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28 de Abril de 2006   Filosofia política

O país mais livre do mundo

Peter Singer
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn

Temos uma responsabilidade colectiva enquanto cidadãos do maior e mais livre país do mundo.
A Charge to Keep, p. 240

O país mais livre?

George W. Bush exprimiu frequentemente uma convicção que muitos americanos partilham: os Estados Unidos são “o país mais livre” do mundo. Mas na qualidade de recém-chegado aos Estados Unidos que viveu a maior parte da sua vida noutras democracias liberais, não me é absolutamente nada óbvio que os Estados Unidos sejam um país mais livre do que a Austrália, o Canadá, o Reino Unido ou a Holanda, para dizer apenas alguns candidatos rivais possíveis. A liberdade significa muitas coisas: há a liberdade de expressão e pensamento, de as pessoas poderem associar-se a quem entenderem, poder-se circular a nosso bel-prazer, não se ser preso sem um julgamento justo, cada cidadão ter voz igual em relação a quem o governa, o governo deixar as pessoas em paz desde que elas não prejudiquem outras, as pessoas terem a oportunidade de realizar as suas potencialidades e prosperarem da forma que escolherem. Estes aspectos da liberdade são de tipo diferente e não há uma escala única que nos permita avaliar a medida em que um país é mais livre do que outro. De qualquer modo, a nossa atenção centra-se no entendimento de Bush do valor da liberdade e da protecção dos direitos individuais, e não em saber se os Estados Unidos são realmente o país mais livre do mundo. Ainda assim, pelo menos desde que Bush se tornou presidente, os dois aspectos estão relacionados. Se Bush não é um verdadeiro defensor da liberdade, então torna-se consideravelmente menos provável que o país a que preside possa reivindicar com legitimidade o estatuto de país mais livre do mundo.

Uma filosofia que acredita nos indivíduos

Quando Bush era candidato à presidência, a sua opinião sobre o estado parecia clara: um dos seus estribilhos mais citados consistia em afirmar que acreditava “no poder de cada indivíduo” e se opunha a um estado grande e distante. Isto, dizia, faz parte daquilo que entende por “conservadorismo compassivo”:

A minha filosofia acredita que os indivíduos tomarão as decisões correctas para as suas famílias e comunidades e esta é muito mais compassiva do que uma filosofia que procura impor soluções a partir de burocracias distantes. Sou conservador porque penso que o estado deverá ser limitado e eficiente, deverá fazer poucas coisas, mas fazê-las bem [...]. Sou conservador porque penso que mais perto das pessoas o estado governa melhor.

Este parágrafo aponta para dois elementos distintos na filosofia de estado de Bush. Em primeiro lugar, coloca-se a ênfase em deixar as decisões tanto quanto possível ao discernimento individual; em segundo lugar, salienta-se a proximidade do estado em relação às pessoas, ao invés da sua distância. No contexto de um sistema federal de governo, o primeiro destes aspectos sugere que, tanto ao nível estadual como federal, o governo deve conceder uma esfera de acção tão ampla quanto possível na qual os indivíduos não sofram interferência estatal. O segundo elemento defende que quando não é possível deixar os indivíduos entregues a si mesmos, o governo federal deve procurar, sempre que tal é exequível, evitar interferir com decisões tomadas pelos governos estaduais. Bush referiu estes dois elementos no seu discurso de tomada de posse como governador do Texas:

“Os texanos conseguem governar o Texas”, afirmei aos meus conterrâneos texanos. “Pedirei ao estado que devolva o poder que nos permitirá estabelecer a nossa própria rota. O meu princípio orientador”, disse-lhes, “será o estado se necessário, e não necessariamente o estado”.

Bush repetiu vezes sem conta os mesmos temas, em vários contextos diferentes, antes de se tornar presidente. No debate presidencial realizado na Universidade de Wake Forest, afirmou: “Não acredito no comando e no controlo a partir de Washington, D. C”.. No debate presidencial seguinte, na Universidade de Washington em St. Louis, disse ser contra um serviço nacional de saúde porque “não quero que o estado tome as decisões pelos consumidores [...]. Confio nas pessoas, não confio no estado. Não quero que o estado tome decisões em nome de toda a gente”. No Larry King Show, em resposta a uma questão sobre a hipotética aprovação da lei do casamento homossexual por parte de um estado, respondeu: “Os estados podem fazer o que quiserem fazer. Não tentem apanhar-me com esta armadilha dos estados”. Sobre o facto de a Carolina do Sul ter a bandeira da Confederação içada no exterior do Capitólio estadual, recusou-se a emitir qualquer opinião, dizendo apenas: “Confio nas pessoas da Carolina do Sul para tomarem a sua decisão sobre a Carolina do Sul”. Instado a responder acerca da utilização terapêutica do haxixe por pessoas doentes a quem a substância ajudava, Bush afirmou: “Penso que cada estado poderá tomar a decisão que entender”. (Um porta-voz do Projecto de Política para o Haxixe elogiou a posição de Bush, considerando-a “corajosa” e “coerente relativamente aos direitos dos estados”.) Por fim, ao promover o seu plano para uma grande redução fiscal e ao criticar a proposta mais limitada de Gore, Bush acusou Gore de apoiar “um estado gigantesco que quer pensar em seu nome”.

A hostilidade relativamente ao estado em nome da promoção da liberdade é uma filosofia caracteristicamente americana, em especial quando faz parte de uma perspectiva conservadora, e não anarquista de esquerda. Nos países da União Europeia, assim como no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, os conservadores mostram-se muitas vezes a favor de um estado paternalista que garanta que as pessoas fazem o que é correcto (na opinião dos conservadores) nas suas vidas privadas. Sobre a Liberdade, a melhor defesa da liberdade individual contra a interferência estatal em língua inglesa, foi escrito pelo utilitarista liberal John Stuart Mill. Em oposição aos conservadores, que queriam usar o poder do estado para abolir a prostituição, a sodomia e o suicídio, Mill defendia que o estado devia restringir a liberdade individual apenas quando necessário para evitar o prejuízo de terceiros. Na sua perspectiva, era incorrecto o estado interferir com o indivíduo “para o bem do indivíduo”, quer esse bem fosse físico ou moral. Durante o século que se seguiu à publicação de Sobre a Liberdade, os conservadores tanto da Grã-Bretanha como dos Estados Unidos ofereceram resistência à visão de Mill, defendendo leis que restringiam a liberdade individual em circunstâncias que não eram de prejuízo para outrem — por exemplo, leis que violavam os quartos de homossexuais deliberados, que tornavam a prostituição um crime e que restringiam o acesso de adultos a filmes, livros e revistas sexualmente explícitos.

Uma vez que Bush foi tão claro na sua identificação do conservadorismo com um estado limitado e com a promoção da responsabilidade individual, poderíamos supor que estas batalhas entre liberais e conservadores estariam terminadas. A administração de Bush, imagina-se, procuraria limitar o poder do estado e promover a máxima liberdade para que os indivíduos pudessem tomar as suas próprias decisões em matérias que não prejudicam terceiros. Mas pouco tempo depois de tomar posse, a convicção de Bush de que “mais perto das pessoas o estado governa melhor” foi rudemente posta à prova — assim como o seu compromisso de acreditar nas pessoas.

Escolher como morrer

Em 1994, no estado do Oregon, uma maioria de eleitores aprovou uma proposta que permitia aos médicos a prescrição, mas não a administração, de uma dose letal de medicamentos a pacientes com doenças em fase terminal. Seria necessária a confirmação de dois médicos de que o doente provavelmente morreria dentro de seis meses, o paciente deveria ser informado e encontrar-se na posse das suas faculdades mentais, e o doente deveria fazer três pedidos, dois verbais e um escrito, de auxílio na morte. Os pedidos deveriam ser feitos com um intervalo de pelo menos quinze dias.

