Hamoodi é pertinente. Teria Bush considerado justificada a sua decisão de atacar o Iraque e usar bombardeiros para enfraquecer a resistência iraquiana se tivesse de retirar a filha dos escombros provocados pelas bombas norte-americanas? Ou até se os civis mortos fossem, não sua família próxima, mas concidadãos americanos?
As discussões éticas acerca dos princípios a observar quando existe o perigo de provocar a morte de civis na guerra são geralmente apresentadas em termos da doutrina tradicional da guerra justa. Ao longo das duas últimas décadas, foi repetidamente citado um documento adoptado pela Conferência Episcopal dos Estados Unidos em 1983, intitulado O Desafio da Paz e considerado uma declaração cuidadosa e informada sobre a teoria da guerra justa, cujo desenvolvimento data de há muitos séculos. É ainda amplamente subscrita por pensadores cristãos, mas granjeou adeptos fora dos círculos cristãos estritos. Além de definir quando é justo embarcar numa guerra, a doutrina fornece princípios distintos para o modo como uma guerra pode ser conduzida justamente. Estes princípios são geralmente apresentados do seguinte modo:
A imunidade dos não combatentes — Só os combatentes são alvos legítimos. Os civis não devem ser atacados directamente, devendo tomar-se o maior cuidado possível para não os atingir indirectamente. Quando isto for de todo impossível, deve minimizar-se os danos provocados.
Proporcionalidade — Conquistar um objectivo não deve implicar a inflicção de danos desproporcionais ao valor do próprio objectivo. Em particular, a inflicção de danos desproporcionais aos civis não se pode justificar, mesmo quando os danos não os visam directamente.
Intenção correcta — A intenção com que cada acto é praticado tem de ser justa, por isso a violência indiscriminada é incorrecta, mesmo no decurso de uma guerra.
O primeiro princípio assenta numa distinção entre matar directa e indirectamente. O objectivo de matar civis é sempre incorrecto. Por outro lado, um estado que conduza uma guerra justa pode bombardear alvos militares importantes mesmo que veja como inevitável o lançamento incorrecto de algumas bombas, que atingirão civis. Nesse caso, no entanto, o segundo princípio — proporcionalidade — tem de ser observado. Os danos infligidos aos civis têm de ser significativamente inferiores aos benefícios colhidos em termos de promoção da causa justa pela qual se trava a guerra. Mesmo Jean Bethke Elshtain, professor de ética social e política na Universidade de Chicago e autor de Just War Against Terror, livro que defende a política militar de Bush, escreve: “Segundo o pensamento da guerra justa, é melhor arriscar as vidas dos nossos próprios militares do que as vidas dos não combatentes inimigos”.
Quando instados a responder sobre as baixas civis infligidas aos afegãos e aos iraquianos pelos mísseis e bombas americanos, os que falam em nome da administração de Bush sublinharam que os civis nunca são visados directamente e que se toma o maior cuidado possível para minimizar as baixas civis. Exprimem o seu profundo pesar pelo facto de, apesar de todo o cuidado, morrerem alguns civis, mas afirmam não ser possível evitar completamente estas perdas. O Secretário da Defesa Rumsfeld disse: “A guerra é feia. Provoca miséria, sofrimento e morte, e vemos isso todos os dias. Mas sejamos claros: nenhum país na história humana fez mais para evitar baixas civis do que os Estados Unidos fizeram, neste conflito”. O General Tommy R. Franks, comandante em ambas as guerras, disse mais ou menos a mesma coisa, mas colocando a ênfase nos resultados, e não nas intenções. Referindo-se à guerra no Afeganistão, afirmou: “Não consigo imaginar a existência de um conflito na História em que tenha havido menos danos indirectos e menos consequências não pretendidas”.
