Vimos que as reconstruções de como as convicções morais nos motivam a agir, se apresentam em duas variantes: internista e externista. De acordo com a internista, as convicções morais de um agente, fornecem-lhe razões para agir e, assim, elas são capazes de motivá-lo a agir, sem a assistência de qualquer estado motivador adicional. A externista nega precisamente isto e defende que algum estado motivador adicional é necessário — um desejo de algum tipo apropriado. Na ausência deste estado adicional, a crença do agente de que um curso de ação específico é moralmente correto não irá por si mesma, supri-lo com nenhum motivo para realizar a ação de sorte que ele não será motivado a realizá-la. Nós recusamos o externismo porque ele deixara de dar conta da autoridade dos julgamentos morais. Neste capítulo examinaremos a acusação de que o internismo, por sua vez, é incapaz de dar sentido ao amoralismo e à maldade. Os realistas morais externistas, tais como Brink (1986) reivindicam que estas noções são bem inteligíveis, e que uma força do externismo consiste no fato de ele não ter nenhuma dificuldade em acomodá-las. Se a acusação persistir, então teremos que reconsiderar nossa rejeição do externismo.
Há várias maneiras diferentes pelas quais considerações morais podem deixar de motivar um agente a agir. Uma pessoa moralmente fraca deixa de ser motivada em que pese seu reconhecimento que uma ação lhe é moralmente exigida. Mas esse reconhecimento não abala a imagem (interpretação) internista. Em primeiro lugar, a pessoa moralmente fraca admite que a existência de uma exigência moral lhe proporciona boas razões para agir de acordo com ela; de fato, ela tem mais razões para realizar a ação que é moralmente exigida do que qualquer outra alternativa. Em segundo lugar, o fato de agente moralmente fraco não ser motivado nesta ocasião pelo seu reconhecimento de uma exigência moral, não demonstra que tal estado não é capaz, sem uma assistência externa, de motivá-lo a agir. Teria assim se dado, se não tivesse sido o caso de os atrativos de um curso de ação rival se mostrarem melhores que aqueles do curso moralmente correto, e ele não cedesse à tentação.
Parece haver maneiras mais radicais pelas quais alguém pode deixar de ser motivado, de um modo apropriado, por considerações morais. Enquanto muitos de nós somos dominados, a um certo grau, pelos ditames da moralidade, e sofremos com alfinetadas da consciência quando deixamos de segui-los, parece possível haver pessoas que são totalmente indiferentes às considerações morais. Na literatura filosófica tradicional, e talvez na vida real, encontramos o amoralista — a pessoa que desdenha as constrições (os apelos) da moralidade e não vê razão para agir de acordo com as exigências morais, exceto quando conveniente. Tal pessoa será motivada por considerações diferentes das morais. Estas podem ser considerações de interesse próprio, mas não necessariamente. Ela pode ter um ideal de como a vida deve ser vivida, que não seja um ideal moral. Tal postura é, talvez, exemplificada por aqueles que colocam o valor da arte acima do valor da vida humana, como o esteta que não se incomodou com o fato de que milhares morreram para construir pirâmides uma vez que o resultado foi glorioso. Ao contrário da pessoa moralmente fraca, ele não precisa sofrer um conflito interno — ele não oscila entre as exigências da moralidade e as tentações que o estão seduzindo. Já que ele não dá valor às considerações morais na decisão de como viver, ele não sentirá culpa quando suas ações violarem as exigências morais.