Os opositores da nova lei interpuseram uma acção contra o estado do Oregon, atrasando a respectiva implementação. Três anos mais tarde, conseguiram que o assunto fosse novamente referendado. Mas, apesar de uma campanha bem financiada contra a lei, levada a cabo pelas organizações pró-vida, a maioria das quais reunindo o apoio de católicos romanos e outros cristãos conservadores, os eleitores do Oregon reafirmaram o seu apoio ao suicídio medicamente assistido por uma maioria consideravelmente superior à de 1994. As tentativas posteriores de revogar a lei fracassaram quando o Tribunal de Apelação do Nono Círculo determinou a constitucionalidade da lei e o Supremo Tribunal dos Estados Unidos se recusou a apreciar um recurso. A lei entrou em vigor e tem permitido que aqueles que a ela recorrem ponham fim à sua vida de uma forma que consideram digna. Não há provas de abuso ou “deslizes” para utilizações menos justificadas do suicídio medicamente assistido. O número de pessoas que fazem uso da lei manteve-se reduzido. Segundo os registos estaduais, entre 1997 — quando a lei passou a vigorar — e 2002, foram emitidas cento e noventa e oito prescrições letais e cento e vinte e nove pacientes utilizaram-nas para pôr termo à vida. A esmagadora maioria dos doentes padecia de cancro e a idade média destes é de sessenta e nove anos.

Depois de perderem duas vezes nos referendos e de não conseguirem ver a sua opinião sancionada pelos tribunais, os opositores do Oregon viraram-se para essa “burocracia distante” — o governo federal. A utilização de medicamentos prescritos, incluindo medicamentos receitados por médicos a pacientes que tencionavam pôr termo à vida, é determinada por regulamentações federais. Pediu-se a Janet Reno, Procuradora-Geral do Presidente Clinton, que estabelecesse como ilegal a prescrição médica de substâncias regulamentadas federalmente com a finalidade de permitir aos pacientes pôr fim às suas vidas. Esta disse nada encontrar nas leis federais relativas aos medicamentos prescritos que proibisse o seu uso com tal finalidade e não emitiu o parecer requerido. Por conseguinte, a lei do Oregon continua em vigor.

Poucas decisões podem estar tão intimamente relacionadas com os valores individuais do que o modo como as vidas das pessoas deverão terminar, caso estas se encontrem doentes em fase terminal. Algumas procurarão prolongar a vida recorrendo a todos os meios possíveis, outras chegam a um ponto em que recusam mais tratamentos médicos, e há um terceiro grupo, massacrado pela doença e sem perspectivas razoáveis de recuperação, que quererá tomar a morte nas suas próprias mãos. Este parece ser exactamente o tipo de situação em que uma filosofia que acredita que os indivíduos tomam as decisões correctas é realmente “muito mais compassiva do que uma filosofia que procura impor soluções a partir de burocracias distantes”. Alguém que se oponha a um sistema nacional de saúde por não querer que o estado tome decisões pelos consumidores deveria igualmente apoiar o direito dos consumidores de cuidados de saúde a tomar a decisão crucial relativa ao momento em que pretendem pôr fim às suas vidas. De modo semelhante, um governador que pensa que os texanos podem governar o Texas deveria presumivelmente acreditar que os habitantes do Oregon podem governar o seu estado e condenar as tentativas levadas a cabo pelo governo federal para retirar ao Oregon poderes que este estado ainda detém. Por todas estas razões, e fossem quais fossem as opiniões pessoais de Bush sobre o que poderá ser correcto ou incorrecto no suicídio medicamente assistido, esperar-se-ia que a sua administração seguisse o caminho encetado pela administração de Clinton, impedindo a burocracia federal e distante de interferir em procedimentos com os quais — em duas ocasiões distintas — os eleitores do Oregon já manifestaram concordância, ao mesmo tempo que mantinha a burocracia federal afastada das vidas dos habitantes do Oregon.

Ao contrário desta expectativa muito razoável, a 9 de Novembro de 2001 — altura em que teria certamente questões mais prementes para resolver — o Procurador-Geral de Bush, John Ashcroft, anulou a decisão de Reno e estabeleceu que as substâncias controladas federalmente não podiam ser utilizadas no suicídio assistido medicamente. A decisão de Ashcroft não se baseou em qualquer alteração legal ocorrida desde a decisão de Reno. Ao invés, assentou num duvidoso parecer jurídico emitido pelo Departamento de Justiça que, por sua vez, se baseara na decisão do Supremo Tribunal relativa ao caso Estados Unidos contra Moore, o caso de um médico que, na verdade, agia como traficante de droga, prescrevendo medicamentos que provocavam dependência, sem razões clínicas, e cobrando aos pacientes com base no número de medicamentos prescritos. O direito do médico a receitar medicamentos, deliberou o tribunal, só se aplica “dentro de limites aceites” e quando os medicamentos são prescritos “no decurso de prática ou investigação profissional”. Mas os médicos do Oregon que receitam medicamentos a doentes terminais que querem morrer fazem-no como parte da sua prática profissional, dentro dos limites aceites pela maioria dos eleitores do Oregon. O parecer de Ashcroft constrói um caso contra a lei do Oregon apenas insistindo na ideia de que os “limites aceites” têm de referir-se ao nível nacional, e não ao nível estadual — precisamente o tipo de ideia a que um defensor dos direitos dos estados se deveria opor veementemente.

Outra parte do parecer de Ashcroft lança mão de uma alteração de 1984 à Lei relativa às Substâncias Controladas — a lei que regulamenta os medicamentos controlados — que permite ao Procurador-Geral revogar a licença federal de um médico alegando prática de actos incompatíveis com o “interesse público”. Esta alteração visava igualmente o abuso das leis relativas aos medicamentos e nada tinha a ver com o suicídio assistido medicamente. Além disso, há abundantes precedentes legais para a opinião de que a determinação do interesse público, no que toca aos cuidados de saúde, pertence, adequadamente, à jurisdição dos estados. O Departamento de Justiça pressupõe que as decisões sobre o que é ou não é do “interesse público” não podem ser deixadas aos estados, mas têm de ser tomadas em Washington — e melhor ainda se forem tomadas por um único responsável não eleito (o Procurador-Geral), em vez de o serem pelos eleitores ou pela legislatura. Isto opõe-se directamente à opinião do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que defende especificamente o papel dos estados na área do suicídio assistido medicamente na sua deliberação de 1997 a respeito do caso Washington contra Glucksberg. Em parecer emitido contra o procurador-geral por um grupo de bioeticistas e advogados, afirmava-se que Ashcroft estava a “apropriar-se de uma lei não relacionada de forma a conquistar novos poderes para o governo federal”.

Como encarou o grande defensor da confiança nos indivíduos, um opositor acérrimo das burocracias distantes e um defensor declarado dos direitos dos estados, a decisão do seu procurador-geral? Ari Fleischer, assessor de imprensa do presidente, declarou: “O presidente pensa que devemos valorizar a vida e promover uma cultura de respeito pela santidade da vida em todos os seus estádios”, acrescentando que Bush “se opõe ao suicídio assistido medicamente” e “pensa que compete ao governo federal a regulamentação de substâncias controladas como os narcóticos ou outras drogas perigosas”. A referência a “narcóticos ou outras drogas perigosas” obscurece a questão pois, embora os medicamentos que os pacientes usam para pôr fim à vida possam ser narcóticos, essas mesmas drogas são já usadas para aliviar a dor. Quando prescritas nos termos especificados pela lei do Oregon, estas drogas não provocarão dependência, dificilmente cairão em mãos erradas e não constituirão um perigo para outras pessoas que não aquelas que escolheram tomá-las, na compreensão plena dos seus efeitos. É difícil ver por que razão um presidente que advoga uma filosofia de acreditar que os indivíduos tomarão as decisões correctas não permite que os doentes terminais, mentalmente capazes, decidam que já sofreram o bastante e que desejam morrer.

