4 de Dezembro de 2006   Filosofia política

Partilhar o mundo

Peter Singer
Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn

A primeira questão é: o que é melhor para os Estados Unidos? O que é melhor para o nosso povo? No que diz respeito à política externa, essa será a minha questão orientadora. O que é melhor para o nosso país?

George W. Bush, Segundo Debate Presidencial, Universidade de Wake Forest, 11 de Outubro de 2000

Ética, o interesse nacional e o papel do líder

A afirmação franca de Bush do seu compromisso com o interesse nacional constituiu a resposta a uma pergunta feita por Jim Lehrer, moderador dos debates presidenciais de 2000, colocada a ambos os candidatos, sobre os respectivos princípios orientadores para exercer o enorme poder que um deles em breve deteria na qualidade de líder do país mais poderoso do mundo. O Vice-Presidente Gore declarou que “o verdadeiro poder da América advém, penso eu, dos nossos valores” e mostrou-se convicto de que a América tinha de defender internamente os direitos humanos, de forma a dar o exemplo ao resto do mundo. A sua resposta, embora um pouco equívoca, apontava para valores universais como os direitos humanos, que ultrapassavam as fronteiras do seu próprio país. Como lhe é característico, Bush, no seu apelo mais directo ao interesse nacional, colocou os dois candidatos em lados opostos de um profundo fosso ético. Quando os interesses de um país entram em conflito com os interesses do povo do mundo como um todo, até que ponto devem os líderes nacionais tomar decisões com base naquilo que é do interesse dos países que governam, e até que ponto devem tomar em consideração os interesses do resto do mundo? Que obrigação tem um líder de assegurar que o seu país age como um bom cidadão do mundo e não como um país preocupado apenas com a protecção dos seus próprios interesses?

Quando consideramos os indivíduos, e não os países, não há dúvidas quanto ao que cada pessoa deve fazer. Consideremos uma situação que se assemelha ao problema mundial das emissões de gases indutores do efeito de estufa, mas ao nível dos indivíduos. Os nossos automóveis já funcionaram com combustível com chumbo, o que era perigoso para a saúde de todos, em especial das crianças. Agora é ilegal vender combustível com chumbo nos Estados Unidos. Suponhamos que alguém a quem chamaremos John defende esta política porque se preocupa com a saúde dos seus próprios filhos. Mas também gosta do melhor desempenho do seu automóvel quando alimentado com combustível com chumbo. O seu carro é o maior da cidade e ele conduz muito, usando mais combustível do que qualquer outra pessoa da cidade. John vive perto da fronteira com um país que ainda vende combustível com chumbo. Todas as semanas, atravessa a fronteira e atesta o depósito. Não há nada de ilegal na operação, mas John fica satisfeito por poucas pessoas da cidade fazerem o mesmo do que ele. (Aquelas que o fazem são, na sua maioria, mais pobres do que John e compram o combustível do outro lado da fronteira apenas porque não podem pagar os preços elevados praticados na sua própria cidade. Conduzem automóveis com pequenos motores que lançam muito menos chumbo para a atmosfera do que o veículo de John.) Enquanto John conduz pela cidade, desfrutando do desempenho melhorado do grande motor, sabe que o seu automóvel está a lançar chumbo para o ar, mas também sabe que, uma vez que tão poucas outras pessoas da cidade usam combustível com chumbo, o chumbo que o seu carro emite não criará níveis perigosos de chumbo na área onde ele e os filhos vivem.

Estará John a agir eticamente? Não tem qualquer razão especial para precisar de um automóvel com melhor desempenho; apenas gosta da sensação de o conduzir. Outras pessoas da comunidade lamentam também a perda de desempenho que o combustível sem chumbo representou e também elas poderiam encher os depósitos com combustível com chumbo do outro lado da fronteira, mas pensam nos interesses da comunidade como um todo e usam combustível sem chumbo nos seus veículos. Nestas circunstâncias, a escolha de John é egoísta e injusta.

Se John é egoísta, injusto, e está a fazer a coisa incorrecta, significará também isso que um país que aja como John, obtendo vantagens para si mesmo e para os seus próprios cidadãos, ao mesmo tempo que colhe benefícios com a contenção dos outros, é egoísta, injusto e está a agir incorrectamente? E significará isso que o líder desse país está também a agir incorrectamente? Os chamados “realistas” nas relações internacionais respondem negativamente a estas perguntas. Os realistas pensam que a moral funciona apenas no seio de uma comunidade que tem alguns valores comuns, uma fonte de autoridade e um meio de fazer cumprir as leis. Entre países, como sublinhou o filósofo inglês Thomas Hobbes no século XVII, o “estado de natureza” ainda prevalece: não há comunidade, autoridade nem lei implementável. Daí que nem as nações nem os seus líderes possam ser julgados pelos padrões que aplicamos aos indivíduos.

A escolha de Bush de Condoleezza Rice para sua conselheira em política externa durante a campanha e sua conselheira para a segurança nacional após a eleição levou muitas pessoas a supor que ele era realista. Rice acusou a administração de Clinton de confundir política externa com moral e prometeu, como prometeria um realista, “centrar de novo os Estados Unidos no interesse nacional e na prossecução de prioridades fulcrais”. A resposta de Bush a Jim Lehrer sobre o que faria se fosse eleito presidente reforçou este pressuposto, pois aquela pareceu sem dúvida a resposta de um realista. No entanto, pelo menos desde 11 de Setembro de 2001, tornou-se óbvio que Bush não é realista. Tem reiteradamente definido a cena internacional em termos morais. O seu discurso do “eixo do mal” é apenas o mais bem conhecido de muitos exemplos. Não só nos seus discursos sobre o Iraque e Saddam Hussein, mas também quando fala acerca de ajuda externa, comércio livre e o Protocolo de Quioto, Bush apresenta as suas perspectivas numa linguagem moral. O seu moralismo é precisamente o oposto da abordagem realista.

Se estamos a trabalhar no âmbito de um contexto moral, e não realista, temos de regressar à questão colocada acima: se uma coisa fosse incorrecta, se feita por um indivíduo, será igualmente incorrecta se for feita por um líder nacional? Uma forma de responder a esta pergunta é negativamente, dizendo que o papel de um líder nacional impõe deveres específicos. Tal como se espera que os pais tomem conta dos seus próprios filhos, e não dos filhos de estranhos, também ao assumir o cargo de presidente dos Estados Unidos George W. Bush aceitou um papel específico que torna seu dever proteger e promover os interesses dos americanos. Os outros países têm os seus líderes, com papéis semelhantes relativamente aos interesses dos seus concidadãos. Por exemplo, o primeiro-ministro australiano, Alexander Downer, defendeu a determinação do seu governo em promover os interesses nacionais da Austrália afirmando que “se não o fizermos, ninguém o fará”. Na ausência de uma comunidade global, temos de ter estados-nação, e os líderes desses estados-nação têm de dar preferência aos interesses dos seus cidadãos.

Há algum mérito neste argumento. O filósofo Robert Goodin argumenta que, se estivermos doentes no hospital, é melhor ter um médico particular responsabilizado pelos nossos cuidados do que deixá-los a todos os médicos do hospital em geral; analogamente, prossegue o argumento, é melhor ter um estado claramente responsável pela protecção e promoção dos interesses de todos os indivíduos que se encontram no seu território. Um governo americano que dedicasse mais recursos à construção de escolas no México do que à construção de escolas na América poderia ser acusado de negligenciar as suas responsabilidades para com os seus cidadãos. Os deveres específicos atribuídos por papéis podem ser justificados na base de que um sistema de papéis com deveres correspondentes fornece um melhor enquadramento para atingirmos os resultados pretendidos, quer seja um ambiente seguro e protector no qual as crianças possam crescer, quer seja um bom governo que protege o bem-estar dos cidadãos. No entanto, um pai que leva os filhos ao parque infantil do bairro não tem o direito de passar as suas crianças à frente das outras que estiveram à espera para andar de baloiço. O director de uma empresa tem o dever de produzir lucros para os accionistas, mas isso não significa que tenha direito a recorrer a práticas comerciais desonestas para o fazer. Relativamente aos líderes nacionais aplica-se algo semelhante. Os deveres de um papel não descartam a obrigação de considerar os interesses dos outros e de lidar justamente com eles. Especialmente hoje em dia, é importante que os países sejam bons cidadãos mundiais, e os governos têm de equilibrar essa obrigação com a preocupação pelos interesses do país que governam. Como se enquadra a ética de Bush neste padrão quando o que está em jogo é uma gama de questões cujo alcance ultrapassa as fronteiras americanas — questões como a ajuda externa, o comércio livre, o Tribunal Penal Internacional e o aquecimento mundial?

