Alfred Jules Ayer disse uma vez que toda a ética poderia ser escrita no verso de um cartão postal. No caso da teoria não-cognitivista mais simples isto dificilmente seria um exagero. De acordo com essa visão, dizer que roubar é errado é simplesmente exprimir a desaprovação do roubo por parte do falante, de sorte que a observação poderia ser mais esclarecedora se re-escrita como : “Roubar — Fora!”. Analogamente “Deus é bom” poderia ser traduzido como “Vivas para Deus”. Não é surpreendente que este ponto de vista tenha sido apelidado de teoria exclamativa (evocativa) da ética. Existe de fato muita coisa a mais para ser dita na elaboração e em defesa do que Ayer sugeriu, mas não devemos perder de vista a atraente simplicidade da teoria básica, em meio a todas as complexidades de algumas das versões mais sofisticadas da doutrina.
De acordo com o não-cognitivista, questões factuais são muito diferentes de questões valorativas. Os fatos são determinados pelo modo como o mundo é. Podemos descobrir o que são os fatos através da observação e do experimento. Nossas crenças sobre fatos estão constantemente sujeitas à revisão à luz de observações adicionais. Se nossas crenças se ajustam aos fatos, elas são verdadeiras, do contrário, são falsas.
Valores não são determinados pelo modo como o mundo é, porque valor não é algo encontrável no mundo. Uma descrição completa do mundo não mencionaria quaisquer propriedades valorativas, tais como beleza ou maldade. Nossas avaliações morais, assim como todas as nossas avaliações, não são crenças sobre o modo como o mundo é; elas são muito mais respostas afetivas ao modo como consideramos as coisas. Como tais não podem ser verdadeiras ou falsas, pois não há nada que as tornem verdadeiras ou falsas. Parece perfeitamente possível que duas pessoas possam concordar sobre todos os fatos e todavia discordar sobre valores morais por terem atitudes diferentes frente àqueles fatos. Tais desacordos puramente valorativos não poderiam ser resolvidos pela observação e experimento porque a disputa não é sobre coisas que podem ser observadas. Os disputantes não têm crenças conflitantes sobre os fatos, porém, atitudes diferentes em relação aos fatos.
Questões avaliativas são práticas de um modo que questões factuais não o são. Estabelecer uma resposta para um problema valorativo é decidir o que fazer; descobrir uma resposta para uma questão factual é desvendar em que acreditar. Podemos desvendar com quais princípios morais alguém está efetivamente comprometido, — ao invés de simplesmente dizer da boca para fora, — observando o que ele faz. Esta conexão íntima entre os compromissos morais de alguém e suas ações é explicada por apelo ao fato de que opiniões morais são atitudes, mais do que crenças. Ter uma atitude desfavorável em relação a algum curso de ação é ser contrário a ele; é estar motivado a evitá-lo e a desencorajar outros a segui-lo. Quando adotamos uma atitude moral nossos sentimentos estão necessariamente envolvidos (engajados).
Esta divisão entre fato e valor perpassa todo o não-cognitivismo encontrando expressão em muitas distinções, tais como aquela entre crença e atitude que já usamos. Sua influência pode ser encontrada nas reconstruções não-cognitivistas da motivação moral, da linguagem moral e da natureza de nossa experiência de valor moral.
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É a alegação não-cognitivista segundo a qual valores não são encontráveis no mundo que dá origem a uma distinção nítida entre fato e valor, a qual é onipresente na sua reconstrução. Não surpreende que muitas dúvidas sobre o não-cognitivismo põem em foco este irrealismo e suas conseqüências. Existem quatro desafios principais que aparecerão no restante deste capítulo.
Como vimos, a negação de uma realidade moral parece tornar problemática a noção de verdade moral. Se não existe nenhuma realidade moral, então não há nada que torne verdadeiras nossas opiniões. Contudo, a alegação de que julgamentos morais não têm um valor de verdade — isto é, não podem ser propriamente considerados verdadeiros ou falsos — parece lançar um desafio ao nosso pensamento e discurso normal. O não-cognitivista tem, ou bem que mostrar que seu radical afastamento de nosso modo normal de pensar está justificado, ou então explicar como, em sua reconstrução, podemos conservar o direito de falar em julgamentos morais portadores de um valor de verdade.
Em segundo lugar, se não existe nada no mundo que torne nossas opiniões morais verdadeiras, a que podemos apontar se desejamos justificar nossas visões morais? Se nossas convicções morais são desafiadas será que podemos produzir alguma boa razão para dar sustentação a elas? O não-cognitivismo parece enfrentar a ameaça de ceticismo moral. O ceticismo não está de modo algum confinado à ética. O céptico tipicamente alega que todas as justificações proferidas para nossas crenças em alguma área são inadequadas.
Alguém pode ser um céptico moral sem ser um céptico em outras áreas. O céptico moral alega que existe algo característico no que tange a teses morais que torna impossível mostrar que uma está mais justificada do que outra. O não-cognitivismo tende em direção ao ceticismo moral por duas razões. Primeiramente, em razão de seu irrealismo sobre valores. Se não existe realidade moral então nossas opiniões morais não podem ser justificadas pela observação ou experimento. Mas estas são nossas principais ferramentas para estabelecer e testar nossas opiniões. Em segundo lugar, se posso ser capaz de produzir boas razões para minhas crenças, é difícil ver como poderia ter boas razões para minhas atitudes. Que atitudes tenho é algo que depende de como eu sinto — e isso não parece conferir sentido ao pedido a alguém para justificar seus sentimentos, não mais do que faz sentido pedir que eu dê boas razões para sustentar o fato de eu não gostar de arroz doce. Mas o fato de que isso conduz ao ceticismo moral não seria uma razão para que sejamos mais cauteloso com respeito à reconstrução do não cognitivismo moral?
Em terceiro lugar, como acabamos de ver, parece que o não-cognitivista tem que negar que possamos observar valores, pois não existe nada para ser observado. Esta alegação é contra-intuitiva. Nossa experiência do mundo parece envolver experiência de valor, tanto moral como não-moral: ouvimos a beleza da música de Mozart; vemos a crueldade das crianças para com o cachorro; testemunhamos a rudeza de McEnroe nas quadras de tênis. Pode o não-cognitivista dar conta de nossa experiência de valor que faça justiça à natureza dessa experiência a memo tempo em que nega ao valor qualquer lugar no mundo?