Poderemos precisar também encontrar um nicho em nosso esquema de coisas para abrigar a pessoa má. Os filósofos têm sido acusados, com uma certa justiça, de ignorarem o importante conceito de maldade e nós poderemos estar, com alguma dúvida, no que diz respeito a como devermos caracterizar tal estado. Talvez a maior maldade imaginável seja fazer o mal em razão de si mesmo. A pessoa má, supomos, não é indiferente às considerações morais. Tais considerações a motivam, porém, na direção oposta, por assim dizer, a daquela que motivam a pessoa virtuosa. A pessoa má se delicia fazendo coisas más por serem más. Ela não é atraída para o bem, mas para o mal. Em contraste, a pessoa má pode, ao perseguir seus desígnios, estar preparada para causar sofrimento injustificável ou injustiça aos outros. Mas não é a injustiça ou a crueldade do que ela está fazendo que a motiva. O que é tão assustador e repugnante sobre esta concepção de maldade é o pensamento de alguém que se deleita, desinteressado, com o mal que acontece com os outros, e até mesmo, talvez, para sua própria depravação. Ele seria atraído para um curso de ação por ser ele cruel, injusto, sórdido, ou obsceno. Ele é a imagem de espelho da pessoa virtuosa — como o Satã de Milton, seu lema é: “Mal, sejas tu o meu bem”.
A existência ou até mesmo a possibilidade de pessoas amorais ou más representa um desafio direto para o internismo. Na pessoa amoral encontramos alguém que não dá valor para as considerações morais em seu raciocínio prático; ela é completamente indiferente a tais considerações e não acredita que elas lhe forneçam razões para agir. O internismo nega esta possibilidade; ninguém pode reconhecer uma exigência moral e não ver nessa exigência razão para agir. A pessoa má vê as considerações morais lhe dando razões para agir, mas não de uma maneira que seja compatível com o internismo. Ela acha que o fato de o curso de ação ser mau, isto é uma razão para segui-lo e não para se afastar dele.
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Muitos não-cognitivistas têm estado dispostos a argumentar que o amoralismo e a maldade são inconcebíveis. Com efeito, esta conclusão está embutida em sua reconstrução do significado dos termos morais. No 2.4. esbocei, em linhas gerais, a reivindicação não-cognitivista que mostraria uma falha na apreensão lingüística, se o falante não percebesse que alguns termos morais, tais como “bom” ou “certo” são normalmente usados pelos falantes para exprimir avaliações favoráveis e outros, tais como “mal” ou “perverso”, para exprimir desfavoráveis. Nesta perspectiva, alguém que dissesse que o fato de um curso de ação ser ruim não seria razão para não escolhê-lo, ou até mesmo um motivo para segui-lo, demonstraria simplesmente que queria dizer alguma coisa diferente do resto de nós. Embora tal pessoa possa dizer que acredita que tal curso seja perverso, ela não pode, realmente, pensar que ele seja mau, no sentido no qual usamos o termo. Pois sustentar que alguma ação é perversa, o apropriado é desaprova-la e estar decidido a não realizá-la..
Se tal pessoa não está usando termos, tais como “perverso”, com seus significados avaliativos normais, então ela os deve estar usando em um sentido “impróprio” ou “entre aspas”. Em sua boca, estas palavras não terão mais seu significado avaliativo comum, mas apenas seu significado descritivo. Usando a distinção entre o sentido comum de um termo e o entre aspas, o não-cognitivista pode, agora, entender tais observações aparentemente paradoxais, como a atribuída a Satã por Milton. “Mal, sejas tu o meu bem”. O termo “mal” não está sendo usado como avaliação, mas apenas para descrever o tipo de ação que muitas pessoas consideram ser perversa. Satã, nesse ponto de vista, não sustenta que suas ações sejam más, mas apenas que muitas pessoas as chamam de “más”. A palavra “bom”, em contraste, está sendo usada na maneira avaliativa normal, de sorte que Satã há de ser compreendido quando diz que ele aprovará exatamente aquelas ações que nós condenamos. Se ele realmente pensasse que elas eram perversas, ele não seria capaz de aprová-las.
Ao embutir a inconcebibilidade da maldade e do amoralismo na sua reconstrução do significado moral dos termos, o não-cognitivista parece ter tido uma vitória fácil. Ele definiu seus termos de tal maneira que nós não podemos ter uma discussão substantiva, com respeito a saber, exemplo, se o amoralismo ou a maldade podem existir, uma vez que ele declara que a questão é incoerente desde o início. Ele também se arrisca consideravelmente. Se pensarmos que pode haver pessoas amorais ou até mesmo perversas, e que a questão é significativa, então nós teremos rejeitado a distinção não cognitivista entre a descrição e a avaliação, solapando assim um pilar central da teoria.