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Dúvidas?

Ajudar os outros

Se fazer o que é melhor para os Estados Unidos e os seus cidadãos é o princípio orientador declarado por Bush para a política externa, há uma área em que ele parece ter violado aquele princípio agindo de uma forma mais compassiva e ética do que sugeriria o compromisso com o interesse nacional. Essa área é a ajuda externa, ou o ponto até ao qual as nações ricas como a América devem ajudar as pessoas mais pobres do mundo a alimentarem-se a si e às suas famílias, a mandar os filhos à escola, a terem acesso pelo menos a um mínimo de cuidados médicos e a conseguirem melhorar, em termos gerais, o seu modo de vida.

A primeira iniciativa importante de Bush no campo da ajuda externa ocorreu em Março de 2002, durante a aproximação da conferência das Nações Unidas para o Financiamento do Desenvolvimento a realizar em Monterrey, no México. Bush falou sentidamente da necessidade de se fazer alguma coisa com respeito ao facto de que quase metade da população mundial vive com menos de dois dólares por dia. Falou do Malawi, onde a esperança de vida diminuiu para apenas trinta e oito anos, da Sierra Leone, onde quase um terço dos bebés morre antes dos cinco anos, e do Sudão, onde apenas metade das crianças vai à escola. Embora tenha relacionado a pobreza e o desespero que ela provoca com o terrorismo, sugerindo assim que era melhor para a América ajudar as pessoas a saírem da pobreza, também afirmou que o fosso crescente entre os ricos e os pobres é “um desafio à nossa compaixão” e que trabalhar pela prosperidade e as oportunidades é “a coisa correcta a fazer”.

Ainda mais importante — e contrastando com as palavras semelhantes que proferira sobre criar uma terra de justiça e oportunidades nos Estados Unidos — Bush mostrou-se disposto a reforçar estas palavras com recursos adicionais, além daqueles que haviam sido afectados à ajuda externa em anos recentes. Anunciou que os Estados Unidos aumentariam o auxílio ao desenvolvimento em cinco mil milhões de dólares ao longo de três anos, levando, no final desse período, a um aumento substancial anual de cinquenta por cento relativamente aos níveis correntes. De forma a tornar este dinheiro adicional tão eficaz quanto possível no combate da pobreza, destinar-se-ia a uma nova “Conta Desafio do Milénio”, reservada a projectos desenvolvidos em países com governos que satisfizessem determinados requisitos de elegibilidade — tinham de, nas palavras de Bush, “governar justamente, investir no seu povo e encorajar a liberdade económica”. Isto significa abolir a corrupção, respeitar os direitos humanos e implementar um estado de direito, assim como permitir que os mercados funcionem livremente. A ideia subjacente à Conta Desafio do Milénio é estabelecer um “Contrato para o Desenvolvimento” com aqueles países que estão a desenvolver políticas correctas. “Quando o auxílio se junta a uma boa política”, disse Bush, “são retiradas da pobreza quatro vezes mais pessoas do que seguindo as antigas práticas de auxílio”. Os Estados Unidos mostrarão estar dispostos a ajudar, se os governos dos países em vias de desenvolvimento fizerem a sua parte de remoção dos obstáculos internos que mantêm os respectivos povos na pobreza. Uma vez em acção, o contrato serviria de exemplo a outros países, mostrando-lhes que o caminho para a reforma tem compensações.

Independentemente da Conta Desafio do Milénio, Bush também assumiu um compromisso substancial com a luta mundial contra a SIDA. Levou algum tempo a envolver-se nesta luta. Numa conferência sobre este tema, realizada na Nigéria em Abril de 2001, o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, sublinhou a dimensão e urgência da catástrofe da SIDA que avassalava a África e outras zonas do mundo. Nessa data, dezassete milhões de pessoas haviam já morrido devido a essa doença só na África austral, e, em todo o mundo, trinta e seis milhões de pessoas encontravam-se infectadas com o vírus que leva à doença. Annan apelou à criação de um fundo mundial multimilionário destinado a combater a SIDA, dizendo serem necessários entre sete mil milhões a dez mil milhões de dólares todos os anos para inverter a disseminação da doença. Bill Gates, fundador da Microsoft, cuja fundação entregou cento e vinte e seis milhões de dólares para o Programa Internacional de Vacinação contra a SIDA, desafiou os líderes mundiais, a começar por Bush, a assumir “compromissos financeiros novos e sem precedentes” relativamente à luta contra a SIDA. No entanto, nove meses depois, a administração de Bush fizera apenas uma contribuição muito modesta para o fundo mundial destinado à SIDA: duzentos milhões de dólares em 2002 e a mesma quantia no ano seguinte. O fundo esgotava-se e os seus defensores culpavam a América por dar tão mau exemplo. Bill Frist e Jesse Helms, importantes senadores republicanos conservadores, anunciaram o estudo de legislação que autorizaria um aumento de quinhentos milhões de dólares nos fundos norte-americanos, destinados especialmente à prevenção da transmissão do vírus da SIDA de mães para filhos. Frist, cirurgião que estivera em África a tratar de doentes com SIDA, apresentou igualmente um projecto de lei bipartidário juntamente com o senador democrata John Kerry que defendia a afectação de quatro mil milhões de dólares ao longo de dois anos para a luta contra a SIDA, mas o Senado chumbou a proposta. Em Junho de 2002, Bush anunciou a sua própria iniciativa dos quinhentos milhões de dólares, mas os defensores das vítimas da SIDA registaram que esta quantia, a ser despendida ao longo de dois anos, era ainda muito menos do que o necessário, ficando também aquém do que outros países desenvolvidos haviam contribuído para o fundo mundial, relativamente à dimensão das respectivas economias.

A ideia de Bush sobre o que devia fazer sobre a SIDA pode ter começado a mudar em Dezembro de 2002, quando Frist passou a ser líder da maioria no Senado. Então, enquanto um dos dois mais poderosos membros do Congresso, estava em posição de fazer alguma coisa pelas vítimas de SIDA. Um mês mais tarde, Bush surpreendeu mesmo os activistas da luta contra a SIDA bem informados ao anunciar, no seu discurso do Estado da Nação de 2003, que se voltaria do terrorismo e da ameaça que o Iraque representava para o sofrimento de trinta milhões de africanos, incluindo três milhões de crianças com menos de quinze anos, infectados pelo vírus da SIDA. Bush referiu que a SIDA pode ser prevenida e o custo dos medicamentos necessários a prolongar a vida durante muitos anos baixara de doze mil dólares anuais para menos de trezentos. (Esta é uma declaração notável só por si, pois a redução do preço resultou da utilização de medicamentos genéricos mais baratos que a administração de Bush, em resposta às pressões exercidas pelas empresas farmacêuticas, tentara restringir.) O custo mais reduzido dos medicamentos retrovirais, afirmou Bush, “coloca ao nosso alcance uma tremenda possibilidade […] poucas vezes a história ofereceu uma oportunidade maior de fazer tanto por tantos”. Em seguida, pediu ao Congresso que desbloqueasse dez mil milhões de dólares para “reverter a maré contra a SIDA nos países mais afectados de África e das Caraíbas”. O Congresso satisfez rapidamente o pedido e quatro meses depois Bush assinou a lei que, afirmou, constituía “o maior envolvimento da história numa iniciativa de saúde pública relativo a uma única doença”.

Qual a importância das iniciativas de Bush no sentido de aumentar a ajuda dos Estados Unidos, tanto no desenvolvimento como na luta contra a SIDA? Para responder a esta questão, precisamos de começar por esclarecer a declaração confusamente redigida de Bush acerca da quantia adicional que propunha depositar na Conta Desafio do Milénio. Embora tenha falado na entrega de cinco mil milhões de dólares ao longo de três anos, este número não corresponde à referência que fez a um aumento de cinquenta por cento no auxílio norte-americano ao desenvolvimento. Quando, mais tarde, os responsáveis esclareceram a proposta, confirmaram o número mais elevado — um aumento de cinquenta por cento, significando que o auxílio prestado aumentará progressivamente durante os próximos três anos fiscais até, no final desse período — ano fiscal de 2006 — atingir os quinze mil milhões de dólares, ou aproximadamente mais cinquenta por cento do que a quantia afectada na altura do discurso de Bush. Uma vez que ficará disponível algum dinheiro adicional nos anos fiscais de 2004 e 2005, a quantia extra total será, ao longo dos três anos, substancialmente superior a cinco mil milhões de dólares. Quando, em Fevereiro de 2003, Bush apresentou propostas de orçamento ao Congresso referentes até a 2008, estas incluíram um total de vinte mil milhões de dólares depositados ao longo de cinco anos na Conta Desafio do milénio. Incluindo o dinheiro suplementar destinado ao combate da SIDA, Bush está a propor um aumento anual do auxílio norte-americano ao desenvolvimento e humanitário de dez mil milhões em 2002 para dezoito mil milhões em 2008.

