Tenho uma obrigação a cumprir,
Um Deus a glorificar,
Uma alma eterna a salvar
E tornar digna do céu.
Servir o tempo em que vivo,
Responder à minha vocação,
Oh, que todos os meus dons sejam usados
A fazer a vontade do meu Mestre!
Do cântico de Charles Wesley, citado por George W. Bush em A Charge to Keep, p. 44.
Reconheço que o governo não tem nada que sancionar um credo religioso nem financiar directamente cultos religiosos ou o ensino da religião. Isso não compete ao governo.
George W. Bush, falando perante uma Conferência da Casa Branca sobre Iniciativas Comunitárias e de Inspiração Religiosa, Filadélfia, 12 de Dezembro de 2002.
George W. Bush é cristão. O seu coração, disse-nos ele, está entregue a Jesus. Quando a guerra com o Iraque estava iminente, lia a Bíblia todos os dias. Também reza diariamente. Acredita num “plano divino que se sobrepõe a todos os planos humanos”. Aplica a fé na sua vida pública. Diz que a liberdade é “o plano do Céu para a humanidade”. Pensa que um presidente deve invocar o “poder da fé”. Na Casa Branca de Bush, nas palavras de David Frum, seu antigo redactor de discursos, “a participação na meditação sobre a Bíblia, se não obrigatória, não era completamente não obrigatória”. Dá início às reuniões do conselho com uma oração. Quando ordenou ao General Franks que atacasse o Iraque, pediu a Deus que o abençoasse, assim como aos soldados. Fala na rádio — no dia anterior à Páscoa — sobre confiar no “Criador que nos fez” e levar “as nossas mágoas e apreensões perante ele”. Quando o vaivém espacial Columbia se perdeu, recorreu às palavras do profeta Isaías, dizendo: “O mesmo Criador que nomeia as estrelas também conhece os nomes das sete almas que hoje choramos”. É óbvio que uma parte tão importante da vida e crenças de Bush — tão intimamente relacionada com as suas perspectivas éticas — é relevante para qualquer investigação da ética deste presidente. Também precisamos de perguntar até que ponto é apropriado que os líderes eleitos de sociedades pluralistas invoquem a sua fé religiosa em ocasiões oficiais, em discursos e em emissões radiofónicas, e a usem como base para as políticas relativas a questões que afectam outros elementos da comunidade que não partilham tais crenças.
Na América, a religião e a política são uma mistura curiosa. Por um lado, a proibição da Primeira Emenda de que o Congresso redija qualquer lei “respeitante à criação de uma religião ou proibindo o livre exercício desta” levou a que igreja e estado se separassem em termos muito mais estritos do que em muitas outras democracias liberais. Na Grã-Bretanha, por exemplo, existe uma igreja estabelecida e a rainha é simultaneamente chefe de estado e chefe da igreja. Certas escolas anglicanas (mas não as escolas que perfilhem outra religião) são integralmente financiadas pelo estado. Na Austrália, embora não exista uma igreja estabelecida, as escolas privadas, incluindo as que são religiosas, são elegíveis para a obtenção de auxílio financeiro estatal. Nas escolas públicas australianas seculares há frequentemente um concerto natalício em que as crianças entoam cânticos de Natal que lhes foram ensinados nas aulas. Estas práticas raramente provocam grandes controvérsias — as organizações australianas defensoras das liberdades civis reservam as suas energias para batalhas mais sérias. Poder-se-iam afirmar coisas semelhantes em relação à maioria dos países europeus. Mas isso não acontece porque os britânicos, os australianos ou os franceses sejam pessoas extremamente religiosas, satisfeitas por verem o estado a apoiar a religião. Pelo contrário, sondagem atrás de sondagem revela que os americanos são muito mais religiosos do que os cidadãos de qualquer outro país desenvolvido. Na Europa, menos de vinte por cento da população vai à igreja uma vez ou mais por semana. Na América do Norte, a acreditarmos no que as pessoas dizem aos inquiridores, a percentagem é de quarenta e sete por cento. Mais de oito em cada dez norte-americanos afirmam que Deus é importante nas suas vidas; menos de metade de todos os europeus diz tal coisa. Cerca de noventa e quatro por cento dos norte-americanos acredita em Deus, oitenta e nove por cento no céu e setenta e dois por cento no inferno e no demónio. Estas diferenças reflectem-se também na política. É o papel da religião que tem mantido o aborto no centro da política americana, quando já deixou de ser um assunto fulcral noutros países desenvolvidos, com excepção da Irlanda.
Como podemos então compreender a maior atenção dedicada à separação entre igreja e estado nos Estados Unidos, comparada com a de outros países desenvolvidos? Uma explicação poderá ser que é precisamente onde a religião é mais fervorosamente defendida que a necessidade de limitar o seu âmbito é também mais forte. Para a maioria dos australianos, os cânticos de Natal são canções tradicionais, algumas bastante bonitas, que as crianças, quer acreditem ou não em Jesus, gostam de cantar. Os líderes políticos têm geralmente o cuidado de manter as suas crenças religiosas — se as tiverem — separadas da sua vida pública. Raramente, se é que o fazem de todo em todo, mencionam Deus ou a sua crença religiosa, e se terminassem um discurso com a frase “Deus abençoe a Austrália”, as pessoas perguntar-se-iam por que considerariam eles necessário fazer referência pública às suas crenças privadas. Efectivamente, por surpreendente que isto possa parecer a muitos americanos, há outras democracias liberais que elegem líderes que afirmam abertamente não serem religiosos e não frequentarem a igreja nem outra forma de culto. Quando tomou posse, o Chanceler alemão Gerhard Schröder recusou-se a dizer as palavras habituais “assim Deus me ajude”. O que não o impediu de ser reeleito. Ora isto é dificilmente imaginável na América, onde as sondagens mostraram que, apesar de haver agora uma predisposição quase universal para votar num candidato católico ou judeu, apenas uma minoria está preparada para votar num ateu. Parece que a linha que separa a igreja do estado não precisa de ser tão vigiada de perto noutras democracias liberais, não porque o ambiente seja mais favorável à religião, mas porque lhe é menos favorável. Em comparação com qualquer outro país desenvolvido, nos Estados Unidos a religião tem uma possibilidade mais séria de alterar a natureza da sociedade.