O realista internista terá que concordar com o não cognitivista na rejeição do amoralismo e da maldade, visto que eles têm sido até agora descritos como inconcebíveis. Suas razões para tal, porém, diferem daquelas do não-cognitivista, porque sua reconstrução de como a motivação está embutida nas convicções morais, é diferente. O realista moral internista entende uma convicção moral como um estado puramente cognitivo, uma maneira de compreender a situação que pode motivar a pessoa virtuosa a agir. Isso pode ser feito assim porque, tanto na reconstrução mais forte da virtude, como na mais fraca também sua concepção não deixa em aberto a questão de qual curso de ação é para ser tomado. Sua percepção de exigência moral já lhe fornece razão suficiente para agir. Conclui-se que ninguém mais poderia estar no mesmo estado cognitivo que ela está e deixar de ver que a situação exige aquela determinada ação. Se alguém não consegue ver que há uma boa razão para agir de uma determinada maneira, isso só pode ser porque sua concepção é apreciavelmente diferente da dela.
Assim, não podemos de acordo com este ponto de vista, dar sentido ao amoralista, se temos de pensar nele como reconhecendo a existência de alguma exigência moral e não vendo, contudo, razão para influir nela. Por esse ser o caso, o amoralista teria que compartilhar como também não compartilhar com a concepção da situação da pessoa virtuosa. Já que ele é pensado como alguém que reconhece a exigência moral, ele tem que compartilhar a concepção da pessoa virtuosa; uma vez que ele não enxerga essa exigência como lhe dando qualquer razão para agir, ele não pode compartilhar essa concepção — seu estado cognitivo deve ser diferente de um modo que explica o fato de ele permanecer indiferente a esse reconhecimento.
O externista não tem dificuldade em conceber o amoralismo ou até mesmo a maldade. De acordo com ele, acreditar que algumas ações são certas é uma coisa, ser motivado a realizá-las, é uma outra. Ele não nega que muitos de nós somos motivados a agir por considerações morais. O que ele realmente nega é que as crenças morais, sozinhas, sejam suficientes para nos motivar. Nós podemos fornecer uma explicação parcial de por que um agente realizou uma certa ação, mostrando que ele acreditava que a ação era moralmente correta, mas essa explicação requer uma suplementação se há de ser completa. Precisamos suplementá-la mostrando como agir dessa maneira satisfaz algum desejo dele, explicando como agir moralmente promove seus objetivos. Ele pode ter um interesse direto ou indireto em agir de acordo com os ditames da moralidade. Seu interesse seria direto se ele se preocupasse com os objetivos que a moralidade promove — o bem-estar humano, o respeito pelos direitos dos outros e uma distribuição justa. Seu interesse poderia ser indireto se, embora não se preocupando com essas coisas diretamente, ele acreditasse que agir moralmente poderia ser um meio de conseguir alguma coisa pela qual ele realmente se interessasse — por exemplo, segurança pessoal, o respeito e a confiança dos outros, ou um lugar no céu. O externista representará, sem dúvida, a maioria das pessoas que são movidas a agir pelas exigências morais, como sendo influenciadas por alguma combinação destas considerações.
É bem possível, nesta reconstrução, que alguém não veja razão para agir como a moralidade requer. Tal pessoa não acharia valiosos os fins que a moralidade incentiva nem acreditaria que agir moralmente lhe daria algo que ela quisesse. O amoralista é, portanto, um caráter perfeitamente concebível, mesmo que um pouco incomum. O externismo parece também dar lugar para a possibilidade da maldade; o homem mau teria um interesse direto em frustrar os objetivos almejados pela moralidade. Ele veria a promoção da injustiça e do sofrimento como alvos desejáveis.