Trata-se, assim, de um grande aumento relativamente aos actuais níveis de ajuda. Ainda assim, se tudo correr conforme o planeado, os Estados Unidos irão em 2008 estar a contribuir com um nível reduzido e não generoso de ajuda. Em 2001, último ano para que existem dados disponíveis, a Dinamarca entregou um pouco mais de um por cento do produto nacional bruto em auxílio externo. As Nações Unidas estabeleceram um valor desejável de 0,7 por cento. Além da Dinamarca, outros quatro países — Noruega, Países Baixos, Luxemburgo e Suécia — ultrapassaram esse valor. Importantes países europeus, como o Reino Unido, a França e a Alemanha, contribuíram aproximadamente com 0,3 por cento. O Japão, país com a segunda maior economia do mundo, contribuiu com 0,23 por cento. Os Estados Unidos entregaram apenas 0,11 por cento, ou seja, onze cêntimos por cada cem dólares produzidos pelo país — a menor proporção de todos os países desenvolvidos. (Estes números dizem respeito à ajuda pública. Os donativos privados com origem nos Estados Unidos são superiores aos dos outros países, mas a sua inclusão no cálculo faz aumentar a proporção do rendimento interno bruto entregue em auxílio apenas para 0,145 por cento, encontrando-se ainda entre as mais baixas dos países desenvolvidos.) Se os Estados Unidos tivessem dado dezoito mil milhões em 2001, ter-se-iam, ainda assim, situado abaixo de todos os países que mencionei. Para se encontrar a par da Suécia, da Noruega, dos Países Baixos e do Luxemburgo na quantia doada em relação à dimensão da economia, os Estados Unidos teriam de aumentar o auxílio externo anual não para dezoito mil milhões de dólares, mas aproximadamente para oitenta milhões de dólares. Além disso, até esse número subestima a deslocação em direcção à ajuda genuína ao desenvolvimento e humanitária que seria requerida. Os cinco principais receptores da ajuda norte-americana ao desenvolvimento foram, em 2001, por ordem decrescente de magnitude, o Egipto, o Paquistão, a Colômbia, a Jordânia e a antiga República da Jugoslávia. Comparem-se estes com os principais receptores da Dinamarca: Tanzânia, Uganda, Vietname, Moçambique e Gana, e é fácil perceber que a ajuda da Dinamarca está a ir para países com necessidades muito maiores. O que os Estados Unidos chamam “ajuda ao desenvolvimento” destina-se sobretudo a países de interesse estratégico ou outro para os Estados Unidos (por exemplo, garantir a presença do Egipto no processo de paz do Médio Oriente ou tentar pôr fim às exportações colombianas de droga).

Também podemos comparar a proposta de Bush com a ajuda dada pelos Estados Unidos em décadas recentes. Em 2006, com a Conta Desafio do Milénio em pleno funcionamento e honrado o compromisso de financiamento especial do combate à SIDA, a ajuda externa norte-americana ficará bem abaixo da média de 0,2 por cento do rendimento nacional que os Estados Unidos registaram durante a década de 1980. Ficará ainda abaixo do nível actualmente registado por praticamente todos os outros países desenvolvidos e a cerca de um quarto do objectivo recomendado pelas Nações Unidas.

Mais esclarecedora é a comparação entre os aumentos da despesa em ajuda externa adicional e no orçamento da despesa, para o mesmo período. Na sua proposta de orçamento para 2003, apresentada apenas um mês antes do seu anúncio da iniciativa da Conta Desafio do Milénio, o Departamento da Defesa recebia um aumento de quarenta e oito mil milhões de dólares relativamente ao ano anterior. Um ano mais tarde, pouco tempo depois de ter pedido ao Congresso que aprovasse a despesa de quinze mil milhões de dólares na luta contra a SIDA, propôs adicionar quinze mil milhões de dólares ao orçamento da defesa para 2004, o que significava um orçamento total do Departamento da Defesa de trezentos e oitenta mil milhões de dólares. Uma vez que este aumento dizia respeito a um único ano, era cinco vezes mais do que a despesa que se propunha fazer no combate à SIDA. Então, em Março de 2003, quando era lançado o ataque ao Iraque, Bush regressou ao Congresso, pedindo mais setenta e cinco mil milhões de dólares para a “guerra ao terrorismo”, dos quais sessenta e três mil milhões de dólares se destinavam especificamente às operações militares no Iraque. Em Setembro de 2003, Bush foi de novo ao Congresso, desta vez pedindo mais oitenta e sete mil milhões de dólares para a ocupação e a reconstrução do Iraque. Meses depois de ter declarado “concluídas” as principais operações de combate no Iraque, a ocupação deste país custava ainda ao Pentágono, todos os meses, trinta por cento mais do que Bush prometera gastar com a SIDA num ano inteiro.

Considerando conjuntamente a Conta Desafio do Milénio e o financiamento destinado à SIDA, Bush estabeleceu um aumento gradual em ajuda humanitária e ao desenvolvimento de oito mil milhões de dólares anuais. Desta quantia, cinco mil milhões de dólares destinam-se anualmente a ajudar mais de dois mil milhões de pessoas a viver na pobreza, e três mil milhões de dólares destinam-se anualmente a ajudar mais de trinta milhões de pessoas infectadas com o vírus da SIDA, que morrerão se não tiverem acesso a medicamentos que custam anualmente trezentos dólares, assim como muitos milhões mais que serão infectadas se os esforços para diminuir a disseminação da doença forem inadequados. Bush conhece estes valores — foram retirados do seu discurso do Estado da Nação de 2003. Também sabe o que acontece às pessoas que têm SIDA em África. Eis as suas palavras:

Como o diagnóstico de SIDA é considerado uma sentença de morte, muitos não procuram tratar-se. Quase todos os que o fazem são mandados embora. Um médico sul-africano, de uma zona rural, descreve a sua frustração. Afirma: “Não temos medicamentos. Em muitos hospitais diz-se às pessoas: tem SIDA, não podemos ajudá-lo. Vá morrer para casa”. Numa era de medicamentos milagrosos, ninguém devia ouvir estas palavras.

Não é preciso fazer grandes cálculos aritméticos para perceber que três mil milhões de dólares não chegam para garantir que ninguém ouvirá estas palavras. Os outros países desenvolvidos estão também a fazer a sua parte, mas mesmo que o total seja nove mil milhões de dólares, uma vez que grande parte disto terá de destinar-se a ensinar as pessoas a evitarem novas infecções, ainda assim não chegará para fornecer a todas as vítimas de SIDA os medicamentos necessários. O contraste entre os valores propostos por Bush para a luta contra a pobreza e a SIDA e para o orçamento da defesa e a guerra com o Iraque constituiu uma indicação clara das suas prioridades. O mesmo se aplica ao imenso lapso de tempo decorrido desde o discurso do Estado da União sem que nada sucedesse no terreno. Nas palavras de Jeffrey Sachs, professor de economia e director do Instituto da Terra da Universidade de Columbia, “Apesar do muito palavreado e um discurso famoso, e um plano que não está a ser implementado, essencialmente, nada foi feito”. Uma vez que mais de sete milhões de africanos morreram de SIDA desde a eleição de Bush para a presidência, a história julgá-lo-á, considerou Sachs, “severamente” por este atraso “completamente indesculpável”.