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Nos meios de comunicação norte-americanos, a grande questão acerca da religião e da política que a presidência de Bush colocou foi a de saber se o financiamento público de instituições de beneficência de inspiração religiosa, uma parte fulcral dos temas sociais do conservadorismo compassivo de Bush, violava a barreira constitucional erguida para impedir o estabelecimento de uma religião. Pouco tempo depois de tomar posse, Bush começou a apresentar legislação que ia no sentido de possibilitar às organizações religiosas o acesso a fundos públicos, afirmando que o tratamento dado no passado às organizações religiosas pelo governo federal era injusto. Deu exemplos: foi ordenado a uma organização do Iowa que devolvesse o dinheiro recebido do governo porque o seu conselho de administração não era suficientemente secular; foi negado financiamento a um abrigo do Dacota do Sul, destinado a pessoas a viver nas ruas, porque se faziam orações voluntárias antes das refeições; e um Conselho de Nova Iorque para a Pobreza Judaica foi desencorajado de se candidatar aos fundos federais por ter a palavra “judaica” na sua designação. A Câmara de Representantes aprovou uma versão da legislação que ele propôs, mas o Senado reprovou-a. Assim, em Dezembro de 2002, Bush assinou uma decisão executiva informando as agências federais de que as organizações religiosas são elegíveis para financiamento público. “Se uma instituição de beneficência ajuda os necessitados”, disse o presidente a uma Conferência da Casa Branca sobre Iniciativas Comunitárias e de Inspiração Religiosa pouco tempo antes de assinar a decisão, “não deve importar que haja um rabi no conselho de administração, ou uma cruz ou um crescente na parede, ou um compromisso religioso no seu regulamento. Os tempos de discriminação de grupos religiosos só porque são religiosos estão a chegar ao fim”.
Nos termos da sua decisão executiva, Bush declarou que “não serão utilizados fundos para apoiar directamente actividades de carácter inerentemente religioso”, mas depois prometeu que “nenhuma organização elegível para a atribuição de fundos será obrigada a alterar a sua identidade”. Fazer valer estas duas declarações exigirá uma separação de águas extremamente difícil. A Coligação Ecuménica para a Habitação de Dallas, por exemplo, é uma organização acerca da qual Melvin Olasky, guru de Bush para o conservadorismo compassivo, mostra entusiasmo. Esta ajuda pessoas sem abrigo a encontrar habitação e emprego — depois de começarem o dia com uma “lição bíblica de motivação”. Será o pessoal financiado por fontes privadas quando conduz a lição bíblica e financiado por fontes públicas quando aconselham as pessoas sobre a procura de emprego? Isso exigiria um grande e minucioso trabalho de contabilidade e a sua verificação teria de recorrer exactamente ao tipo de papelada burocrática que Bush abomina. A situação é agravada por um plano para permitir que os fundos federais sejam utilizados em edifícios onde é realizado culto religioso, desde que parte desse mesmo edifício seja utilizada para serviços sociais. Como se pode separar o custo de construção de uma igreja do custo de construção de salas dentro da mesma estrutura nas quais se prestarão formas não religiosas de aconselhamento?
Sem dúvida que os tribunais acabarão por decidir o que nesta matéria é ou não é constitucional. De um ponto de vista ético, nada há de inerentemente incorrecto na utilização de recursos do estado no apoio de instituições de beneficência de inspiração religiosa que ajudem os pobres e sem-abrigo, ou toxicodependentes, desde que essas instituições sejam apoiadas estritamente com base na sua capacidade de ajudar os necessitados e o auxílio prestado pelas instituições de inspiração religiosa seja igualmente oferecido àqueles que não desejarem participar em actividades religiosas. Uma vez mais, parece ser esta a opinião de Bush. Este afirmou perante a Conferência da Casa Branca sobre Iniciativas Comunitárias e de Inspiração Religiosa que “Quando se tomam decisões respeitantes ao financiamento público, não devemos centrar-nos na religião praticada, mas antes nos resultados obtidos”. A avaliação dos resultados não é fácil. Podemos contabilizar o número de pessoas ajudadas pelas diferentes organizações que se tornam auto-suficientes, se afastam da droga e não regressam à prisão, mas alguns programas são selectivos em relação às pessoas a que ajudam, deixando de lhes prestar assistência se estas não observarem regras estritas. A comparação das taxas de sucesso de diferentes organizações só é relevante se as organizações tiverem um grupo semelhante de utentes e contabilizarem os rejeitados assim como os “admitidos” ao seu programa. Apesar de se ter assistido a algumas declarações favoráveis às instituições de beneficência de inspiração religiosa, Anna Greenberg, da Escola de Administração Pública John F. Kennedy da Universidade de Harvard, concluiu um estudo desse campo observando que “existem poucas provas sólidas de que as comunidades de inspiração religiosa façam um trabalho melhor do que o estado na resolução dos problemas sociais e económicos da nossa sociedade”.
Uma questão mais difícil colocada pela medida de Bush é esta permitir que as organizações de inspiração religiosa que recebem ajuda federal levem em consideração a religião das pessoas quando contratam novos colaboradores. Assim, uma organização cristã podia receber fundos federais e depois utilizá-los para anunciar um emprego para o qual apenas cristãos com um conjunto de crenças religiosas semelhante às da organização serão elegíveis. Isto levou a afirmações de que o governo estaria a “financiar a discriminação religiosa”. Mas uma organização que trabalha com base no pressuposto de que a fé religiosa ajuda a ultrapassar a pobreza dificilmente poderia fazer outra coisa. Uma pessoa secular não transmitiria a fé de que, nos moldes da organização, os pobres precisam para os ajudar a sair da pobreza. Por conseguinte, a organização recruta aquelas pessoas que vê como melhores para a tarefa que deseja realizar e estas perfilharão necessariamente a fé religiosa da dita organização.
Está por provar que isto funcione realmente — que a fé possa ser usada como meio de ajudar um grande número de pessoas a sair da sua situação de pobreza, de fome, de toxicodependência e de vida nas ruas. Considerá-lo uma coisa boa, se funcionar, é uma questão de valores. Há um custo a pagar por se inculcar a fé religiosa. Poderá reduzir o espírito inquisitivo que está na base da investigação científica e do progresso tecnológico. Conduz a formas de crença que são potencialmente separadoras e perigosas, pois encontram-se fora dos limites da argumentação e da razão pública. Ainda assim, estes perigos são especulativos e muitas pessoas pensarão que, mesmo que a fé religiosa seja uma ilusão, valerá a pena ter uma ilusão que reduz a pobreza, a fome, o uso de drogas e a vida nas ruas.