As observações de Franks sobre as baixas civis no Afeganistão são fáceis de refutar: no Kosovo, as forças da OTAN lançaram mais bombas do que os Estados Unidos lançaram no Afeganistão e, no entanto, os bombardeamentos no Afeganistão provocaram a morte ao dobro dos civis. Morreram mais pessoas inocentes nas duas guerras que Bush encetou do que nos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Enquanto proporção da população nacional, o bombardeamento norte-americano do Afeganistão provocou três vezes mais mortes de civis do que os ataques terroristas provocaram nos Estados Unidos, e a guerra do Iraque provocou dez vezes mais. Mas a mais importante falsidade na justificação adiantada por Rumsfeld/Franks nada tem a ver com meros números. Diz respeito ao esforço feito ou não feito pelas forças americanas para evitar matar afegãos inocentes. Por exemplo, reagindo ao ataque a Ishaq Suleiman que provocou a morte de doze aldeãos, um porta-voz do Pentágono afirmou que, mesmo nas aldeias, os camiões e o equipamento pertencentes aos talibans eram “alvos militares autorizados”. Claro que os civis não eram alvos directos do ataque, mas que dizer do princípio da proporcionalidade? O exército norte-americano parece não ter ensinado os seus comandantes — nem sequer os seus porta-vozes — a fazer a pergunta crucial: um camião será um alvo militar tão importante que a sua destruição justifique colocar em perigo as vidas de pessoas inocentes? O mesmo porta-voz do Pentágono afirmou, a propósito da destruição de Bekhere, onde foram mortos mais de quarenta civis, que a localidade se tratava de “uma base de lançamento e coordenação das actividades e fuga do Afeganistão da Al Qaeda”. Uma vez mais, a declaração parece partir do princípio de que é correcto bombardear uma aldeia à noite se ali, eventualmente, se encontrarem, entre as famílias inocentes que dormem, alguns elementos da Al Qaeda a tentar fugir do Afeganistão.
Sucedeu o mesmo no Iraque. O bombardeamento de Bassorá foi uma tentativa de matar o General Ali Hassan al-Majid, responsável pelos ataques com gás letal às aldeias curdas e iranianas em 1988. A sua morte seria tão importante que justificasse matar vinte e três pessoas inocentes numa tentativa de o assassinar que não se tinha, de forma alguma, certeza de ser bem-sucedida? A morte de vários civis — pode ser um ou dois, mas também podem ser cinquenta — é sempre previsível quando se bombardeia um bairro residencial. O princípio da proporcionalidade parece ter sido esquecido, nestes casos. E o mesmo sucedeu à ideia de promover e incentivar o respeito pela vida em todo o mundo.
Decorrido apenas um dia ou dois sobre a morte da maior parte da família Hamoodi e muitos dos seus vizinhos, os responsáveis da administração de Bush anunciaram que tinha sido levada a cabo uma tentativa de assassinato de Saddam e dos seus dois filhos. Tratava-se da segunda tentativa deste género — a primeira, o primeiro ataque da guerra, visou um dos palácios de Saddam. A segunda teve como alvo um restaurante, numa zona residencial. Foram lançadas quatro bombas, de uma tonelada cada. Previsivelmente, houve baixas civis — catorze, segundo uma notícia. Não se sabe ainda se Saddam e os filhos se encontravam no local — sabe-se que não morreram, pois Saddam foi posteriormente capturado e os seus filhos mortos. Matar Saddam e os filhos teria tido uma maior importância militar do que matar Ali Hassan al-Majid, mas no dia do bombardeamento — 7 de Abril — as tropas norte-americanas encontravam-se já no centro de Bagdade e era evidente para todos, com a possível excepção do risível e sanguíneo Ministro da Informação Mohammed Saeed al-Sahaf, que os dias do regime de Saddam estavam contados. Seria assim tão importante, naquela altura, que ele vivesse ou morresse? Seria importante ao ponto de justificar a morte de pessoas inocentes?
Dois meses mais tarde, as forças especiais norte-americanas, ainda no encalço de Saddam e seus filhos, atacaram um comboio de veículos que atravessavam a fronteira para a Síria. Morreram cerca de oito pessoas, incluindo civis residentes na zona do ataque. A informação que levara ao desencadeamento do ataque revelou-se falsa. Não havia membros da família Hussein no comboio — eram apenas contrabandistas que tentavam fugir aos impostos sírios. Mas quando se descobriu o erro já era demasiado tarde. As vítimas do ataque morreram. O incidente mostrou, como referiu o jornalista veterano Seymour Hersh, que a unidade especial a quem foi atribuída esta missão não estava “interessada em fazer prisioneiros” e “dispara obviamente a matar”.