De qualquer modo, o comentário de Fleischer não responde à questão das relações federais-estaduais. O que interessa não é saber se Bush apoia ou rejeita o que o Oregon decidiu fazer. O que interessa é saber se a matéria deve ser decidida pelos eleitores do Oregon ou por um responsável federal com assento em Washington. Dificilmente um presidente poderá apresentar-se como defensor dos direitos dos estados a gerir os seus próprios assuntos se apenas lhes permitir aprovar leis com as quais concorde pessoalmente. Tal como os defensores genuínos da liberdade de expressão têm de defender os direitos das pessoas a exprimir opiniões que consideram chocantes, também o apoio de Bush aos direitos dos estados deveria levá-lo a defender os estados que aprovam leis com as quais discorda.

Por acaso, penso que as pessoas com doenças terminais devem ter acesso legal à ajuda de um médico para pôr fim à vida, se tal for o seu desejo ponderado. Nelson Lund, professor de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de George Mason, não pensa assim. Mas, como defensor da ideia de federalismo de James Madison, Lund também pensa que Ashcroft está enganado ao tentar contrariar a legislação do Oregon. Escrevendo no Commentary, observou que, por muito maus que pudessem ser os efeitos da legalização do suicídio assistido medicamente, “estes recairão quase exclusivamente sobre os habitantes do Oregon e não ameaçarão os cidadãos de outros estados”. A política do Oregon só alastrará a outros estados se as pessoas desses estados se convencerem de que a experiência do Oregon foi um êxito. Isto, por si só, é razão para a contenção federal. Na verdade, diz Lund, no que diz respeito ao argumento contra a intervenção federal, “o suicídio medicamente assistido é um caso bastante fácil”.

John Kitzhaber, governador do Oregon, chamou à deliberação de Ashcroft “uma bofetada na cara dos habitantes do Oregon” e “uma ingerência federal sem precedentes na capacidade do Oregon para regulamentar a prática médica”. Subsequentemente, Ashcroft viu a sua própria cara esbofeteada quando Robert Jones, Juiz de Comarca dos Estados Unidos, decidiu que o Departamento de Justiça “exorbitara a sua autoridade” ao tentar revogar a lei relativa ao suicídio assistido medicamente do estado do Oregon. Ao conceder aos responsáveis estaduais do Oregon um embargo permanente à deliberação de Ashcroft, Jones escreveu que o governo federal não está autorizado a “agir na qualidade de comissão nacional médica”, regulamentando o modo como os médicos tratam os seus pacientes. Os responsáveis do Departamento de Justiça interpuseram recurso da decisão. Escolher que medicamentos tomar e com quem se casar

Durante a campanha eleitoral de 1999, como vimos, Bush disse que iria permitir que os estados decidissem a utilização terapêutica da marijuana. Também tratou a questão do casamento homossexual dizendo: “Não tentem apanhar-me com esta armadilha dos estados”. A utilização terapêutica da marijuana foi a primeira a pôr as suas palavras à prova. Em 2000, oito estados — Califórnia, Alasca, Arizona, Colorado, Havai, Maine, Oregon e Washington — haviam já decidido a favor da permissão de consumo do haxixe por parte de pessoas doentes, em determinadas circunstâncias. Os eleitores da Califórnia, por exemplo, aprovaram um referendo que permitia o cultivo e utilização de pequenas quantidades de marijuana com fins terapêuticos. Contudo, uma vez empossado, Bush nomeou Asa Hutchinson para presidir à Agência de Combate ao Narcotráfico e Hutchinson rapidamente começou a agir de modo muito diferente do que davam a entender as palavras de Bush. É verdadeiro que, em contraste com o ataque de Ashcroft à lei do Oregon relativa ao suicídio medicamente assistido, Hutchinson agiu nos termos da lei federal, que proíbe o uso de marijuana. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos entendera que a utilização terapêutica de marijuana era abrangida por esta lei. Assim, Hutchinson, e Bush, puderam afirmar que estavam simplesmente a aplicar a lei. Ainda assim, se Bush tivesse sido coerente com as suas declarações frequentes de apoio à liberdade individual — e com a sua explícita declaração pré-eleitoral sobre o assunto —, poderia ter mostrado capacidade de liderança e pedido ao Congresso que alterasse a lei, como lhe pediu que implementasse ou alterasse muitas outras leis, com uma taxa elevada de sucesso. Outra possibilidade, dada a sua preocupação específica com a melhoria da segurança interna e a luta contra o terrorismo, seria ter decidido, muito razoavelmente, que as semanas subsequentes a 11 de Setembro de 2001 não eram a altura adequada para se debruçar sobre a questão dos doentes que usavam marijuana.

Em vez disso, sob a administração de Bush houve rusgas levadas a cabo por dezenas de agentes do governo federal a cooperativas que distribuíam marijuana a pessoas doentes. No estilo clássico do “estado distante”, as rusgas foram realizadas por agentes federais armados que não informaram os agentes policiais estaduais dos seus planos. Depois de uma cooperativa de Santa Cruz que seguira à risca a lei da Califórnia ter sido duas vezes alvo de rusgas e de dois dos seus organizadores terem sido detidos, o procurador-geral da Califórnia, Bill Lockyer, comentou: “Um fornecedor de marijuana com fins terapêuticos como a cooperativa de Santa Cruz representa pouco perigo para a população e não é certamente uma preocupação que necessitasse da intervenção dos escassos recursos federais”. Parece difícil discordar desta declaração.

A questão do casamento entre homossexuais colocou-se depois de o Canadá ter aberto caminho aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo e o Vermont ter reconhecido uma cerimónia, distinta do casamento, para as uniões homossexuais. Em resposta a uma pergunta, numa conferência de imprensa, sobre a sua atitude relativamente à homossexualidade, Bush disse que pensava que “o casamento é entre um homem e uma mulher”, acrescentando que julgava que “devíamos consagrar isso na lei, de uma forma ou de outra” e pôs advogados em campo, procurando a melhor maneira de o fazer. A declaração foi entendida como uma expressão de apoio a uma alteração constitucional que excluísse os casamentos entre elementos do mesmo sexo e Bush nada fez para contrariar esse entendimento. Bill Frist, Chefe Republicano do Senado e seu aliado próximo, apoia já essa alteração. Mas o casamento sempre foi uma questão tratada pelos estados — como o próprio Bush afirmou quando estava em campanha eleitoral para a presidência. Nenhum verdadeiro defensor do estado pequeno procuraria retirar aos estados o direito de decidir se pessoas do mesmo sexo podem ou não casar-se.

O ambiente

O ambiente é uma área em que Bush cumpriu o prometido no que diz respeito à diminuição do papel do estado. Durante a governação de Bush, a administração propôs normas que retiram o controlo federal até vinte por cento das zonas húmidas do país, o que significa que mais promotores imobiliários não necessitarão de licenças federais para desenvolver aí os seus projectos. Embora os responsáveis tenham afirmado que a sua acção constituiu uma resposta à decisão do Supremo Tribunal de limitar o âmbito da Lei da Água Pura, a resposta da administração parece ir bem além daquilo que era requerido na decisão do Supremo Tribunal. De modo semelhante, a administração defende um maior controlo local sobre os quatrocentos e trinta e seis milhões de acres de terrenos públicos que se encontram sob a tutela do Departamento do Interior. Gale Norton, secretária daquele departamento nomeada por Bush, manifestou-se a favor dos governadores dos estados ocidentais que pretendem ver mais mineração e prospecção nas terras federais que se situam na sua região, rejeitando explicitamente as novas normas aprovadas no tempo da administração de Clinton — depois de três anos de consultas públicas — que concediam ao governo federal direito de veto sobre qualquer mina que ameaçasse provocar “danos irreparáveis” no ambiente. Declarou ainda que poria fim às revisões de processos relativos às propriedades ocidentais que visavam determinar o valor destas em termos de vida selvagem — libertando assim, de uma penada, mais de duzentos milhões de acres de terras federais para potenciais projectos, à descrição dos estados. Um outro resultado de dar mais ouvidos aos interesses locais foi permitir o acesso de mais veículos todo-o-terreno a paisagens frágeis. A administração de Bush revogou as regras estabelecidas durante a presidência de Clinton que visavam a interdição de circulação de snowmobiles no Parque Nacional de Yellowstone e tenciona reabrir áreas federais sensíveis no sudeste da Califórnia aos dune buggies. Após um editorial do New York Times ter criticado estas decisões, salientando que as terras públicas são propriedade de todos nós e não apenas dos residentes locais, Norton reagiu reiterando o seu apoio à responsabilização local: “Os tempos exigem que se ultrapassem as abordagens repressivas e punitivas”, declarou num artigo publicado no New York Times no Dia da Terra de 2002.