Para um observador de uma democracia liberal mais secular, os defensores da separação entre igreja e estado cometem um erro ao centrar toda a sua atenção na proposta de Bush de financiamento de instituições de beneficência de inspiração religiosa, como se esta fosse a única, ou mesmo principal, questão colocada pela sua presidência sobre a religião e o seu papel na vida política. Quando os líderes políticos são religiosos, devemos averiguar se estes usam as suas posições oficiais para inculcar as opiniões religiosas que perfilham na comunidade como um todo e até que ponto as decisões que tomam em nome do estado são influenciadas pelos ensinamentos e modos de pensar religiosos. Nesta base, poderá haver muito mais coisas com que nos preocuparmos do que apenas o financiamento das instituições de beneficência de inspiração religiosa. Mas, em primeiro lugar, quero analisar uma questão que poucos americanos pensariam sequer alguma vez pôr em causa: a ética da fé de Bush.
William Clifford, matemático e filósofo britânico do século XIX, escreveu um ensaio sobre a ética da crença que começava com a história de um armador prestes a enviar um navio cheio de emigrantes para o mar. Ele sabia que o navio era velho e precisava de reparações, por isso tinha dúvidas quanto às suas condições de navegação e perguntava-se se deveria suportar a despesa de o consertar e equipar completamente. Mas, ao invés, decidiu depositar a sua confiança na Providência, que dificilmente deixaria de proteger aquelas famílias que abandonavam a sua terra natal em busca de uma melhor vida no estrangeiro. Assim, convenceu-se de que tudo correria bem e assistiu sem apreensões à partida do navio. Quando o navio naufragou, provocando a morte de grande número de pessoas, os seus prejuízos foram cobertos pela companhia de seguros.
O argumento de Clifford é que a sinceridade da crença do armador não o absolve da culpa em relação às vidas perdidas pois, tendo em conta as provas perante si, este não tinha o direito de acreditar que a embarcação estava capaz de seguir viagem. Como afirma Clifford, “ele adquirira a sua crença, não granjeando-a honestamente através de uma investigação paciente, mas abafando as suas dúvidas”. Mesmo que o navio estivesse em condições e houvesse concluído em segurança a viagem, isso não significaria que o proprietário estava justificado por tê-lo considerado em condições de navegar. Ainda assim, seria incorrecto permitir que as vidas dos passageiros dependessem da sua fé, e não da prova cabal de que o navio se encontrava em boas condições.
À luz deste exemplo, consideremos a própria descrição de Bush, em A Charge to Keep, da sua decisão de “reentregar o meu coração a Jesus Cristo”. Bush faz remontar esta decisão ao passeio a pé pela praia do Maine em companhia do evangelista cristão Billy Graham. Conversando com Graham, Bush sentiu-se, segundo afirma, “humilde ao saber que Deus enviara o Seu Filho para morrer por um pecador como eu”. Depois da sua decisão de se entregar novamente a Jesus, diz-nos Bush, começou a ler regularmente a Bíblia e aderiu a um grupo de reflexão sobre o Livro Sagrado. Mais à frente, ao descrever uma visita a Israel que ele e a mulher fizeram em 1998, percebemos melhor a sua perspectiva dos evangelhos enquanto história. É-nos dito que George e Laura foram ao Mar da Galileia e “subiram ao monte onde Jesus pregou o Sermão da Montanha”. Foi, acrescenta ele, “uma sensação avassaladora, estar no local exacto onde foi proferido o sermão mais famoso da história do mundo, o local onde Jesus definiu o carácter e a conduta do crente e revelou aos seus discípulos e ao mundo as bênçãos, a Regra de Ouro e o Pai-Nosso”. Bush conclui a sua descrição da visita que fez a Israel afirmando saber que a fé muda as vidas, porque, diz, “a fé mudou a minha”. Esta fé é algo que lhe permite construir a vida sobre “um alicerce que não cederá”.
Bush apresenta aqui a imagem de um homem que aceita o que lhe dizem sem se colocar quaisquer questões críticas sobre o assunto. O modo como as pessoas adquirem a fé religiosa é um tema demasiado vasto para ser discutido aqui, mas, ainda assim, há qualquer coisa nessa aceitação incondicional que deveria perturbar-nos. As pessoas que reflectem e estão habituadas a questionar aquilo que lhe dizem resistirão a abraçar a ideia cristã de que o mundo está feito de acordo com um plano divino. Notarão que o principal factor decisivo de crença na religião cristã é ter sido educado nela e que poucas pessoas que cresceram em lares islâmicos, hindus, judeus e budistas acreditam que Jesus seja o filho de Deus. Bush parece acreditar que só os cristãos têm lugar no céu. A maioria dos muçulmanos acredita, de modo igualmente fervoroso, que só os muçulmanos o terão. Não podem ter todos razão (embora possam estar todos errados). A reivindicação cristã da verdade será mais bem fundamentada do que a islâmica, a judaica, a hindu ou a budista? Devemos mostrar-nos cépticos relativamente a pretensões de saber algo quando a crença nesse algo é tão imune a qualquer prova ou argumento objectivo que depende eminentemente daquilo em que a respectiva família acredita e dos costumes e crenças da sociedade na qual se cresce.
Nada disto parece perturbar minimamente Bush. Ele “sabe” que Deus enviou o seu único filho para morrer pelos pecadores como se se tratasse de saber que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos. Quando vai a Israel, mostra-se tão confiante de estar no monte onde Jesus proferiu o Sermão da Montanha que o leitor poderia supor que ele se deparara com uma inscrição de registo do acontecimento gravada pelos discípulos presentes. Em momento algum lhe passa pela cabeça que, uma vez que o evangelho segundo Lucas nos diz que o sermão foi proferido “na planície”, os evangelhos poderão não ser completamente fiáveis. A maioria dos estudiosos do Novo Testamento crêem que, quem quer que tenha escrito o Evangelho Segundo Mateus, compôs ele próprio o Sermão da Montanha, baseando-o em várias frases de Jesus que haviam sido registadas anteriormente. A ser assim, não precisamos de nos preocupar com o problema da identificação do monte (ou da planície) onde Jesus teria proferido o Sermão, uma vez que ele nunca o pronunciou.
