A resolução 1441 do Conselho de Segurança aprovada por unanimidade em Outono último atesta claramente que Saddam Hussein tem uma última oportunidade de desarmar o Iraque. Não desarmou.
George W. Bush, Conferência de imprensa, 6 de Março de 2003
A liberdade do povo iraquiano é uma grande causa moral e um grande objectivo estratégico. O povo do Iraque merece-a.
George W. Bush, falando às Nações Unidas, Setembro de 2002
A lenta preparação para o ataque norte-americano ao Iraque, em Março de 2003, deu a George W. Bush muitas oportunidades de esclarecer as ideias éticas subjacentes aos seus actos. Bush indicou dois argumentos distintos para entrar em guerra com o Iraque que podem ser colocados nos seguintes termos:
O cessar-fogo que pôs termo à primeira Guerra do Golfo, em Abril de 2001, exigia que o Iraque desistisse das suas armas de destruição maciça e aceitasse a entrada de inspectores das Nações Unidas que examinariam e acompanhariam a destruição e retirada de armas químicas, biológicas e nucleares. O governo iraquiano, liderado por Saddam Hussein, aceitou estes termos, mas Saddam enganou o mundo, continuando a desenvolver armas de destruição maciça. Portanto, violara os termos do cessar-fogo e a coligação que lutara no Iraque em 2001 podia dar novo início às hostilidades.
Uma mudança de regime no Iraque libertaria o país de um tirano que fora, durante os longos anos da sua governação, responsável pelas mortes de centenas de milhares de iraquianos, permitindo ainda que outros permanecessem numa pobreza miserável enquanto ele canalizava as receitas petrolíferas para projectos militares e palácios extravagantes que satisfaziam o seu desejo de luxo.
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O principal argumento a favor da guerra com o Iraque assentava na afirmação de que o Conselho de Segurança exigira que Saddam Hussein destruísse as armas de destruição maciça na sua posse, mas ele não o fizera. Parece agora provável que Saddam tinha destruído substancialmente, se não na totalidade, as suas armas de destruição maciça. Esse simples facto anula a principal razão que Bush apresentara para a guerra. Também coloca importantes questões quanto ao motivo que levou Bush a afirmar falsamente saber — insistindo mesmo que “não havia dúvida” — que Saddam possuía armas de destruição maciça. Mas suponhamos, num exercício puramente hipotético, que a declaração de Bush estava correcta e Saddam não se desarmara. Precisamos de aceitar este pressuposto para podermos analisar a base ética na qual Bush afirmou agir. A questão mais importante a colocar neste contexto é: se os factos fossem os que Bush afirmou serem, o ataque ao Iraque liderado pelos norte-americanos ter-se-ia justificado pela não observância da Resolução 1441 por parte do ditador iraquiano?
Conforme Bush declarou, a Resolução 1441, adoptada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em Novembro de 2002, dava ao Iraque “uma oportunidade derradeira de cumprir as suas obrigações de desarmamento nos termos das resoluções relevantes do Conselho”. Para esse fim, exigia ao Iraque que aceitasse um sistema aperfeiçoado de inspecções. Uma vez aceite a presença dos inspectores por parte do Iraque, a questão central passava a ser determinar se o Iraque tinha ou não destruído as suas armas de destruição maciça, como afirmava. Mas a Resolução 1441 não era tão clara como o resumo em duas frases de Bush quer sugerir. A resolução solicita ao presidente executivo da Comissão de Inspecção, Verificação e Acompanhamento das Nações Unidas (UNMOVIC) a entrega de um relatório sobre a cooperação do Iraque com os inspectores e o cumprimento das suas obrigações de desarmamento, recordando àquele país que foi repetidamente advertido de que enfrentará “graves consequências” se continuar a violar as suas obrigações. Mas as últimas palavras da resolução declaram que o conselho “decide permanecer interessado na matéria”. Esta redacção peculiar é utilizada por organismos como o Conselho de Segurança para indicar que mantêm um interesse particular por um assunto específico, não o tendo dado por concluído. A mesma redacção fora utilizada na Resolução 687, que declarara o cessar-fogo em 1991. O Conselho de Segurança afirmara, na altura, que “decide permanecer interessado na matéria e tomar outras medidas necessárias à implementação da presente resolução e à salvaguarda da paz e da segurança na região”. Neste aspecto, a redacção quer da Resolução 687 quer da Resolução 1441 contrastam vivamente com as palavras da anterior Resolução 678, adoptada em Agosto de 1990, depois de o exército iraquiano ter invadido o Koweit. Assim, a Guerra do Golfo de 1991 foi travada sob os auspícios das Nações Unidas. Mas a fórmula utilizada na Resolução 687 e na Resolução 1441 indica que o conselho mantém uma consideração activa do assunto, não delegando num país, ou num grupo de países, a decisão sobre o cumprimento ou não, por parte do Iraque, das obrigações imputadas.
O facto de a Resolução 1441 não autorizar quaisquer países a agir foi igualmente salientado pela França, pela Rússia e pela China, que observaram, na altura da aprovação da resolução, que esta não continha qualquer “automaticidade” sobre o uso da força. Qualquer destes países poderia ter vetado a resolução, e tê-lo-ia provavelmente feito, se esta contivesse uma autorização automática do uso da força. Este mesmo ponto de vista foi manifestado por outros membros do Conselho de Segurança que não detêm poder de veto e aprovaram a Resolução 1441. Entre estes contam-se o México, a Irlanda, a Síria, a Bulgária, a Noruega, os Camarões e a Guiné. Muitos destes países sublinharam que a resolução fortalecia o papel do Conselho de Segurança na decisão de questões relativas à paz e à segurança internacionais. Por exemplo, o sumário oficial das Nações Unidas referia o representante mexicano, que afirmou que a aprovação da Resolução 1441 “fortalecia o Conselho, as Nações Unidas, o multilateralismo e um sistema internacional de normas e princípios”. Acrescentava que considerava válido o uso da força apenas “como último recurso, com autorização prévia e explícita do Conselho”.
Os representantes tanto dos Estados Unidos como do Reino Unido aceitaram que a Resolução 1441 não continha “gatilhos ocultos” nem “automaticidade” respeitantes ao uso da força, embora o representante norte-americano, John Negroponte, tivesse afirmado que também “não impedia qualquer estado-membro de agir para se defender da ameaça representada por esse país ou para implementar as resoluções relevantes das Nações Unidas e proteger a paz e a segurança mundiais”. A observação de Negroponte sobre um país se defender da “ameaça” representada pelo Iraque parece sugerir uma justificação para a guerra fora do contexto das resoluções das Nações Unidas e, assim, um argumento de tipo diferente daqueles que estamos a analisar. A segunda parte das observações de Negroponte pressupõe a existência de uma resolução relevante das Nações Unidas a ser implementada, mas não indica que resolução seria essa, nem por que motivo assumiria os Estados Unidos, ou qualquer outro membro das Nações Unidas, a implementação de uma resolução que o Conselho de Segurança não lhe pedira que implementasse. O representante do Reino Unido concordou explicitamente que “Se existir nova violação iraquiana das suas obrigações de desarmamento, a matéria regressará ao Conselho, para discussão”.