Há outras preocupações relativamente às iniciativas humanitárias de Bush. Os críticos da globalização vêem os critérios a que os países em vias de desenvolvimento têm de obedecer para obter auxílio da Conta Desafio do Milénio como uma armadilha para os obrigar a abrir as suas economias ao comércio mundial. Isso, afirmam os críticos, afectará negativamente os seus cidadãos mais pobres, que verão os seus mercados perderem face a bens mais eficientes, e muitas vezes subsidiados, provenientes de países industrializados. Além disso, aqueles que se encontram no fundo da pirâmide dos países menos desenvolvidos do mundo não serão capazes de tirar partido das oportunidades oferecidas pelo comércio mundial, pois faltam-lhes os conhecimentos e as infra-estruturas necessários à produção de bens que o resto do mundo esteja disposto a comprar. Os críticos do programa de Bush de combate à SIDA sublinham que pelo menos um terço dos fundos destinados à prevenção da SIDA têm de ser usados na promoção da abstinência. Alguns crêem que a promoção da abstinência não é eficaz e outros referem que esta disposição restringirá o fluxo de fundos para grupos que trabalham junto de prostitutas, cuja cooperação é importante para prevenir a disseminação da SIDA, mas que dificilmente responderão aos esforços no sentido da prática de abstinência. Mas mesmo não sendo a promoção da abstinência a melhor forma de combater a SIDA, aquela pode ser boa em determinadas circunstâncias, existindo ainda uma quantia de dinheiro considerável (embora inadequada) destinada a outras formas de prevenção da SIDA, assim como à prevenção da transmissão do vírus entre mãe e filho e ao fornecimento de medicamentos a pessoas que estão já infectadas. Outra preocupação séria reside no facto de a legislação que Bush assinou não estabelecer a afectação de três mil milhões de dólares por ano durante cinco anos: o dinheiro tem ainda de ser afectado anualmente pelo Congresso e a Casa Branca solicitou uma afectação de apenas dois mil milhões de dólares para 2004. Ainda assim, e mesmo tendo Bush sido lento ter noção da dimensão do que era necessário, a sua iniciativa relativa à SIDA constituiu um grande passo em frente. Até então, parecia possível que o mundo desenvolvido pouco ou nada fizesse para prevenir uma catástrofe humanitária a uma escala que apagaria o Holocausto nazi, os campos de morte do Camboja e o massacre dos tutsis no Ruanda. Agora aprece que, com outros países desenvolvidos a aderirem, será feito algo significativo.

Devemos dar os louros a quem os merece. Embora Bush não tenha certamente feito — segundo os seus próprios padrões — o suficiente para combater a pobreza e a SIDA, durante a era de Clinton, a ajuda norte-americana diminuiu tanto em proporção da dimensão da economia, como em proporção da despesa pública. Ao inverter esta tendência alarmantemente egoísta e de visão curta, Bush, como referiu Andrew Natsios, administrador da USAID, “tirou o desenvolvimento do baú e colocou-o indubitavelmente à frente da nossa política externa”. Embora o resultado ainda seja incerto, é possível que a iniciativa de Bush, ao insistir que a ajuda adicional incluída na Conta Desafio do Milénio vá apenas para países com governos justos que invistam no seu povo e permitam a liberdade económica, ajude a dar um melhor rumo a esses países. De qualquer modo, ao atribuir mais dinheiro e importância à ajuda ao desenvolvimento e à luta contra a SIDA, Bush deu passos que encerram a potencialidade de melhorar e prolongar as vidas de milhões de pessoas.

Comércio

Bush mostrou-se um defensor incondicional do comércio internacional livre, por razões éticas e económicas, desde os tempos em que era candidato à presidência. Em A Charge to Keep, afirmou que a defesa dos mercados livres e do comércio livre era em parte aquilo que fazia de si um conservador. Prestando homenagem a Ronald Reagan em 1999, disse que a defesa do comércio “não é apenas monetária, mas moral. A liberdade económica cria hábitos de liberdade”. Na Cimeira das Américas, realizada na Cidade do Quebeque em Abril de 2001, anunciou a sua intenção de “prosseguir inabalavelmente a sua defesa do comércio livre”, ignorando os protestos anti-globalização. Um mês mais tarde, afirmou: “O comércio livre não constitui apenas uma oportunidade económica: é um imperativo moral”. Ao assinar a Lei do Comércio, de 2002, descreveu o comércio livre como “uma estratégia testada para a construção de prosperidade mundial” e disse que este ajudara a tirar “milhões de pessoas, e nações inteiras, e regiões inteiras, da pobreza, colocando-as no caminho da prosperidade”. Em Maio de 2003, afirmou perante os cadetes da Guarda Costeira: “A ambição nacional da América é propagar os mercados livres, o comércio livre e as sociedades livres”.

Apesar de toda a retórica de Bush e dos líderes de outros países industrializados sobre a eliminação de barreiras ao comércio e o auxílio aos pobres do mundo, quando os países em vias de desenvolvimento exportam para os países ricos têm de fazer face a taxas aduaneiras quatro vezes mais elevadas do que aquelas cobradas aos países ricos pelos seus produtos. Estas barreiras comerciais privam os países em vias de desenvolvimento de ganhos anuais na ordem dos cem mil milhões de dólares, ou seja, aproximadamente duas vezes mais o valor que lhes é entregue em auxílio pelos países ricos. Esta é uma razão pela qual alguns protestam contra a globalização económica. Dizem que os países industrializados, incluindo a América de Bush, adaptaram os termos do comércio em seu próprio benefício, obrigando os países em vias de desenvolvimento a abrir as portas a bens e serviços produzidos no mundo industrializado mas recusando-se a permitir que o mercado livre dite o destino das suas próprias empresas.

A Oxfam, agência internacional de auxílio, compilou um “Índice dos Padrões de Dois Pesos e Duas Medidas” com a finalidade de avaliar o fosso entre a posição de um país sobre o comércio livre e a realidade daquilo que efectivamente faz para permitir o acesso dos países em vias de desenvolvimento aos seus mercados. Dos quatro principais blocos ou países industrializados, a União Europeia surge como a pior classificada, logo seguida dos Estados Unidos, com um registo ainda pior do que os do Japão e do Canadá. Entre os principais pontos fracos dos Estados Unidos contam-se os enormes subsídios atribuídos aos produtos agrícolas; uma taxa alfandegária cento e vinte vezes superior ao normal aplicada ao amendoim, principal produto de alguns países africanos; o não levantamento de mais de um quarto das restrições aplicadas à importação de têxteis e vestuário que os Estados Unidos se tinham comprometido a não aplicar nos termos do Acordo relativo aos Têxteis e Vestuário da Organização Mundial do Comércio; a cobrança de taxas aduaneiras sobre os produtos alimentares transformados mais elevadas do que sobre os produtos alimentares não processados, impedindo assim os países em vias de desenvolvimento de criar postos de trabalho acrescentando valor às suas exportações; e um aumento acentuado do número de medidas anti-dumping tomadas contra produtores de baixo custo de países em vias de desenvolvimento. (O dumping implica a venda no estrangeiro de bens abaixo do seu custo de produção, ou mais baratos do que o seu custo nos países de destino. Embora os países tenham o direito de proteger-se destas práticas comerciais injustas, as acusações de dumping são muitas vezes pretexto para proteger os bens nacionais da concorrência legítima.)

O historial de Bush não é linear. Este presidente apoiou uma importante iniciativa a favor dos países mais pobres do mundo — a Lei das Oportunidades e Desenvolvimento de África (AGOA). Esta lei, que entrou em vigor durante a presidência de Clinton mas foi melhorada em Agosto de 2002, permite o acesso ao mercado livre de produtos seleccionados oriundos de trinta e oito países africanos. Na cimeira de 2003 dos países participantes na AGOA, em declarações gravadas para serem emitidas, Bush disse: “A AGOA mostra o poder que o comércio tem para tirar as pessoas da pobreza”. As exportações dos países da AGOA para os Estados Unidos estavam a “aumentar drasticamente”, afirmou ele, e a legislação estava a “ajudar a reformar antigas economias, criando novos incentivos à boa governação e oferecendo uma nova esperança a milhões de africanos”. É verdade que durante 2002 as exportações dos países da AGOA aumentaram dez por cento, mas mais de três quartos dessas importações eram produtos petrolíferos, que contribuem menos para a criação de postos de trabalho do que produtos mais intensivos em termos de mão-de-obra, como os têxteis, e não menos susceptíveis de “reformar antigas economias”. Excluindo os produtos petrolíferos, a totalidade dos trinta e oito países da AGOA, em conjunto, exportaram apenas um valor modesto em bens (2,2 mil milhões de dólares) para os Estados Unidos. (Para compararmos, as exportações da Austrália, com uma população de dezanove milhões de habitantes — cerca de um vigésimo do total combinado dos países pertencentes à AGOA — para os Estados Unidos registaram um valor superior a seis mil milhões de dólares.) Por conseguinte, o “aumento drástico” só é possível devido ao pequeno ponto de partida e o aumento das exportações dos países da AGOA não bastou para compensar um declínio mais substancial das importações totais norte-americanas de outros países da África austral que, na verdade, decresceram mais de quinze por cento, em 2002. A Lei das Oportunidades e Desenvolvimento de África é um passo na direcção certa, e o apoio de Bush é louvável, mas nem mesmo nos países abrangidos por esta lei ela consegue eliminar todas as barreiras ao comércio.

