O presidente queria matar alguém.
Colin Powell, Secretário da Defesa, citado por Bob Woodward em Bush em Guerra
A 11 de Setembro de 2001, assistindo pela televisão à derrocada do World Trade Center e vendo o desgosto das famílias das vítimas, era fácil concordar com Bush, quando este disse: “Hoje, o nosso país viu o mal”. No seu breve discurso ao país, nessa noite, usou a palavra “mal” quatro vezes, dando o tom para os meses e os anos vindouros. Era inevitável que o presidente dos Estados Unidos passasse a chefiar uma guerra mundial contra o terrorismo, tendo em conta o alvo do ataque. Outro presidente, no entanto, poderia não ter retirado apressadamente a conclusão de que a América fora atacada por ser “o farol mais brilhante de liberdade e oportunidades do mundo”. Esta declaração ignorou o papel da América na política mundial, e em especial no Médio Oriente. Por conseguinte, muitas pessoas de outros países tomaram isso como um exemplo doloroso da presunção da América.
Outro presidente poderia também ter tomado diferentes decisões morais quanto ao melhor modo de evitar futuros ataques terroristas. Neste aspecto, as decisões tomadas por Bush definirão a sua presidência e terão durante muito tempo impacto sobre a paz e a segurança do mundo. Há muitas perguntas a fazer acerca destas decisões. Já vimos que as acções de Bush não são coerentes com a sua convicção declarada de que toda a vida humana inocente é preciosa e tem de ser protegida. As outras perguntas importantes sobre as decisões de Bush incluem saber se estas se baseiam apenas no princípio de fazer o que é melhor para os interesses dos americanos ou podem ser justificadas nos termos dos interesses de todos os que são afectados por elas. Provam que a América é um país que “ama a paz”, como Bush declarou? São aplicadas coerentemente, em diferentes situações? Será provável que conduzam a um mundo no qual a paz e a justiça, tanto para os americanos como para os outros, estão mais garantidas?
A primeira decisão política importante foi tomada muito rapidamente. Na noite de 11 de Setembro, quando Bush falou à nação durante apenas sete minutos, disse que os Estados Unidos, em resposta ao ataque, “não fariam distinção entre os terroristas que perpetraram estes actos e aqueles que lhes dão guarida”. A decisão de dizer isto foi tomada por Bush, numa discussão com Condoleezza Rice, sua conselheira para a defesa nacional. Ninguém mais — Vice-Presidente Dick Cheney, Secretário de Estado Colin Powell, Secretário da Defesa Donald Rumsfeld — foi consultado previamente. Nove dias depois, Bush repetiu, perante uma sessão conjunta especial do Congresso, aquilo que rapidamente se tornaria conhecido como a “Doutrina de Bush”: “A partir deste dia, qualquer país que continue a dar guarida ou a apoiar terroristas será considerado um regime hostil pelos Estados Unidos”.
Esta Doutrina de Bush — talvez melhor designada como “primeira Doutrina de Bush”, uma vez que a sua afirmação posterior do direito da América a lançar ataques preventivos também foi denominada como Doutrina de Bush — alterou significativamente os entendimentos anteriores de soberania nacional e apoio do terrorismo. Antes de 11 de Setembro, o governo norte-americano teria certamente resistido à aplicação de tal doutrina por parte de outro país. Consideremos Cuba, por exemplo. A América dá guarida a exilados cubanos que utilizaram Miami como base de lançamento de ataques terroristas a Cuba. Em 1998, um antigo procurador federal sénior afirmou ao Miami Herald que havia uma política de evitar perseguir aqueles que organizavam actos terroristas contra Cuba. Assim, quando surgiu perto de Havana um barco carregado de explosivos registado em nome de Tony Bryant, militante anti-Castro, o FBI disse-lhe simplesmente para não repetir o feito. O artigo do Herald dava este como um entre muitos exemplos que demonstravam aquilo que se descrevia como “a tibieza das leis norte-americanas que impedem os actos violentos contra governos estrangeiros”.