As intuições que alimentam o debate entre o externismo e o internismo são conflitantes. O internista pode apelar para o fato de que existe alguma coisa estranha na idéia de que um agente poderia reconhecer que ele é moralmente requisitado a fazer alguma coisa e contudo não acreditar que ele tenha uma boa razão para realizá-la. O externista pode apelar para o fato de que muitas pessoas comuns, tanto quanto os filósofos morais, não encontraram nada de ininteligível acerca da idéia de amoralismo ou de maldade. É na sua capacidade e na falha de seu rival para encontrar um lugar para tais conceitos que o externista baseia boa dose de seus argumentos. Pode, afinal, o internista encontrar um modo de dar sentido a estes conceitos?.
A melhor estratégia do internista é permitir a possibilidade do amoralismo, mas rejeitar a descrição dele que nos foi oferecida até então. Não devemos considerar o amoralista como alguém que aceita a existência de restrições morais, mas que não vê razão para agir de acordo com elas, mas de preferência como alguém que rejeita a moralidade. Podemos descrevê-lo como alguém que considera toda a instituição com uma indiferença irônica ou até mesmo com um desprezo total. Ele evitará normalmente a linguagem moral porque ela expressa demandas e exigências que ele não reconhece. A reconstrução anterior o retratou como alguém que compartilhava de nossas categorias morais mas as via como não tendo nenhuma importância prática. Na explicação atual, a diferença entre o amoralista e a pessoa boa é mais radical. O amoralista rejeita a própria estrutura dentro da qual a pessoa boa avalia as ações e os agentes.
Se nós adotarmos este novo conceito de amoralista então podemos mostrar que não há conflito real em nossas intuições. Uma grande parte de nosso discurso moral é veiculado pelo que poderia ser chamado de linguagem da necessidade prática; nós falamos do que é moralmente exigido ou requerido, das constrições morais e do que somos obrigados a fazer. Estamos certos em encontrar alguma coisa nitidamente estranha na sugestão de que poderia haver alguém que reconhecesse uma exigência moral mas que não visse razão em agir de acordo com ela. Em que sentido se pode dizer de tal pessoa que a reconhece como uma exigência? Ele não pode aceitar toda a panóplia dos conceitos morais e estar preparado para usá-las para exprimir sua maneira de ver a vida, a menos que aceite as implicações no que diz respeito a como ele deve agir, que estão embutidas nessa maneira de falar e pensar. Reconhecer a força dessa intuição é, portanto, realmente compatível com a possibilidade do amoralismo. Pois, o amoralista, agora, é descrito como alguém que rejeita o pensamento e a linguagem moral juntamente com a ação moral. O internismo é uma doutrina sobre a conexão entre elaborar um julgamento moral e agir com base neste julgamento; ele não exclui a possibilidade de alguém que se recusa a fazer julgamentos morais. Assim, o internismo, quer seja de uma variedade realista quer seja da não-cognitivista, pode abrir espaço para o amoralismo, desde que devidamente compreendido.
Conceder a simples possibilidade do amoralismo é uma coisa: mostrar por que alguém poderia adotá-lo é outra. Se temos que argumentar convincentemente em favor do amoralismo como uma possibilidade real, temos que demonstrar que esta é uma posição inteligível. Como argumentei no capítulo 7, não podemos dar sentido a uma preferência, a menos que possamos começar a compreender o ponto de vista a partir do qual ela se afigura como atraente. Não podemos dar sentido ao fato de alguém rejeitar o ponto de vista moral, a menos que possamos vê-lo aceitando alguma outra perspectiva a partir da qual a moralidade é vista como destituída de valor, ou até mesmo como uma instituição positivamente indesejável. Talvez, a acusação mais comum daqueles simpatizantes do amoralismo tem apontado contra a moralidade, seja que ela exalta a fraqueza e denigre a força (“abençoados os humildes”). Isso encoraja um sistema social no qual o grupo fraco e o covarde, em conjunto, frustram aqueles que são mais audazes e competentes que eles. Isso é reforçado, principalmente, por armas psicológicas desprezíveis, por apelo às emoções humanas mais mesquinhas e constrangedoras — a culpa e o medo.