Durante a administração de Bush, o governo federal desempenhou um papel apagado na implementação da protecção ambiental. No primeiro orçamento apresentado ao Congresso, Bush propôs uma redução de duzentos e vinte e cinco postos de trabalho entre o pessoal de fiscalização da Agência para a Protecção do Ambiente. O Congresso rejeitou a medida mas ainda assim, durante os primeiros dois anos de governação de Bush, a APA perdeu cem postos de trabalho devido a conflitos laborais e não substituição de efectivos. A coima média aplicada pela APA diminuiu de 1,3 milhões de dólares durante a administração de Clinton para seiscentos mil dólares na administração de Bush. O valor médio mensal de coimas aplicadas, com exclusão do programa Superfund de resíduos tóxicos, decresceu de 10,6 milhões de dólares na administração de Clinton para 3,8 milhões de dólares na administração de Bush.

Eric Schaeffer, director do Gabinete Regulador da APA desde 1997, ficou de tal forma chocado com o modo como a administração de Bush boicotava os esforços do seu gabinete no sentido de implementar a Lei relativa ao Ar Puro e outra legislação nacional respeitante ao ambiente que se demitiu, após pouco mais de um ano a tentar trabalhar com esta administração. Entre os modos através dos quais o pessoal nomeado por Bush tentou boicotar a adequada implementação, afirma ele, conta-se a sua atitude de que “a pouca fiscalização ambiental necessária deve ser deixada aos estados”. Esta abordagem, segundo Schaeffer, não é a melhor forma de conseguir uma implementação adequada da legislação ambiental.

Em primeiro lugar, muitos estados, em especial no Sul e no Oeste, mostram relutância em relação à mera ideia de implementar diversas leis ambientais. Os estados são comprovadamente mais condescendentes perante as grandes empresas do que a APA federal. Mesmo querendo implementar a legislação, os estados, com a excepção dos maiores como Nova Iorque e Califórnia, não possuem os recursos necessários a uma fiscalização adequada. (Ironicamente, como refere Schaeffer, quando Christine Whitman, primeira presidente da APA nomeada por Bush, era governadora de Nova Jérsia, eliminou o cargo de procurador do estado para o ambiente e fez profundos cortes no orçamento do estado destinado à fiscalização ambiental.) De qualquer modo, mesmo no tocante àqueles estados que conseguiriam implementar a legislação, é um desperdício obrigar à duplicação de esforços semelhantes em vários gabinetes estaduais. Uma vez que os problemas de implementação e fiscalização tendem a ser nacionais e não específicos de estados particulares — por exemplo, há problemas semelhantes em todo o país, ou pelo menos em muitos estados diferentes, na implementação do controlo sobre as emissões dos motores a gasóleo, as emissões de centrais eléctricas alimentadas a carvão e a poluição causada por grandes centros de engorda animal — é mais eficiente em termos económicos utilizar um gabinete federal para concentrar os milhares de horas de trabalho de pessoal especializado que são frequentemente necessárias para levar um processo legal a bom porto. Dessa forma, uma vitória em tribunal poderá, com relativa facilidade, alargar-se a toda a indústria. A principal área em que Bush cumpriu o prometido relativamente à redução do poder do governo federal foi precisamente aquela em que, para quem pense que as leis de protecção do ambiente têm realmente de ser implementadas, a entrega do poder aos estados não faz muito sentido. Os direitos dos cidadãos americanos

Um aspecto da relação entre as acções do estado e a liberdade individual é o ponto até ao qual os estados protegem o âmbito da liberdade individual de todos os seus cidadãos ou nela interferem. Assim, se o estado conseguir proibir o suicídio assistido medicamente e a utilização terapêutica da marijuana, todos os americanos terão perdido alguma liberdade — quer alguma vez quisessem exercer estas liberdades específicas, quer não. Mas há outras formas de acção do estado que podem ter impacto sobre um mero punhado de pessoas e, ainda assim, enfraquecer as garantias constitucionais básicas que asseguram as liberdades de todo o cidadão.

Thomas Paine, defensor da independência americana e autor de Direitos do Homem, escreveu:

Quem quer assegurar-se da sua própria liberdade tem de proteger até o seu inimigo da opressão, pois se violar este dever estabelecerá um precedente que acabará por atingi-lo a si próprio.

Desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, a dedicação de Bush à liberdade tem sido submetida àquilo que ele poderia chamar “Teste de Thomas Paine”. Tal como o verdadeiro teste à nossa defesa da liberdade de expressão se faz quando somos chamados a proteger os direitos daqueles cujas opiniões detestamos, também, conforme refere Paine, o verdadeiro teste à nossa defesa dos direitos do indivíduo realiza-se quando a pessoa cujos direitos foram violados é alguém que consideramos nosso inimigo.

Bush e Ashcroft consideram que Jose Padilla é um inimigo dos Estados Unidos. Padilla foi detido em Maio de 2002 com base num mandado de captura de “testemunha material” que declarava ter testemunhado os crimes perpetrados pelos terroristas da Al Qaeda a 11 de Setembro de 2001. Nos termos da lei relativa aos mandados de testemunhas materiais, foi-lhe atribuído um advogado. O advogado pôs em causa a detenção do seu constituinte, tendo sido marcada uma audiência para 11 de Junho que visava avaliar o recurso interposto pelo advogado. A 9 de Junho, Bush emitiu uma ordem presidencial designando Padilla como “combatente inimigo”. Ashcroft anunciou num canal televisivo nacional que Padilla era um agente da Al Qaeda e tomara parte numa conspiração para montar e fazer explodir uma chamada “bomba suja” — não uma arma nuclear, mas uma bomba convencional que disseminaria material radioactivo. A sua detenção, segundo Ashcroft, fizera abortar uma “conspiração terrorista em curso”. Padilla foi transferido, ficando sob custódia militar e sendo-lhe negado o direito a visitas por parte do seu advogado, com base na alegação de que os tribunais civis já não tinham jurisdição sobre si. Quando as organizações de defesa das liberdades civis puseram isto em causa, a administração de Bush afirmou o seu direito legal e constitucional de deter indefinidamente em instalações militares qualquer pessoa designada como combatente inimigo, sem acesso a advogados nem qualquer reavaliação judicial pertinente, até a ameaça representada pela Al Qaeda ser eliminada.