O exemplo mais conhecido de um país ter entrado em guerra com outro por este abrigar e apoiar terroristas continua a ser o ataque austro-húngaro à Sérvia, em 1914, que desencadeou uma guerra mundial na qual se perderam nove milhões de vidas. O argumento da Áustria-Hungria para entrar em guerra baseava-se no envolvimento sérvio no assassínio do príncipe herdeiro austro-húngaro e da sua esposa, em Serajevo. Os conspiradores admitiram que tinham sido treinados, armados, apoiados e passados em segurança na fronteira por elementos do governo sérvio. A Áustria-Hungria fez um ultimato à Sérvia, exigindo que os conspiradores fossem julgados e que os oficiais austro-húngaros tivessem permissão para supervisionar o julgamento, garantindo que as culpas eram todas devidamente apuradas. Este ultimato foi amplamente visto como uma violação do princípio da soberania nacional. O ministro britânico dos negócios estrangeiros, Sir Edward Grey, chamou-lhe “O documento mais extraordinário que já vi ser dirigido por um estado a outro estado independente”. A história oficial da Grande Guerra contada pela Legião Americana denuncia-o como um “documento malévolo de acusações não provadas e exigências tirânicas”. Muitos dos historiadores que se debruçaram sobre as origens da Primeira Grande Guerra consideraram que o ultimato não respeitava a soberania da Sérvia. São especialmente críticos relativamente ao facto de, após o governo sérvio ter aceitado muitas, mas não a totalidade, das exigências feitas no ultimato, a Áustria-Hungria se ter recusado a entrar em negociações, declarando guerra à Sérvia.
Embora a administração norte-americana — ao contrário do governo austro-húngaro, relativamente à Sérvia — não possuísse qualquer prova do envolvimento dos responsáveis do governo afegão nos acontecimentos de 11 de Setembro, o ultimato que Bush fez ao Afeganistão não foi menos ameaçador da soberania daquele país do que aquele que o governo austro-húngaro fez à Sérvia. Exigia o encerramento de todos os campos de treino de terroristas e o acesso a estes de elementos norte-americanos, de forma a assegurar que já não se encontravam a operar. Num aspecto importante, ia além do ultimato austro-húngaro: neste caso, admitia-se que a Sérvia levasse a julgamento aqueles que haviam ajudado os terroristas; no caso de Bush, insistia-se para que os chefes da Al Qaeda residentes no Afeganistão fossem entregues aos Estados Unidos — onde, suspeitava-se, lhes seria difícil conseguirem um julgamento justo. (A história subsequente dos procedimentos americanos no tratamento daqueles que foram capturados no Afeganistão mostra que esta suspeita era razoável.)
Quando, a 7 de Outubro de 2001, os Estados Unidos começaram a bombardear o Afeganistão, não houve grande oposição dentro dos Estados Unidos nem na comunidade internacional à guerra contra os talibãs. Em nome da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos, o Bispo Joseph Fiorenza escreveu a Bush, afirmando que o uso da força sobre o Afeganistão era “lamentável mas necessário” e o Cardeal Francis George, de Chicago, disse, terminantemente: “É apenas uma guerra”. Na Universidade de Princeton, organizei um fórum sobre a questão de saber se a guerra ao Afeganistão seria uma reacção justa ao terrorismo. Convidei quatro participantes distintos, cobrindo o leque de opiniões da esquerda à direita: Richard Falk, Michael Walzer, James Johnson e Gideon Rose. Fiquei surpreendido — e, da perspectiva de um organizador que procurava fomentar um debate vigoroso, desiludido — ao descobrir que todos pensavam que um ataque ao Afeganistão seria uma guerra justa à luz dos acontecimentos de 11 de Setembro. Para Falk, que se opusera à Guerra do Vietname e à Guerra do Golfo de 1991, e, subsequentemente, se opusera à Guerra do Iraque em 2003, era a primeira vez que apoiava a entrada em guerra dos Estados Unidos. É possível que a quase unanimidade de apoio a um ataque ao Afeganistão não fosse mais do que um sinal de que as pessoas estavam calma e imparcialmente a considerar se um ataque seria a atitude certa a tomar, decidindo que o era, pois os factos eram tais que nenhuma pessoa racional poderia chegar a uma conclusão diferente. Mas também era possível que a natureza horrenda dos ataques de 11 de Setembro, ainda vívidos na memória de todos, estivesse a influenciar o juízo das pessoas e a impedir o tipo de raciocínio calmo que é desejável antes de se tomar uma decisão importante que porá em risco as vidas de muitas pessoas, incluindo inocentes.