Noutros aspectos, o empenhamento de Bush no comércio livre não encontra correspondência nos princípios que perfilha. Ao anunciar a sua candidatura à presidência, afirmou: “Trabalharei no sentido de pôr fim às taxas aduaneiras e eliminar completamente as barreiras em todo o lado, para que o mundo inteiro negoceie em liberdade. Os temerosos erguem paredes. Os confiantes deitam-nas abaixo”. Todavia, enquanto presidente, Bush impôs taxas aduaneiras de quase trinta por cento sobre a maior parte dos tipos de aço importados da Europa, da Ásia e da América do Sul. Dificilmente se poderá entender este como um passo revelador de confiança na indústria norte-americana. O aumento do imposto ofereceu ao ministro do comércio chinês, Shi Guangsheng, uma oportunidade irresistível para se queixar de que “as economias avançadas [que] apregoam o comércio livre estão agora a debilitar o comércio livre”. Por uma vez, os conservadores concordavam com o governo chinês. The Weekly Standard descreveu a taxa como “talvez a pior lei comercial em meio século”. O colunista George Will disse que a taxa era um caso de “conservadorismo compassivo para as empresas dependentes do estado”, acrescentando a derradeira calúnia conservadora: nesta questão, Bush revelara-se “com menos princípios do que Bill Clinton”. Previsivelmente, os países estrangeiros afectados pelas taxas, chefiados pela União Europeia, denunciaram o caso à Organização Mundial do Comércio. Ninguém se mostrou surpreendido quando a OMC determinou a ilegalidade das taxas sobre o aço. Mesmo então, não foi senão quando a União Europeia ameaçou com a aplicação de taxas elevadas sobre importações oriundas de estados norte-americanos eleitoralmente sensíveis, como a Florida, que Bush finalmente recuou.

No ano de eleições de 2002, os princípios de Bush relativos ao comércio livre desfizeram-se de novo, aparentemente incapazes de fazer frente à polémica que geraria a sua oposição a um projecto de lei agrícola que atribuía quantias consideráveis de receitas fiscais aos agricultores — na sua maioria, agricultores ricos de corporações. The Wall Street Journal chamou à lei “um balde de despejos de dez anos e 173,5 mil milhões de dólares” que “embaraçaria até os franceses”. A Lei da Segurança Agrícola e Investimento Rural de 2002 aumentou os subsídios concedidos aos produtores de culturas como milho e trigo em cinquenta mil milhões de dólares ao longo de dez anos, um aumento de setenta por cento relativamente aos níveis anteriores e uma inversão completa da tentativa levada a cabo no projecto de lei relativo à agricultura abrangente (aprovado em 1996, na era de Clinton) para desabituar os agricultores americanos dos subsídios. Em vez de se recusar a assinar uma violação tão flagrante dos princípios do mercado livre, Bush exprimiu satisfação por a lei “fornecer uma rede de segurança generosa e fidedigna aos agricultores e proprietários de ranchos do nosso país”, assinando-a.

Se Bush considera realmente que o comércio livre é um imperativo moral, devia ter vetado a Lei da Segurança Agrícola e Investimento Rural de 2002. Menos de seis meses antes, num encontro da Organização Mundial do Comércio realizado em Doha, no Qatar, os Estados Unidos e outros membros desta organização haviam concordado em remover as barreiras ao comércio agrícola. A chamada “Ronda de Doha”, iniciada com este encontro, tornou-se muito mais difícil devido ao aumento drástico dos subsídios norte-americanos atribuídos aos agricultores. Os subsídios podem ameaçar os acordos comerciais que estabelecem limites ao que os Estados Unidos podem gastar naquilo que é conhecido como subsídios “de distorção do comércio”. Também torna muito mais difícil aos Estados Unidos queixar-se credivelmente da União Europeia devido aos subsídios por esta atribuídos à agricultura: como notou causticamente o comissário europeu para o comércio, Pascal Lamy, os Estados Unidos pagam agora três vezes mais a cada exploração agrícola do que a União Europeia.

James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, fez notar que estes subsídios à agricultura dos países ricos ascendem a seis vezes o que esses países fornecem em ajuda externa a todo o mundo em vias de desenvolvimento. Além disso, enquanto a ajuda é distribuída pelos cinco mil milhões de pessoas que vivem nos países em vias de desenvolvimento, os subsídios vão principalmente para um número relativamente pequeno de empresas agrícolas e grandes corporações. A Lei da Segurança Agrícola e Investimento Rural de 2002 enfureceu os brasileiros, que afirmam que os subsídios privam anualmente os seus produtores de soja e algodão de 1,5 mil milhões de dólares em exportações. A Lei permitiu ainda a duplicação dos subsídios atribuídos ao algodão, para quase quatro mil milhões de dólares anuais. Estes subsídios ameaçam a subsistência de uma parte das pessoas mais pobres do mundo, incluindo aquelas que a Lei das Oportunidades e Desenvolvimento de África se propunha ajudar. Os produtores de algodão da África ocidental dizem que, apesar dos baixos custos conseguidos, não estão em condições de concorrer com o algodão dos Estados Unidos, exportado por um preço cinquenta e sete por cento abaixo do seu custo de produção. Os subsídios americanos são entregues a apenas vinte e cinco mil produtores de algodão, com um valor líquido médio de oitocentos mil dólares. No país africano do Burkina Faso, onde o algodão constitui a principal cultura de exportação, o rendimento anual médio é de duzentos dólares. Segundo a Oxfam, os subsídios norte-americanos ao algodão provocaram uma descida de doze por cento nas receitas das exportações do Burkina Faso e descidas mais pequenas, mas igualmente importantes, nas receitas de vários países africanos pobres. A administração de Bush gasta mais a subsidiar os seus vinte e cinco mil produtores de algodão do que em ajuda externa a toda a África, através da sua Agência Internacional de Desenvolvimento (USAID). Os produtores africanos de algodão do Benim, do Burkina Faso, do Chade e do Mali juntaram-se ao Brasil e apresentaram uma queixa oficial junto da OMC relativa aos subsídios ao algodão pagos nos Estados Unidos e na Europa. Em Setembro de 2003, a ronda de conversações iniciada em Doha foi abruptamente suspensa quando as negociações no encontro da OMC em Cancun, no México, se goraram. A recusa dos Estados Unidos a reconsiderar os seus subsídios ao algodão foi um dos factores a contribuir para esse impedimento à continuação da liberalização do comércio. Os efeitos de longo prazo do projecto de lei agrícola sobre os esforços para criar um ambiente mundial de comércio livre são claramente negativos.

Como objectivo ético, o comércio livre mundial é controverso, mas defensável. É compatível com outros valores professados por Bush, incluindo o valor dos mercados livres em geral. Mas não é ético pregar o valor do comércio livre ao mundo e depois ceder à pressão política e proteger as indústrias americanas que não conseguem concorrer no seu próprio mercado. Nem é ético subsidiar produtores nacionais ricos para que, com o auxílio dos contribuintes americanos, estes possam arrebatar os mercados dos produtores dos países em vias de desenvolvimento. No entanto, foi isso que Bush fez.

O Tribunal Penal Internacional

Em Julho de 2002, mais de uma centena de países celebraram a criação do Tribunal Penal Internacional, ou TPI. O TPI é o sucessor de tribunais que remontam ao Tribunal de Nuremberga, criado pelos Aliados vitoriosos para julgar os chefes nazis pelo crime de praticar uma guerra de agressão e também por genocídio e crimes contra a humanidade. Seguiram-se outros tribunais, para lidar com os crimes contra a humanidade perpetrados na Bósnia depois da dissolução da Jugoslávia, no Ruanda durante o massacre dos tutsis levado a cabo pelos hutus, e pelas milícias apoiadas pela Indonésia em Timor-leste. Ao criarem o TPI, os países participantes tentaram ir além da justiça dos vencedores sobre os vencidos, atribuindo, ao invés, uma base mais imparcial e permanente à justiça penal internacional. O tribunal terá um procurador que pode formular acusações de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra praticados sobre indivíduos, desde que estes sejam nacionais de um estado signatário do Tratado, ou o crime tenha sido praticado no território de um tal estado, ou seja indicado ao Tribunal um caso específico pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. O objectivo é assegurar que não existe qualquer subterfúgio legal em nenhum sítio do mundo para os que praticam tais crimes. Esse objectivo, poder-se-ia pensar, adequa-se bem aos valores americanos, defendendo os direitos humanos universais e o princípio de que o poder deve ser regulado pela lei.