A União Americana das Liberdades Civis (ACLU) interpôs recurso da decisão do estado de manter Padilla preso sem acusação formada. No documento entregue, a ACLU afirmava que a detenção de Padilla violava o direito ao devido processo legal consagrado na Quinta Emenda da Constituição. Aquela emenda declara que “nenhuma pessoa será […] privada de vida, liberdade ou bens sem um processo legal adequado”. A ACLU referia a existência de ampla jurisprudência, remontando a uma decisão de 1866 do Supremo Tribunal num caso da Guerra Civil conhecido como Milligan, relativa ao facto de a Constituição dos Estados Unidos se aplicar “igualmente em tempo de guerra como de paz, e abrange com o escudo da sua protecção todas as classes de homens, em todos os momentos e em todas as circunstâncias”. O documento defendia ainda a inexistência de qualquer autoridade legislativa que permitisse ao executivo deter cidadãos americanos, e que, pelo contrário, o Congresso proibira especificamente tal detenção. Além disso, no Patriot Act dos EUA, aprovado depois do 11 de Setembro fatídico, o Congresso apenas autorizou a detenção de estrangeiros — e não de cidadãos dos Estados Unidos — suspeitos de ligações terroristas durante sete dias, após os quais o detido tem de ter uma acusação formada. A ideia de que o Congresso, ao autorizar o presidente a usar de força militar sobre a Al Qaeda, lhe tinha permitido deter indefinidamente cidadãos norte-americanos só faria sentido partindo do princípio implausível de que o Congresso tencionara proteger melhor os direitos dos cidadãos estrangeiros do que os dos cidadãos norte-americanos.

Em Dezembro de 2002, o Juiz Michael Mukasey confirmou o direito do estado a manter sob custódia combatentes inimigos, cidadãos norte-americanos ou outros, detidos em solo norte-americano ou não, durante o período das hostilidades, sem formular acusação. Mas o juiz ordenou a revelação por parte do estado de “algumas provas” que fundamentassem a conclusão presidencial acerca do envolvimento de Padilla numa missão contra os Estados Unidos “a mando de um inimigo com o qual os Estados Unidos estejam em guerra”. O juiz também determinou que Padilla pudesse consultar um advogado com a finalidade de contestar as provas apresentadas pelo estado. Um porta-voz da ACLU afirmou que a decisão representava “uma rejeição clara da reivindicação por parte da administração de Bush de um poder quase ilimitado para deter unilateralmente um cidadão americano e mantê-lo indefinidamente nessa situação, sem contactos com o exterior”. Laurence Tribe, professor de direito constitucional na Universidade de Harvard, afirmou que a decisão “envia ao poder executivo um sinal que deveria desencorajar o tipo de utilização irreflectida ou abusiva do poder de detenção”.

Tal como Padilla, Iasser Esam Hamdi é cidadão americano. Hamdi nasceu no Louisiana, filho de pai saudita que trabalhava para a Exxon, mas foi para a Arábia Saudita com os pais quando tinha apenas três anos. Diversamente de Padilla, foi detido no Afeganistão, com uma unidade talibã, e não em solo americano, de modo que a sua designação como “combatente inimigo” é menos controversa. Ainda assim, o facto de ser prisioneiro há mais de dois anos na altura em que se escreve o presente livro, juntamente com a negação por parte do estado do direito de consultar um advogado ou ser alvo de qualquer reavaliação judicial, coloca novamente questões acerca dos limites dos poderes executivos. O Juiz Federal Robert Doumar, que avaliou um recurso interposto em nome de Hamdi com a finalidade de declarar a sua detenção ilegal, disse que tentara e não conseguira descobrir um caso de qualquer espécie, em qualquer tribunal, no qual um advogado fosse proibido de se avistar com o seu consulente. A este respeito, o juiz declarou: “Este caso estabelece o mais curioso precedente […] na jurisprudência anglo-saxónica desde os dias da Star Chamber”. (A Star Chamber foi um tribunal criado por Henrique VIII para julgar secretamente os seus inimigos. Foi abolido em 1641.) Doumar, nomeado por Reagan e delegado em três convenções republicanas, atribuiu um advogado a Hamdi, mas o Departamento de Justiça interpôs recurso e, em Janeiro de 2003, o Tribunal Federal de Apelação invalidou a decisão de Doumar, afirmando que um presidente “em tempo de guerra” pode manter indefinidamente prisioneiro um cidadão dos Estados Unidos detido como combatente inimigo no campo de batalha e negar-lhe o acesso a um advogado. Em Dezembro de 2003, o Pentágono concordou subitamente em deixar Hamdi consultar um advogado. No entanto, o Departamento de Justiça continuou a defender, numa declaração enviada ao Supremo Tribunal, que o presidente detém o poder de manter um cidadão norte-americano indefinidamente sob custódia, sem acesso a advogado.

Para o nosso entendimento da filosofia política de Bush, é irrelevante saber se há verdade ou não nas afirmações oficiais segundo as quais Padilla conspirou com a Al Qaeda para realizar ataques terroristas e é um terrorista treinado. A importância do caso reside na tentativa por parte da administração de Bush de privar cidadãos americanos da sua liberdade, indefinidamente e sem autoridade legislativa ou qualquer possibilidade de uma reavaliação judicial. O direito à liberdade é um dos mais básicos direitos humanos. Para qualquer pessoa que acredite que os direitos individuais e o estado de direito são elementos essenciais numa sociedade livre, privar um cidadão da sua liberdade através de um decreto executivo deveria constituir um anátema. O facto de Bush se dispor a fazê-lo, e não apenas uma vez, irreflectidamente, mas permitir que a sua administração se apresente em tribunal, em dois casos distintos, a defender a legitimidade do acto, é incompatível com uma ética comprometida com o respeito pelos direitos humanos.

Além dos casos dos “combatentes inimigos”, a administração de Bush manteve presas várias pessoas durante meses ao abrigo de uma lei federal relativamente obscura que permite a detenção de “testemunhas materiais” de um crime federal de forma a assegurar a disponibilidade do seu testemunho, perante um júri de acusação ou alhures. Estas “testemunhas materiais” têm advogados nomeados pelo tribunal. Ainda assim, durante o mandato de Bush, o Departamento de Justiça fez uso desta disposição de modo mais agressivo do que durante qualquer governo anterior. Das quarenta e quatro pessoas que o Washington Post declarou terem sido detidas na categoria de testemunhas materiais, vinte nunca prestaram declarações perante um júri de acusação. Algumas permaneceram detidas durante longos períodos de tempo. O Departamento de Justiça manteve em segredo tanto quanto lhe foi possível os casos de “testemunhas materiais”, recusando-se a dizer quantas pessoas haviam sido detidas, o seu nome e o tempo de detenção. Quando um juiz federal o intimou a divulgar esta informação, o departamento recorreu dessa decisão. Por fim, em resposta às preocupações manifestadas pelo Congresso, emitiu uma declaração revelando que o número de testemunhas materiais detidas desde Janeiro devido a investigações de actos terroristas era “inferior a cinquenta”. Destas, cerca de metade haviam sido detidas trinta dias ou menos, mas dez por cento tinham ficado presas mais de noventa dias.

Os direitos dos não cidadãos

Bush afirmou que “o bem mais exportado [da América] é a liberdade e temos a obrigação moral de a defender em todo o mundo”. Mas que tipo de liberdade tem Bush defendido desde 11 de Setembro? Dois meses após esta data, Bush anunciou que faria uso dos tribunais militares, como melhor entendesse, para julgar não cidadãos que ele declarasse serem suspeitos de terrorismo. Conforme planeado, estes tribunais podiam ser secretos. Seriam criados de acordo com regras especiais delineadas pelo secretário da defesa. Não se aplicavam os procedimentos habituais e o crime não tinha de ficar provado sem sombra de dúvida. Bastaria uma maioria de dois terços para declarar o réu culpado e poder-se-ia aplicar a pena de morte. O único recurso possível seria ao secretário de defesa ou ao presidente. Poderiam ser julgados desta forma mesmo residentes de há longa data nos Estados Unidos. Este anúncio suscitou enorme controvérsia. William Safire, articulista conservador, afirmou que a ordem militar de Bush criava “tribunais ilegais destinados a pessoas que ele designava antes de “julgamento” como terroristas” e “constitui um recuo relativamente a todos os progressos feitos na justiça militar, devidos a três guerras, nos últimos cinquenta anos”. Um proeminente juiz espanhol advertiu que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos proibiria os países europeus de extraditar quaisquer suspeitos destinados a serem julgados perante tais tribunais.