Tudo isto deixa claro que, no que diz respeito à Resolução 1441, o conselho esperava ser informado pelos seus inspectores de armamento, e estava preparado a tomar futuras decisões dependendo daquilo que lhe fosse comunicado. E foi isto que sucedeu nos quatro meses seguintes. Os inspectores informaram o Conselho de Segurança dos seus progressos, em várias ocasiões. O Iraque negou possuir quaisquer armas de destruição maciça. Embora não tenha fornecido documentação completa sobre o que acontecera a parte dos agentes químicos e biológicos que outrora possuíra, os inspectores não conseguiram encontrar provas de que os iraquianos estivessem a mentir. Os relatórios dos inspectores indicam que, após um início lento, o Iraque revelava, em Fevereiro, uma cooperação significativa. Quando os inspectores descobriram (usando informação cedida pelo Iraque) que um dos mísseis iraquianos tinha excedido ligeiramente, durante testes militares, o alcance de cento e cinquenta quilómetros estabelecido nos termos do cessar-fogo, o Iraque concordou em destruir os mísseis, e tinha já destruído sessenta e cinco, ou mais de metade do total, na data do ataque norte-americano.
Bush declarou taxativamente que Saddam “não desarmara”. Noutros discursos, Bush repetiu, vezes sem conta, que Saddam “tem armas de destruição maciça”. No discurso em que fez o seu ultimato de quarenta e oito horas, afirmou: “As informações colhidas por este e outros governos não deixam dúvidas de que o regime iraquiano continua a possuir e ocultar algumas das mais letais armas alguma vez concebidas”. Mesmo na altura destas declarações, havia boas razões para duvidar das provas que a administração de Bush apresentou para apoiar estas afirmações. No seu discurso do Estado da União de 2003, Bush disse: “O governo britânico soube que, recentemente, Saddam Hussein tentou adquirir em África quantidades significativamente de urânio” e prosseguiu, afirmando que Saddam tentara comprar tubos de alumínio fortalecido próprios para a produção de armas nucleares. A apoiar a afirmação de que Saddam tentara importar urânio de África, Colin Powell apresentou às Nações Unidas documentos que, supostamente, mostravam que o Iraque tentara adquirir quinhentas toneladas de urânio ao Níger. Depressa se demonstrou — antes do início da guerra e como Powell e a Casa Branca admitiram — que estes documentos eram falsificações grosseiras. Um dos documentos, datado de Outubro de 2000, ostentava a assinatura de um homem que, na altura, já não detinha o cargo de ministro dos negócios estrangeiros do Níger há vários anos. As outras provas que Bush e Powell apresentaram não eram conclusivas. Por exemplo, conforme afirmaram mais tarde Hans Blix e Mohamed Elbaradei, chefes dos inspectores de armamento, nunca se apresentou qualquer prova de que os tubos de alumínio a que Bush fizera referência se destinassem a algo que não a produção de mísseis convencionais.
As informações secretas a que Bush aludira não eram fidedignas e podiam assim ser consideradas antes do início da guerra. Nestas circunstâncias, era completamente razoável que a França, a China e outros membros do Conselho de Segurança fossem de opinião de que as inspecções deveriam prosseguir, por forma a estabelecer se Saddam tinha ou não procedido ao desarmamento. Apesar da indignação americana face à ameaça francesa de vetar uma resolução que autorizasse um ataque ao Iraque — indignação que chegou ao ponto absurdo de os cidadãos americanos boicotarem os bens franceses e passarem a designar as “french fries” como “freedom fries”1 — o presidente francês Jacques Chirac tinha boas razões para resistir à pressa de Bush para entrar em guerra. Chirac considerava que Bush e Powell não tinham conseguido provar, de uma forma que justificasse a guerra, que o Iraque estava a violar as suas obrigações nos termos da Resolução 1441. Os acontecimentos posteriores vieram mostrar que Chirac tinha razão e Bush e Powell estavam errados.
No entanto, seja qual for a perspectiva que se assuma relativamente às provas, não competia aos Estados Unidos nem a qualquer outro país decidir se o Iraque estava ou não a cumprir as suas obrigações. (De modo semelhante, a decisão sobre o cumprimento ou não por parte de Israel das resoluções das Nações Unidas respeitantes aos territórios ocupados não compete, por exemplo, à Rússia.) Nos termos da Resolução 1441, o Conselho de Segurança reservara-se o direito de tomar ele próprio a decisão, decidindo também no tocante à natureza das consequências que adviriam se se descobrisse que o Iraque não estava a cumprir as suas obrigações. Foi por isso que a administração de Bush tentou tão esforçadamente obter uma segunda resolução declarando que o Iraque não desarmara e autorizando o uso da força contra este país. Quando se tornou evidente que a França, e talvez também a Rússia e a China, utilizariam o seu veto para impedir a aprovação de tal resolução, a administração começou a sugerir que, se uma maioria votasse a favor da resolução, isso daria alguma autoridade moral às medidas tomadas à luz desta, mesmo que um veto impedisse a sua aceitação formal por parte do conselho. Trata-se de uma proposta a que os Estados Unidos seguramente se oporiam, fosse ela feita por outro país nas setenta e duas ocasiões em que a América fez uso do veto. (Só a antiga União Soviética utilizou mais vezes o veto.) E quando — apesar dos denodados esforços tanto de Bush como do primeiro-ministro britânico Tony Blair — se tornou evidente que nem sequer haveria uma maioria a autorizar o uso da força, Bush agiu como se, de qualquer modo, não fosse necessária uma segunda resolução. Robin Cook, líder da Câmara dos Comuns até se ter demitido em protesto pela atitude de Blair relativamente ao Iraque, tinha seguramente razão quando afirmou, na explicação fornecida pela sua demissão: “Aplaudo os esforços determinados do primeiro-ministro e do secretário dos negócios estrangeiros para a existência de uma segunda resolução. Agora que essas tentativas redundaram em fracasso, não podemos fingir que obter uma segunda resolução não era importante”.