Também as tropas norte-americanas terrestres parecem não ter valorizado as vidas de iraquianos inocentes da mesma forma que teriam valorizado as vidas de americanos inocentes. Depois de um bombista suicida ter matado quatro soldados num posto de controlo militar, as forças americanas adoptaram novas “regras de ocupação”. Colocaram um letreiro na estrada a dizer, em árabe: “Estrada bloqueada. Afaste-se senão disparamos”. O Tenente-Coronel Scott E. Rutter, comandante do Segundo Batalhão do Sétimo Regimento de Infantaria, descreveu cruamente as novas regras: “Cinco segundos. Têm cinco segundos para dar meia volta e desaparecer. Se ainda ali estiverem ao fim de cinco segundos, morrem”. Não estava a exagerar. A 31 de Março, os soldados americanos abriram fogo sobre uma carrinha que se dirigia a um posto de controlo militar, matando sete civis, incluindo cinco crianças. Os soldados estavam compreensivelmente nervosos, mas violaram claramente a conduta ética em guerra que Elshtain descreveu — é melhor pôr em risco as vidas dos militares do que as dos civis inimigos. Noutra ocasião, observada por Ellen Knickmeyer, jornalista da Associated Press, um idoso aproximou-se dos Marines americanos, de bengala. Foi mandado parar, mas pareceu desorientado e continuou a avançar. Alvejaram-no. Knickmeyer citou um Marine: “Não deviam andar cá fora — receberam a circular”.
Até que ponto o próprio Bush é responsável pela perda de vidas civis no Afeganistão e no Iraque? Além das decisões específicas de atacar alvos em relação aos quais o risco de mortes e ferimentos em civis não era proporcional à importância do objectivo militar, as mortes de civis também reflectem a ética da decisão mais vasta de Bush de usar “bombardeiros vindos de todas as direcções” contra os talibans, ao invés de visar especificamente a Al Qaeda, e de recorrer aos bombardeamentos para produzir “choque e pavor” e, assim, desmoralizar o exército de Saddam, no Iraque. Deve ter sido óbvio que a utilização do poderio aéreo americano neste tipo de guerra, em vez de se recorrer ao combate terrestre, reduziria provavelmente as baixas americanas e aumentaria drasticamente o número de baixas civis. Lendo o livro Bush em Guerra — a descrição de Bob Woodward da condução de Bush da guerra do Afeganistão — ficamos a saber que, quando Bush ordenou o início dos bombardeamentos, os pilotos tinham de “observar a regra dos menores danos indirectos”, querendo isso dizer que tinham autonomia para seleccionar e visar alvos “desde que eles considerassem que provocariam danos mínimos em civis”. Isto parece indicar que Bush estava preocupado com as vidas humanas inocentes. Mas, evidentemente, a “regra dos menores danos indirectos” não evitou a morte de um número substancial de civis. Então, que fez Bush quando começaram a chegar notícias das baixas civis provocadas pelos bombardeamentos americanos do Afeganistão? As descrições das reuniões e discussões de Bush acerca do progresso da guerra no Afeganistão fornecidas em Bush em Guerra não fazem referência a notícias de baixas civis. O índice do livro não inclui palavras como “civis”, “inocentes” ou “não combatentes”. Há três referências a “Afeganistão, danos indirectos em”. Duas destas dizem respeito a ocasiões distintas em que os aviões norte-americanos bombardearam armazéns da Cruz Vermelha. Ninguém morreu, mas os bens que se destinavam a prestar ajuda humanitária ficaram destruídos. A terceira referência diz respeito aos danos provocados pela queda de mantimentos e outros bens destinados a forças amigas, quando os pára-quedas não se abriram. Assim, nenhuma das referências menciona mortes de civis provocadas pelos ataques norte-americanos. Contudo, nas duas primeiras semanas após o início dos bombardeamentos, os talibans falaram de um elevado número de baixas civis, e os responsáveis da administração de Bush negaram esses dados. Os principais jornais norte-americanos publicaram artigos em que se analisava a verdade da