Inicialmente, Bush defendeu os seus tribunais dizendo que “os cidadãos não norte-americanos que planeiam e/ou praticam assassínios em massa são mais do que suspeitos de crimes. São combatentes ilegais que procuram destruir o nosso país e o nosso modo de vida”. Mas toda a questão reside em saber se aqueles de quem o presidente suspeita de planear e praticar assassínios em massa terão realmente planeado e praticado tais crimes. Se pudéssemos tomar a declaração do poder executivo como prova de culpa, não precisaríamos sequer de um poder judicial independente. Bush, na sua declaração, parece esquecer que um dos fundamentos das liberdades básicas é o pressuposto de que uma pessoa é inocente até prova em contrário.

No final, em resultado da desaprovação generalizada tanto de conservadores como de liberais, o plano do tribunal foi modificado e, na altura em que escrevo, ainda ninguém foi ali julgado. No entanto, o facto de Bush ter feito tal declaração constitui um indicador, ou de falta de entendimento daquilo que exigem os direitos humanos básicos, ou de falta de vontade de proteger os direitos humanos dos não cidadãos. Como comentou Ronald Dworkin, americano que foi responsável pela cadeira de jurisprudência na Universidade de Oxford: “Se qualquer americano fosse julgado por um governo estrangeiro desta forma, mesmo por um crime menor, quanto mais por um crime capital, acusaríamos esse governo de ser criminoso”.

Embora os tribunais militares pareçam estar temporariamente suspensos, na altura em que escrevo os Estados Unidos mantêm detidos mais de seiscentos combatentes inimigos não cidadãos, capturados no Afeganistão. Encontram-se desde Janeiro de 2002 presos na Baía de Guantánamo, base militar norte-americana arrendada a longo prazo ao governo cubano. A administração de Bush considera que, enquanto combatentes inimigos, não têm direito a advogado nem a comunicar com a família, e a decisão de os encarcerar fora dos Estados Unidos visou mantê-los afastados da jurisdição dos tribunais norte-americanos. Não foram acusados de qualquer crime nem tiveram acesso a qualquer tipo de tribunal imparcial. Tanto a então Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson, como o Comité Internacional da Cruz Vermelha afirmaram que estes detidos deveriam ser declarados prisioneiros de guerra, devendo ser-lhes concedidos os direitos a eles consagrados na Convenção de Genebra. A administração de Bush nega que sejam prisioneiros de guerra. Mas a Convenção de Genebra também prevê que, quando o estatuto legal dos prisioneiros oferece dúvidas, este seja determinado por um tribunal competente. Também isto os Estados Unidos se recusam a fazer.

Assim, os detidos encontram-se, nos termos utilizados pelo Tribunal Britânico de Apelação, num “buraco negro legal”. Esta expressão foi utilizada por Lorde Phillips of Worth Matravers num caso apresentado pela mãe de Feroz Abassi, súbdito britânico detido na Baía de Guantánamo, que tentava obter uma ordem do tribunal para que o secretário britânico dos negócios estrangeiros interviesse junto do governo norte-americano. Os três juízes seniores britânicos que apreciaram o caso concordaram que a detenção constituía uma “aparente infracção de princípios fundamentais reconhecidos tanto pela jurisdição britânica como norte-americana assim como pelo direito internacional”. Era censurável, afirmou o tribunal, que Abassi fosse submetido a uma detenção indefinida em território sobre o qual os Estados Unidos tinham controlo exclusivo, sem qualquer oportunidade de pôr em causa a legitimidade da sua detenção perante um tribunal ou outro órgão competente. Embora o tribunal concluísse que não tinha poder para ordenar a intervenção do secretário dos negócios estrangeiros, não deixava dúvidas de que considerava a conduta da administração de Bush incompatível com o estado de direito. O procurador-geral de Bush, Theodore B. Olson, declarou nada haver a discutir sobre os detidos nos tribunais norte-americanos. Com efeito, a administração estava a tentar erigir uma vedação legal em torno dos detidos que manteria os tribunais no exterior, e os detidos no interior, durante o tempo que lhe aprouvesse. Mas essa estratégia sofreu um duro revés em Novembro de 2003, quando o Supremo Tribunal decidiu que havia matéria a considerar relativamente aos detidos na Baía de Guantánamo e concordou em avaliar um recurso interposto por alguns dos prisioneiros que ali se encontravam. Na altura em que escrevo, o Tribunal ainda não emitiu o seu veredicto.

Além dos detidos na Baía de Guantánamo, a administração de Bush também tratou mal centenas de imigrantes ilegais. Em Junho de 2003, Glenn Fine, Inspector-Geral do Departamento de Justiça, deu conhecimento de setecentos e sessenta e dois casos envolvendo imigrantes ilegais detidos após 11 de Setembro de 2001. Concluiu que poucos tinham ligações claras ao terrorismo e, na altura da redacção do seu relatório, haveria menos de vinte e quatro suspeitos ainda detidos, mas muitos haviam sido libertados só depois de meses passados em condições penosas, muitas vezes sem acesso a um advogado. Muitos deles foram detidos em operações policiais rodoviárias ou com base em denúncias anónimas. Segundo tudo leva a crer, os motivos das suspeitas podiam não ser mais do que ser natural do Médio Oriente e o facto de terem registado um veículo motorizado no mesmo gabinete estatal que um dos terroristas aéreos. Alguns dos detidos foram submetidos a ofensas físicas e verbais. Embora o Departamento de Justiça tenha dito que alteraria alguns procedimentos tendo em conta o relatório de Fine, Ashcroft e os seus assistentes também afirmaram que “não pediam desculpa” por fazerem tudo ao seu alcance para evitar outro ataque contra a América.

A questão da tortura

Embora manter pessoas presas durante meses ou anos quando estas não foram acusadas formalmente de qualquer crime seja uma clara violação dos direitos humanos, o tratamento de alegados elementos da Al Qaeda detidos para interrogatório pela CIA no Afeganistão e em Diego Garcia, base norte-americana numa ilha do Oceano Índico, é ainda mais perturbante. Nem jornalistas, nem advogados militares, nem a Cruz Vermelha tiveram acesso a estes prisioneiros. Segundo uma notícia do Washington Post baseada em entrevistas concedidas por responsáveis norte-americanos da segurança nacional, estes prisioneiros são sujeitos a técnicas de “pressão e coacção” que incluem espancamentos iniciais para “amolecer” os detidos, seguidos de privação de sono através de luzes brilhantes e ruídos altos, serem mantidos de pé ou ajoelhados durante horas com óculos de lentes pintadas ou capuchos negros, serem amarrados em posições dolorosas e, se tiverem sido feridos antes da captura, serem privados selectivamente de analgésicos. Nalguns casos, a CIA entregou prisioneiros aos serviços secretos de países reputados por violarem os direitos humanos dos seus inimigos. The Washington Post cita um responsável anónimo da segurança nacional que esteve envolvido nestas transferências: “Não lhes batemos como o [palavrão]. Mandamo-los para outros países, para que eles lhes batam como o [palavrão]”. Oficialmente, pouco se tem dito sobre os métodos usados nos interrogatórios mas, numa audiência conjunta das comissões da Câmara e do Senado para os serviços secretos, o director do Centro de Contraterrorismo da CIA afirmou: “Houve um antes 11 de Setembro e um pós 11 de Setembro. Depois de 11 de Setembro tiraram-se as luvas”.

O Departamento de Estado norte-americano, no seu relatório anual sobre direitos humanos, acusa outros países de negar aos prisioneiros o acesso a advogados e de “Tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanas ou degradantes”. Sob este título, menciona como técnicas de tortura a privação do sono, espancamentos e a manutenção dos prisioneiros amarrados em posições de contorção. Por exemplo, no relatório relativo a 2002, publicado pelo Secretário de Estado Colin Powell em Março de 2003, a Jordânia é acusada de violações dos direitos humanos nos seguintes termos:

As forças policiais e de segurança recorrem por vezes a ofensas físicas e verbais durante a detenção e os interrogatórios, utilizando também, alegadamente, a tortura. As alegações de tortura são difíceis de verificar porque os responsáveis policiais e da segurança recusam frequentemente aos prisioneiros acesso oportuno a advogados, apesar das disposições legais que requerem esse acesso. Os métodos mais frequentemente citados de tortura incluem privação do sono, pancadas nas solas dos pés, suspensão prolongada com cordas em posições de contorção e isolamento prolongado dos restantes presos.