Se tais acusações podem, como acredito, ser respondidas, elas não são desprovidas de força. Sua força advém do fato de que recorrem a valores, tais como resistência e auto-confiança, que compartilhamos com o amoralista. Podemos começar a apreciar suas objeções, embora possamos achá-las exageradas ou até mesmo distorcidas, apenas porque temos o suficiente em comum com o seu ponto de vista para intui-lo mesmo se não podemos compartilha-lo.
Duas coisas se seguem. Primeiro, a caracterização simples do amoralista como alguém que rejeita os valores morais deixa o amoralismo totalmente misterioso. Enquanto alguma explicação adequada não for oferecida não podemos torna-lo compreensível. Segundo, é pouco provável que o amoralista rejeite totalmente todos os valores morais. Rejeitando a moralidade, ele apela para valores que compartilha conosco. Nem todos precisam ser valores morais, mas alguns o serão. Ele pode se opor a uma grande parte da moralidade, mas parece provável ele busque substituir por algo que contenha alguns elementos em comum com o nosso pensamento moral atual. Em outras palavras, o amoralista não é hostil aos valores morais apenas porque são morais, mas porque e apenas na medida em que os valores morais são incompatíveis com os valores que ele acalenta.
A pessoa má foi descrita anteriormente como alguém que reconhecia que o que ela estava fazendo era ruim e por essa razão ela queria fazê-lo. O internista pode não ver sentido nesta descrição; como ele pode ver a natureza maligna de sua ação como uma razão para realizá-la? Seria, entretanto, prematuro concluir que o internista não pode dar lugar a uma posição que ele deveria ser capaz de incluir. Pois nós podemos bem querer saber se a maldade, assim descrita, é inteligível. Não poderíamos ver sentido no amoralista, a mesmo que pudéssemos entender por que ele rejeitou a moralidade. Semelhantemente, não podemos ver sentido na pessoa má a menos que possamos compreender por que ela escolhe o mal. A explicação pretendida — “Eu escolho isso, porque isso é o mal” — não é de modo algum uma explicação. Temos que ser capazes de reconstruir a motivação da pessoa má de um modo que tornaria sua escolha inteligível. O que irei defender é que há várias posições inteligíveis que são apropriadamente descritas como más, mas em nenhuma delas o agente escolhe efetivamente o moralmente errado porque é moralmente errado. Ele tem outras razões para a sua escolha, razões que são inteligíveis a partir da perspectiva internista. O internismo apenas estaria ameaçado se o externista pudesse produzir um exemplo claro em que nós seríamos forçados a dizer que o que motivou o agente foi sua apreciação da natureza maligna do que ele estava fazendo. Até que ele produza isso, o internista não tem por que revisar sua posição.
Há vários perfis morais corriqueiros que aparecem em discussões filosóficas sobre a maldade, mas em um exame mais detido, nenhum deles parece se encaixar na figura da pessoa, cuja escolha de ação é determinada por um desejo de fazer o mal pelo fato de ser mal. Já conhecemos o primeiro de um tal perfil — o próprio demônio, ou melhor, o retrato dele por Milton. Satã poderia ser visto como um exemplo de alguém com um amor desinteressado pelo mal. Ele não apenas deseja fazer, ele próprio, coisas más, mas quer que exista tanto mal no universo quanto possível e ele convoca os outros para se unirem a ele nesta empreitada.
Entretanto, a explicação que Milton oferece da motivação de Satã deixa claro que não é a maldade como tal que o atrai. Ele é retratado como tendo chefiado uma rebelião armada contra Deus com o fito de satisfazer sua ambição e desejo ardentes por poder. Derrotado, ele e seu exército tramam a forma pela qual eles podem continuar a guerra e exigir vingança. Seu objetivo deveria ser frustrar quaisquer propósitos que Deus poderia ter a fim de contrariá-lo.