questão. Enquanto chegavam notícias das mortes de inúmeros civis, incluindo o bombardeamento de Chukar Kariz, o General Musharraf, presidente do Paquistão simpatizante com a causa americana, pediu o final rápido dos bombardeamentos. É inconcebível que Bush não tivesse conhecimento destas notícias e do apelo do Presidente Musharraf. Se Bush em Guerra é razoavelmente exaustivo — e o seu autor, um dos principais jornalistas de investigação do país, teve a cooperação de Bush, Powell e outras figuras fundamentais na elaboração da sua descrição pormenorizada — Bush nunca pressionou Rumsfeld, Franks nem George Tenet, director da CIA, para obter informação precisa sobre as baixas civis que os bombardeiros americanos estavam a provocar. Na única ocasião referida no livro de Woodward em que houve uma discussão acerca dos “danos indirectos”, Bush mostrou-se mais preocupado com o aspecto de relações públicas desses danos do que em saber se poderia ser feita mais alguma coisa para os evitar. Diz-se que afirmou: “Bem, também temos de sublinhar o facto de os talibans estarem a matar pessoas e a conduzir a sua própria operação terrorista, por isso vejam se equilibram mais o que se sabe sobre a situação tal como ela é”.
Também em relação ao Iraque há provas desconcertantes de que Bush estava mais preocupado com a imagem do que com a realidade. Numa extensa entrevista concedida a Tom Brokaw, da cadeia NBC, Bush descreve como, quando a guerra com o Iraque estava prestes a começar, Rumsfeld lhe telefonou e disse que tinham recebido informação, de um agente, de que Saddam Hussein e os seus filhos se encontrariam num local específico e pedia autorização para bombardear esse local. Bush disse a Brokaw:
Primeiro, para ser sincero, hesitei porque me preocupava que as primeiras imagens vindas do Iraque fossem de um neto ferido de Saddam […] que as primeiras imagens do ataque americano fossem de mortes de crianças.
A preocupação que Bush aqui exprime não é com o risco de as bombas americanas poderem matar ou ferir crianças — que, mesmo sendo netos de Saddam, estariam inocentes dos crimes daquele. É que as imagens de crianças mortas ou feridas sejam “as primeiras imagens vindas do Iraque”. Tomando isoladamente este comentário, poder-se-ia pensar que Bush estava apenas a falar irreflectidamente; mas a semelhança entre a descrição de Woodward dos seus pensamentos sobre os aspectos de relações públicas das baixas civis no Afeganistão e a observação do presidente acerca das crianças mortas no Iraque indica que a preocupação com as imagens, e não com as mortes reais, é um reflexo exacto do modo de pensar de Bush.
A defesa de Bush da pena de morte, tendo em conta as provas de que não constitui um dissuasor eficaz, acrescida das provas de que o sistema americano jurídico permite que algumas pessoas inocentes sejam executadas, não é compatível com a sua confessada ética de respeito pela vida humana inocente. Ainda mais gritantemente desajustadas desta ética são as actividades militares americanas autorizadas no Afeganistão e no Iraque. A preocupação de Bush pelas vidas de pessoas inocentes que se encontram no corredor da morte, e pelos homens, mulheres e crianças inocentes do Afeganistão e do Iraque fica muito aquém da sua preocupação com a preservação de embriões que poderiam ser utilizados na investigação sobre células estaminais. À luz de uma qualquer hierarquia sensata, trata-se de um conjunto bizarro de prioridades. Os embriões congelados que os cientistas desejam utilizar serão destruídos de qualquer modo, se não forem usados. Não têm futuro. Mas mesmo que não fosse esse o caso, nenhum deles tem, ou teve, qualquer percepção consciente, quaisquer desejos ou esperanças próprios. Os embriões não são mães nem pais, não deixam filhos desgostosos quando são mortos. Ninguém tem fotografias de embriões mortos nem chora a sua perda, como Abed Hamoodi chorou e continuará a chorar enquanto viver, as mortes dos seus filhos e netos.