O procurador-geral do Reino Unido, Lorde Goldsmith, emitiu uma declaração na qual esboçava uma base legal para o uso de força contra o Iraque. Afirmava que, se o Conselho de Segurança, ao aprovar a Resolução 1441, tivesse tencionado exigir uma segunda resolução para autorizar o uso da força contra o Iraque, tê-lo-ia deixado claro no texto. O facto de não o ter feito significa, segundo Lorde Goldsmith, que “tudo o que exige a Resolução 1441 é que seja comunicado ao Conselho de Segurança e aí discutido o incumprimento por parte do Iraque, mas não uma outra decisão expressa relativa à autorização da força”. No entanto, logicamente, poder-se-ia igualmente argumentar que se o Conselho de Segurança tivesse considerado não ser necessária uma segunda resolução, tê-lo-ia declarado expressamente. De qualquer modo, a interpretação de Lorde Goldsmith sugere que o Conselho de Segurança estava a pedir aos inspectores que o mantivessem informado sobre o cumprimento ou incumprimento por parte do Iraque, e planeava discutir a questão, mas, ao mesmo tempo, estava disposto a deixar a decisão sobre o uso da força a países-membros que agissem de moto próprio. Por que motivo estaria o Conselho de Segurança de transformar-se intencionalmente num mero fórum de discussão, enquanto as decisões relevantes eram tomadas noutro local? Vaughan Lowe, Professor Chichele de Direito Público Internacional na Universidade de Oxford, e vários outros proeminentes professores britânicos de direito, assumiram uma perspectiva diferente, e seguramente mais plausível: “Nada há na resolução que atribua a alguém que não o próprio Conselho de Segurança o direito de decidir quando se esgotaram as alternativas”. Lorde Goldsmith estava a tentar valorosamente encontrar uma base legal para as medidas prestes a serem tomadas pelo conselho de ministros de Tony Blair, do qual fazia parte, mas, como sublinharam os professores de direito, a sua interpretação era desprovida de sentido, sendo incompatível com as palavras do próprio representante britânico nas Nações Unidas no dia em que a Resolução 1441 fora aprovada.
Como referi, havia outros argumentos a favor da guerra com o Iraque, além da afirmação de que a guerra se justificava de forma a implementar as resoluções das Nações Unidas. Uma vez que ainda não considerámos esses argumentos, seria incorrecto decidir nesta fase se a guerra foi ou não eticamente justificada. Ainda assim, o processo através do qual a administração de Bush apresentou a sua argumentação a favor do desarmamento do Iraque às Nações Unidas, e, depois, quando não conseguiu impor ali o seu ponto de vista, resolveu avançar ainda assim, não coloca Bush a uma luz muito favorável. Parece que Bush apoiou a Resolução 1441 porque esperava que o Iraque recusasse os requisitos severos relativos às inspecções. Era uma previsão razoável, uma vez que Saddam se recusara já, anteriormente, a aceitar inspecções mais minuciosas. Sem dúvida que Bush pensou que a recusa de Saddam em aceitar os inspectores forneceria uma justificação para o derrube deste pelos Estados Unidos com o aval das Nações Unidas. Efectivamente, enquanto Bush se dirigia às Nações Unidas, as forças militares sob o seu comando encontravam-se já a “amolecer” o Iraque para a guerra iminente: entre Junho de 2002 e inícios de 2003, a Força Aérea norte-americana bombardeou os centros de comando iraquianos, os radares e as redes de fibra óptica, largando mais de seiscentas bombas em cerca de trezentos e cinquenta alvos seleccionados. Embora na altura estes ataques fossem justificados como reacção às violações iraquianas de uma zona aérea interdita estabelecida pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha no Sul do Iraque, o Tenente-General Michael Moseley, comandante-chefe da guerra aérea contra o Iraque, admitiu posteriormente que esta justificação era, pelo menos em parte, espúria, uma vez que os iraquianos estavam a reagir a ataques americanos mais agressivos que preparavam conscientemente o caminho a uma ofensiva militar contra o Iraque.
Quando, para surpresa de Bush e seus conselheiros, Saddam aceitou a presença dos inspectores, que depois se revelaram incapazes de apresentar provas da existência de armas de destruição maciça no Iraque, Bush considerou apreensivamente que, se as inspecções prosseguissem naqueles moldes, deixaria de ter quaisquer motivos para atacar Saddam. Por isso apresentou uma justificação diferente para o ataque. Duas semanas antes da eclosão da guerra, Mark Knoller, jornalista da CBS News, perguntou a Bush se temia que os Estados Unidos pudessem ser vistos como estando a desafiar as Nações Unidas, se avançassem com uma acção militar sem a autorização explícita daquele organismo. Nessa ocasião, Bush não recorreu aos pormenores relativos a resoluções anteriores das Nações Unidas para afirmar a legitimidade de um ataque. Ao invés, respondeu:
Estou confiante em que o povo americano compreende que, quando é a nossa segurança que está em jogo, se precisarmos de agir, agiremos, e não precisamos realmente da aprovação das Nações Unidas para o fazermos […] ao entrarmos no século XXI, Mark, quando é a nossa segurança que está em jogo, não precisamos realmente da autorização de ninguém.
Como indica este comentário, a verdadeira justificação de Bush para a invasão do Iraque não reside no seu empenho na defesa do direito internacional. Ao dirigir-se às Nações Unidas, ele não o faz de boa-fé. Como alguém que aceita a arbitragem numa disputa porque espera que a decisão lhe seja favorável, mas não tem qualquer intenção de a acatar caso isso não se verifique, Bush apresentou a sua argumentação às Nações Unidas mas tinha já decidido agir, independentemente da decisão tomada por este organismo.
A má-fé numa questão tão séria apresentada às Nações Unidas é uma falha ética grave. Mas há uma acusação ainda mais grave a ser considerada. Como referi no início deste capítulo, as declarações de Bush sobre “o vasto arsenal de armas letais, biológicas e químicas” de Saddam revelaram-se falsas. Provavelmente, algumas das principais figuras da administração de Bush sempre souberam que estas afirmações não tinham fundamento. Em Fevereiro de 2001, num encontro com a imprensa no Cairo após se ter avistado com líderes egípcios, Colin Powell afirmou:
Tivemos uma valente discussão […] acerca da natureza das sanções — o facto de as sanções existirem — não com a finalidade de prejudicar o povo iraquiano, mas para manter sob controlo as ambições de Saddam Hussein relativamente ao desenvolvimento de armas de destruição maciça […] e, francamente, foram bem-sucedidas. Saddam não desenvolveu qualquer capacidade militar significativa, no que diz respeito a armas de destruição maciça. Não consegue lançar armas convencionais contra os seus vizinhos.
Por que razão Powell falou de forma tão diferente, dois anos depois? Terá sido porque, pelo menos em Julho de 2002, já se tomara a decisão de atacar o Iraque, baseada em considerações que não a convicção do perigo representado pelas armas de destruição maciça do Iraque? Segundo Richard Haass, então director do centro de delineamento de políticas do Departamento de Estado, foi por volta desta altura que Condoleezza Rice lhe disse que opor-se à decisão seria uma pura “perda de tempo”. Se a decisão já fora tomada nessa altura, parece claro que, depois, a administração não estaria a procurar a verdade sobre as armas do Iraque de uma forma objectiva.