Muitos americanos não verão nisto qualquer problema. Partilham a fé de Bush e estão ainda mais dispostos a votar nele por esta razão. Mas nós estamos a considerar a ética da sua crença, e não se esta é generalizada ou politicamente conveniente. Mesmo que muitos americanos partilhem as crenças ingénuas de Bush, precisamos de nos perguntar o que devemos pensar de alguém que baseia a sua vida na fé não questionada. Por outras palavras, que devemos pensar de alguém que, embora fale e escreva muito sobre a sua crença religiosa, não dá sinais de ter analisado sequer a questão — alguém para quem a crença religiosa é um não questionado “alicerce que não cederá”. Como muito bem disse o filósofo Karl Popper, a diferença entre ciência e dogma é que uma teoria científica tem sempre de estar aberta à falsificação, na base da prova. Bush parece quase vangloriar-se de a sua visão da verdade não estar aberta à falsificação na base da prova.
Também se dirá que as nossas crenças religiosas são uma questão privada e, portanto, não constituem um objecto adequado de avaliação ética. Mas Bush fez da sua religião uma questão de interesse público ao referir-se frequentemente a esta e ao afirmar que a religião influencia as suas decisões públicas. Tem importância para todos nós porque a fé de Bush, como a do armador de Clifford, pode torná-lo mais seguro de estar certo do que deveria. Em 1999, enquanto se preparava para se candidatar à presidência, reuniu importantes pastores na sua mansão de governador do Texas e disse-lhes que tinha sido “chamado” a tentar ocupar um cargo mais elevado. Após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, disse a Karl Rove, seu conselheiro político: “Estou aqui por uma razão”. No mês antes de dar início à guerra com o Iraque, Bush participou na convenção de Emissoras Nacionais Religiosas e ouviu sem pestanejar descreverem-no como “o homem escolhido por Deus para enfrentar esta hora de aflição do nosso país”. Howard Fineman, escrevendo sobre Bush na revista Newsweek, diz que a fé “ajuda Bush a fixar a rota e a não olhar para trás”. Não precisamos de ver muito longe para perceber aonde pode conduzir uma tal atitude perante a crença. Aqueles que planearam e provocaram a morte de três mil americanos inocentes em 11 de Setembro de 2001 eram pessoas com uma fé religiosa profunda que rezavam frequentemente e, antes de morrerem, encomendaram as suas almas ao cuidado de Deus. Uma das ironias da vida americana é estes ataques perpetrados por fanáticos religiosos terem desencadeado ainda mais demonstrações públicas religiosas do que é habitual na vida americana pública, incluindo a transmissão televisiva do “God Bless America” entoado pelos membros do Congresso na noite dos ataques. Os especialistas islâmicos, convocados apressadamente pelas estações televisivas, disseram que o problema não era o islamismo, e muito menos a própria fé religiosa. Os terroristas tinham interpretado mal a sua religião. Mas se tudo dependesse da fé, por que razão não poderiam os terroristas ter fé em que a sua versão particular do islamismo era a correcta? Por que não poderiam ter “sabido” junto de um importante mestre religioso que Deus queria que destruíssem a maior potência que se atravessava no caminho do modo de vida islâmico?
Claro que há uma diferença moral crucial entre aqueles cuja fé lhes diz que matem pessoas inocentes e aqueles cuja fé ensina a respeitar a vida. Mas a diferença não é algo que possamos obter a partir da fé. O militante islâmico que acredita estar a cumprir a vontade de Deus quando lança um avião cheio de passageiros contra o World Trade Center é tanto uma pessoa de fé como o cristão que acredita estar a fazer a vontade de Deus quando passa os seus dias em piquetes à porta de clínicas que realizam abortos. A fé não pode dizer-nos o que é correcto e o que é incorrecto, pois cada um dirá simplesmente que a sua fé é a verdadeira. Na ausência de uma disponibilidade para aduzir razões, provas ou argumentos a favor de algo e em detrimento de outra coisa, não é possível progredir. Se tentarmos dissuadir as pessoas de se tornarem terroristas islâmicas radicais, não persuadindo-as a serem mais reflectidas e ponderadas nas suas crenças religiosas, mas encorajando-as a mudar de uma fé não questionada para outra, estaremos a lutar com as mãos amarradas atrás das costas. Por conseguinte, será muito melhor insistir na existência de uma obrigação ética de basear as nossas opiniões sobre a vida em provas e raciocínio sólido. Bush, infelizmente, não está em posição de insistir numa tal obrigação ética, pois as suas próprias crenças religiosas não se baseiam mais em provas analisadas criticamente do que as crenças religiosas de Ossama Bin Laden.
Outro comentário de Clifford a propósito do efeito da credulidade adquire nova importância à luz da recente controvérsia acerca das declarações da administração de que o Iraque possuía armas de destruição maciça e ligações à Al Qaeda:
Os malefícios da credulidade numa pessoa não se limitam à promoção de um carácter crédulo nos outros e consequente defesa de falsas crenças. A falta habitual de cuidado com aquilo em que acredito conduz a uma falta habitual de cuidado, por parte dos outros, com a verdade daquilo que me dizem. Os homens falam verdade uns aos outros quando cada um respeita a verdade no seu próprio espírito e no espírito alheio; mas como pode o meu amigo respeitar a verdade no meu espírito se eu próprio sou descuidado com ela, quando acredito em coisas simplesmente por querer acreditar nelas, quando elas são reconfortantes e agradáveis? […] O crédulo é pai do mentiroso e do intrujão […].
Quando, mais de um século volvido sobre estas palavras de Clifford, se colocaram dúvidas sobre a utilização por parte da administração de Bush de informação questionável para compor o caso da posse de armas de destruição maciça pelo Iraque, Greg Thielmann, especialista na proliferação que trabalhava para o Gabinete de Informações e Investigação do Departamento de Estado, explicou o que acontecera de um modo que Clifford teria entendido como confirmando a sua perspectiva. Thielmann disse: “Esta administração tem para com as informações uma atitude baseada na fé: “Sabemos as respostas, dêem-nos as informações que confirmam essas respostas”. Quando se pressente este tipo de atitude, sufoca-se o espírito da investigação e integridade intelectual”. Al Gore, antigo vice-presidente, disse algo semelhante quando sublinhou que os americanos sempre acreditaram que a democracia depende do debate aberto e de “um respeito partilhado pela regra da razão como melhor forma de estabelecer a verdade” — e depois acrescentou que a administração de Bush não respeita esse processo porque “eles sentem que já sabem a verdade” e são “fervorosos crentes nos projectos uns dos outros”.