Alguns moralistas poderão argumentar que é possível condenar as mortes de embriões com fins de investigação e aceitar as mortes de civis na guerra, pois as primeiras são deliberadas e as segundas não. Esta perspectiva, contudo, atribui maior importância à diferença entre mortes “previsíveis” e “deliberadas” do que a distinção possui. Os moralistas que defendem esta distinção dizem geralmente que se pode saber se o resultado da nossa acção foi deliberado caso respondamos que teríamos agido da mesma forma se estivéssemos convencidos de que o resultado seria outro. Assim, por exemplo, Bush podia dizer com verdade que teria bombardeado o restaurante no qual se pensava estar Saddam mesmo que isso não provocasse a morte de quaisquer civis. Mas, de modo semelhante, os cientistas que procuram desenvolver células estaminais a partir de embriões podiam dizer que teriam extraído as células estaminais mesmo que esse procedimento não resultasse na morte do embrião. Em nenhum dos casos as mortes seriam deliberadas, segundo este teste.
No seu discurso sobre a utilização de embriões para obter células estaminais, Bush disse: “Nem o mais nobre dos fins justifica todos os meios”. Portanto, talvez ele pense que o mal que provocamos não pode ser um meio para o fim a que almejamos, mas podemos permitir que esse mesmo mal ocorra como efeito secundário de alcançar um fim justo e suficientemente importante. Nesta perspectiva, Bush poderia afirmar que as mortes dos civis são um efeito secundário da sua tentativa para matar Saddam, e não um meio para esse fim. Mas, uma vez mais, os cientistas poderiam igualmente afirmar que a morte do embrião não é um meio para a extracção das células de que precisam, mas um efeito secundário dessa extracção.
Michael Walzer, talvez o mais influente especialista contemporâneo sobre a ética e a guerra, afirmou que, para que um acto de guerra que atinja civis seja permissível, as forças militares têm de, além de não pretenderem atingir civis, fazer sacrifícios por forma a evitar ou minimizar os danos infligidos. Como vimos, Jean Bethke Elshtain perfilha esta opinião. Enquanto comandante supremo, Bush podia ter ordenado às forças armadas americanas que tomassem muito mais cuidado, evitando as mortes de civis. Por exemplo, podia ter-lhes ordenado que não bombardeassem zonas residenciais, mesmo que se julgasse que Saddam ou outros elementos importantes do seu regime se encontravam ali escondidos. Não emitiu estas ordens. Segundo tudo indica, não considera que a forma como comandou as forças armadas americanas no Afeganistão e no Iraque seja incompatível com a obrigação que reconheceu possuir de “promover e incentivar o respeito pela vida na América e em todo o mundo”. Mas foi-o sem sombra de dúvida.
A questão das intenções é também relevante na tentativa de Bush de retratar a distinção entre os seus próprios actos e os dos terroristas estritamente em termos de preto e branco. Num discurso proferido perante a Assembleia-Geral das Nações Unidas em Novembro de 2001, afirmou: “Neste mundo há boas e más causas e podemos discordar quanto ao traçado exacto da linha divisória. No entanto, não há bons terroristas. Nenhuma aspiração nacional, nenhuma ofensa recordada, pode alguma vez justificar o assassínio deliberado de um inocente”. A palavra crucial é, aqui, “deliberado”, pois Bush sabia que os ataques realizados no Afeganistão e no Iraque matariam inocentes. Na verdade, esses ataques mataram mais pessoas inocentes do que os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001. Isto, como é evidente, não significa que Bush seja uma pessoa má da forma que Ossama bin Laden é mau. As intenções são relevantes para os nossos juízos acerca das pessoas e não era intenção de Bush matar os inocentes. Mas é importante notar que Ossama bin Laden fez apelo exactamente à mesma distinção entre o que pretendemos e o que prevemos que aconteça em resultado das nossas acções, de forma a negar que os ataques de 11 de Setembro de 2001 tenham sido contrários à lei islâmica. Numa entrevista concedida a Tayseer Alouni, correspondente da estação televisiva Al-Jazira, reconheceu que “o Profeta Maomé proibiu a morte de bebés e mulheres”. E prosseguiu, afirmando que os homens que realizaram o ataque a 11 de Setembro “não pretenderam matar bebés; pretenderam destruir o poderio militar mais forte do mundo, atacar o Pentágono que alberga mais de sessenta e quatro mil funcionários, um centro militar que aloja o poder e as informações militares”. Alouni interrogou-o, então, sobre o ataque às Torres Gémeas e Bin Laden respondeu: “As torres são um poderio económico, e não uma escola de crianças. Os que ali se encontravam eram homens que defendiam a maior potência económica do mundo”.