Ser fraco é desprezível
Fazendo ou sofrendo: mas disto pode ter certeza,
Fazer o bem de qualquer maneira, nunca será nossa tarefa
Mas sempre fazer o mal é a nossa única alegria,
Sendo o contrário a sua vontade superior
A quem nós nos opomos. Se então sua Divina Providência
Longe de nossa busca maligna, levar o bem adiante
Nosso trabalho precisa ser deturpar esse final
E longe da quietude do bem, encontrar meios do mal;
Que muitas vezes, pode ser bem sucedido, assim talvez
Afligi-lo se eu não fracassar, e perturbar
Seus planos mais íntimos de metas
(Paraíso Perdido, Livro I, linhas 157–168)
O mal não é visto aqui como atraente em razão de si mesmo; seu atrativo encontra-se no fato de que o inimigo, Deus e seus anjos, o odeiam e desejam eliminá-lo.
Aproximando-se do Éden, onde ele planeja dar livre curso à estimulante maldade, pervertendo Adão e Eva, Satã percebe o que ele perdeu rejeitando a bondade e a Deus. Ele recusa o arrependimento porque despreza a submissão e sabe que é muito tarde para resignar-se com Deus, seu inimigo figadal. O caminho do mal é escolhido, não apenas porque é um meio de prosseguir a guerra contra o céu, mas também porque ele representa a única esperança de poder que resta a Satã — o domínio sobre um império do mal.
Esperança tão distante e com Esperança, Medo tão distante
Remorso tão distante: tudo de Deus para mim está perdido:
O Mal, possa ser vós, meu Bem; por Vós ao mesmo Império dividido com o rei dos céus, eu possuo
Por vós, e mais que metade talvez eu reine;
No papel de homem antes que um todo, e este Novo Mundo saberá.
(Paraíso Perdido, Livro IV, linhas 108–113)
Se tomarmos o Satã de Milton como modelo de maldade personificada, então ele é uma figura que não levanta problemas para a explicação internista da motivação moral. Satã ainda reconhece, pelo menos em momentos solitários de reflexão, as atrações da vida moral, da qual ele está fora agora. Ele abraça o mal, não em razão de si mesmo, mas porque é a única maneira de satisfazer sua ambição e preservar seu orgulho. Estes vícios podem ser vistos, ao longo das linhas realistas internistas, como distorção de sua percepção do bem e lhe dando um senso deformado de valores. Em virtude de sua visão do mundo ser ego-centrada, colorida pelo seu senso exagerado de presunção, ele deixa de ver o mal que se propõe a fazer aos outros como provedor de razão suficiente para desistir de seu plano.
No auge do panteão da demonologia do século XX, vem a figura dos consignados nazistas preparados para exterminar milhões de pessoas — judeus, ciganos, homossexuais, e deficientes físicos e mentais — em nome da pureza racial. Mesmo os nazistas sendo do mal, está claro que eles não oferecem nenhum exemplo do tipo de maldade que embaraçaria a posição internista. Eles não achavam que seus objetivos fossem malignos: o que os torna verdadeiramente horrendos é que eles, aparentemente, persuadiram — se a si mesmos de que eles eram bons. Consideravam as pessoas que exterminavam como se fossem parasitas perigosos, indignos de consideração moral. Cada criança tinha que se dar conta de que o judeu seria o próprio mal neste mundo e que ele deveria ser combatido por todos os meios, onde quer que aparecesse, escreveu Gerda Bormann ao seu marido Martin.
Os principais nazistas parecem estar genuinamente preocupados com o fato de que, ao levar a cabo esta tarefa, moralmente necessária mas repugnante, os alemães decentes pudessem se tornar embrutecidos. Eichmann disse depois de testemunhar o extermínio nos vagões de gás: “É horrível…jovens estão sendo transformados em sádicos”. Himmler dirigiu a seus generais da SS o seguinte: A maioria de vocês sabe o que significa quando 100 corpos estão deitados lado a lado, ou 500 ou 1000. Ter perseverado e ao mesmo tempo… ter-nos mantido camaradas decentes, isso é o que nos tem tornado perseverantes”. A preocupação de Himmler de que eles e seus generais permanecessem “companheiros decentes” é obscena, mas não é dele a linguagem do amante desinteressado do mal por si próprio. Nós podemos, claro, suspeitar de que haja um elemento forte de auto-engano e até mesmo de hipocrisia, nas tentativas dos nazistas de se persuadirem a si mesmos e a outros de que seus motivos eram moralmente puros. Mas mesmo que estas profissões fossem meramente um disfarce para a ganância e o desejo ardente pelo poder, nós ainda não temos um caso de pessoas buscando o mal em razão de si mesmo.