Nos dias finais da sua presidência, Clinton assinou o tratado que cria o TPI. Desde então, surgiu uma razão adicional importante para os Estados Unidos apoiarem o TPI. Se, no rescaldo dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, outros países duvidassem da imparcialidade da justiça americana e se mostrassem relutantes a entregar um dos seus cidadãos suspeitos de terrorismo a um tribunal norte-americano, poderiam, ao invés, aceitar a jurisdição de um tribunal internacional. Mas, embora cento e trinta e nove países tenham assinado e noventa e dois tenham ratificado o tratado em Dezembro de 2003 — bem mais do que os sessenta necessários à criação do tribunal — os Estados Unidos não foi um dos países que o ratificou. Bush disse que não iria submeter o tratado ao Senado para ratificação e negou a existência de quaisquer obrigações legais derivadas da assinatura do seu antecessor. Ao dar o segundo destes passos, ele estava não só a opor-se ao TPI como a agir ao arrepio da autoridade da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, que determina que os estados não ponham em causa, insidiosamente, os tratados que assinam, quer os ratifiquem mais tarde, quer não.

Bush e os seus colaboradores afirmaram que participar no tribunal implicaria a cedência de soberania por parte dos Estados Unidos a um procurador internacional e que o tribunal poderia encetar acções caprichosas contra funcionários e militares norte-americanos. Se os Estados Unidos tivessem apoiado o tribunal, poderiam ter contribuído para o desenvolvimento de salvaguardas de impedimento de tais utilizações incorrectas. Ao invés, a preocupação da administração de Bush relativamente ao tribunal foi negociar — sob ameaça de pôr fim à ajuda norte-americana — acordos com países específicos, garantindo que os cidadãos norte-americanos sob a sua jurisdição não seriam extraditados para o TPI. Também convenceram o Conselho de Segurança das Nações Unidas a aprovar resoluções de atribuição de imunidade aos cidadãos norte-americanos. Em Junho de 2003, o Conselho de Segurança concedeu mais um ano de imunidade aos cidadãos norte-americanos, mas o facto de os Estados Unidos estarem uma vez mais a tentar obter tratamento especial para os seus cidadãos fez surgir uma importante questão nos espíritos da comunidade internacional: estarão os Estados Unidos dispostos a participar, como um cidadão entre outros, na criação de um sistema legal internacional ou isolar-se-ão e exigirão tratamento especial, diferente daquele que os outros países estão dispostos a aceitar?

Em Julho de 2003, a administração de Bush anunciou a suspensão da ajuda militar a trinta e cinco países que se haviam recusado a garantir a imunidade dos cidadãos americanos perante o TPI. Alguns destes países, como a Colômbia e o Equador, eram considerados vitais para a existência de estabilidade no Hemisfério Norte, ao passo que outros, como a Croácia, estavam a ser ajudados nos seus esforços de adesão à OTAN. Richard Dicker, director da Human Rights Watch, em Nova Iorque, fez notar que a administração tinha criado um dilema para si própria, pois agora teria de escolher entre apoiar os países democráticos ou apoiar a sua campanha ideológica contra o TPI. Em seguida, Dicker acrescentava, mordazmente: “Nunca vi serem aplicadas sanções a países que acreditam no estado de direito, e não a países que praticam abusos relativamente aos direitos humanos”. Não surpreende que os outros países vejam a insistência de Bush no tratamento especial dos americanos como um impedimento sério à cooperação internacional. Numa cimeira da União Europeia realizada na Grécia em Junho de 2003, os estados-membros emitiram uma reprimenda severa à administração de Bush, declarando: “A União Europeia apoia firmemente o TPI como um importante passo no sentido da implementação do direito internacional e dos direitos humanos. Continuaremos a trabalhar activamente pela universalidade do tribunal e a contribuir para o seu funcionamento efectivo”.

Ironicamente, enquanto Bush andara a insistir para que os cidadãos norte-americanos não fossem levados ao TPI, apesar de todas as garantias a assegurar um processo político limpo, a sua administração continuava a manter detidos na Baía de Guantánamo centenas de cidadãos de outros países, sem qualquer acusação formada, não lhes permitindo o acesso a advogados nem lhes reconhecendo quaisquer direitos que o TPI concederia aos acusados de crimes, nos termos do seu regulamento. Foi durante as negociações entre os Estados Unidos e a Austrália — para assegurar que os americanos na Austrália teriam imunidade relativamente ao TPI — que a administração de Bush anunciou que julgaria David Hicks, cidadão australiano preso no Afeganistão, em tribunal militar. As regras do tribunal não respeitam o direito processual habitual de permitir ao acusado comunicação confidencial com o seu advogado, recusam os habituais padrões aplicados na sala de audiências quanto às provas admissíveis e permitem que uma maioria de dois terços dos “juízes” (dos quais apenas um precisa de ser qualificado juridicamente) decidam a culpa do réu. Deste tribunal, a única instância a que é possível recorrer é um painel de três oficiais militares que se reúnem à porta fechada.

Muitos não americanos consideram a preocupação de Bush em proteger os cidadãos norte-americanos do TPI, ao mesmo tempo que ele próprio mantém detidas pessoas durante anos sem julgamento e ordena até (como vimos no Capítulo 4) o assassínio de cidadãos de outros países, uma pura hipocrisia. Essa impressão é reforçada pelo facto de a atitude de Bush relativamente ao TPI ser semelhante à sua abordagem de outra questão mundial — talvez mais importante — que também exige a cooperação internacional entre países soberanos: o aquecimento global.

Alterações climáticas, ou ser equilibrado

A ideia de que os americanos vêm em primeiro lugar tem uma importância enorme no tratamento do problema paradigmaticamente mundial das alterações climáticas. A atmosfera do nosso planeta é um recurso comum. Não é propriedade total ou parcial de qualquer indivíduo ou país. Todos precisamos dela — não apenas para respirar, mas também para absorver os gases residuais que produzimos, dos quais o dióxido de carbono é o mais importante. Quanto mais combustíveis fósseis utilizarmos, mais dióxido de carbono lançaremos para a atmosfera. Temos agora provas sólidas — muitos cientistas diriam avassaladoras — de que o dióxido de carbono produzido pela utilização humana dos combustíveis fósseis está a alterar o clima do nosso planeta. A alteração climática prevista está já a acontecer, sendo que nove dos dez anos mais quentes jamais registados ocorreram desde 1990.

Se cada país do mundo prosseguir as suas actividades como habitualmente, nada fazendo para reduzir a quantidade de gases indutores de efeito de estufa que lança para a atmosfera, os resultados serão catastróficos para as pessoas no seu conjunto, para a maior parte dos animais não-humanos e para a preservação de muitos animais e plantas em vias de extinção. Um número relativamente pequeno de pessoas e animais, a viver em áreas como a Sibéria e o Norte do Canadá, talvez não se ressintam tanto, mas a sua vantagem será ultrapassada pelas desvantagens sentidas por aqueles que serão afectados por secas e inundações mais acentuadas, pelo aumento da frequência de tempestades tropicais (que ultrapassarão as suas zonas climáticas actuais) e também pela disseminação de doenças tropicais. As monções asiáticas, das quais dependem centenas de milhões de camponeses da Índia e vários outros dos países asiáticos, tornar-se-ão menos regulares. À medida que o gelo polar se for liquefazendo, os níveis do mar subirão entre dez centímetros e um metro. Destes, mesmo o valor inferior significará uma ameaça para as dezenas de milhões de pessoas que cultivam as regiões, férteis mas baixas relativamente ao nível do mar, dos deltas do Bangladesh e do Egipto. Estas terras são já propensas a inundações marítimas quando coincidem tempestades e marés-altas. Se o valor mais elevado se revelar mais próximo da verdade, estas pessoas perderão as suas terras e as pequenas ilhas do Pacífico, que são países, desaparecerão sob as ondas. As espécies incapazes de se adaptarem à alteração climática ou de se deslocarem para um ambiente mais fresco, extinguir-se-ão. A Austrália, por exemplo, possui ecossistemas alpinos únicos que dependem da queda de neve no Inverno. Mas, uma vez que as montanhas australianas não ultrapassam os dois mil metros, se o clima aquecer, deixarão de ter neve. Os animais e as plantas, inexistentes em qualquer outro local, ficarão presos nos picos isolados, como animais em terreno elevado prestes a afogar-se pelas águas de uma inundação.

Quando, pouco tempo depois de tomar posse como presidente, perguntaram a George W. Bush o que faria ele relativamente ao aquecimento global, a sua resposta foi: “Nada faremos que prejudique a nossa economia, pois em primeiro lugar vêm as pessoas que vivem na América”. Ao perguntarem se o presidente exortaria os condutores a reduzir drasticamente o consumo de combustível, o assessor para a imprensa da Casa Branca, Ari Fleischer, afirmou: “Respondo-lhe com um grande “não”. O Presidente pensa que esse é o modo de vida americano e os definidores de políticas têm como objectivo proteger o modo de vida americano. O modo de vida americano é abençoado”. Sob a liderança de Bush, os Estados Unidos recusaram-se a aceitar o Protocolo de Quioto, que exige aos estados signatários a redução da emissão de gases indutores do efeito de estufa para, em média, cinco por cento abaixo dos valores relativos a 1990. (Em 1999, os Estados Unidos estavam já 11,7 por cento acima do seu nível de emissões de 1990 e este valor aumenta a cada ano que passa.)