A teoria da “guerra justa” à qual o Bispo Joseph Fiorenza fez referência na sua carta a Bush tem grande aceitação fora dos círculos religiosos e fornece um enquadramento conveniente para a avaliação da defensibilidade ética da guerra americana contra o governo talibã do Afeganistão. Conforme defendido em The Challenge of Peace, a muito louvada declaração feita pela Conferência de Bispos Católicos dos Estados Unidos sobre quando é justo entrar em guerra, a força mortífera só deve ser usada quando se encontram preenchidas todas as sete condições seguintes:
A Causa é Justa: A “causa justa” mais óbvia é a defesa relativamente a uma agressão; outra seria pôr fim a graves violações dos direitos básicos de populações inteiras.
Autoridade Competente: A guerra só pode ser travada por um governo legítimo, com responsabilidades na manutenção da ordem pública.
Justiça Comparativa: Os valores em jogo têm de ser suficientemente cruciais para se sobreporem ao pressuposto contrário à morte, e quando o direito não pertence integralmente a uma das partes, a injustiça sofrida por uma destas tem de ser significativamente superior àquela sofrida pela outra.
Intenção Correcta: A força só pode ser usada por razões justas, como alcançar a paz e a reconciliação.
Probabilidade de Sucesso: Por muito justa que seja a causa, se o recurso às armas for debalde, é errado entrar em guerra.
Proporcionalidade: Os custos esperados da guerra, em termos de perda de vidas e destruição, têm de ser compensados pelo bem que se espera alcançar.
Último Recurso: A força só deve ser usada após experimentadas e esgotadas todas as alternativas pacíficas.
No caso do ataque norte-americano ao Afeganistão, os primeiros quatro critérios parecem não oferecer grandes dúvidas. Se a causa era levar a tribunal aqueles que se encontravam por detrás da atrocidade de 11 de Setembro de 2001 e impedir novos ataques terroristas, era indubitavelmente justa. A guerra foi levada a cabo pelo governo norte-americano, a autoridade adequada a fazer uso da força para defender civis americanos. Os valores em jogo — proteger as pessoas de outros ataques terroristas semelhantes aos de 11 de Setembro de 2001 — tinham uma importância crucial. As intenções do governo eram, podemos supor, em primeiro lugar, pôr fim a tais actos e, em segundo, estabelecer um governo menos opressivo e mais democrático no Afeganistão. O governo norte-americano não pretendia anexar o território afegão.
Quanto ao quinto critério, a probabilidade de sucesso, depende da forma como se vêem os objectivos da guerra. Se estes eram destruir os campos de treino da Al Qaeda e perturbar o seu funcionamento, a guerra foi bem-sucedida. Levar a julgamento os responsáveis pelos ataques de 11 de Setembro revelou-se mais difícil. Apenas uns quantos chefes da Al Qaeda foi capturados ou mortos e, na altura em que escrevo, Ossama Bin Laden não se encontra entre estes. Ainda assim, poderia haver expectativas razoáveis de isto ser conseguido.