Esta conclusão é fortemente apoiada pelo testemunho de Joseph C. Wilson, antigo diplomata americano no Iraque e em vários países africanos. Wilson afirmou que, em Fevereiro de 2002, lhe foi pedido pela CIA que investigasse um relatório sobre a tentativa de compra de urânio ao Níger por parte do Iraque. O gabinete do Vice-Presidente Cheney estava interessado em tirar os factos a limpo, disseram a Wilson. Por conseguinte, viajou até ao Níger, investigou a questão, e concluiu que os relatórios eram “muitíssimo duvidosos”. Era muito pouco provável que o Iraque tivesse tentado comprar urânio ao Níger. O embaixador norte-americano no Níger concordava com esta conclusão e tinha já enviado a Washington um relatório nestes termos. Wilson, evidentemente, forneceu um relatório pormenorizado à CIA, e, mais tarde, comunicou as suas conclusões ao Departamento de Estado. Em Outubro, a Avaliação Nacional das Informações sobre o Iraque, um documento secreto da CIA, incluía a seguinte frase: “Por fim, as afirmações relativas à procura de urânio natural em África por parte do Iraque são [segundo avaliação do Gabinete de Informações e Investigação do Departamento de Estado] muitíssimo duvidosas”. Nesse mês, a CIA enviou dois memorandos à Casa Branca exprimindo dúvidas acerca das afirmações. Um foi dirigido ao conselheiro adjunto para a segurança nacional de Bush, Stephen J. Hadley, e o outro ao seu redactor principal de discursos, Michael Gerson. George Tenet, director da CIA, também telefonou a Hadley antes de o presidente fazer um discurso em Cincinnati, a 7 de Outubro, pedindo que fosse retirada a alegação. Ainda assim, em Janeiro de 2003, no mais solene e bem preparado discurso que profere anualmente, o discurso do Estado da União, Bush referiu-se à tentativa por parte do Iraque de aquisição de urânio em África como uma importante prova da sua convicção de que o Iraque estava a tentar obter armas nucleares. Segundo The Washington Post, os responsáveis da administração que trabalharam sobre o discurso haviam querido, inicialmente, incluir uma referência específica ao Níger, mas substituíram-na pela referência vaga a “África”, depois de terem sido informados pela CIA da existência de problemas relativamente às informações respeitantes ao Níger. Todavia, se a informação mais específica que apoiava esta afirmação não era fidedigna, por que motivo os responsáveis da administração não consideraram retirar todas as referências à tentativa de aquisição de urânio por parte do Iraque? Se tivessem aprofundado a investigação, teriam sido informados das várias razões que levavam a duvidar que o Iraque tivesse tentado comprar urânio a qualquer país africano.
Levanta ainda mais suspeitas o facto de, apenas alguns dias passados sobre o discurso do Estado da União de Bush, o Secretário de Estado Colin L. Powell ter passado em revista toda a informação relativa à alegada compra de urânio em África pelo Iraque e ter decidido que esta não era suficientemente fidedigna para utilizar no discurso que proferiu perante as Nações Unidas uma semana depois do discurso de Bush. Se Powell formou esta opinião, é razoável supor que a teria mencionado a Bush ou a um dos seus colaboradores. Isto passou-se ainda seis semanas antes de os Estados Unidos atacarem o Iraque. Entretanto, a afirmação de que o Iraque estava a tentar comprar urânio a África fora já feita não só pelo presidente, mas também pela sua Conselheira para a Segurança Nacional, Condoleezza Rice, pelo Secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, e pelo Secretário Adjunto da Defesa, Paul Wolfowitz. A Casa Branca retractou-se finalmente em Julho, quando a guerra estava terminada e Wilson divulgara a sua viagem a África. Por que razão Bush não reconheceu — quando o país e as Nações Unidas estavam ainda a decidir se avançariam para a guerra — que parte da sua argumentação contra o Iraque se baseava numa informação que não podia ser comprovada?
Como vimos, a argumentação que a administração de Bush apresentou para mostrar que o Iraque violava as suas obrigações incluía outras provas questionáveis. Uma delas era a afirmação de que o Iraque estava a tentar comprar tubos de alumínio cujas características os tornavam adequados apenas à utilização numa centrifugadora, equipamento usado para enriquecer urânio. Esta afirmação foi proferida apesar da informação fornecida pelo próprio Departamento de Energia da administração de Bush de que os tubos possuíam as características erradas para serem usados numa centrifugadora, e um parecer do Gabinete de Informações e Investigação do Departamento de Estado a sugerir que os tubos, provavelmente, se destinavam a um sistema de lançamento múltiplo de foguetes, que o Iraque não fora proibido de possuir. Outra afirmação mais tarde denunciada como falsa foi que “o Iraque estava em condições de lançar um ataque biológico ou químico quarenta e cinco minutos depois de ter sido dada a ordem”. Esta afirmação, originalmente feita pelo governo britânico, foi repetida duas vezes por Bush sem que a CIA tivesse confirmado a alegação, num discurso proferido no Roseiral em Setembro de 2002, e numa comunicação radiofónica nesse mesmo mês.
Além da questão das armas de destruição maciça, a outra alegação feita pela administração de Bush sobre o Iraque referia a existência de uma ligação entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Ao apresentar ao povo americano a sua argumentação a favor da guerra com o Iraque, Bush relacionou repetidamente Saddam Hussein e a Al Qaeda, sem fornecer qualquer prova real de tal ligação. A notícia da realização de um encontro de Mohamed Atta, um dos terroristas envolvidos nos ataques de 11 de Setembro de 2001, com um representante do regime iraquiano em Praga foi posteriormente desmentida pelo governo checo. No seu discurso do Cincinnati de 7 de Outubro de 2002, Bush disse “soubemos” que o Iraque treinou elementos da Al Qaeda “no fabrico de bombas, venenos e gases letais”. Afirmou também que os líderes da Al Qaeda tinham fugido do Afeganistão para o Iraque e, em particular, que “um líder muito importante da Al Qaeda” recebera nesse ano tratamento médico em Bagdade. Contudo, a Avaliação Nacional das Informações sobre o Iraque, o documento secreto da CIA que fora concluído pouco tempo antes do discurso de Bush no Cincinnati, chamava a atenção para o facto de, relativamente às ligações entre o Iraque e a Al Qaeda, os dados dos dissidentes iraquianos e dos elementos da Al Qaeda capturados serem contraditórios e não fidedignos. Indicava também que os contactos entre o Iraque e a Al Qaeda haviam ocorrido no início da década de 1990, nos primórdios da Al Qaeda, e que, tanto quanto se sabia, esses contactos não tinham conduzido a qualquer relação conhecida, persistente e de alto nível entre o Iraque e a Al Qaeda. No que respeitava ao “líder muito importante da Al Qaeda” que recebera tratamento médico em Bagdade, a Avaliação Nacional das Informações declarava que, embora se tivesse relacionado ocasionalmente com seguidores da Al Qaeda, ele próprio não pertencia a esta organização. Meses depois da guerra, não viera a público qualquer prova real de cooperação entre o Iraque e a Al Qaeda em actividades terroristas. Por outro lado, The New York Times revelou que dois líderes da Al Qaeda, capturados pelos Estados Unidos, haviam revelado independentemente à CIA que a sua organização não trabalhava com Saddam Hussein. A administração de Bush não tornou públicas estas declarações. Quatro dias depois de Bush ter proferido o seu discurso em Cincinnati, alegando que havia uma ligação entre o Iraque e a Al Qaeda, o Congresso aprovou a concessão de autoridade a Bush para encetar uma guerra com o Iraque.