Finalmente a alegação de que não há realidade moral, que as propriedades morais não formam parte do mobiliário do mundo, carece ela própria de justificação. Por que critério decidimos que propriedades existem no mundo? Como determinamos se algum aspecto de nossa experiência representa, ou deixa de representar, uma propriedade real para nós? O não-cognitivismo enfrenta o desafio de prover uma reconstrução geral da distinção entre o que existe realmente e o que somente parece existir — uma reconstrução que não apenas ofereça a resposta que o não-cognitivista deseja no caso moral, mas que também dê respostas plausíveis em qualquer circunstância.
Se o não-cognitivista é capaz de enfrentar estes desafios então ele terá dado uma boa caminhada na direção de substanciar sua teoria. Essa teoria se vale de posições filosóficas em outras áreas para lhe dar sustentação. Para avaliar seu sucesso necessitamos assinalar cuidadosamente suas conseqüências em áreas filosóficas disputáveis , tais como da explicação da ação, da teoria da linguagem e da natureza da realidade. Podemos somente dar sentido pleno a ela dentro deste quadro filosófico mais amplo; podemos somente alcançar uma avaliação final de sua plausibilidade depois de termos formado nossa opinião sobre que pontos de vista assumir em áreas correlatas da filosofia.
Questões morais são, como vimos, questões sobre o que fazer. Não aceitaríamos a alegação de uma pessoa de que possui uma convicção moral caso ela nunca agisse em conformidade com a alegada convicção. Buscamos mudar as perspectivas daqueles que cremos estar errados em alguma questão moral porque desejamos alterar o modo de eles agirem. Qualquer teoria moral que deixe de dar conta de modo convincente desta relação estreita entre nossos comprometimentos morais e nossas ações há de ser considerada insatisfatória. O não-cognitivista não apenas alega que sua teoria pode prover uma tal reconstrução, mas sustenta ainda que o realista não consegue fazê-lo.
Algumas vezes iremos apelar para os comprometimentos morais de um agente ao explicar por que ele agiu do modo como o fez. Como pode tal apelo nos ajudar a entender o que ele estava fazendo? O melhor meio de fazer frente a esta questão é subsumi-la sob a questão mais ampla: como explicamos a ação humana intencional? Quando um agente age intencionalmente, presumimos que ele tem razões para o que faz; que ele tem certos objetivos ou propósitos que poderiam ser explicitados. Explicamos sua ação explicitando as razões que ele teve para agir desse modo.
Suas razões podem não ser boas; mas o apelo a elas nos ajudará a entender o que ele estava fazendo, mesmo que julguemos que elas não o justificam a agir como agiu. Entendo por que Karen gastou milhares de libras no ortodontista para conseguir endireitar seus dentes quando me dou conta de que ela quer ser atraente ao sexo oposto, ainda que eu não considere isso uma boa razão para se gastar tanto dinheiro. Algumas vezes parecem óbvias as razões do agente; outras vezes ficamos intrigados. Os observadores do Kremlin passam a vida fornecendo razões que tornem inteligíveis para todos nós no Ocidente as ações dos líderes soviéticos.
O que é para um agente ter razão para agir; que tipo de explicação necessitamos prover para tornar inteligível a ação de alguém? Uma resposta óbvia faz valer que um agente dispõe razão para agir se ele tem crenças e desejos de tipos apropriados. Se um desses fatores estiver ausente o agente não disporá de razão para agir. Em uma explicação completa de qualquer ação, portanto, ambos precisariam ser mencionados.
Esta visão da explicação de uma ação, que pode ser denominada teoria da crença-desejo, foi defendida por Hume que freqüentemente a expôs em termos de uma metáfora hidráulica. Por exemplo, o desejo de comer uma maçã provê um estímulo motivacional que leva o agente a agir mas não fornece informação sobre como satisfazer esse desejo. Crenças, que são elas próprias carentes de força motivacional, provêem aquela informação e, assim, guiam ou canalizam aquele impulso em direções apropriadas. A crença de que posso comprar maçã na loja local canaliza a energia latente em meu desejo por maçãs na direção da loja. A combinação de crença e desejo é requerida para motivar o agente a agir. Desejos sem crenças são cegos; crenças sem desejos são inertes.
O que o emprego desta metáfora hidráulica ilustra é a crença comum de que devemos pensar em crenças e desejos como tipos radicalmente diferentes de estado. Crenças, como já vimos, são estados cognitivos — elas são representações do modo como julgamos ser o mundo. Desejos, por contraste, são caracteristicamente pensados como estados não cognitivos — um desejo não é um estado passivo que reflete o mundo, mas um estado ativo que leva seu possuidor a buscar mudá-lo.
Podemos exprimir essa conexão íntima entre os compromissos morais de um agente e suas ações, sobre a qual o não-cognitivista deposita tanta ênfase, em termos de razões para a ação. Uma convicção moral, em conjunção com crenças apropriadas, poderia ser pensada como sendo suficiente para fornecer a um agente razão para agir. Por exemplo, minha convicção de que eu devo visitar minha avó doente, acoplada à crença de que ela vive em Birmingham, me dá razão para viajar para lá. Desde que expliquemos as ações de um agente por apelo a suas razões parece que podemos algumas vezes explicar plenamente a ação de uma pessoa citando alguma perspectiva moral dela em conjunção com algumas de suas crenças. Minha viagem a Birmingham é completamente explicada desde que seja dada atenção às minhas crenças sobre onde se encontra minha avó e ao meu senso de dever familiar.
O ponto de vista de que uma convicção moral, acoplada a crenças adequadas, é suficiente para prover o agente com uma razão para agir e assim motivá-lo a agir, é freqüentemente chamada de internismo porque postula uma conexão interna ou conceitual entre uma atitude moral do agente e sua escolha de ação. O internismo parece plausível; convicções morais parecem ser essencialmente orientadoras da ação. Como poderia alguém genuinamente sustentar que uma determinada ação estava errada e contudo não ver razão para não agir dessa maneira?
A combinação de internismo e da teoria da crença-desejo de ação provê o não-cognitivista com um poderoso argumento em favor de sua posição. O internismo nos diz que podemos dar uma explicação completa de minha viagem a Birmingham atribuindo a mim uma opinião moral — que assumi ser meu dever moral visitar minha avó — e algumas crenças óbvias sobre onde vivia minha avó e como chegar a Birmingham. A teoria da crença-desejo nos diz que uma explicação completa de qualquer ação precisa mencionar um desejo, assim como algumas crenças, uma vez que somente desejos são convenientemente motivacionais. Todavia, onde na explicação de minha viagem a Birmingham encontramos referência a um desejo? Uma vez que, obviamente, minhas crenças sobre onde vive minha avó, ou como chegar a Birmingham, não são desejos, o único lugar em que um desejo poderia estar espreitando é em minha convicção moral. Assim minha opinião moral não pode ser puramente cognitiva, não pode ser simplesmente uma crença sobre o que devo fazer. Ela precisa conter um elemento não- cognitivo dado que é motivacional e puras crenças não podem motivar. Ela precisa ou bem ser ela própria um desejo ou de alguma forma incorporar um desejo.