No entanto, destruir os campos de treino, levar a julgamento os chefes e perturbar temporariamente as operações da Al Qaeda eram meramente os meios para o único fim justificável da “guerra ao terrorismo”: pôr fim, ou diminuir drasticamente, os ataques terroristas. Seria provável que uma guerra no Afeganistão conseguisse isto? Os campos destinavam-se sobretudo a treinar combatentes para ajudar os talibãs a consolidar o seu poder no Afeganistão, e não a treinar terroristas para operarem na América ou outros países europeus. Destruí-los não poderia almejar pôr cobro a este tipo de terrorismo. A Al Qaeda tinha já células em países ocidentais, sendo destas que provavelmente viriam futuros ataques terroristas. Na verdade, como se afirmava num estudo realizado, “as células terroristas que perpetraram os ataques de 11 de Setembro estavam menos funcionalmente dependentes das bases da Al Qaeda no Afeganistão do que das escolas de aviação da Florida”. Um responsável sénior da unidade de contraterrorismo do FBI calculou que a guerra no Afeganistão diminuíra em trinta por cento a capacidade da Al Qaeda para perpetrar “actos horrendos”. Mesmo a captura de Bin Laden, afirmou, apenas provocaria uma “vacilação” nas operações da Al Qaeda. As bombas colocadas no Bali e nas Filipinas em Outubro de 2002, em Riade e em Casablanca em Maio de 2003, em Jacarta e Bagdade em Agosto de 2003, e em Riade, Nassíria e Istambul em Novembro de 2003 vieram mostrar inequivocamente que a guerra no Afeganistão não conseguiu impedir a execução de importantes ataques terroristas. Uma vez que não podemos pensar na história sem essa guerra, não sabemos realmente se esta diminuiu o número desses ataques em trinta por cento, setenta por cento, ou qualquer outro valor. Pode ter sido razoável esperar que o derrube do governo que dera protecção aos terroristas constituiria uma advertência para outros governos que considerassem apoiar terroristas ou permitir-lhes utilizar o respectivo território como base. Mas, como o IRA provou durante muitos anos, as organizações terroristas não precisam do apoio de um estado para praticar atrocidades. Também era necessário perguntarmos se entrar em guerra com o governo de um país islâmico não provocaria mais ódio pela América entre os muçulmanos do que um ataque que visasse mais especificamente a Al Qaeda. Em caso afirmativo, no longo prazo pode perceber-se que a guerra contribuiu para o aumento do terrorismo, e não para a sua diminuição.
Então, considerando uma leitura adequada dos objectivos da guerra ao terrorismo, não é claro que o requisito da probabilidade razoável de sucesso tenha sido preenchido. Claro que esta avaliação tem de ser feita tomando em conta várias outras medidas possíveis e a probabilidade de essas serem tão ou mais bem-sucedidas na diminuição do terrorismo.
O sexto critério é a proporcionalidade: era o fim ou objectivo da guerra proporcional aos meios utilizados ou aos custos envolvidos? Mesmo que a causa da guerra seja inerentemente justa, os custos de alcançar a justiça podem ser tão elevados que seria errado optar pela guerra. No conflito entre o povo da Hungria e a União Soviética, em 1956, por exemplo, a justiça estava claramente do lado dos húngaros. Mas se o único modo de defender os húngaros fosse começar uma guerra mundial nuclear, então o custo de conseguir um resultado justo seria completamente desproporcionado em relação ao objectivo de liberdade da Hungria. No caso da guerra no Afeganistão, não havia verdadeiro risco de provocar uma catástrofe a essa escala, mas havia o risco sério de matar um número substancial de civis — e isto aconteceu. Uma vez que o princípio da proporcionalidade implica pesar os custos e os benefícios, há muito a depender da natureza incerta dos benefícios. Se uma guerra bem-sucedida impedisse a Al Qaeda de organizar mais operações à escala dos ataques de 11 de Setembro, ou de matar um número ainda maior de pessoas com armas nucleares ou biológicas, então o princípio da proporcionalidade seria satisfeito mesmo que morresse um número significativo de civis.