A impressão global com que se fica a partir desta e de outras revelações é que, em vez de avaliar objectivamente as informações que recebia sobre a posse ou não de armas de destruição maciça por parte do Iraque e possíveis contactos com a Al Qaeda, e depois decidindo as medidas necessárias, a administração de Bush decidiu as medidas que queria tomar e depois seleccionou e “trabalhou” as informações para que estas apoiassem as referidas medidas. Depois de analisar o destino das informações que enviou, Joseph Wilson conclui: “pode defender-se um argumento legítimo de que entrámos em guerra com base em informações falsas”. Dificilmente poderá haver acusação mais grave feita ao presidente dos Estados Unidos e à sua administração do que a de ter enganado o Congresso, os seus próprios concidadãos e os governos e povos de todo o mundo para poder encetar uma guerra que provocou a morte de milhares de pessoas, incluindo pelo menos três mil civis, e mutilou e feriu, ou desalojou, outras dezenas de milhares.
Depois de finda a guerra, soube-se que, no culminar dos preparativos norte-americanos para a guerra, a administração de Bush foi informada por um homem de negócios libanês-americano de que Saddam Hussein estava disposto a dar aos americanos grande parte do que estes queriam. O homem de negócios fora informado pelo chefe dos serviços secretos iraquianos que Saddam não possuía armas de destruição maciça e estava disposto a deixar que as tropas americanas conduzissem uma busca. Os iraquianos ofereciam-se ainda para entregar aos americanos um homem procurado por suspeita de ter participado na tentativa de fazer explodir o World Trade Center em 1993. Mas o mais extraordinário era comprometerem-se a realizar eleições. Em resultado destas aberturas, Richard Perle, conselheiro do Departamento de Defesa, viajou até Londres para se encontrar com o homem de negócios. Este insistiu no sentido da realização de uma reunião directa de Perle, ou outro representante dos Estados Unidos, com os líderes iraquianos. Perle fez chegar esta mensagem aos responsáveis da administração de Bush, mas estes ignoraram a abertura iraquiana. Segundo Perle, “A mensagem foi: “Diz-lhes que nos encontraremos com eles em Bagdade.""
Embora seja impossível saber se os iraquianos eram sinceros na sua oferta para negociar, a reacção da administração de Bush à oferta encaixa-se no padrão que já observámos. A administração não estava interessada em negociações pela mesma razão que não estava interessada em provas que lançassem dúvidas sobre a existência das armas de destruição maciça de Saddam. Já se tinha decidido pela guerra. Esta esteve muito longe de ser uma guerra em último recurso.
Ao falar aos Estados Unidos, em Setembro de 2002, Bush afirmou: “A liberdade do povo iraquiano é uma grande causa moral e um grande objectivo estratégico. O povo do Iraque merece-a”. Seis meses mais tarde, foi com termos semelhantes que transmitiu ao General Franks a ordem para atacar o Iraque. Saddam Hussein era um ditador brutal, responsável pelas mortes de centenas de milhares de iraquianos. Este facto fornece um argumento ético directo a favor do seu derrube, desde que o custo de o fazer, em termos de mortes, ferimentos e destruição de propriedade iraquiana não seja grande, em comparação com o sofrimento que Saddam continuaria a infligir ao seu próprio povo.
Este argumento ético não constitui uma justificação legítima para o ataque ao Iraque. Tradicionalmente, o direito internacional reconheceu a soberania dos países, independentemente da forma como são constituídos os seus governos, e — quase — independentemente dos crimes que estes praticam relativamente ao seu próprio povo. A Carta das Nações Unidas confirma isto, declarando que, exceptuando actos de agressão e ameaças à paz, “Nada contido na presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em matérias que se encontram essencialmente no âmbito da jurisdição nacional de qualquer estado nem exigirá que os Membros sujeitem tais matérias a acordo nos termos da presente Carta”. É verdadeiro que as próprias Nações Unidas forçaram por vezes esta cláusula até ao limite. Uma dessas ocasiões envolvera o Iraque. Em 1991, o Conselho de Segurança decidira que a repressão da população civil tinha consequências que constituíam uma ameaça à paz e à segurança internacionais e, portanto, justificava uma intervenção. Uma vez que o conselho mencionava a fuga de refugiados para outros países, esta repressão tinha algumas consequências que extravasavam as fronteiras do Iraque. Noutros casos, contudo — por exemplo, no Haiti, onde o conselho agiu para devolver o poder ao presidente democraticamente eleito, Jean-Bertrand Aristide —, a afirmação de que a intervenção era necessária para impedir a concretização de uma ameaça à paz e à segurança internacionais revelara-se consideravelmente débil.
Todavia, em casos extremos, tem sido reconhecido um direito de base ética à intervenção humanitária. Muitas pessoas pensam que se teria justificado eticamente uma intervenção destinada a pôr fim ao genocídio ocorrido no Ruanda em 1994. O remorso sentido pela não intervenção neste caso pode ter encorajado os líderes das potências da OTAN a intervir na Jugoslávia para fazer cessar a carnificina no Kosovo. Muitas pessoas, incluindo o próprio Presidente Clinton, consideraram essa a coisa correcta a fazer, embora na altura lhe tivesse faltado a autorização das Nações Unidas e, portanto, fosse de legalidade duvidosa. É possível argumentar que o direito internacional está em evolução constante e acabará por se ajustar à opinião mundial no respeitante a questões éticas como o direito à intervenção humanitária.
Ainda assim, a situação do Iraque em 2003 era significativamente diferente da situação do Ruanda em 1994 e do Kosovo em 1999. Na altura da invasão, Saddam não estava envolvido em qualquer forma de genocídio ou massacre generalizado. No discurso proferido perante as Nações Unidas, Bush afirmou:
Saddam Hussein atacou o Irão em 1980 e o Koweit em 1990. Lançou mísseis balísticos para o Irão, a Arábia Saudita, o Bahrain e Israel. O seu regime já ordenou a morte de todas as pessoas entre quinze e setenta anos em certas aldeias curdas do Norte do Iraque. Gaseou muitos iranianos em quarenta aldeias iraquianas.