Este argumento parece confirmar a alegação de que convicções morais são atitudes e não crenças e ele nos dá mais detalhe sobre o que uma atitude precisa ser, uma vez que ter uma atitude precisa ser uma forma de querer ou desejar. Ter uma atitude de desaprovação em direção ao aborto, por exemplo, é querer que não haja abortos.
Podemos agora ver por que a combinação de internismo e da teoria da crença-desejo ameaça o realismo moral. O realista moral rejeita a distinção não-cognitivista entre crenças factuais e atitudes morais. Ele sustenta que uma opinião moral é um puro estado cognitivo; é simplesmente e apenas uma crença. Essa alegação provém de seu realismo. Na experiência moral, somos sensíveis a uma realidade moral — adquirimos crenças sobre o modo como são as coisas, do ponto de vista moral. Assim como propriedades morais são, para o realista, aspectos genuínos do mundo, opiniões morais serão genuinamente crenças sobre o mundo. Entretanto, a tese da crença–desejo nos diz que se uma opinião moral de um agente é puramente cognitiva, ela não é suficiente, quando combinada com outras crenças suas, para lhe fornecer qualquer razão para agir.
Se o realista moral aceita a teoria da crença-desejo acerca do que é ter uma razão para agir, ele se compromete com o externismo sobre a motivação moral. Isto é, ele precisa admitir que alguém poderia crer firmemente que alguma ação lhe era moralmente exigida e contudo não ver nenhuma razão em absoluto pela qual ele deveria agir de acordo com ela. Contudo, o externismo parece contra-intuitivo.
Podemos exibir o desafio do não-cognitivista ao realista na forma de uma tríade inconsistente de proposições; isto é, três proposições que não podem ser todas verdadeiras, embora duas delas possam ser verdadeiras. Ao confrontar seu oponente com uma tal tríade o não-cognitivista o força a dizer qual proposição ele estaria disposto a rejeitar, pois não pode manter todas as três sem incorrer em inconsistência.
O não-cognitivista aceita 1 e 2 e as usa para remover 3. Uma vez que o realista precisa aceitar 3, ele tem que rejeitar 1 ou 2. Contudo, as duas primeiras proposições, como insiste o não-cognitivista, são altamente plausíveis.
É essencial para este argumento não-cognitivista que uma atitude moral seja ou bem apenas um desejo ou ao menos incorpore um desejo. Como isto se compatibiliza com a alegação anterior de que atitudes morais são não-cognitivas porque são sentimentos ou emoções? Estas duas sugestões não estão necessariamente em conflito. Emoções e sentimentos são estados complexos e muitos deles incorporam desejos como uma parte essencial. Assim está na natureza do medo querer escapar do objeto do temor. Amar alguém envolve querer que ele ou ela seja feliz. É característico do sentimento de depressão que exista pouco ou nada de que o agente goste ou queira fazer. Um sentimento de dor é algo que nós evitamos. Não existe razão pela qual as atitude morais não devam ser pensadas como sentimentos ou emoções que incorporam elas mesmas um elemento de desejo.
Uma tal teoria abre espaço para um amplo espectro de respostas morais no âmbito de uma simples moldura geral. Nossa atitude para com algum curso de ação há de assumir uma das três formas básicas: a favor, contra ou neutra. Todavia, dentro daquelas três categorias básicas de reação, existe espaço para toda uma riqueza de variantes que diferem em detalhe e sutileza. Podemos nos sentir desgostosos com a ação errada de alguém, ultrajados, indignados, ou simplesmente desapontados e ofendidos. O que tudo isso tem em comum é que são formas de desaprovação; onde elas diferem é na natureza precisa da reação emocional.
Vimos como os conceitos de crença, verdade e realidade estão intimamente relacionados. Uma crença é verdadeira exatamente se as coisas são, na realidade, do modo como se acredita que o sejam; do contrário, é falsa. Um modo alternativo de realçar este ponto seria falar como as coisas são, sobre os fatos. Assim, uma crença é verdadeira exatamente se ela se ajusta aos fatos. Estes conceitos estão também intimamente conectados à noção lingüística de um enunciado. Um enunciado é verdadeiro se as coisas são do modo como ele afirma que o sejam — se ele se ajusta aos fatos — e falso do contrário. Um enunciado é a expressão lingüística natural de uma crença.
Vimos que o não-cognitivista acredita que
Não é surpreendente que, tendo rejeitado a idéia de uma realidade moral, de verdade moral e de fatos morais, muitos não-cognitivistas tenham também sustentado que proferimentos morais não podem ser enunciados ou, mais plausivelmente, não são meramente enunciados. A busca por uma reconstrução alternativa adequada ajudou os filósofos a reconhecer que existe uma grande variedade de coisas que podemos fazer com palavras; podemos não apenas construir enunciados, mas também fazer promessas, batizar crianças e fazer perguntas. Alguns tipos de ato de fala parecem particularmente sugestivos em relação à linguagem moral: podemos usar palavras para ventilar sentimentos, expressar nossas preferências, emitir ordens e oferecer conselho. Se nós nos lembrarmos de que os não-cognitivistas estabeleceram um vínculo estreito entre atitudes morais e ação através das noções de sentimento e desejo, então não devemos ficar surpresos com o espectro de opções que eles aproximaram umas das outras: Tem sido de vários modos sugerido que proferimentos morais são usados para: expressar os sentimentos de aprovação ou desaprovação do falante (Ayer e Stevenson); evocar sentimentos no ouvinte ou persuadi-lo a agir de um modo aprovado pelo falante (Stevenson); oferecer conselho sobre o que fazer (Hare).
Pode, portanto, parecer como se , no ponto onde necessita dar uma reconstrução positiva da função da linguagem moral, o não-cognitivismo se fragmentasse em uma desnorteadora série de propostas. Entretanto, todas as reconstruções plausíveis têm uma estrutura comum que subjaz às diferenças em detalhe. A divisão entre fato e valor, com a qual estamos agora nos tornando familiares, encontra expressão lingüística em uma distinção entre dois tipos diferentes de proferimento ou ato de fala: descrever e avaliar. O primeiro está ligado à noção de um enunciado; ao descrever algo, estatuo como as coisas são. Como vimos, um enunciado é a expressão natural de uma crença. Ao avaliar damos expressão não às nossas crenças mas às nossas atitudes. Avaliar algo é avaliar isso favorável ou desfavoravelmente. Nós não estamos simplesmente descrevendo os fatos, mas reagindo a eles de uma maneira positiva ou negativa.