A citação de Eichmann nos faz lembrar-nos de um outro grande mal — o sadismo. Para o sádico o sofrimento de sua vítima é desejado por si próprio, mais do que como sendo um meio para um objetivo adicional, tal como a derrota de Deus ou a destruição dos não- arianos. Isto parece mais próximo da maldade como nos originalmente a entendemos. Um dos principais objetivos da moralidade é o alívio do sofrimento; contudo aqui está uma pessoa que se deleita em infligi-lo. Porém, dificilmente podemos descrever o sádico como tendo um deleite desinteressado no aumento do mal como tal. Suas preocupações são demasiadamente limitadas para isso. Primeiro, ele não está interessado na promoção de todos os tipos de comportamento moralmente inaceitáveis, tais como a injustiça, o engodo, etc., mas somente em um tipo em particular, chamado de crueldade. Segundo, ele não está, imagina-se, interessado em aumentar a quantidade total de crueldade no mundo, onde quer que seja, mas apenas na inflição da dor, da qual ele pode obter prazer, seja como torturador ou como observador. Em ambos os aspectos, seu interesse em aumentar a quantidade de mal no mundo é muito menos universal que a de Satã; este, em sua batalha contra Deus, se alegrará toda vez que um ser humano infligir algum dano moral a outrem.
Será que a existência do sadismo põe um problema insuperável para o internista? Não tenho certeza de que nós tenhamos entendido claramente o fenômeno do sadismo a despeito disso, mas não acredito que ele coloque dificuldades insuperáveis para o internista. O sadismo parece originar-se de uma perversão do desejo humano comum, desejo esse de domínio sobre outros; a inflição da dor é também freqüentemente uma fonte de prazer sexual para o sádico. Em alguns casos o sádico reconhece a inconveniência do que ele está fazendo, mas não se sai sempre bem quando quer resistir à força de seus desejos sexuais. O internista já fez a concessão para tais casos de debilidade moral. Em outros o sádico não parece se preocupar com os certos e errados morais do caso; ele está apenas preocupado com sua própria gratificação sexual. O internismo deu espaço também para uma atitude amoral deste tipo. Nós não temos que supor que é o erro moral do que ele está fazendo que é, na verdade, parte da atração.
Examinamos já vários tipos de vileza humana (e não humana) mas não encontramos um caso de um tipo de maldade cuja possibilidade lançaria um desafio ao internismo e portanto apoiaria a causa externista. Minha conclusão global é que o internismo pode, perfeitamente bem, tornar concebível o amoralismo e vários tipos de maldade, desde que sejam propriamente descritos e compreendidos. Ele está em boa forma para fazer frente ao desafio externista.
Temos tentado mostrar que nossas duas teorias podem dar espaço para o amoralismo e para a maldade. Estas são categorias antes exóticas de um apóstata moral — muitos de nós, como os habitantes de Hylan Thomas’s Llaregyb, se encaixam na categoria mais mundana daqueles que não são totalmente ruins ou bons. Será que nossas teorias podem também acomodar a pessoa que é, ao menos às vezes moralmente ruim? É um erro pensar que há apenas uma maneira de ser ruim, de sorte que a pergunta necessita de um enfoque preciso. Entendo por isso que a pessoa que é ocasionalmente ruim não vai, como o amoralista, ser indiferente às exigências da moralidade. Nem como a pessoa fraca, que reconhece as exigências da moralidade, mas deixa de agir como ela acredita que deveria agir. É, antes, que seu compromisso para com a moralidade é menos sincero, ou mais irregular que aquele de uma pessoa virtuosa. Quando as exigências da moralidade se chocam com seus outros objetivos, ela está demasiadamente disposta a permitir que o último oprima o anterior. Ela pode, é claro, se enganar acreditando que suas ações se harmonizam completamente com os ditames da moralidade Mais interessante, ela pode permitir que as exigências da moralidade tenham alguma força, mas insistir que elas têm que ter seu próprio lugar no esquema das coisas; não lhes deve ser permitido um veto absoluto em um curso proposto de ação. Tal pessoa freqüentemente se vê como um homem do mundo difícil de vencer aqueles que gostam de se retratar como homem de ação — homens de negócio, políticos e os militares — são talvez particularmente inclinados a tomar essa posição. Está tudo muito bem, eles sugerem para os idealistas insistir nas regras e comportamento impossivelmente severas, mas se as coisas hão de ser feitas, se as guerras devem ser ganhas ou ser lucrativas, então não há espaço para o escrúpulo moral.