Claro que é afrontoso afirmar que todos os homens presentes no World Trade Center e no Pentágono na manhã de 11 de Setembro eram alvos legítimos meramente porque, por acaso, trabalhavam naqueles edifícios. Mas centremo-nos na afirmação de Bin Laden de que aqueles que perpetraram os ataques não violaram a proibição de matar mulheres e crianças. Era óbvio que os ataques provocariam a morte de centenas de mulheres e pelo menos algumas crianças. (Morreram oito crianças com menos de doze anos nos ataques. Seguiam todas a bordo dos aviões que os terroristas destruíram deliberadamente.) Por conseguinte, Bin Laden deve estar a pressupor que os atacantes não violaram a regra do Profeta porque não tencionaram matar bebés e mulheres, embora previssem que seriam mortas crianças e mulheres em resultado dos seus ataques a centros do poderio militar e económico da América. Por outras palavras, atribui implicitamente importância à distinção entre aquilo que alguém tenciona fazer directamente e aquilo que alguém prevê que acontecerá em resultado dos seus actos, mas não tenciona fazer directamente. Esta distinção permite-lhe afirmar que os atacantes não estavam a agir ao arrepio de uma regra que deveria impossibilitar todo o seguidor devoto de Maomé de perpetrar tais atrocidades. Isto deveria constituir motivo de reflexão para todos aqueles que desejam usar esta mesma distinção para justificar as mortes de inocentes nos bombardeamentos americanos ao Afeganistão e ao Iraque. Se permitimos que Bush justifique actos que ele sabia que matariam inocentes dizendo que não foi sua intenção matar inocentes, então devemos ficar cientes de que outros também poderão usar a mesma distinção entre intenção e consequências indesejadas para conciliar os seus actos sanguinários com uma ética religiosa que, de outra forma, os impossibilitaria. Segundo a sua própria lógica perversa, ao planear os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, Ossama Bin Laden não esteve envolvido no assassínio deliberado de inocentes. Uma distinção que permite a Bin Laden chegar a esta conclusão não constitui orientação útil para destrinçar acções más de acções boas.
Poderíamos justificar a perda de vidas inocentes provocada pelas bombas americanas que, esperava-se, iriam matar os chefes iraquianos, procedendo a um cálculo utilitarista: matar aqueles chefes acabaria por salvar mais vidas. Essa justificação simulada precisa de ser examinada cuidadosamente. Precisamos de perguntar se temos mesmo a certeza de que os factos são o que se afirma serem. O objectivo é digno de ser perseguido? As nossas acções ajudar-nos-ão realmente a alcançá-lo? É suficientemente importante para justificar a perda de vidas civis? Não estaremos a atribuir mais importância à protecção das vidas dos soldados americanos do que à protecção dos civis iraquianos? Este argumento não conduz a distinções a preto e branco entre mau terrorismo e bons bombardeamentos militares de bairros residenciais, mas a tons de cinzento. De qualquer modo, Bush não pode utilizar consistentemente um argumento utilitarista para justificar as mortes de civis que provocou no Afeganistão e no Iraque, pois esse é precisamente o tipo de justificação que leva às mortes de embriões humanos. Não pode ser absolutista numa situação e utilitarista noutra. A conclusão é inevitável: as acções de Bush não se enquadram numa ética coerente de respeito pela vida humana.