Ter uma atitude favorável a um curso de ação é, como vimos, ter um desejo ou preferência de que este curso de ação seja tomado. Parece natural, portanto, supor que o propósito da avaliação seja prover orientação sobre o que escolher. Avaliar, poderíamos sugerir, está intimamente relacionado com aconselhar ou ordenar; isto é, dizer às pessoas o que fazer ou prescrever algum curso de ação. Se estou comprando um carro ou um computador pessoal posso lhe pedir um conselho. Ao apontar as características boas e más de cada modelo e chegar a uma conclusão geral sobre o que é a melhor aquisição você estará avaliando os concorrentes a fim de me dar a orientação que pedi.
A linguagem oferece uma quantidade de modos pelos quais posso exprimir minhas avaliações e não existe forma gramatical particular que sinalize que eu esteja avaliando. Entretanto, existem muitas palavras que os falantes tipicamente usam quando estão avaliando e sua presença é freqüentemente o sinal que capacita o ouvinte a interpretar corretamente a força das observações do falante. Não existem somente termos muito gerais de avaliação tais como “bom”, “mau” “certo” e “errado”, mas uma multiplicidade de termos que nos capacitam a avaliar as coisas de modos bem específicos — “inteligente”, “corajoso”, “espalhafatoso”, “imaginativo”, etc. Poderíamos dizer destes termos que eles têm significado avaliativo tanto quanto significado descritivo.
Entender o significado descritivo de um termo é captar o âmbito de coisas que ele seleciona. Entendo o significado descritivo de “panda” quando sei que ele seleciona (distingue) um animal de um certo tipo. Algumas palavras somente têm significado descritivo. Chamar algo de panda é simplesmente descrevê-lo, e não avaliá-lo. Teremos captado plenamente o significado da palavra “panda” quando tivermos apreendido como um animal precisa ser a fim de ter aquele termo corretamente aplicado a ele.
Uma palavra tem significado avaliativo se seu uso implica (sugere) uma atitude favorável ou desfavorável por parte do falante. Se leio uma referência sobre um candidato descrito como inteligente, consciencioso e leal, então sei que o autor o/a aprova, ao menos naqueles aspectos. Termos que têm um significado avaliativo normalmente têm significado descritivo também. Não terei entendido o que é significado por inteligência a menos que eu entenda que tipo de habilidades e atributos alguém necessita manifestar para ter aquele termo aplicado a ele ou a ela. No caso de termos avaliativos, entretanto, uma apreensão do significado descritivo não é suficiente para uma compreensão plena do termo. Um falante que não captou que tais termos são normalmente aplicados somente a coisas que o falante avalia favoravelmente (ou desfavoravelmente, dependendo do termo em questão) mostraria uma compreensão inadequada da linguagem. Por exemplo, um estrangeiro que estivesse aprendendo inglês teria mostrado possuir um domínio do significado descritivo da palavra “nigger” se ele corretamente o aplicou a negros e deixou de aplicá-lo a brancos e pessoas de cor. Mas teria mostrado a limitação de seu domínio da nova língua e se exporia a um embaraço considerável, ou pior, se deixasse de se dar conta de que se trata de um termo racista. Existe uma diferença de significado entre “nigger” e “black”, mas não se trata de uma diferença no significado descritivo.
Obviamente, uma palavra pode alterar seu significado avaliativo com o tempo. Descrever um sistema político como democrático não tem sido sempre louvá-lo; “sapeca” era antigamente um termo de afeto. Isto não mostra, entretanto, que a nuance (matiz) valorativa seja tão impermeável para ser parte de seu significado, pois o significado descritivo de uma palavra pode mudar bem rapidamente. Uma palavra pode pois vir a adquirir um significado avaliativo porque seleciona (recorta) aspectos que algum grupo de falantes acha desejável. Assim a palavra “tubular’ que poderia ser pensada como sendo um caso claro de uma palavra com significado descritivo preciso e sem significado avaliativo, se tornou, entre surfistas da costa ocidental dos Estados Unidos, um termo de aprovação geral sem força descritiva específica. A razão para esta alteração reside na preferência dos surfistas por ondas que são tubulares na forma; uma onda tubular favorece uma boa surfada e assim, por extensão, (quase) qualquer coisa boa pode ser chamada tubular, qualquer que seja sua forma.
Como vimos, quando um falante aplica um termo que tem um significado avaliativo favorável a algum objeto, pessoa ou curso de ação, existe uma implicação (sugestão) que ele estaria por meio disso exprimindo sua aprovação de qualquer coisa. E, analogamente com termos de desaprovação, essa implicação pode, entretanto, ser anulada. Isto pode ser feito explicitamente; um conservador da linha dura poderia replicar a uma crítica comum a Margareth Thatcher dizendo “Admito que ela seja impiedosa, mas não penso que isso seja necessariamente uma coisa ruim”. Ou isso pode ser feito implicitamente. Ironia pode ser usada para atingir o efeito de distanciamento do falante das implicações (conotações) valorativas normais de suas palavras. Posso concordar com meu pároco bem-intencionado que uma pessoa intrometida da cidade seja muito piedosa, mas de um tal modo que seria óbvio a qualquer um, exceto, eu espero, ao pároco, que eu não considero este sinal de piedade como uma boa coisa. Em uso irônico se pode quase ouvir as aspas em torno da palavra.
Quando o falante usa um termo de aprovação, mas não o usa para aprovar, ele não está usando — de acordo com a reconstrução cognitivista, em seu sentido normal ou primário. Pois, ele é de modo geral usado para exprimir aprovação e o falante não o está usando daquele modo, mas está indicando por seu tom de voz ou contexto que ele se dissocia do ponto de vista avaliativo que seu uso normal implica. Ele está usando o termo somente para descrever e não para avaliar. Assim, poderíamos dizer que ele está usando a palavra em um sentido impróprio ou com aspas, como diz Hare (1952, cap. 7.5.).
Termos valorativos normalmente têm significado descritivo e valorativo. Segue-se que não deveríamos pensar em avaliar e descrever como atividades excludentes, de sorte que se estou fazendo uma coisa não posso estar fazendo a outra. Se considero sua ação como sendo generosa ou corajosa, não a estou apenas descrevendo como sendo de um certo tipo, mas exprimindo minha aprovação a ela. Avaliar é realizar um enunciado, mas é fazer mais do que simplesmente enunciar algo.