Finalmente, há o critério do último recurso, e é relativamente a este que as acções da administração de Bush são mais difíceis de defender. Este critério exige que um país entre em guerra apenas quando tentou e esgotou todas as alternativas pacíficas. No entanto, Bush mostrou pouco interesse em considerar qualquer opção que não a guerra. Logo em 13 de Setembro, segundo o relato de Bob Woodward em Bush em Guerra, Powell notou que “Bush estava cansado de retórica. O presidente queria matar alguém”. Daí em diante, embora haja conversas ocasionais sobre a necessidade de ser paciente, Bush exorta frequentemente à acção célere, dizendo coisas como: “O tempo urge”, “É muito importante agir depressa” e “Temos de começar a mostrar resultados”.
A 17 de Setembro, Bush mandou Powell fazer um ultimato aos talibãs, ordenando-lhes que entregassem Bin Laden e a Al Qaeda, e acrescentando que, se não obedecessem, “Atacá-los-emos com mísseis, bombardeamentos e tropas terrestres”. Depois, segundo o relato de Woodward, Bush acrescentou: “Vamos dar-lhes no duro. Queremos que isto assinale uma mudança em relação ao passado. Queremos que outros países, como a Síria e o Irão, mudem de ideias. Queremos atacar o mais rapidamente possível”. Powell “ficou ligeiramente surpreendido”, mas Bush queria dar aos talibãs um ultimato imediato. Afinal, o próprio Bush tornou público o ultimato, no seu discurso ao Congresso — e a oitenta milhões de americanos que seguiam pela televisão — de 20 de Setembro. Pouco antes de proferir aquele discurso, informara em privado Tony Blair, primeiro-ministro britânico, de que o seu plano era usar “todo o poderio da máquina militar norte-americana” com “bombardeiros vindos de todas as direcções”.
Extraordinariamente, tanto quanto podemos perceber do relato de Woodward, depois de fazer o ultimato aos talibãs, Bush nunca discutiu — com Rice, Powell ou o Conselho de Segurança Nacional — a resposta dos talibãs. O leitor de Bush em Guerra poderia supor que os talibãs não chegaram a responder. Mas, na verdade, o Mulá Omar, chefe talibã, pediu aos Estados Unidos que apresentassem provas do envolvimento de Ossama Bin Laden nos acontecimentos de 11 de Setembro, indicando que, se isto fosse feito, ele estaria disposto a entregar Bin Laden a um tribunal islâmico de outro país muçulmano. (Esta proposta foi mais tarde atenuada para um requisito de que o tribunal tivesse pelo menos um juiz muçulmano.) Também se sugeriu que a Organização da Conferência Islâmica, um grupo de mais de cinquenta países muçulmanos, fosse consultada. Por fim, houve uma oferta para um encontro com responsáveis norte-americanos. O pedido de provas do envolvimento de Bin Laden — nenhuma prova disso fora na altura tornada pública — era certamente razoável, nos termos dos pedidos normais de extradição. Os próprios Estados Unidos teriam pedido tais provas antes de entregar alguém que se encontrasse no seu território a outro país que desejasse julgar esse indivíduo por um crime capital. Contudo, o pedido e a proposta de um encontro parecem ter sido completamente ignorados, tal como a Áustria-Hungria ignorou a contra-proposta Sérvia em 1914. Em ambos os casos, tal tratamento de uma resposta a um ultimato indica que a intenção subjacente ao documento não é encontrar uma solução satisfatória para o problema, mas um pretexto para entrar em guerra. A guerra não foi o último recurso.