No seu discurso de tomada de posse, Bush pronunciou as três frases consecutivas seguintes:
Este é o meu juramento solene: trabalharei para construir uma só nação de justiça e oportunidades.
Sei que isto está ao nosso alcance porque somos guiados por um poder maior do que nós próprios que nos cria à Sua imagem.
E temos confiança em princípios que nos unem e nos fazem progredir.
A primeira e terceira frases aludem à desejabilidade da união entre os americanos, mas são intercaladas por uma outra frase que introduz uma nota de divisão. Ainda que uma grande maioria de americanos partilhe a crença do seu presidente de sermos guiados por um poder maior do que nós próprios que nos criou à Sua imagem, há milhões que não partilham essa crença.
Uma das virtudes de um sistema democrático de governo é oferecer uma forma pacífica de resolver dissensões entre pessoas com opiniões fundamentalmente diferentes. Mas no seio de um sistema amplamente democrático há diversos modelos de como tal resolução deverá ocorrer. Uma forma é considerar a política democrática meramente um método de decidir quem exercerá o poder. Nos termos deste modelo, aqueles que vencem as eleições obtêm o poder e fazem uso dele para impor a sua vontade sobre a sociedade como um todo. Se os fundamentalistas religiosos chegarem ao poder, poderão mandar prender os homossexuais, proibir a venda de contraceptivos ou impedir as lojas e os cinemas de abrir ao sábado. Em defesa destas leis, nesta perspectiva da democracia, não precisam de aduzir melhor razão do que a crença de que essa é a vontade de Deus e terem sido eleitos por uma maioria que partilha essa crença. Com este modelo, não há incompatibilidade entre democracia e teocracia, de momento que os teocratas permitam a realização de eleições livres e justas e os defensores da teocracia continuem a vencer nas urnas.
No entanto, uma sucessão de teocracias eleitas não é o modelo de democracia que os fundadores da América tinham em mente. Queriam impor limites ao poder da maioria. Puseram em vigor uma constituição que protegia a liberdade de expressão e opinião, de modo a que as pessoas pudessem dizer o que pretendiam e tivessem oportunidade de persuadir as outras a mudar de ideias. Considerando que as melhores decisões são as que se tomam após uma discussão aberta, criaram fóruns públicos, como as assembleias municipais e as duas câmaras do Congresso, para que os debates públicos ajudassem a formar uma cidadania culta e informada, e uma verdadeira democracia. Não queriam que os seguidores de uma religião, por maior que fosse a sua maioria, impusesse as suas crenças religiosas aos restantes elementos da sociedade.
Bush afirmou, como se vê na citação do início do presente capítulo, que “sancionar um credo religioso” ou “financiar directamente […] o ensino da religião […] não compete ao governo”. É à luz deste contexto que devemos apreciar as frequentes referências de Bush, falando na sua categoria de presidente, às suas crenças religiosas. Se um chefe de estado e principal executivo do país se refere constantemente a Deus, ou à sua fé, nos discursos que profere em ocasiões oficiais, não estará com isso o governo a sancionar um credo religioso? Ao referir-se simplesmente a Deus no singular deixa de fora muitas pessoas: os politeístas, que crêem em mais do que um deus; os budistas, que sendo geralmente considerados religiosos não acreditam num Deus ou em deuses; os agnósticos, que duvidam da existência de Deus; e os ateus, que estão convencidos da inexistência de Deus. Mesmo quando não faz qualquer referência específica ao cristianismo, o que Bush professa nas suas declarações públicas enquanto presidente é um credo religioso, e o mais importante funcionário do governo norte-americano está a sancioná-lo e a propagá-lo. (Não sou o único a pensar assim. A citação atrás referida é retirada de um discurso de tom e conteúdo tão religiosos que, enquanto Bush o proferia, um elemento da assistência gritou: “Continua a pregar, irmão!”, e a assistência, amplamente composta por membros de organizações de inspiração cristã, aplaudiu.)
Os filósofos e pensadores políticos que perfilham várias perspectivas filosóficas usam as expressões “razão pública” e “justificação pública” para descrever um contexto vasto para uma discussão em que todos os elementos da comunidade podem participar. Os defensores da ideia de justificação pública vêem a política democrática não tanto como uma luta pelo poder, decidida através de eleições, mas uma espécie de conversa pública acerca de questões de interesse comum, com um processo de decisão que determina uma solução temporária para essas questões quando chega a altura da acção. Quando participamos nesta conversa, procuramos justificar as nossas opiniões perante os outros, e ao fazê-lo devemos reconhecer a existência de pluralismo político e religioso. Devemos mostrar reconhecer que vivemos numa comunidade com uma diversidade de opiniões políticas e religiosas. Assim, devemos aduzir razões que possam colher apoio junto de todos, não apenas junto dos outros membros da nossa comunidade de crentes. De outro modo, não poderá haver um debate público que abranja toda a sociedade: estaremos implicitamente a dividir a sociedade em comunidades separadas que não procuram persuadir-se mutuamente. Essa é a receita para o antagonismo crescente e a hostilidade mútua de grupos separados, divididos pelas linhas da crença. Da Irlanda do Norte ao Sudão, da Nigéria à Índia, temos muitos exemplos de tais sociedades e dos conflitos destrutivos a que dão origem, no passado e nos nossos tempos. Os debates realizados num contexto amplo de razão pública são uma forma de ultrapassar as divisões que separação essas diferentes comunidades de crentes.
Consideremos alguns exemplos de discussões públicas de política sobre questões controversas da ética. Já vimos a questão de matar embriões humanos para fins de investigação. Obviamente, o argumento a favor da realização dessa investigação — aumentar as probabilidades de conseguir a cura para doenças que afectam cento e vinte e oito milhões de americanos — é algo que todas as pessoas podem avaliar, e, por isso, é uma justificação que se enquadra no âmbito da razão pública. Contra este argumento, alguém poderia dizer:
Todos concordamos que é errado matar um ser humano normal. Mas o desenvolvimento humano desde a concepção até à maturidade é tão gradual que não há um ponto no qual se possa sensatamente traçar uma linha e afirmar: “É aqui, e não antes, que o ser humano em desenvolvimento adquire o direito à vida”. Portanto, devemos aceitar que o ser humano em desenvolvimento tem direito à vida desde o momento da concepção.