O reconhecimento de que um falante pode usar um proferimento moral tanto para descrever como para avaliar tem conseqüências para a reconstrução da distinção entre crenças e atitudes. O não-cognitivismo não está comprometido com o ponto de vista de que, desde que um proferimento moral exprima uma atitude, ele não possa exprimir uma crença. Ele pode fazer ambos. Se sustento que o sacrifício do Captain Oates no Polo Sul foi corajoso, então tenho tanto uma crença sobre que tipo de coisa ele fez mas também uma atitude de aprovação em relação a ela. O que distingue uma opinião puramente factual de uma avaliativa é que a primeira é somente uma crença, ao passo que a última envolve ter uma atitude como também sustentar uma crença.
O não-cognitivismo alega que existe uma conexão entre sua teoria, segundo a qual termos valorativos têm um tipo especial de significado e seu ceticismo sobre a possibilidade de se justificar um ponto de vista avaliativo. Para estabelecer esta conexão necessitamos olhar mais atentamente para o modo pelo qual normalmente justificamos nossas posições morais.
Quando alguém desafia uma de minhas opiniões morais, posso procurar defendê-la aduzindo razões que a sustentam. Posso mencionar vários fatos que julgo estabelecerem meu argumento. Digamos que eu seja um vegetariano e deseje convencer a você de que comer carne é moralmente errado. Existe toda uma multiplicidade de coisas que eu poderia mencionar: poderia chamar a atenção para o sofrimento dos animais em fazendas industriais, em vagões de carga ou em locais de abate; poderia lembrar que a criação de gado é um modo ineficiente de produzir proteína e que se os humanos comessem o grão que agora alimenta o gado de corte, a fome mundial poderia ser eliminada. Isto levanta uma importante questão em ética: qual é a relação entre os fatos que menciono como evidência para minhas opiniões morais e aquelas opiniões? Apresento tais fatos como evidência para minhas conclusões; todavia, poderia alguém aceitar a evidência e rejeitar a conclusão?
Poder-se-ia pensar que, pelo menos em casos favoráveis, eu poderia provar que algum julgamento moral seria o correto. Poderia existir evidência factual bem estabelecida que conclusivamente sustentasse minha tese (alegação). Suponhamos que alguém sugira que seria moralmente aceitável induzir em adolescentes dependência de heroína. Existe uma quantidade de evidência médica que mostra ser a dependência de heroína causadora de dor, doença e, eventualmente, morte prematura. Uma vez que aceitamos a evidência médica como poderíamos resistir à conclusão de que induzir adolescentes à dependência de heroína é moralmente errado? Certamente que se a moralidade proíbe algo, ela proíbe causar grande sofrimento a pessoas indefesas sem qualquer ganho concebível.
O não-cognitivismo, entretanto, nega que qualquer classe de premissas factuais possa estabelecer conclusivamente uma conclusão valorativa. Aceitar uma conclusão valorativa é estar motivado a agir com base nela. Aceitar um fragmento de evidência factual é formar uma crença. Todavia, não importa quantas crenças um agente tenha desenvolvido, elas nunca o motivarão. Pois, crenças sozinhas não são, de acordo com a tese da crença-desejo, suficientes para motivar o agente. Entre a crença em alguma evidência factual e a aceitação de uma conclusão valorativa há sempre um passo adicional — um passo que o agente pode racionalmente se recusar a dar. Como vimos em 1.2 ele tem que decidir que valores aceitar, que atitudes adotar: nenhuma quantidade de evidência pode forçá-lo a tomar uma decisão de um modo mais do que outro.
O ponto é freqüentemente posto mais tecnicamente como a alegação de que nenhuma classe de premissas factuais pode acarretar uma conclusão valorativa. Se um enunciado contém um outro, não se pode, consistentemente, aceitar o primeiro mas rejeitar o segundo. Uma relação de acarretamento entre duas proposições é freqüentemente tida como repousando no significado. Tomando um exemplo simples: “o papa é celibatário” acarreta “o papa é não casado”. Dado que “celibatário” significa homem não- casado, alguém que aceitasse a primeira e negasse a segunda estaria se contradizendo a si mesmo. Aceitar a segunda proposição obriga o indivíduo a nada além do que estava envolvido em aceitar a primeira; e isso é a razão pela qual é inconsistente aceitar a primeira e rejeitar a segunda.
Como podemos estar seguros, antes de olhar para exemplos particulares, que nenhuma premissa descritiva pode acarretar uma conclusão valorativa? Desde que o acarretamento depende do significado, o não-cognitivista pode usar a divisão entre significado descritivo e avaliativo para explicar e justificar sua alegação de que existe um abismo, o qual nenhuma relação de acarretamento pode jamais fechar. No caso de um argumento com premissas factuais e uma conclusão valorativa as premissas somente terão significado descritivo, mas a conclusão, além de ter significado descritivo terá também significado valorativo. Eis por que aceitar uma conclusão valorativa sempre obrigaria o indivíduo a aceitar algo que ele não estava obrigado ao aceitar as premissas descritivas. Aceitar a conclusão valorativa obrigaria o indivíduo — como vimos — a assumir uma atitude particular avaliativa ao passo que aceitar as premissas descritivas é compatível com adotar qualquer atitude ou nenhuma. A alegação de que existe um abismo entre fato e valor revela-se como sendo o reflexo, em termos de lógica, da alegação de que aceitar uma classe de crenças não obriga o indivíduo a assumir qualquer atitude particular.
Durante a maior parte deste século a tese de que existe um abismo entre fato e valor assumiu o estatuto de um escrito sagrado. A importância da tese reside na restrição que ela parece impor ao apelo à informação factual como um meio de solucionar o desacordo moral. O oponente poderia aceitar qualquer enunciado factual que um indivíduo apresenta e, a despeito disso, consistentemente se recusar a aceitar a conclusão moral daquele indivíduo. Assim, desacordos morais, diferentemente de desacordos factuais, não parecem racionalmente resolúveis meramente pela produção de evidência factual adicional. Mas isso deixa irrespondida a questão de como os desacordos morais hão de ser resolvidos. Antes de podermos responder a isso, temos que enfrentar uma questão mais básica: o que, nesta teoria, é um desacordo moral?
Vimos que, em razão de o não-cognitivismo negar que exista uma realidade moral e insistir que opiniões morais são atitudes, mais do que crenças, ele parece forçado a negar que possa haver verdade moral. A reconstrução não-cognitivista da linguagem moral parece reforçar esse compromisso. Se avaliar é pensado como algo mais proximamente relacionado com o ordenar ou o aconselhar do que com o enunciar ou descrever, então temos razões adicionais para reivindicar que o não-cognitivista não deixa espaço para a verdade moral. Um enunciado ou uma descrição é sempre avaliável na dimensão do verdadeiro ou falso. Se um proferimento não pode ter um valor de verdade, ele não é um enunciado. Um conselho, por outro lado, pode ser sólido ou não, oportuno ou inoportuno, mas não pode ser verdadeiro. Uma ordem pode ser legítima ou desprovida de autoridade, razoável ou absurda. Mas não, verdadeira ou falsa.