O problema do presidente impaciente era o tipo de acção a que recorrer. O plano original consistia em, simultaneamente, enviar tropas terrestres americanas e iniciar os bombardeamentos, mas o exército não tinha a postos a infra-estrutura necessária para introduzir rapidamente as tropas no Afeganistão. Mesmo depois de ter sido decidido bombardear em primeiro lugar, e só depois fazer entrar as tropas terrestres, Bush mostrou-se impaciente com o tempo necessário à preparação da campanha de bombardeamentos. A 27 de Setembro, quando Rice disse a Bush que o exército não estava preparado para iniciar os bombardeamentos, o presidente respondeu: “Isso é inaceitável!” O próprio Bush disse a Woodward que ele estava “pronto para ir”, “a ficar um pouco impaciente”, “febril”. E também disse: “Confio nos meus instintos. Sabia que, a qualquer altura, o povo americano iria dizer: “Onde está ele? O que estão a fazer? Onde está a sua capacidade de liderança? Onde estão os Estados Unidos? É todo-poderoso, faça alguma coisa.""
Uma vez que a entrada das tropas terrestres no Afeganistão iria levar mais tempo do que ele estava disposto a aceitar, as bombas e os mísseis eram a alternativa óbvia. Podiam ficar a postos mais rapidamente, mas a Al Qaeda era um alvo difícil. O conselho de guerra de Bush sabia que os campos de treino já estavam desertos e Bush estava determinado a não “bombardear areia” — expressão pejorativa com que ele e Rumsfeld costumavam referir-se àquilo que consideravam ser a táctica de Clinton de resposta aos anteriores ataques de Bin Laden às embaixadas americanas, ao enviar um míssil cruzeiro de um milhão de dólares para uma tenda vazia. O governo talibã, por outro lado, oferecia alvos mais substanciais. Assim, o objectivo passou do ataque à Al Qaeda ao derrube do regime talibã. Segundo o relato de Woodward, em 29 de Setembro, apenas nove dias volvidos sobre o ultimato, o derrube dos talibãs era já o objectivo assumido da operação militar.
Se o relato de Woodward corresponde à verdade — e este baseia-se em entrevistas extensas a quem se encontrava presente, incluindo o próprio Bush, e nas notas feitas na altura pelos que lá se encontravam — a guerra no Afeganistão não satisfaz os critérios de guerra justa porque não foi uma guerra de último recurso. Além disso, porque a forma que a guerra realmente assumiu — uma guerra que visou derrubar o regime talibã — ultrapassou o que era necessário para alcançar o objectivo de levar a julgamento os responsáveis pela atrocidade de 11 de Setembro de 2001 e de impedir outros actos terroristas, nem sequer é claro que a guerra tenha sido travada por uma causa justa. Era a opção mais agressiva, entre um leque de opções que não haviam sido convenientemente exploradas. Foi uma opção feita por um líder com pressa em agir, para mostrar ao povo americano que era um líder e para transformar o Afeganistão num exemplo, para que os outros países vissem um sinal naquela medida. Mas a impaciência não é uma justificação ética para entrar em guerra e o sinal poderia ter sido dado de outras formas, menos onerosas em termos de vidas humanas.
O tom das discussões que Woodward relata não transmite a ideia de Bush estar a pensar nas mortes que a guerra iria certamente provocar entre os civis, incluindo crianças e outras vítimas inocentes. Rumsfeld reconheceu, como vimos, que a guerra transforma “a angústia, o sofrimento e a morte” em lugares-comuns. A inevitabilidade de uma perda importante de vidas humanas na guerra a que Bush se propunha torna a busca árdua de uma alternativa à guerra um imperativo ético. Se, por outro lado, não fosse inevitável uma grande perda de vidas humanas, mais razões há para culpar Bush pelas mais de mil mortes de civis que ocorreram em resultado dos meios com os quais se travou a guerra. A ética da inflicção de baixas civis, mesmo sem intenção, encontra eco na ética da decisão de entrar em guerra. Um presidente amante da paz teria mostrado mais convicção na procura de outras opções. Isso teria sido emocional e politicamente difícil, nos dias que se seguiram a 11 de Setembro de 2001, mas era o que Bush deveria ter feito. Então, e uma vez goradas essas opções, se a América entrasse em guerra, não haveria dúvidas de que o havia feito como último recurso.