Sobre o Azerbeijão, o relatório declara:

Há notícia generalizada e credível de que as autoridades suspenderam o tratamento médico a detidos seleccionados, especialmente presos políticos […]. As autoridades limitam drasticamente as oportunidades da prática de exercício e as visitas de advogados e familiares de prisioneiros detidos em prisões de segurança máxima. Alguns presos são mantidos nas “solitárias”, celas muitas vezes situadas em caves e onde se nega comida e sono aos prisioneiros, de forma a conseguir confissões sem sinais físicos de violência.

Segundo tudo indica, a administração de Bush está agora a fazer exactamente o que o seu próprio Departamento de Estado acusa os outros de fazerem. Durante a administração de Bush, nega-se aos prisioneiros acesso a advogados — na verdade, a este respeito a actual prática norte-americana é na verdade pior do que as práticas do Azerbeijão, pois o acesso a advogados e familiares dos prisioneiros detidos na Baía de Guantánamo não é “drasticamente limitado”: é nulo. Tal como a Jordânia e o Azerbeijão, a administração de Bush utiliza celas de isolamento. Parece que, tal como na Jordânia, os guardas amarram os prisioneiros em posições dolorosas, de contorção, e, tal como no Azerbeijão, negam uma forma de tratamento médico — alívio das dores — a prisioneiros dos quais pretendem obter informações.

Num dos casos, a administração de Bush transferiu um suspeito da Al Qaeda para a Síria, que tem sido, segundo a própria lista dos Estados Unidos, um dos piores violadores dos direitos humanos. O suspeito possuía dupla nacionalidade — alemã e síria — e o governo alemão protestou veementemente, mas em vão, pela sua extradição para a Síria. Os responsáveis afirmam que a CIA não tem conhecimento de qualquer destes suspeitos ter sido torturado pelos serviços secretos dos países aos quais foram entregues mas, como afirmou um responsável, “Se não estamos lá, como poderemos saber?”. Apesar de durante a administração de Clinton os Estados Unidos terem cortado os contactos com os serviços secretos gerais egípcios, e o seu financiamento, devido à tortura que estes infligiam aos prisioneiros, um responsável da administração de Bush declarou: “Podem ter a certeza que não andamos a gastar muito tempo com isso, agora”.

Depois de The Washington Post ter publicado o seu relatório, a organização Human Rights Watch, com sede em Nova Iorque, exigiu a Bush que deixasse claro que a política norte-americana não pactua com a tortura, investigando as técnicas de “pressão e coacção” alegadamente utilizadas pela CIA nalguns prisioneiros e tomando medidas imediatas para pôr fim a qualquer uso de tais técnicas, processando todos os envolvidos na sua utilização. A organização insistiu ainda para que os Estados Unidos não se tornassem cúmplices da prática de tortura entregando suspeitos a outros países que utilizavam tais métodos. Um porta-voz do governo norte-americano respondeu que os combatentes estavam detidos em condições “humanas, compatíveis com a terceira Convenção de Genebra”. Mas Bush não instaurou qualquer inquérito e os Estados Unidos continuam a impedir o acesso de observadores externos e advogados a praticamente todos os detidos.

Reprovação no teste de Thomas Paine

O anúncio mais flagrante de uma intenção de ignorar princípios fundamentais do estado de direito foi feito pelo próprio Bush no seu discurso do Estado da União de 2003. Naquela ocasião solene, disse ao Congresso e ao mundo que a sua administração tinha “preso ou afastado de forma qualquer muitos comandantes fulcrais da Al Qaeda”. Em seguida, afirmou:

Contas feitas, mais de três mil suspeitos de terrorismo foram presos, em muitos países. Muitos outros tiveram um destino diverso. Digamos isto de outra forma: já não constituem qualquer problema para os Estados Unidos e para os nossos amigos e aliados.

O presidente dos Estados Unidos referia-se ao facto de os agentes da sua administração estarem a matar pessoas sem qualquer processo judicial. Parecia orgulhar-se disso. O Presidente Gerald Ford abolira em 1976 os assassínios secretos perpetrados pela CIA, depois de terem vindo a lume casos de tentativas mal concretizadas. Agora, conforme os meios de comunicação tinham noticiado um mês antes, Bush abria caminho ao reinício dos assassínios extrajudiciais perpetrados pela CIA. Num exemplo das suas acções, seis suspeitos da Al Qaeda que viajavam de automóvel no Iémen foram mortos por um míssil lançado de um avião não pilotado. Um deles era um cidadão norte-americano.

As privações de liberdade e do direito de julgamento que Bush autorizou e defendeu colocam a segurança nacional acima de direitos tão básicos que são geralmente tidos como certos numa sociedade governada por um estado de direito. A defesa mais plausível destas privações faz-se em termos estritamente utilitaristas. Um utilitarista poderia afirmar que os custos para umas poucas pessoas inocentes que poderiam ser mortas ou feitas prisioneiras devido a informações secretas erróneas são contrabalançados pelos custos da perda de vidas de muito mais pessoas inocentes se, devido a uma insistência demasiado zelosa nas liberdades civis, um terrorista ficasse em liberdade e conseguisse fazer explodir uma “bomba suja” em Manhattan ou disseminar o vírus da varíola na América. No caso das pessoas detidas sem um processo judicial adequado, Ronald Dworkin afirmou que, se as violações do direito à liberdade vão ser defendidas desta forma, teremos de reconhecer que alguns dos detidos poderão estar a ser tratados injustamente e fazer tudo ao nosso alcance para minimizar o seu desconforto e sofrimento. Também devemos insistir em que a privação injusta de liberdade seja infligida a tão poucas pessoas quanto possível — e, para isto, precisaríamos ainda assim de uma qualquer forma de processo adequado, de modo a assegurarmo-nos de que o governo não se torna arbitrário, descuidado ou arrogante no seu uso do poder. Como afirmou Dworkin, “Quando tratamos as pessoas injustamente para nossa própria segurança, ficamos a dever-lhes tanta consideração e comodidade individual quanta a que for compatível com essa segurança”.

Se compararmos a declaração de Dworkin acerca daquilo que devemos a quem privamos de liberdade sem prova da sua culpa com as condições vividas no campo de detenção da Baía de Guantánamo, veremos que o contraste é extraordinário. Durante os primeiros meses, os prisioneiros — muitos dos quais, depois de detidos durante mais de um ano, considerados inocentes e libertados — foram mantidos em celas pequenas, de rede de arame, com cerca de dois metros por dois metros e meio. As celas tinham um tecto de madeira, mas os lados eram abertos ao sol abrasador da tarde, assim como ao vento e à chuva. Naquele espaço diminuto, os prisioneiros dormiam no chão, com apenas dois cobertores e um tapete de orações. Também faziam as necessidades das suas celas. Só podiam sair das celas uma vez por semana, para tomar um duche de um minuto. Depois, após meses de queixas e uma greve da fome, permitiu-se aos prisioneiros que prolongassem o duche durante cinco minutos e se exercitassem uma vez por semana durante dez minutos, embora o exercício se fizesse noutra jaula com cerca de nove metros de comprimento. Na altura em que escrevo (Dezembro de 2003), a maior parte dos prisioneiros continua a poder apenas sair das celas durante dois períodos de quinze minutos por semana, para tomar duche e exercitar-se. (As celas foram melhoradas e equipadas com camas e água corrente.) Alguns prisioneiros viram-se encarcerados com prisioneiros de grupos étnicos diferentes, com os quais não partilhavam a língua e, assim, ficaram durante meses sem poder falar com ninguém. A incerteza quanto ao momento em que seriam libertados — e se o seriam — era difícil de suportar. Nos primeiros dezoito meses do campo de detenção registaram-se vinte e oito tentativas de suicídio.