Vimos na última secção que seria um erro supor que descrever e avaliar sejam atividades mutuamente excludentes. Se descrevo alguém como honesto e confiável, estou não apenas descrevendo o tipo de pessoa que ele é, mas exprimindo minha aprovação desse traço de seu caráter. Isto pode parecer deixar uma saída para a verdade. Parece natural supor que o aspecto descritivo de meu proferimento seja avaliável em termos de verdade/falsidade, exatamente da forma como qualquer outro enunciado o é, a informação factual que estou retransmitindo para minha audiência pode ser verdadeira/falsa.Se mais tarde se revelar que ele desfalcou uma fortuna de seu empregado e fez fofocas maliciosas sobre seus colegas, segue-se que minha descrição dele foi falsa.
Entretanto, esta concessão não fornece ao não-cognitivista o direito de falar a respeito de proferimentos morais como sendo verdadeiros ou falsos. Pois, o que é característico acerca de julgamentos morais não é seu aspecto descritivo, o qual eles compartilham com juízos factuais, mas sua função valorativa. Se é natural supor que o elemento descritivo em um juízo moral pode ser avaliado em termos de verdade/falsidade, é igualmente natural supor que o elemento valorativo não pode ter um valor de verdade. Na medida em que juízos morais são expressões de atitude, mais do que de crença, eles não podem ser avaliados como verdadeiros/falsos. Assim, parece ainda não haver espaço para a verdade moral. Não é questão de uma atitude moral ser verdadeira ou falsa. Ao tentar decidir entre atitudes morais conflitantes sobre alguma questão moral, por exemplo, se o aborto é moralmente permissível, não podemos supor que uma atitude seja a verdadeira.
Vimos que o não-cognitivista enfrenta um desafio céptico acerca da justificação; podemos duvidar se, com base em sua reconstrução, existe algum modo pelo qual os desacordos morais possam ser racionalmente resolvidos. Entretanto, se não existe espaço para a verdade moral, então o não-cognitivista enfrenta um desafio moral ainda mais fundamental: pode ele dar sentido à sugestão de que existem desacordos morais?
Suponhamos que tomemos o desacordo sobre fatos como nosso modelo. Discordar de alguém sobre uma questão factual é sustentar que a outra pessoa está equivocada ou em erro; sustentar, em suma, que ela tem falsas crenças. Quando duas pessoas discordam sobre alguma questão factual, suas crenças são inconsistentes entre si no sentido de que ambas não podem ser verdadeiras. Mas se a referência à verdade é essencial em uma explicação do que é divergir, então, se não existe verdade moral, não há espaço para o desacordo moral. Podemos dar espaço para um conflito de perspectivas morais somente se podemos oferecer uma reconstrução do desacordo moral que não faz apelo ao conceito de verdade.
O não-cognitivista responde a esta objeção distinguindo entre desacordo em crença e desacordo em atitude. O primeiro tipo de desacordo deve ser explicitado em termos de verdade mas não o último. Que outro tipo de desacordo pode existir? O não-cognitivista novamente apela para a conexão entre atitude moral e ação. Assim como discordamos sobre o que é o caso, o que são os fatos, podemos divergir sobre o que fazer. Se marcamos um encontro e você quer ir ao cinema e eu, ir dançar, então discordamos de modo genuíno. Podemos usar o último tipo de conflito como um modelo para o desacordo moral. Quando duas pessoas discordam sobre uma questão moral, elas estão discordando sobre o que deve ser feito, mais do que sobre fatos. Tais desacordos, embora diferentes de desacordos em crença, são claramente importantes e freqüentemente necessitam ser resolvidos, se decisões sobre o que fazer hão de ser tomadas.
Alguns desacordos em atitude podem estar alicerçados em desacordo em crença. Pode ser que a única razão pela qual discordamos sobre se os impostos devem ser cortados é porque discordamos sobre o efeito desta medida sobre os índices de desemprego. Se pudéssemos chegar a um acordo em crença, obteríamos acordo em atitude também. Mesmo onde o desacordo em atitude pode ser resolvido deste modo, ainda podemos distinguir dois tipos de desacordo: desacordo em crença é uma diferença de opinião sobre os fatos; desacordo em atitude é, ao menos potencialmente, um conflito sobre o que deve ser feito.
Muitos não-cognitivistas mostraram uma compreensível relutância em abandonar a noção de verdade moral. Falamos de opiniões morais, como sendo verdadeiras ou falsas; existe algum modo pelo qual o não-cognitivista pode permitir que, a despeito dos argumentos que encontramos, um tal discurso esteja legitimado? Ele poderia começar nos lembrando que responder ao que alguém mais diz, afirmando: “Isso é verdade” tem a função realista (prática, simples) de exprimir anuência com o falante. Se o falante está exprimindo uma crença, falar que seu enunciado é verdadeiro simplesmente evita o esforço sinuoso de repetir o que ele disse. Uma vez que crenças podem ser verdadeiras ou falsas, este modo de exprimir aquiescência é inteiramente apropriado. Mas é também o caso, como acabamos de ver, que duas pessoas possam aquiescer em atitude como também em crença. Por uma extensão natural, o não-cognitivista sugere, é comum usar a expressão “Isso é verdadeiro” para exprimir anuência em atitude com o falante: assim, podemos falar de atitudes morais como sendo verdadeiras/falsas. Ao usar tais expressões não estamos fazendo nada mais do que exprimir nosso assentimento ou rejeição das atitudes em questão. Este uso não nos compromete a abandonar quaisquer dos princípios que o não-cognitivista acolhe. Em particular, ele não nos obriga à existência de uma realidade moral ou à posição de que opiniões morais são puramente cognitivas.
Se esta solução cristalina pode explicar por que é permissível falar de verdade moral, pode parecer que ela simplesmente desvia os tipos de preocupação que foram levantados pela sugestão original de que não existe espaço no pensamento moral para a noção de verdade. Somos ainda deixados com a possibilidade primeiramente levantada em 1.2 de que poderia existir um número indefinido de sistemas internamente consistentes, mas incompatíveis, de sistemas morais.