O assassínio dos curdos no Norte do Iraque ocorreu em 1988 e o uso de gás em aldeias iranianas e iraquianas data do mesmo período. Subsequentemente, em 1991, Saddam dominou uma insurreição xiita no Sul, com grande brutalidade, e em meados da década de 1990 atacou árabes que viviam nos pântanos remotos próximos da fronteira iraniana. Nestas ocasiões, poder-se-ia ter apresentado argumentação ética plausível a favor da intervenção humanitária contra Saddam. No entanto, durante os anos que precederam a decisão de Bush de atacar o Iraque, embora a tortura e as execuções de pessoas suspeitas de oposição ao regime tivessem prosseguido, nada se registou comparável às atrocidades anteriores. Don Coughlin, que relata o longo historial de violência de Saddam em Saddam, King of Terror, reconhece que, em 2002, “os iraquianos vulgares começavam a recuperar das privações terríveis que haviam vivido durante a maior parte da década de 1990”. Assim, quando Bush estava a apresentar os seus argumentos a favor de um ataque ao Iraque, teria sido difícil mostrar que o governo iraquiano estava a perpetrar crimes maiores do que outros regimes opressivos, como os da Birmânia, da Coreia do Norte ou do Turquemenistão.
Para que Bush baseasse exclusivamente em motivos humanitários a guerra do Iraque, a sua posição teria de sofrer uma reviravolta profunda em relação à que professara durante a campanha para a presidência. No segundo dos debates de Bush com Al Gore, o moderador, Jim Lehrer, referiu que haviam morrido seiscentas mil pessoas no Ruanda em 1994, não se tendo assistido a qualquer intervenção por parte dos Estados Unidos. Lehrer perguntou se fora um erro não intervir. Bush respondeu: “Penso que a administração fez o que estava certo, nesse caso. Creio... Pensei que tinham tomado a decisão certa, ao não enviar tropas norte-americanas para o Ruanda”. Os que conhecem bem a situação do Ruanda nessa altura, consideram que um número relativamente reduzido de soldados — certamente muito menos do que o número exigido para derrubar Saddam — teria bastado para pôr fim ao massacre. Por conseguinte, é curioso que Bush, em 2000, tenha considerado incorrecto enviar um número modesto de soldados norte-americanos para o Ruanda para salvar seiscentas mil vidas, e que, em 2003, tivesse mudado de ideias ao ponto de estar disposto a enviar um contingente muito maior para derrubar Saddam que, embora indubitavelmente opressor e cruel, não estava prestes a massacrar seiscentos mil concidadãos. (Condoleezza Rice ignorou a opinião anterior de Bush sobre o Ruanda quando, depois de se tornar evidente que o Conselho de Segurança das Nações Unidas dificilmente aprovaria uma resolução a autorizar o uso de força contra o Iraque, procurou insidiosamente debilitar a autoridade das Nações Unidas, dizendo: “O Conselho de Segurança das Nações Unidas não conseguiu agir quando no Ruanda se assistia a um genocídio que custou quase um milhão de vidas”.)
Vimos que as razões para uma intervenção humanitária contra Saddam eram muito mais débeis quando a guerra teve realmente início do que teriam sido uns anos antes. Há outros regimes repressivos, tão maus como o dele. E também vimos que Bush se opusera anteriormente à intervenção humanitária que impediria a continuação de um massacre horrendo. Ainda assim, continua a ser possível que a decisão de Bush em derrubar Saddam se justifique. No seu aspecto mais imediato, as razões para derrubar Saddam com o fim de ajudar o povo do Iraque eram utilitaristas. Tudo o que exigia era a demonstração de que os benefícios que podiam ser razoavelmente esperados ultrapassariam os custos, incluindo o custo em vidas humanas inocentes, que também podiam ser razoavelmente esperados. Pode defender-se que teria sido melhor derrubar Saddam mais cedo, mas era melhor fazê-lo mais tarde do que nunca. Talvez fosse ainda melhor derrubar o ditador coreano, Kim Jong Il, mas isso poderia não ser exequível sem uma perda ainda maior de vidas inocentes.
Embora haja uma justificação utilitarista possível para o derrube de Saddam, se recorresse a ela, Bush estaria a contradizer as suas opiniões morais expressas acerca de outras questões. Como vimos quando considerámos a sua atitude sobre a perda de vidas inocentes provocada pelo bombardeamento e sobre a detenção sem julgamento, seria estranho que Bush se revelasse utilitarista nestas questões e, ao mesmo tempo, recusasse a mesma abordagem ética relativa à destruição de embriões para produzir células estaminais. Se está disposto a argumentar em termos utilitaristas que uma guerra que provoca a morte de vidas inocentes se justifica porque salva muitos mais inocentes de serem assassinados às ordens de Saddam, devia estar disposto a aceitar o mesmo cálculo de custos e benefícios para utilizar uns quantos embriões para salvar muitas mais vidas. Em alternativa, se Bush nega que seja correcto matar alguns inocentes para que outros possam viver, encontrará dificuldade em justificar uma guerra para salvar o Iraque da tirania de Saddam: não há a menor dúvida de que esta guerra ceifará a vida a muitos iraquianos inocentes.
Além do problema geral de demonstrar como o argumento humanitário a favor da guerra pode ser compatível com a sua postura noutras questões éticas, Bush enfrenta ainda um problema mais específico na utilização desse argumento para justificar a sua guerra com o Iraque. Nos termos da Constituição Norte-americana, só o Congresso pode autorizar a guerra. Numa resolução aprovada a 10 de Outubro de 2002, o Congresso autorizou o presidente a fazer uso da força no Iraque. Mas essa autoridade foi-lhe concedida com um fim muito específico. O presidente poderá fazer uso da força para:
A resolução não contém qualquer autorização para usar a força com o fim de libertar o povo do Iraque de um tirano. Se essa foi a verdadeira razão da guerra, foi inconstitucional.
Não obstante estes graves problemas de constitucionalidade e coerência, ignorá-los-ei para perguntar se haveria realmente um forte argumento utilitarista a favor de uma guerra de libertação. O facto de Bush estar ou não justificado no ataque do Iraque depende, em termos utilitaristas, de quão razoável lhe era acreditar que os benefícios ultrapassariam os custos humanos da guerra e que estes benefícios não poderiam ser obtidos através de meios menos onerosos. Já vimos que a administração de Bush não fez todos os esforços possíveis para descobrir se haveria outra forma de libertar o Iraque da tirania de Saddam. Não investigou a alegada oferta de realização de eleições, transmitida pelo homem de negócios libanês-americano a Richard Perle. Por improvável que essa oferta fosse, foi incorrecto rejeitá-la sem uma investigação séria, tendo em conta os custos que resultariam de uma guerra. Se os ditadores como Pinochet, no Chile, cederam à pressão e permitiram a realização de eleições livres, não estava para lá dos limites da possibilidade que Saddam, ainda sob maior pressão, pudesse fazer o mesmo. Muitas pessoas rir-se-ão com o pensamento de tal conversão súbita de um ditador brutal, mas é verdadeiro que, quer a guerra tenha sido travada para eliminar a ameaça representada pelas alegadas armas de destruição maciça do Iraque, quer tenha tido como finalidade libertar o povo iraquiano da tirania de Saddam, não foi uma guerra de último recurso.