“Em primeiro lugar vêm as pessoas que vivem na América” dá expressão ao mesmo tipo de egoísmo nacional que ficara evidente na resposta que Bush dera à pergunta de Jim Lehrer no segundo debate presidencial. A esta visão subjaz a ideia de que o direito dos americanos a conduzir automóveis enormes e grandes consumidores de combustível prevalece sobre o direito das pessoas de outros países a viverem nas suas terras, imperturbadas pelos padrões alterados de pluviosidade e pelo nível crescente dos mares. Assim, não surpreende que as pessoas dos outros países considerem que esta forma de pensar não trata justamente aqueles que não são americanos. Romano Prodi, então presidente da Comissão da União Europeia, e antigo primeiro-ministro de Itália, reagiu à declaração de Bush dizendo que “Quando se quer ser um líder mundial, tem de se saber como cuidar da terra toda, e não apenas da indústria americana”.

Houve ocasiões em que Bush reconheceu, e aparentemente aceitou, a perspectiva da Academia Nacional de Ciências de que o aquecimento global se “deve, em grande parte, à actividade humana”. Outras vezes, recuou neste reconhecimento. Em 2002, quando o seu próprio Departamento de Estado entregou um relatório às Nações Unidas elaborado pela Agência de Protecção do Ambiente (EPA) que enfatizava a gravidade do problema do aquecimento global, Bush desprezou-o, considerando-o “um relatório emitido pela burocracia”. No ano seguinte, quando a EPA preparou um relatório exaustivo sobre o estado do ambiente, a Casa Branca impôs a eliminação de uma secção em que se afirmava que as emissões das fábricas e dos automóveis contribuíam para o aquecimento global. Os colaboradores de Bush pretendiam eliminar as referências a um relatório de 2001 elaborado pelo Conselho Nacional de Investigação, que o próprio Bush encomendara, e a um estudo de 1999 que mostrava um aumento recorde nas temperaturas mundiais ao longo da década anterior. Em lugar da redacção original, propunham uns quantos parágrafos retirados de um relatório encomendado pelo Instituto Americano do Petróleo que não apresentava qualquer conclusão específica acerca do aquecimento global. Num memorando interno a que The New York Times teve acesso, um funcionário da EPA dizia que a versão da Casa Branca “já não representa com rigor o consenso científico relativo às alterações climáticas”. Christine Todd Whitman, nomeada por Bush para administradora da EPA, pensava que seria melhor não se discutir o assunto do aquecimento global no relatório da EPA do que incluir o texto proposto pela Casa Branca. Foi por esta altura que ela se demitiu.

É verdade que há lacunas naquilo que sabemos acerca do aquecimento global — por exemplo, que parte do aumento das temperaturas se deve a causas naturais, qual é a rapidez provável do aquecimento do nosso planeta e que impacto terá algumas das nossas acções. Alguns funcionários da administração de Bush sugeriram que, dadas estas incertezas, não se justifica a adopção de medidas dispendiosas com vista ao abrandamento das alterações climáticas — como as requeridas para a observância do Protocolo de Quioto. Mas, mesmo reconhecendo a existência destas incertezas, os riscos de não agir imediatamente são tão grandes que ultrapassam os custos muito mais limitados de agir. O dióxido de carbono permanece na atmosfera durante cem anos. O carbono do escape do Modelo T original de Henry Ford ainda aprisiona calor. Na altura em que desaparecerem as lacunas no nosso conhecimento científico, pode ser demasiado tarde para prevenir as consequências dos nossos actos do passado. A abordagem do tipo “o seguro morreu de velho” — por vezes referida mais formalmente como “princípio da precaução” — sugere que, na ausência de informação completa, devemos estar preparados para incorrer em despesas razoáveis de forma a evitar um resultado desastroso que se prevê com grande probabilidade. As provas fornecidas pelas alterações climáticas indicam que o risco é considerável. Como salientou Cass Sunstein, professor de direito na Universidade de Chicago, a atitude de Bush perante o risco de o Iraque possuir armas de destruição maciça foi a de ser melhor agir por antecipação, mesmo na ausência de informação completa, para evitar o desastre da utilização de tais armas. Esta postura cautelosa é exactamente aquela que os críticos de Bush o exortam a assumir relativamente às alterações climáticas. O custo da restrição das emissões de gases indutores do efeito de estufa é muito inferior aos vários milhares de mortos e feridos na guerra do Iraque.

De um ponto de vista colectivo que toma em consideração os interesses de todos, seria melhor que todos os países com níveis elevados de emissões reduzissem significativamente a quantidade de gases indutores do efeito de estufa que produzem. Mas do ponto de vista de um único país, este não é necessariamente o melhor caminho a tomar, pois as despesas nacionais associadas à redução desses gases podem ser superiores aos benefícios colhidos por esse país específico. Para reduzir drasticamente as emissões, em vez de utilizar o combustível mais barato para gerar electricidade ou fazer andar os automóveis, teríamos de ter em conta a quantidade de dióxido de carbono que produzimos. Poderíamos ter de optar pelo gás natural, que produz menos dióxido de carbono do que o carvão mas, nalgumas regiões, é mais dispendioso. Poderíamos precisar de utilizar automóveis mais caros, mas mais eficientes em termos de rendimento do combustível. Ou poderíamos simplesmente ter de consumir menos energia, o que poderá significar que as nossas casas serão um pouco mais quentes no Verão e mais frias no Inverno do que gostaríamos que fossem.

Quando Jim Lehrer perguntou a Bush por que razão se recusaria a assinar o Protocolo de Quioto, este respondeu:

Vou dizer-lhe uma coisa que não farei: é deixar que os Estados Unidos aceitem o fardo de limpar o ar do mundo, como o tratado de Quioto nos obrigaria. A China e a Índia não estão incluídas nesse tratado. Penso que temos de ser mais equilibrados […]

Infelizmente, nem Lehrer nem Gore perguntaram a Bush o que queria ele dizer com “mais equilibrados”. Perdeu-se assim uma oportunidade de saber mais sobre o pensamento ético de Bush e só nos resta especular sobre a razão por que ele pensa que o facto de o tratado não exigir quaisquer reduções de emissões aos países em vias de desenvolvimento significa que não se é “equilibrado”.

Uma vez que Bush considera que as pessoas devem ser responsabilizadas pelas suas acções, deveria aceitar o princípio de que a pessoa que estraga algo deverá ser a pessoa a consertá-lo. Como se aplica esta ideia à atmosfera? Pois bem, vivemos exactamente neste momento um problema relativamente às alterações climáticas porque, durante pelo menos o século passado, as indústrias dos países desenvolvidos lançaram uma quantidade enorme de dióxido de carbono para a atmosfera. A maior parte desse dióxido de carbono ainda lá está. Embora os países desenvolvidos só tenham cerca de um quinto da população dos países em vias de desenvolvimento, a manterem-se os níveis actuais de emissões, a contribuição dos países em vias de desenvolvimento para o problema, incluindo a China e a Índia, só começará a aproximar-se das contribuições dos países desenvolvidos em 2038. (Este cálculo inclui gases libertados pela desflorestação, a única área na qual os países em vias de desenvolvimento estão agora pior do que os países desenvolvidos.) Por outras palavras, se os países desenvolvidos tivessem registado, ao longo do último século, emissões per capita do nível daquelas dos países em vias de desenvolvimento, não estaríamos simplesmente a braços com o problema que enfrentamos actualmente, e haveria imenso tempo para prevenir qualquer problema futuro. No que diz respeito à atmosfera, foram os países desenvolvidos que a estragaram. Se os mais responsáveis pelo estrago fossem os mais responsáveis pelo conserto, os países desenvolvidos deveriam ao resto do mundo a resolução do problema. Em vez disso, estão a agravá-lo — e os Estados Unidos são o principal culpado. Embora tenha menos de cinco por cento da população mundial, este país é o maior produtor de gases indutores do efeito de estufa, sendo responsável por vinte e cinco por cento do total de emissões. A China, com mais de quatro vezes a população dos Estados Unidos, emite apenas sessenta por cento do total de dióxido de carbono emitido pelos americanos.