Esta resposta não-cognitivista ao primeiro desafio à teoria (ver 2.2) explica por que nós empregamos a noção de verdade moral, mas insistimos que nenhuma conclusão realista deveria ser extraída deste fato. Esta concessão não deve encobrir o fato de que a ética é ainda considerada, nesta visão, como uma área na qual não há espaço para a idéia de verdade como algo independente das visões de cada indivíduo.
Se não existem fatos morais, então não existe nenhuma instância externa a que posso recorrer para justificar minha posição moral. Não posso simplesmente recorrer a fatos extramorais, porque fatos extramorais não determinam por si que atitudes eu deveria tomar. Mesmo se, entretanto, não existirem restrições externas à questão de saber que pontos de vista morais posso justificadamente sustentar, pode contudo haver restrições internas. O não-cognitivista sustenta que as atitudes morais de uma pessoa precisam ser internamente consistentes. Como devemos entender consistência neste contexto? O não-cognitivista concebe um juízo de valor como a seleção por parte de quem julga, de alguns aspectos não-valorativos para uma avaliação favorável e desfavorável. A consistência é, pois, naturalmente pensada como o emprego contínuo da mesma avaliação aos mesmos aspectos onde e quando quer que eles ocorram.
Como uma ilustração de como isto funciona, em uma área de escolha não moral, tomemos os intentos das revistas de propaganda no sentido de avaliar diferentes modelos de carro. Os autores têm em conta uma classe de aspectos que consideram desejáveis em carros — um carro é bom se tem baixo consumo de combustível, é confortável, tem estabilidade nas curvas, etc. Todo carro é avaliado por cada um desses aspectos. A consistência exige que se um carro é elogiado por seu baixo consumo de combustível, então da mesma forma deve ser avaliado qualquer carro que é igual ou até mais econômico. A consistência exige também que onde dois carros são iguais em todos os aspectos que estão sendo avaliados, eles obtenham a mesma classificação geral. Assim, seria inconsistente para a revista dizer que o Honda seria uma aquisição melhor do que o Ford, se eles fossem iguais em todos os itens relevantes.
Se aplicamos este modelo ao pensamento moral, vemos que seria inconsistente pensar que dizer a verdade ou ser leal seria um aspecto bom em uma pessoa mas não em outra. Ademais, se existissem duas ações que fossem exatamente iguais em todos os aspectos moralmente relevantes, a consistência exigiria que eu fizesse o mesmo julgamento moral acerca de ambas. Estas restrições não parecem não desprezíveis, mas são condescendentes por duas razões. Primeiro, elas não me dizem o que preciso dizer em um caso, elas apenas me dizem que qualquer que seja o que eu diga em um caso preciso dizer o mesmo noutro caso similar. Ou, se não desejo dizer o mesmo no segundo caso, preciso, em nome da consistência, mudar meu primeiro julgamento para conformá-lo aos meus pontos de vista acerca do segundo. Em segundo lugar, uma vez que minha escolha final entre cursos de ação é provavelmente dependente de um contrabalanço de uma ampla gama de fatores, alguns dos quais favorecem um curso e outros um outro curso, as chances de que eu me depare com duas ações que sejam exatamente semelhantes em aspectos relevantes parecem muito magras para que isso se torne uma restrição em absoluto.
Existe também um aspecto no qual um sistema moral inteiro pode ser inconsistente. A classe de princípios morais que sustento pode gerar respostas incompatíveis à questão: o que devo fazer neste caso particular? Posso, por exemplo, ter adotado um princípio que devo manter minha palavra. Posso também sustentar que nunca devo divulgar uma confidência. Suponhamos que meu parceiro em negócios e eu tenhamos prometido a cada um que não iremos sonegar (esconder) do outro qualquer informação que poderia ser relevante para a administração da firma. Um de nossos empregados se aproxima de mim trazendo o que alega ser um problema pessoal, o qual deseja discutir em segredo. Revela-se porém que a informação que me deu tem relevância para o trabalho da firma. O que devo fazer? Um de meus princípios estabelece que devo contar a meu parceiro e outro princípio que eu não devo. Obviamente alguma coisa tem que acontecer. Não posso continuar sustentando os dois princípios como sendo isentos de exceção sem incorrer em inconsistência. Preciso modificar um ou outro permitindo exceções, ou admitir que um deles pode suplantar o outro. Qual deles modifico depende, obviamente, de mim.
Mais uma vez o ônus da consistência parece ser leve. Pois tudo o que disse até agora é que poderia existir um número indefinido de sistemas morais consistentes e nenhum método de determinar qual deles é correto, ou mesmo, se algum é melhor do que outro. O requisito da consistência parece não ser suficiente para prover uma teoria completa da justificação em ética. Alguns escritores tais como Hare, alegaram que mais milhagem pode ser obtida da noção de consistência do que admiti aqui. O argumento de Hare será examinado no capítulo 11, mas para antecipar as conclusões de lá, outras restrições devem ser acrescentadas para se obter os resultados que Hare deseja.
Pode mesmo esta restrição limitada sobre sistemas morais ser justificada? Um céptico sobre a possibilidade de justificação moral poderia alegar que mesmo este pouco é excessivo. Nenhuma razão foi dada, ele pode se queixar, para justificar a alegação de que nossas atitudes morais precisam ser consistentes. Crenças, ele admitirá, têm que ser consistentes porque, se elas não o são, não existe chance de que possam ser todas verdadeiras. Mas o que está errado com atitudes inconsistentes? Por que a inconsistência é um vício neste caso?
O não-cognitivista explica a necessidade de consistência apelando de novo à conexão entre atitudes morais e ação. Se as atitudes morais devem guiar as ações, da própria pessoa ou de outros, então precisamos saber como aplicá-las, quando nos deparamos com casos novos. Um conselho que não é consistente não ajuda em nada para se dizer a um indivíduo o que fazer. Se minha revista de propaganda oferece diretrizes para a escolha de um carro, as quais se mostram conflitantes, ela carece de utilidade para mim quando quero decidir o que comprar. Isto é também verdadeiro com respeito ao conselho moral.
É digno de ser reiterado que a exigência de que sejamos consistentes não significa que não possamos mudar de opinião. Podemos, com o tempo, mudar o conteúdo de nossos princípios. Quando fazemos assim, entretanto, precisamos revisar todos os nossos julgamentos, incluindo aqueles que poderíamos agora fazer sobre nossas ações mais antigas, se queremos evitar a carga de inconsistência.