Os custos humanos da guerra são difíceis de calcular, mas sabemos que para muitos iraquianos foram muito avultados. Tal como no Afeganistão, houve bombas e mísseis que caíram nos locais errados. As mortes de civis, durante a guerra, excederam as três mil, e calcula-se que os feridos civis andem pelos vinte mil. Houve pais que perderam filhos, filhos que ficaram órfãos, e tanto adultos como crianças ficaram mutilados. Chegaram relatos das condições horríveis vividas nos hospitais durante a guerra. As camas sujas e ensopadas de sangue não podiam ser mudadas porque a falta de electricidade fizera parar a lavandaria. As anestesias acabaram, mas os feridos pelos bombardeamentos continuaram a chegar, muitas vezes com ferimentos terríveis. Os médicos exaustos faziam cirurgias de emergência em pacientes sem quaisquer analgésicos além de oitocentos miligramas de ibuprofeno — a dose que um americano toma para uma dor muscular.
Meses depois de Bush ter anunciado o final das principais operações de combate no Iraque, as tropas americanas continuavam a matar civis. A morte de Mazen Dana a 17 de Agosto de 2003, por um soldado que pensou que a câmara de vídeo era um lançador de foguetes, foi amplamente divulgada, pois ele era operador de câmara da Reuters. Outras mortes, como a de Adel abd al-Kerim e de três dos seus filhos uma semana antes, mereceram menos atenção. Mas a família al-Kerim, que estava no interior do seu automóvel quando este foi mandado parar num bloqueio de estrada norte-americano, foram, como Dana, vítimas inocentes de soldados americanos em pânico que pensaram, erradamente, estar sob fogo.
E também não há razões sólidas para deixar as mortes de combatentes fora do cálculo. O número de militares americanos mortos no Iraque desde o início da guerra ultrapassou os quatrocentos em Novembro de 2003 e continua a aumentar desde então. Além deles, morreram ainda cinquenta e dois britânicos e dezasseis italianos, assim como soldados individuais da Dinamarca, da Espanha, da Polónia e da Ucrânia. Mais de dois mil e trezentos elementos das forças de coligação foram feridos, muitos deles com efeitos permanentes graves. As mortes de combatentes iraquianos calculam-se em cerca de dez mil e o número de iraquianos feridos pode ser, tal como acontece no caso das forças de coligação, quatro ou cinco vezes superior. Como os Estados Unidos utilizaram uma forma melhorada de napalm sobre certas posições iraquianas, uma parte destas mortes e ferimentos foi particularmente dolorosa. O napalm, amplamente usado pelas forças americanas no Vietname, é uma mistura de combustível de aviação e um gel semelhante ao polistireno que se agarra à pele enquanto queima. Inicialmente, o Pentágono negou a utilização de napalm, mas, mais tarde, reconheceu que a forma melhorada da arma que estava a usar era “extraordinariamente semelhante”. O Coronel James Alles, comandante do 11.o Grupo Aéreo dos Marines, afirmou acerca de um dos ataques: “Lançámos napalm sobre ambos os acessos [à ponte]”. “Infelizmente, havia ali pessoas […] vimo-las no vídeo [do cockpit]. Eram soldados iraquianos. Não é uma boa forma de morrer”. Precisamente porque o regime de Saddam era tão brutal, a maioria dos que prestavam serviço no exército iraquiano eram recrutados e não voluntários. Morreram milhares de jovens, obrigados a lutar por um regime que não apoiavam. Tinham mães, talvez mulheres e filhos, e as suas mortes fazem parte dos custos da guerra.
Além das mortes e dos ferimentos, a guerra provocou prejuízos enormes. Milhares de pessoas viram as suas casas bombardeadas e muitas outras foram privadas durante longos períodos de serviços básicos como electricidade, água corrente e protecção policial. Foram destruídos edifícios fabris e de escritórios, privando as pessoas do seu emprego. Houve desastres ambientais, como a pilhagem da Instalação de Investigação Nuclear de Tuwaitha, uma relíquia do programa nuclear iraquiano dos anos de 1960, que antes da guerra era acompanhado pela Agência Internacional para a Energia Atómica. Como as forças norte-americanas não conseguiram isolar o local em Abril de 2003, os habitantes locais levaram tudo a que conseguiram deitar mão e consideraram útil, esvaziando barris de urânio para os usarem em casa e provocando a dispersão do material radioactivo. Foram detectados níveis de radioactividade três mil vezes superiores ao normal perto de uma escola primária próxima. No que foi outra catástrofe ambiental, o armazém de refinaria localizado a Oeste de Bagdade foi saqueado depois da guerra, tendo sido derramados, queimados ou roubados cinco mil litros de químicos perigosos. Pensa-se que a área circundante, num raio de três quilómetros, está extremamente contaminada e que as águas superficiais podem também ter sido afectadas.
E existe a perda cultural. O Museu Nacional de Antiguidades e o museu de Mossul foram saqueados. Embora alguns objectos tenham sido mais tarde recuperados, continua a desconhecer-se o paradeiro, na altura em que escrevo, de uns dez mil artefactos antigos que incluem estátuas, jóias, vasos e moedas, assim como colecções inteiras de tabuinhas de barro com escrita cuneiforme que se contam entre os mais antigos documentos escritos do mundo, mas nunca foram lidos. Uma vez que as colecções de tabuinhas foram dispersas e há peças soltas a serem vendidas ilicitamente por umas poucas centenas de dólares, as inscrições jamais serão lidas no seu contexto adequado. Os locais arqueológicos que os peritos escavavam delicadamente à mão antes da guerra foram agora revolvidos a bulldozer, em busca de objectos vendáveis. O incêndio da Biblioteca Nacional e dos Arquivos Nacionais, assim como de uma biblioteca especializada em obras religiosas, teve como resultado a perda de centenas de milhares de documentos, incluindo mais de seiscentos manuscritos islâmicos com mais de nove séculos, insubstituíveis, e o grosso dos registos que documentavam a história social e política do país.
Apesar de tudo isto, poderemos dizer que o povo iraquiano está melhor agora do que antes da guerra? Na altura em que escrevo, tal juízo seria prematuro. É verdadeiro que os iraquianos se libertaram da tirania de Saddam, e se libertaram, também, das privações geradas pelas sanções das Nações Unidas a Saddam, mas, em vez disso, convivem com a ameaça da violência, e não apenas às mãos de soldados americanos nervosos, mas também dos seus concidadãos. Saddam, por muitos horrores que perpetrasse, mantinha a ordem pública. Em Bagdade, a partir de meados de Abril de 2003, quando as forças americanas conquistaram a cidade, até ao final de Agosto, a morgue da cidade registou duas mil oitocentas e quarenta e seis mortes violentas. Deduzindo aquelas que teriam ocorrido se a taxa de morte violenta anterior à guerra se tivesse mantido durante este período, houve, pelo menos, mais mil quinhentas e dezanove mortes em quatro meses e meio. Os alvejamentos, que constituíam dez por cento das mortes violentas, foram responsáveis por sessenta por cento destas mortes. As forças norte-americanas causaram algumas dessas mortes, mas a maioria é resultado de ataques de iraquianos a outros iraquianos. São consequência da incapacidade das forças ocupantes para manterem a ordem e, portanto, fazem parte do preço que os iraquianos estão a pagar pela guerra, como fazem parte o medo e a insegurança que esta ruptura da ordem pública provoca nos iraquianos, quer se tornem suas vítimas quer não.