Este argumento também oferece uma justificação pública e, evidentemente, está aberto a respostas dadas no interior do mesmo contexto de razão pública, talvez sugerindo pontos onde a linha possa ser traçada de modo a indicar quando o ser humano em desenvolvimento adquire o direito à vida. Podemos acabar por não chegar a consenso, mas as nossas discordâncias situam-se num contexto partilhado de razão e argumentação. Conseguimos compreender o que motiva o outro, e aceitar que essa é uma razão, de algum tipo, mesmo que não sejamos completamente convencidos por ela.
Consideremos agora outra questão. Suponhamos que alguém diz: “Devemos clonar seres humanos porque os extraterrestres mandaram-nos fazer isso”. Se quiséssemos levar a sério esta afirmação ridícula, pediríamos provas da existência destes extraterrestres, do facto de nos terem mandado clonar seres humanos e de existir alguma razão para devermos fazer aquilo que nos haviam ordenado. Suponhamos que a resposta a estas exigências é: “Encontrei estes extraterrestres em momentos de profundo desespero e eles penetraram no meu espírito e no meu coração e eu amo-os e sei que posso confiar neles. Abri os vossos corações e também vós os amareis e vereis que têm razão”. Se nos dissessem que ninguém nos apresentaria provas da existência dos extraterrestres e que deveríamos aceitar estas afirmações com base na fé, recusar-nos-íamos, com razão, a prestar-lhes mais atenção. Suponhamos, então, que alguém nos diz que os embriões humanos não devem ser destruídos porque “a vida humana é uma dádiva sagrada do nosso Criador”. Também neste caso nos são recusadas provas e, quando perguntamos como sabe ele isto, responde que é uma questão de fé e que devemos abrir os nossos corações ao Senhor, e a Jesus, seu único filho, para também nós vermos as coisas como ele as vê. Esta resposta pode ser mais amplamente aceite do que a justificação que a estranha seita raelita deu para pretender produzir um clone humano, mas, enquanto justificação da política pública na esfera da razão pública, não é melhor.
O mesmo se aplica a outras áreas de política pública. As mais proeminentes são as relacionadas com a santidade da vida humana desde o momento da concepção, como a reinstituição imediata por parte de Bush da “regra de asfixia global” que nega auxílio norte-americano a todas as organizações estrangeiras não governamentais que forneçam informação a mulheres sobre a opção de praticar aborto legal e onde podem obter serviços médicos seguros para esse fim, mesmo que as organizações financiem estas actividades separadamente. (A convicção de Bush de que não é possível separar o fornecimento de informações sobre planeamento familiar do fornecimento de serviços médicos relacionados com o aborto contrasta profundamente com a sua convicção de que, no caso do financiamento de organizações de inspiração cristã, é possível separar o fornecimento de serviços sociais das actividades religiosas.) E há ainda uma declaração de Bush, feita no acto da assinatura da Lei relativa à Proibição do Aborto de Nascimento Parcial, de que o direito à vida não pode ser concedido nem negado pelo governo, pois não foi dado pelo governo, mas pelo criador da vida”. Há ainda outras decisões políticas relativas a questões nas quais princípios como a igualdade e liberdade individual contrariam princípios cristãos tradicionais.
Num dos debates de Bush com o Vice-Presidente Gore, perguntou-se ao agora presidente o que pensava sobre o casamento homossexual. Este respondeu: “Penso que o casamento é uma instituição sagrada entre um homem e uma mulher”. O termo “sagrada” aponta para a existência de uma base religiosa para a sua oposição a qualquer reconhecimento civil de uniões entre pessoas do mesmo sexo, e, aparentemente, Bush não viu necessidade de apresentar quaisquer outros argumentos que falassem àqueles que não partilham as suas opiniões religiosas. Como presidente, não favoreceu a atribuição aos homossexuais da protecção legal que daria acesso a benefícios fiscais e de saúde aos seus companheiros. Também exprimiu a sua confiança num importante senador republicano — Rick Santorum — que comparou a sodomia com o incesto e declarou o seu apoio a quaisquer leis que instituíssem a sodomia como um crime — posição que o Supremo Tribunal rejeitou decisivamente pouco tempo depois.
A atitude da administração de Bush em relação ao fornecimento de informações sobre contracepção e utilização de preservativos como forma de evitar tanto a gravidez adolescente como as doenças sexualmente transmissíveis, é muito difícil de explicar em termos que não os da fé religiosa. Os Centros públicos para o Controlo de Doenças avaliaram vários programas de educação sexual para adolescentes com vista à determinação do mais eficaz na redução das gravidezes nesta faixa etária. Em 2002, ao abrigo de uma iniciativa designada como “Programas que Funcionam”, identificou, no seu sítio da Internet, cinco programas eficazes. Nenhum deles promovia apenas a abstinência sexual, sem o uso de contracepção. Subsequentemente, sem qualquer justificação científica, os Centros para o Controlo de Doenças (CDC) abandonaram a iniciativa “Programas que Funcionam” (PTW) e colocaram no seu sítio da Internet uma mensagem que anunciava: “Os CDC suspenderam a PTW e estão a considerar um novo processo de resposta às diferentes necessidades e preocupações das agências de saúde e educação estaduais e locais e das organizações comunitárias”. De modo semelhante, os responsáveis da administração de Bush retiraram dos sítios da Internet do governo informação com base científica sobre a eficácia dos preservativos na prevenção do HIV, substituindo-a por textos de pendor muito mais vago e menos categórico. O Departamento de Serviços Humanos e de Saúde nomeou um inspector-geral com a missão de investigar os programas sobre a SIDA e determinar se o seu conteúdo é demasiado explícito sexualmente ou promove a actividade sexual.
Têm-se tomado atitudes semelhantes ao nível internacional, embora com menos êxito. Na Quinta Conferência sobre a População da Ásia e Pacífico, realizada em Dezembro de 2002, a delegação norte-americana procurou impedir a reafirmação de um acordo de 1994 celebrado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, que obrigava os governos do mundo a tomar medidas específicas relativamente à saúde e aos direitos das mulheres. Embora os Estados Unidos tivessem sido signatários do acordo quando este foi elaborado, a administração de Bush colocou objecções às expressões “serviços de saúde reprodutiva” e “direitos reprodutivos”, tentando modificar a redacção que promovia a utilização de preservativos como forma de prevenir a disseminação do HIV, o vírus que provoca a SIDA. A delegação norte-americana também declarou que “os Estados Unidos defendem a santidade da vida desde a concepção até à morte natural”. (Um elemento da delegação norte-americana era John Klink, que fora representante do Vaticano nas Nações Unidas entre 1994 e 2000 e era, portanto, possuidor de vasta experiência na defesa de tais posições.) A proposta da administração de Bush foi derrotada por trinta e dois votos contra e um a favor.