Assim como a teoria não-cognitivista parece não deixar espaço para a noção de verdade moral, pois não existe nada que torne minhas respostas verdadeiras, ela também parece excluir a observação de propriedades morais, pois não existem tais propriedades para serem observadas. Existe uma vertente no pensamento não-cognitivista que considerou esta conclusão óbvia. Hume, que é a clássica fonte de muito pensamento não-cognitivista, formula de modo contundente (1978, pp. 468–469):
“Tome uma ação admitida como moralmente viciosa. Um assassinato premeditado, por exemplo. Examine-o sob todos os ângulos e veja se você pode encontrar uma matéria de fato, […], que possa chamar de vício. Qualquer que seja o modo de considerá-lo, você encontrará apenas certas paixões, motivos, volições, e pensamentos. […] O vício escapa inteiramente a você, durante o tempo em que considerar o objeto. Você nunca o encontrará até que dirija sua reflexão para seu próprio peito, e encontre um sentimento de desaprovação, que nasce em você, frente àquela ação”.
É verdadeiro que Hume está nos pedindo para imaginar um caso de assassinato voluntário mas é claro que ele não negaria que uma testemunha ocular pudesse observar o caráter errôneo de um tal ato. Neste aspecto, ele pode alegar evitar um problema que acossa o realista moral. Pois o realista, que não crê que propriedades morais formem parte do tecido do mundo, terá que explicar como nós as detectamos. Mas, o não-cognitivista sugere, se elas existem, elas não podem ser detectadas por quaisquer métodos normais de observação. Elas não podem ser vistas, tocadas ou cheiradas. O não-cognitivista desafia o realista a nos dizer por que meios detectamos propriedades valorativas, se não é pela observação sensorial. Será que ele não tem que se refugiar em alguma faculdade extremamente misteriosa de intuição moral?
O não-cognitivista está comprometido com o ponto de vista de que uma descrição completa do que existe no mundo não mencionaria qualquer propriedade valorativa. Uma compreensão apropriada do que é valor mostra que ele não é o tipo de coisa que poderia formar parte do tecido do mundo. Nós não podemos, entretanto, avaliar plenamente qualquer alegação de que somente certas coisas e propriedades figurariam em uma reconstrução completa da realidade a menos que tenhamos um modo de determinar o que incide em qual lado da divisão entre aparência e realidade. O não-cognitivista deve prover alguma reconstrução baseada em princípios do que figuraria em uma reconstrução completa da natureza da realidade e do que seria excluído.
O método científico forneceu uma ferramenta espetacularmente bem-sucedida para se descobrir a natureza do mundo no qual nós vivemos. Por uma observação cuidadosa, experimento e mensuração, as ciências físicas têm revelado mais e mais acerca da natureza da matéria e das leis que governam seu comportamento. É natural ao menos em nossos dias, tomar a ciência como sendo o método próprio para descobrir a natureza da realidade. Se pensamos desta maneira, devemos supor que somente aquelas entidades e propriedades que figuram na reconstrução científica do mundo realmente existem. Assim nem todo aspecto da experiência será pensado como experiência do real. A experiência será pensada como uma combinação de elementos contribuídos pelo mundo e elementos contribuídos por nós, os seres que estão tendo a experiência. Assim se a experiência parece nos revelar outras propriedades que aquelas que figuram nas teorias científicas, então tais propriedades precisam ser consignadas ao estatuto de mera aparência. Elas são aspectos do modo pelo qual experimentamos o mundo, não partes desse mundo como tal.
Enquanto a ciência alega descobrir muitas entidades e propriedades estranhas tais como partículas sub-atômicas que têm ‘charme’ ou ‘cor’, propriedades valorativas, tais como beleza e bondade, não figuram em uma reconstrução científica do mundo. Se o que a ciência não nos relata não existe, então se segue que a bondade e a beleza não são propriedades do mundo. Os aspectos avaliativos de nossa experiência são fornecidos por nós.
O fato de que a ciência tenha sido bem sucedida ao investigar a natureza do universo físico não é, em si mesmo, razão suficiente para alegar que somente as entidades e propriedades mencionadas pela ciência realmente existem. Pensar que isso é assim sem justificação adicional é cair no erro do cientificismo, na aceitação acrítica da pesquisa científica como o único método legítimo de descobrir a natureza da realidade. Podem existir outros aspectos do mundo, tais como valor, que não são sensíveis à investigação pelas técnicas experimentais quantitativas da ciência experimental, mas que não são nessa reconstrução, nem por isso menos real. Um apelo ao panorama científico do mundo somente dará suporte à alegação de que não existe realidade moral se podemos fornecer uma concepção do que há de ser real para validar a alegação da ciência de dar uma reconstrução exaustiva do que existe. Uma tal concepção de realidade está disponível e a discutirei no capítulo 4.
Vimos em 2.2 que o não-cognitivismo enfrentava quatro desafios. Os três primeiros acusavam o não-cognitivismo de solapar crenças que temos sobre a moralidade. Eles pareciam negar que existe espaço para a verdade moral, para a justificação de nossas concepções morais, ou para nossa observação moral. Em todos os três casos, a resposta não-cognitivista era primariamente de uma forte desconfiança, suplementada por explicações de como o objetor poderia estar equivocado sobre estes assuntos. Uma vez que podemos propriamente falar de verdade moral não precisamos ser iludidos pensando que uma teoria substancial da verdade do tipo disponível na ciência seja apropriada em ética. Enquanto que a restrição de consistência interna coloca alguns limites à questão de saber que posições morais podem ser justificavelmente mantidas, não existe método que forneça razões racionalmente aceitáveis para se preferir qualquer sistema moralmente consistente a qualquer outro. Não podemos observar propriedades morais porque não existe nada para ser observado.
Ao tomar esta posição o não-cognitivista está, com efeito, adotando uma teoria do erro da moralidade. Aceitar o não-cognitivismo, com base nesta visão, é reconhecer que nossa prática moral cotidiana está infectada de erro e carece de revisão. Atualmente, o pensamento e o discurso moral incorpora suposições realistas: que as propriedades morais são parte do tecido do mundo e que nosso trabalho é descobrir qual é a resposta correta aos diversos problemas morais. A aceitação do não-cognitivismo não deixará intacto nosso pensamento moral corrente, caso a teoria do erro seja correta. Por exemplo, em nosso pensamento moral atual faz sentido duvidar se meus pontos de vista morais são errados. Existe espaço para um tal pensamento porque distinguimos entre o que penso ou sinto sobre uma questão moral e a verdade sobre o assunto. Parece que, se tivéssemos que aceitar o não-cognitivismo, esse pensamento não estaria mais disponível (acessível) a nós.
Muito de nosso pensamento moral parece ser realista em caráter. Adotar o realismo moral não exigiria, pois, qualquer alteração significativa em nossa prática moral corrente. Não poderia este fato em si constituir uma razão para se preferir o realismo moral ao não-cognitivismo?