Dworkin tem seguramente razão ao afirmar que, se violamos os direitos das pessoas à sua liberdade, deveremos fazê-lo de forma a minimizarmos o mal que lhes provocamos. A administração de Bush não fez isso em relação aos prisioneiros detidos na Baía de Guantánamo. Mas o princípio de Dworkin não pode aplicar-se à tortura e assassínio — não há forma de minimizar o mal provocado à pessoa torturada ou morta (que não foi considerada culpada por qualquer tribunal e poderia estar inocente). Em circunstâncias extremas, os utilitaristas poderiam estar dispostos a defender a tortura e o assassínio da mesma forma que poderiam defender a violação do direito a um processo judicial adequado, na esperança de evitar uma tragédia que poderia provocar a morte e a mutilação de milhões de pessoas. Mas, considerando a propensão dos seres humanos para abusar dos outros no exercício do poder, os utilitaristas poderiam ainda afirmar que a tortura e o assassínio deveriam ser excluídos com base em que a probabilidade ínfima de evitar uma tragédia de grandes dimensões através do uso destes métodos prevaleceria sobre a muito maior probabilidade de estes serem mal utilizados. Os interrogadores podem começar a gostar do exercício do poder brutal sobre um inimigo odiado (que, claro está, no caso dos detidos pelas forças norte-americanas depois de 11 de Setembro de 2001 e na altura em que escrevo, não foram estabelecidos como culpados). Os responsáveis que detêm o poder de ordenar assassínios secretos exercem um poder terrível de vida e de morte, não controlado pelas extensas salvaguardas judiciais que são requeridas nos procedimentos de extradição e julgamentos penais. Podem tornar-se cruéis na forma como exercem esse poder ou, com a melhor das intenções, podem ser enganados por agentes que façam jogo duplo (como sucedeu no Afeganistão, onde senhores da guerra em conflito aparentemente conseguiram desencadear ataques aéreos norte-americanos sobre os seus inimigos, dizendo aos americanos que aqueles eram talibãs). Portanto, mesmo os utilitaristas são geralmente veementes defensores do estado de direito, uma vez que as consequências a longo prazo deste apoio são quase sempre melhores do que as consequências de o infringir.

A liberdade e a filosofia de Bush

Seja o que for que Bush disse enquanto governador do Texas, ou enquanto candidato à presidência, o seu passado como presidente sugere que nem a promoção de direitos e liberdades individuais, nem a limitação dos poderes do governo federal, constituem para si uma prioridade. Quando os indivíduos tomam decisões que ele considera incorrectas — sejam doentes terminais que manifestam desejo de pôr fim às suas vidas sejam pessoas que consideram que fumar marijuana as ajuda a lidar com a doença — tenta impedi-las de agir segundo as suas decisões. Quando um estado aprova leis que concedem liberdades aos seus cidadãos que Bush crê que eles não deviam ter, tenta usar o poder do governo federal para revogar ou contrariar essas leis. A principal área na qual se mostrou disposto a apoiar os direitos dos estados e a tomada local de decisões foi o ambiente — ou seja, a área em que se mostra mais defensor das opiniões dos governos estaduais e dos interesses locais do que das políticas que as agências federais têm posto em prática.

A única filosofia coerente com estas decisões é a que coloca os valores específicos que Bush está a tentar proteger acima dos valores da liberdade individual e dos direitos dos estados. Impedir o suicídio assistido por um médico tem de ser mais importante para Bush do que o valor combinado de confiar nos indivíduos para fazerem as suas próprias escolhas e de permitir que os habitantes do Oregon tomem as decisões relativas ao Oregon. Algo semelhante se tem igualmente de aplicar ao valor que Bush atribui à interrupção da utilização terapêutica do haxixe.

Apesar da declaração jactanciosa de Bush de que os Estados Unidos são o “país mais livre do mundo”, não posso dizer que me sinta mais livre enquanto residente nos Estados Unidos do que me sentia quando vivia na Austrália. Enquanto Bush conseguir obrigar os americanos a fazer aquilo que ele considera correcto, a América classificar-se-á atrás de outros países no que diz respeito à liberdade. Os habitantes dos Países Baixos e da Bélgica, por exemplo, têm mais liberdade do que os americanos quanto à escolha da forma como desejam morrer. Naqueles países, os pacientes com doenças terminais ou incuráveis, e cujo sofrimento não é passível de alívio, podem pedir a um médico que os ajude a suicidarem-se ou que lhes administre uma injecção letal. Cerca de dois por cento do total de mortes nos Países Baixos ocorrem em resultado de tal pedido. Um número bastante mais elevado de pessoas obtém a garantia junto do seu médico de que, se o sofrimento se tornar intolerável, este porá fim às suas vidas, mas, tendo recebido esta garantia, não consideram necessário fazer uso dela. Assim, esta é uma liberdade utilizada por um número significativo de holandeses. (E, apesar da propaganda de grupos pró-vida que sugere que nos Países Baixos há mais pessoas mortas pelos médicos sem o seu consentimento, não existem provas indiciadoras de que isto aconteça mais frequentemente nos países Baixos do que noutros países onde a eutanásia não se encontra legalizada.) Os holandeses são também mais livres do que os americanos no que concerne o uso de haxixe. Nos Países Baixos, a posse e venda de pequenas quantidades de haxixe são de tal forma toleradas que alguns cafés têm na vitrina um sinal que indica a venda de “charros” no interior. É certo que há alguns aspectos em relação aos quais os holandeses são menos livres do que a maioria dos americanos: por exemplo, não é tão fácil comprar uma arma nos Países Baixos. A comparação dos aspectos relativamente aos quais os holandeses são mais ou menos livres do que os americanos ultrapassa o âmbito do presente livro e, de qualquer forma, exigiria uma argumentação sobre quais são as liberdades mais importantes. Contudo, à luz dos meus valores, os Países Baixos revelam-se um país mais livre do que os Estados Unidos.

Costumava ser possível afirmar que os direitos e liberdades dos americanos eram mais seguros do que os dos cidadãos de outros países porque se encontravam protegidos por uma constituição escrita, defendida por um poder judicial independente. Durante a presidência de Bush, deixou de ser possível afirmar tal coisa. Foi negado o direito básico à liberdade e a um processo judicial adequado e administração de Bush recorreu a assassínios secretos de pessoas que suspeita serem terroristas.

No capítulo anterior, ao determo-nos sobre a morte de civis no Afeganistão e no Iraque, vimos que a defesa de Bush do direito à vida era menos absoluta do que nos poderiam levar a pensar as suas declarações sobre o aborto e os direitos dos embriões. No presente capítulo, concluímos que a sua defesa de outros direitos humanos básicos é extremamente variável. Ao permitir que os agentes do governo utilizassem métodos de interrogatório que, quando usados por outros países, o Departamento de Estado descreve como formas de tortura ou violações dos direitos humanos, privando pessoas do direito básico à liberdade e a um processo judicial adequado e recorrendo a assassínios secretos, Bush mostrou que não considera os direitos humanos invioláveis. Está disposto a arriscar as vidas e liberdades de pessoas inocentes para proteger a América do terrorismo. Segundo parece, é um defensor de direitos absolutos nalgumas ocasiões e, noutras ocasiões, de argumentos utilitaristas — de qualidade duvidosa — para retirar esses direitos. As suas opiniões e acções relativas à liberdade e aos limites do governo são falhas de qualquer fundamentação filosófica clara e consistente.

Peter Singer
The President of Good and Evil: Questioning the Ethics of George W. Bush (Plume Books, 2004)
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ISSN 1749-8457