Por outro lado, o que lhe fica bem, quando, em 2003, Bush se convenceu finalmente da necessidade de uma importante iniciativa norte-americana para combater o HIV/SIDA ao nível mundial, não insistiu em evitar completamente as referências aos preservativos. Embora o presidente tenha usado a linguagem bíblica para exortar ao financiamento da sua iniciativa relacionada com o HIV/SIDA (“Quando virmos o viajante ferido a caminho de Jericó, não passaremos — a América não passará — para o outro lado da estrada”), posto perante uma crise que ameaçava dezenas de milhões de vidas, permitiu que a compaixão passasse à frente dos seus receios religiosos de que os preservativos favorecessem a promiscuidade. O decreto que assinou estipulava apenas que um terço dos fundos destinados à prevenção fossem reservados a programas que promovessem exclusivamente a abstinência sexual até ao casamento; o restante ficava disponível para ser utilizado em programas de promoção do uso de preservativos.
Neste ponto, aqueles que procuram levar a influência da religião à política objectarão que definir a razão pública de uma forma que exclui os apelos à fé religiosa é fazer o mesmo que os teocratas, mas ao contrário: impor um enquadramento secular à vida pública, excluindo assim injustamente as perspectivas religiosas. Este parece um argumento forte, até percebermos que não são as crenças religiosas, enquanto tais, que são excluídas do reino da razão pública, mas os métodos de alcançar essas crenças que não são passíveis da justificação pública do tipo que aceitamos em todas as outras áreas da tomada de decisões. Não há qualquer razão nem princípio para a afirmação da existência de Deus, e aquilo que ele ou ela deseja que façamos, não fazer parte do debate político público. O problema só surge quando a crença religiosa é colocada numa esfera que a protege das regras habituais de análise. Se alguém nos diz que a investigação em embriões deve ser proibida porque a vida humana é uma dádiva sagrada do nosso Criador, é razoável perguntar como é que sabemos isto. Se a resposta for “Está na Escritura”, precisamos de saber por que razão havemos de acreditar naqueles escritos específicos. Se isto depender de reivindicações históricas relacionadas com a origem daquela escritura, poderão ser chamados a intervir especialistas em textos, para averiguarem a solidez dessas reivindicações… e por aí fora. Se a todas estas questões for possível dar respostas abertas às habituais regras de análise, fica satisfeita a justificação pública. Mas se, em qualquer momento, a investigação deixar de ser possível devido a um apelo à fé, então deixa de haver motivo para que as outras pessoas razoáveis aceitem a posição e a recomendação inicial no sentido da proibição da investigação em embriões não terá sido defendida no contexto da razão pública. Não é o conteúdo da crença — seja ela em Deus, deuses, espíritos malignos ou maldições — que determina se se trata de uma questão de razão pública, mas a forma como a crença é praticada e defendida. Os grandes filósofos cristãos medievais, como Anselmo e Tomás de Aquino, pensavam que a existência de Deus podia ser provada através de argumentação racional. Pensemos nós o que pensarmos dos seus argumentos, pelo menos eles preocuparam-se em justificar as suas crenças em termos que agora consideramos razão pública. Só aqueles que desdenham da razão se excluem do debate público razoável.
Os apelos lançados às sensibilidades religiosas das pessoas também não se encontram fora da esfera da razão pública. Ao debater a proposta que permite a utilização de fundos públicos na investigação que destrói embriões, é razoável reconhecer que milhões de americanos acreditam que só Deus tem o direito de acabar com a vida humana inocente e que estes ficariam profundamente perturbados se os seus impostos fossem utilizados para matar embriões. Esta é uma afirmação sobre uma questão de facto que pode ser investigada e pesada na balança juntamente com afirmações rivais, como a das potencialidades das células estaminais na cura de doenças. Do ponto de vista da razão pública, o que está em causa é o facto da ofensa, e não a boa ou má fundamentação da ofensa. (Embora John Stuart Mill e outros defensores da liberdade tenham afirmado que a mera ofensa não deveria, na ausência de um dano mais específico, constituir motivo para infringir a liberdade individual, uma vez que, aceitando que um risco de ofensa para uns justifica a restrição da liberdade de outros, estaremos a introduzir um argumento abrangente a favor da proibição de qualquer tipo de comportamento, público ou privado. Aquilo que ofende as pessoas não é fixo. As pessoas podem aprender a ser mais tolerantes e essa é uma solução melhor do que restringir a liberdade alheia.)
A sugestão de debater a política pública num enquadramento de justificação pública não tem como finalidade restringir a liberdade de expressão ou religião. Claro que as pessoas devem ter a liberdade de exprimir as suas crenças religiosas, prestar culto como quiserem e procurar, sem coacção, converter outras. Não se trata de quem pode dizer o quê, mas de que razões devem ser consideradas quando decidimos questões de política pública e fazemos leis que afectam todos os elementos da sociedade. Se alguém quiser basear uma recomendação de política em crenças religiosas por si professadas, é livre de o fazer, mas os restantes são também livres de o ignorarem — e conforme sejamos nós próprios religiosos ou não, ignorá-lo-emos ou incentivá-lo-emos a tentar reformular as suas opiniões de maneira a apelar àqueles que não partilham a mesma fé religiosa. Ao fazê-lo, agimos no entendimento sólido do que contribui para o bom funcionamento de uma sociedade democrática.