Alguns dizem que, como os Estados Unidos plantaram tantas árvores nas últimas décadas, na verdade, absorveram mais dióxido de carbono do que emitiram. Mas este é um modo arbitrário de calcular as emissões, pois os Estados Unidos só puderam proceder à reflorestação porque, anteriormente, tinham abatido grande parte das suas extensas florestas, libertando assim carbono na atmosfera. O balanço depende da altura em que é realizado o cálculo. Se o período incluir a era de abate das florestas, então os Estados Unidos obtêm um resultado péssimo. Se começar na altura em que a floresta já fora abatida, obtém um resultado muito melhor. De qualquer modo, a reflorestação oferece uma solução apenas temporária para o problema do efeito de estufa. Só absorve carbono enquanto as árvores estão a crescer. Uma vez madura, a floresta deixa de absorver carbono da atmosfera. Por conseguinte, a reflorestação norte-americana, embora seja uma coisa boa por várias razões, não permite que o país fuja às responsabilidades que lhe advêm de ter provocado uma grande parte do problema do aquecimento global.

Suponhamos, todavia, que Bush recusava a ética “estragas, consertas”. Talvez ele pudesse afirmar que na altura em que os países desenvolvidos lançaram a maior parte dos gases nocivos para a atmosfera não havia o conhecimento científico que existe actualmente. Assim, embora os Estados Unidos e os outros países desenvolvidos tenham causado o problema, não sabiam o que estavam a fazer, e não devia ser agora responsabilizados por isso.

Este seria um argumento duvidoso, vindo de um defensor da pena de morte que mostra dureza na área da criminalidade; em especial, tendo em conta a sua opinião de que mesmo os criminosos deficientes mentais devem ser responsabilizados pelas acções praticadas e executados. E mesmo que pensássemos que os americanos dos nossos dias não podiam ser responsabilizados moralmente pelo que as gerações anteriores haviam feito, os americanos actuais desfrutam de um nível mais elevado de vida devido às acções dos seus antepassados poluidores. Ao aceitar os benefícios gerados por essas emissões passadas, a geração actual de americanos poderia ser considerada obrigada a pagar a factura que os actos das gerações anteriores de americanos impuseram aos outros cidadãos usando mais do que a sua parte justa de um recurso comum.

Mas suponhamos que esquecemos tudo o que sucedeu até agora. Haverá outro qualquer princípio de equidade que não requeira que os países desenvolvidos façam mais do que os países em vias de desenvolvimento? Por outras palavras, esforcemo-nos por evitar qualquer possibilidade de sermos injustos para com Bush na sua tentativa de proteger os interesses dos Estados Unidos e ignoremos o forte argumento de que os Estados Unidos — porque fizeram mais do que qualquer outro país para a criação do aquecimento global e beneficiaram com isso — têm obrigação de assumir o primeiro lugar no combate ao problema. Começando de novo, partimos do facto de que a atmosfera é um recurso comum. Não é propriedade de ninguém. Como deveremos distribui-lo? A resposta mais simples e óbvia é: equitativamente. Não, claro está, equitativamente entre países. Seria absurdo atribuir a um país pequeno como a Costa Rica a mesma fatia da atmosfera que daríamos a um país grande como os Estados Unidos. E também não o faríamos em proporção à área do território desse país, pois ter mais um milhão de quilómetros quadrados de deserto inabitado não gera qualquer emissão adicional. Mas ter mais um milhão de pessoas, sim. Daí que a resposta mais simples seja dividir equitativamente, entre todos os habitantes do planeta, a capacidade da atmosfera para absorver as nossas emissões. A menos que alguém possa provar que tem direito a mais atmosfera do que os outros, a divisão em partes iguais parece um bom ponto de partida.

Infelizmente para Bush, este princípio também exigiria que os Estados Unidos procedessem a reduções brutais das suas emissões de gases indutores do efeito de estufa, e isentaria a China e a Índia de fazer quaisquer reduções, pelo menos no presente. Os Estados Unidos produzem anualmente mais de cinco toneladas de dióxido de carbono por pessoa. O Japão e a Europa Ocidental registam uma média inferior a três toneladas. A China emite 0,76 toneladas per capita, e a Índia, 0,29. Isto significa que mesmo um limite anual de emissões “equilibrado” de uma tonelada de dióxido de carbono por pessoa (que não está muito longo do objectivo visado no Protocolo de Quioto) permitiria à Índia aumentar as suas emissões de dióxido de carbono mais de três vezes relativamente aos valores actuais. A China teria direito a um aumento mais modesto. Por outro lado, os Estados Unidos teriam de reduzir as suas emissões para não mais do que um quinto do seu valor actual. Comparado com o golpe que esta redução infligiria à economia norte-americana, a redução a que os Estados Unidos teriam de proceder caso tivessem ratificado o Protocolo de Quioto mal se notaria.

Existirão outros princípios de equidade ou “equilíbrio” que permitissem uma situação mais favorável aos países desenvolvidos? Nos seus discursos sobre esta matéria, Bush referiu-se ao facto de os Estados Unidos não serem apenas os maiores produtores de gases indutores do efeito de estufa, mas serem igualmente os maiores produtores do mundo de bens e serviços. Isto aponta para que ele possa ter em mente um princípio de distribuição, do género: “A cada um segundo o que produz”. Quão justo é isto? Um argumento a favor desta visão poderia ser o seguinte: se os Estados Unidos fossem obrigados a abrandar a sua economia e a produzir menos, de forma a cumprir um objectivo relativo às emissões que não se baseasse no valor de bens e serviços produzidos, então, outros países aproveitariam o espaço deixado livre e produziriam os bens e os serviços agora produzidos nos Estados Unidos. Mas poderiam fazê-lo menos eficientemente. O resultado seria termos menos bens para o mesmo nível de emissões.

Mesmo que isto fosse verdadeiro, como princípio de equidade, “a cada um segundo o que produz” encerra um grande erro ético. Os Estados Unidos não produzem estes bens para beneficiar todos de forma igual. A grande maioria dos bens e serviços produzidos nos Estados Unidos são consumidos nos Estados Unidos. A fracção relativamente pequena de bens produzidos nos Estados Unidos que são vendidos no estrangeiro também beneficiam os residentes nos Estados Unidos, que ganham em postos de trabalho e rendimento com a produção e venda desses bens. Estes benefícios são obtidos, em parte, devido à apropriação, sem consentimento nem compensação, de um recurso colectivo. É verdade que se trata de um recurso de que todos se apropriaram livremente até agora, mas também é um recurso que, como todos os países (incluindo os Estados Unidos) concordaram na Cimeira da Terra realizada no Rio de Janeiro em 1992, devia deixar de ser visto como algo que está disponível numa base discricionária.

De qualquer modo, a pretensão de que os Estados Unidos produzem mais eficientemente, em termos de emissões de gases indutores do efeito de estufa, do que os outros países, foi refutada pelos dados publicados pela Agência Central de Informações (CIA) dos Estados Unidos. Os Estados Unidos encontram-se bem acima da média no que respeita às emissões que produz, relativamente ao seu PIB. Os dados da CIA mostram que países em vias de desenvolvimento como a Índia e a China, assim como alguns países europeus como a Espanha, a França e a Suíça, são os melhores na produção de um valor elevado de bens para um dado nível de emissões.

Embora seja verdade que o Protocolo de Quioto não compromete inicialmente os países em vias de desenvolvimento, é geralmente aceite que estes países serão trazidos à colação depois de os países industrializados terem começado a aproximar-se dos objectivos delineados. Foi esse o procedimento no caso do bem-sucedido Protocolo de Montreal respeitante a gases que danificam a camada de ozono e não há razão para pensar que isso não sucederá igualmente com o Protocolo de Quioto. A China, de longe o maior emissor de gases indutores do efeito de estufa dos países em vias de desenvolvimento e o único com potencialidades de competir com as emissões totais — e não per capita — dos Estados Unidos no futuro próximo, já fez progressos significativos, mesmo sem quaisquer objectivos impostos, no sentido da redução das emissões relacionadas com a queima de combustíveis fósseis, graças à melhoria na eficiência da utilização do carvão. Assim, a afirmação de que o Protocolo de Quioto não exige que os países em vias de desenvolvimento façam a sua parte é enganadora, pois estes ainda não atingiram o patamar no qual estarão a utilizar mais do que a sua quota-parte da capacidade do planeta para absorver os gases indutores do efeito de estufa. Quando o atingirem, é razoável supor que também eles passarão a ter obrigações, nos termos do próximo acordo internacional sobre alterações climáticas, no que respeita à redução das suas emissões. A posição da administração de Bush mais não é do que dizer que os países pobres do mundo devem comprometer-se, perpetuamente, a emitir níveis muito inferiores de produção de gases per capita do que os permitidos às nações ricas. Não há maneira de defender que este princípio é ético.

Peter Singer
The President of Good and Evil: Questioning the Ethics of George W. Bush (Plume Books, 2004)