O facto de os iraquianos, no longo prazo, ficarem melhor do que estariam se a guerra não tivesse ocorrido depende substancialmente da natureza dos futuros governos do Iraque. Se surgir um estado democrático e estável e o Iraque prosperar, poderá ser possível afirmar que os custos humanos trágicos da guerra foram ultrapassados pelos benefícios sentidos pelos iraquianos no seu todo. Mas esse juízo não bastará, só por si, para demonstrar que a guerra era eticamente justificável. Uma vez que o direito internacional não reconhece a desejabilidade de “mudança de regime” como motivo para entrar em guerra, haveria ainda questões abrangentes a considerar, em particular, questões acerca do possível impacto da guerra no enfraquecimento dos constrangimentos do direito internacional.
Num discurso proferido perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Setembro de 1999, Kofi Annan apresentou o dilema ético que esta questão coloca. Alguns, notou ele, crêem que “a maior ameaça ao futuro da ordem internacional é o uso da força na ausência de um mandato emitido pelo Conselho de Segurança”. Annan pediu àqueles que perfilhavam esta opinião que imaginassem que, nos dias sombrios que antecederam o genocídio no Ruanda, houvesse uma coligação de estados pronta a agir em defesa da população tutsi que não recebera autorização pronta por parte do Conselho de Segurança. Deveria essa coligação aguardar e assistir ao desenrolar do horror? A maioria responderia negativamente — não devia aguardar. Mas, depois, Annan pediu àqueles que pensam que os estados ou os grupos de estados têm autoridade para agir fora dos mecanismos estabelecidos para a implementação do direito internacional, se não haveria o perigo de tais intervenções “constituírem perigosos precedentes para futuras intervenções, sem um critério claro que decida quem e em que circunstâncias se poderá invocar esses precedentes? Depois do ataque de Bush ao Iraque, esta questão parece mais pertinente do que nunca.
Vale a pena notar que mesmo o secretário-geral das Nações Unidas não está a dizer que nunca poderá existir uma intervenção justificada sem a autorização das Nações Unidas. Mas as excepções possíveis que ele tinha em mente eram situações como a do Ruanda, na qual, sem uma acção imediata por parte de outros estados, centenas de milhares de vidas poder-se-iam perder. Como já foi mencionado, em Março de 2003 não havia tamanha urgência relativamente à invasão do Iraque. Por conseguinte, a invasão não foi um caso no qual uma catástrofe humanitária tornasse a questão tão urgente que não houvesse tempo para persuadir o Conselho de Segurança a mudar de ideias.
Contudo, tragicamente, no momento exacto em que Bush estava a desviar as atenções das Nações Unidas e do mundo para o Iraque, desenvolvia-se na região Ituri da República Democrática do Congo uma crise muito mais urgente. Durante os últimos cinco anos, a região vivera num estado de guerra civil a raiar a anarquia, com milícias de diferentes grupos étnicos dificilmente controladas pelos exércitos ocupantes dos países vizinhos do Ruanda e do Uganda. No final de Fevereiro de 2003, a Human Rights Watch, principal organização mundial, não governamental, para os direitos humanos, advertiu as Nações Unidas de que a guerra no Congo desencadeara “uma crise humanitária de dimensões catastróficas”, havendo mais de dois milhões de desalojados. Apelava ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que garantisse que a sua missão de manutenção da paz no Congo conseguiria cumprir o seu mandato de “protecção de civis sob ameaça iminente de violência física”. Mas com os esforços de Bush no sentido de persuadir o Conselho de Segurança a autorizar o uso da força no Iraque a dominar as manchetes da imprensa, nada se fez. Menos de duas semanas mais tarde, a Human Rights Watch alertou novamente para a existência de civis em perigo de morte no Ituri, e uma vez mais a advertência não foi ouvida. O resultado foi descrito em termos explícitos por Philip Gourevitch, autor de We Wish to Inform You That Tomorrow We Will be Killed With Our Families, um livro devastador sobre o genocídio no Ruanda:
[…] setecentos soldados da força de manutenção de paz das Nações Unidas, fracamente armados, assistiram nas últimas semanas, impotentes, na região Ituri, a nordeste, aos massacres perpetrados por milícias tribais que encheram valas de cadáveres recentes a um ritmo semelhante àquele a que os mortos durante o reino de terror de Saddam Hussein eram exumados no Iraque.
Quando a guerra do Iraque começou, a maioria das vítimas de Saddam estavam mortas há já vários anos. As vítimas das lutas e assassínios tribais que tiveram lugar em Ituri, em Abril e Maio — mais de quatrocentos nos arrabaldes de Bunia, a cidade principal, só nas últimas três semanas de Maio, segundo um relatório da Reuters — ainda estavam vivas, e as suas vidas poderiam ter sido salvas por muito menos soldados do que foram necessários para derrubar Saddam. No final de Maio, depois de terminada a guerra do Iraque, o Conselho de Segurança das Nações Unidas voltou as suas atenções para o Congo, e autorizou uma força multinacional de manutenção da paz liderada pelos franceses a entrar em Ituri para tentar impedir mais massacres. A administração de Bush não se ofereceu para enviar tropas ou outra qualquer forma de apoio.
Como sugere Kofi Annan, ao considerar a ética da intervenção humanitária é importante considerar o precedente que se estabelece. É por isso que a afirmação de que a guerra com o Iraque gerou benefícios para o povo do Iraque que ultrapassam as pesadas baixas que sofreu durante o conflito, mesmo a ser verdade, não arruma a questão de saber se a guerra foi uma coisa boa. Mesmo que a guerra no Iraque acabe por ter consequências positivas para o povo do Iraque, se foi conduzida em flagrante desafio ao direito internacional, e enfraquece a autoridade das Nações Unidas para resolver disputas pacificamente, aumentará provavelmente o perigo que outros países, menos escrupulosos na sua escolha de circunstâncias, entrem igualmente em guerra fora do âmbito das Nações Unidas. Quando esse factor adicional é tomado em conta, o recurso à guerra pode ter sido não apenas ilegítimo, como não ético.
Este juízo baseia-se na ideia de que as Nações Unidas são, e devem permanecer, a única fonte de autoridade legítima no recurso à força, excepto, evidentemente, quando um país se defende de um ataque. Antes de aceitar esta ideia, temos de considerar o âmbito mais vasto das relações internacionais que Bush procura instaurar, e do qual a sua guerra com o Iraque faz parte. Num importante discurso e num documento político fulcral da sua administração, Bush apresentou uma abordagem nova e radicalmente diferente do alcance da paz no mundo. Não podemos emitir um juízo final sobre a ética da guerra com o Iraque até termos examinado esta nova abordagem.