Algumas pessoas pensarão que a razão pública é um resquício peculiar das ideias do iluminismo sobre a razão e o progresso, devidamente rejeitadas pelo mundo pós-moderno em que agora vivemos. Dirão que é ingénuo acreditar que as pessoas decidem com base na razão e negarão que exista motivo para privilegiar a razão e a argumentação em detrimento da fé religiosa, ou da crença em curandeiros, oráculos ou qualquer outra forma de as pessoas tomarem as decisões que tomam. Mas os que afirmam isto não pensam bem nas alternativas. Há métodos para tomar decisões que utilizamos quotidianamente e não gostaríamos de ver desaparecer. Não gostaríamos que a Polícia se apresentasse nos tribunais dizendo que não precisa de provas de que os réus praticaram os crimes de que são acusados, pois têm fé em que assim foi e a fé não precisa de provas a apoiá-la. Gostamos que os médicos tenham estudado o que ajuda ou não os doentes — e se recorremos à medicina alternativa, procuramos provas de que as suas terapias funcionam. Se abandonarmos o princípio de que a razão, a prova e o argumento podem conduzir a decisões melhores, serão presas mais pessoas inocentes e morrerão mais doentes. Portanto, quem quer que a justificação pública se encaixe no mesmo contexto vasto não impõe um qualquer conjunto de padrões mesquinhos e parciais ao debate. Procura fazer valer padrões de argumentação que todas as pessoas usam sempre.
Outros afirmarão que, mesmo tendo chegado a acordo em relação ao padrões de raciocínio que usamos na maior parte das situações da vida quotidiana, não podemos provar a verdade de qualquer princípio ético. Por conseguinte, uma vez que a ética está para lá do raciocínio e da justificação pública, não é menos aceitável ir buscar à religião a ética que se defende do que retirá-la da cultura ou das crenças subjectivas que se possuem. Na verdade, muitos americanos acreditam que as únicas alternativas à religião para obter juízos morais são o niilismo moral ou o relativismo moral. (É interessante que não se me tenha deparado este pressuposto fora dos Estados Unidos, provavelmente porque em países mais seculares é óbvio que há muitas pessoas que, não sendo religiosas, defendem a importância da moral, não a vendo apenas como uma questão de preferências subjectivas ou culturais.) Mas a moral não tem de ser religiosa para ser real e importante. Todos nos preocupamos com o nosso bem-estar, ou a satisfação das nossas necessidades e desejos. Quando pensamos eticamente, devemos fazê-lo de uma perspectiva imparcial, da qual reconheçamos que as nossas próprias necessidades e desejos não são mais importantes do que as necessidades e os desejos dos outros. Basear os juízos acerca do correcto e incorrecto de uma acção no impacto que esta terá sobre o bem-estar daqueles que vai afectar é basear a ética em algo real e tangível. Porque se baseia em algo que todos queremos para nós próprios, juntamente com um argumento a favor de uma forma de imparcialidade no nosso raciocínio, obedece aos padrões da justificação pública. É por isso que concordo com Bush quanto à necessidade de fazer juízos morais e quanto a ser possível ensinar — e não doutrinar — as crianças a fazerem-nos. Ensiná-las a colocarem-se no lugar dos outros, encorajá-las a imaginar como seria estar no lugar daqueles que são prejudicados pelas suas acções. Esta é, evidentemente, uma forma da Regra de Ouro, um princípio que tem sido ensinado por todas as religiões mais importantes e também pelos estudiosos seculares da ética, tanto antigos como modernos. Naturalmente, haveria muito mais a dizer sobre este assunto e há perspectivas alternativas da ética que são defensáveis. Enquanto os filósofos seculares poderão discordar quanto à coisa correcta a fazer, o mesmo se aplica aos pensadores religiosos, mesmo entre aqueles que são cristãos.
Bush tem consciência da necessidade de alargar o seu apelo àqueles que não partilham as suas crenças religiosas e, por esta razão, poderemos pensar que as suas referências frequentes a Deus são inócuas, sendo mesquinho querer ver demasiado nelas. Quando apresenta as razões para as suas políticas, não apela exclusivamente aos motivos religiosos. No seu discurso acerca da utilização de embriões na investigação, afirma a sua convicção de que a vida é uma dádiva sagrada do Criador, mas também nos fala das suas preocupações relativamente a “uma cultura que desvaloriza a vida”. Esta expressão sugere a existência de uma relação entre permitir a utilização de fundos públicos na destruição de embriões e uma perda mais geral de respeito pela vida, a que todos nos opomos, e por isso apresenta um argumento que se situa no contexto da razão pública.
Nem todos os elementos importantes da facção de Bush são tão cautelosos. Tom DeLay, o líder da maioria na Câmara dos Representantes, e, portanto, o republicano mais poderoso logo a seguir a Bush, afirmou que “Só o cristianismo oferece um modo de vida que responde às realidades existentes neste mundo […] só o cristianismo”. Parte daquilo que DeLay pretende dizer com isto vislumbra-se na sugestão que fez de que o massacre trágico ocorrido no liceu de Columbine deu-se “porque os nossos sistemas escolares ensinam aos nossos filhos que eles mais não são que símios atraentes que evoluíram a partir de uma qualquer lama primordial”. Segundo tudo indica, DeLay acredita que Deus está a utilizá-lo na promoção de “uma mundividência bíblica” na política americana. Embora Bush não seja responsável pelas opiniões de DeLay, é ele quem controla o seu secretário da educação, Rod Paige. Paige é citado como tendo dito que preferiria ter um filho numa escola cristã porque, em parte, há demasiados valores diferentes nas escolas públicas para se conseguir chegar facilmente a um consenso de valor. Além do facto de Paige estar a desacreditar as escolas que era sua responsabilidade melhorar, a observação implica que a diversidade e o debate são indesejáveis em ética e que seria preferível ensinar a todas as crianças apenas uma mundividência— a cristã.
Apesar da sua proximidade com pessoas como DeLay e Paige, Bush disse que “Não devemos preocupar-nos com a fé na nossa sociedade. Devemos acolhê-la nos nossos programas. Devemos acolhê-la no nosso sistema de segurança social. Devemos reconhecer o papel curativo da fé na nossa sociedade”. Isto provocou preocupação mesmo no seio de algumas organizações religiosas, pelo menos nas mais abertas. A Comissão Conjunta Baptista, por exemplo, decidiu que o presidente precisava de ser recordado de que tinha sido eleito como “líder político de todo um país, e não de um segmento da comunidade religiosa”. Há motivos reais para temer que a utilização da plataforma presidencial para fazer declarações religiosas conduza à promoção da fé religiosa em geral e, mais especificamente, à promoção da religião preferida pelo presidente e outros elementos importantes do seu partido. Então, a separação entre igreja e estado terá sido abolida e teremos uma sociedade na qual os não cristãos deixarão de poder sentir-se participantes iguais.