Este argumento tem importância. Ele apela para alguma coisa que nós já admitimos — as considerações morais podem, de vez em quando, ser superadas ou anuladas por outras reivindicações. Há também, é claro, ocasiões nas quais a moralidade faz exigências que não podem ser ignoradas. Distinguir estas ocasiões exige discernimento, mas pode claramente haver erro em ambas as direções. A pessoa que é moralmente super-escrupulosa é inibida pela sua consciência super-ativa; um tipo de pessoa má pode ser insuficientemente inibida por escrúpulos morais. Será que alguma de nossas teorias tem dificuldade em acomodar este tipo de maldade? Acredito que não.
Para o não-cognitivista, a pessoa moralmente boa é vista como alguém que tem um compromisso reflexivo de promover os objetivos com os quais a moralidade está preocupada Há porém níveis de compromisso. Na primeira extremidade, temos o amoralista, que não está ainda comprometido com a moralidade e, na outra, a pessoa virtuosa, cujo compromisso é total e determinado (sem querer dizer que ela não tem espaço para outros compromissos em seus próprios lugares). Há espaço suficiente na parte intermédia para as pessoas que têm algum compromisso com a moralidade, entendem as considerações morais como fornecendo alguma razão para agir, mas depois permitem que outros compromissos joguem um papel maior em suas vidas do que o deveriam.
Em uma reconstrução realista, a pessoa má, ainda que sensível até certo ponto a preocupações morais, é insuficientemente sensível, visto que ela está preparada para permitir que outras considerações tenham mais valor que as morais, em situações nas quais uma pessoa moralmente mais sensível veria que as exigências da moralidade seriam superiores. Este é um outro exemplo do tipo de caso, com o qual nos tornamos familiares no último capítulo, no qual alguém compartilha da percepção, típica da pessoa virtuosa, da situação até certo ponto. A pessoa má compartilha isso insuficientemente para ver que há considerações morais que pesam contra o que ela se propõe a fazer; todavia, não é o caso de que tal pessoa não possa chegar, freqüentemente, a conclusões morais certas. Pode haver ocasiões nas quais ela concorda com a pessoa virtuosa em que há uma exigência moral para agir de uma certa maneira. Isto pode parecer estranho: como pode uma pessoa não totalmente boa compartilhar da maneira de ver as coisas da pessoa virtuosa em um caso, mas não no outro? Como sua percepção moral pode ser irregular?
A solução está implícita no que já dissemos sobre o processo de aprendizagem moral. Em alguns casos é fácil enxergar o que a moralidade exige; em outros, uma quantidade maior de sensibilidade é exigida. Exatamente como o aprendiz de música pode reconhecer harmonias simples, mas não as complexas, assim a pessoa sem sofisticação moral (o inexperiente moralmente) pode sair-se bem em casos bem definidos, ao passo que deixa de ver o que é importante nos casos mais difíceis.
É obviamente uma questão adicional se é culpável sua incapacidade de ver a situação corretamente; se pode ser dito ser sua própria falha e alguma coisa pela qual ele deve ser culpado. Isso dependeria do tipo de educação moral que ele recebeu e a extensão em que sua falha de visão, neste caso, se originaria de outros defeitos seus, tais como arrogância ou impulsividade, pelos quais ele poderia, razoavelmente ser chamado a dar conta. Nem todos os exemplos de ação moralmente ruim são aqueles pelos quais o agente possa ser considerado culpado.