Ter a experiência de valores é um fato constante em nossa vida. Qualquer compreensão adequada de nós mesmos ou do mundo — o tipo de compreensão que a filosofia tradicionalmente pretende fornecer — há de levar em conta tal experiência. Encontramos coisas valiosas não só na natureza — como um belo pôr de sol ou uma vista majestosa de montanha — mas também nos produtos da arte humana — música, pintura, dança ou literatura. O estudo filosófico destes aspectos de nossa experiência de valor tem pertencido tradicionalmente ao campo da estética. Ademais, julgamos o valor não só de nossas vidas e ações mas também das de outros indivíduos: algumas vezes, em termos mais gerais, quando consideramos uma pessoa como sendo boa ou má ou uma ação como justa ou injusta, cruel ou amável. A ética se ocupa com esta dimensão de nossa experiência de valor, com nosso pensamento moral.
Existem dois sentimentos contrastantes relacionados à nossa vida moral que todos nós em alguma medida compartilhamos. De um lado, frequentemente percebemos a moralidade como o reduto da decisão pessoal, um reduto no qual cada um de nós tem o direito de formar sua própria opinião acerca do que fazer. Se outras pessoas podem oferecer conselho sobre o que devemos fazer ou que princípios morais acolher, elas não têm autoridade para nos dizer como devemos viver nossas vidas. Em moral não existem peritos. Este sentimento encontra expressão em muitos aspectos da vida social. Por exemplo, no que tange às questões consideradas de consciência, aos membros do parlamento britânico se costuma dar liberdade de voto; assim, os pacifistas não têm que se alistar no exército, o que iria de encontro às suas convicções sinceramente mantidas. Na campanha para legalizar o aborto, provavelmente o argumento mais persuasivo era o que defendia que toda mulher tem o direito de fazer sua própria escolha moral.
Neste diapasão, podemos sentir que o que importa não é que tomemos a decisão certa — pois quem haveria de determinar qual é a decisão certa? — mas que cada um de nós tome sua própria decisão. Cada um de nós tem que determinar, como se diz algumas vezes, qual é a coisa certa para ele ou ela. Cada um tem que decidir por que valores deseja viver sua vida e os demais devem respeitar a sinceridade dessas escolhas.
Esta visão da escolha moral não se ajusta bem ao segundo sentimento que todos nós compartilhamos, a saber, que é freqüentemente difícil — quando somos confrontados com algum problema moral urgente e intrigante — descobrir qual solução é a certa.
Se estou intrigado sobre o que devo fazer, então é provável que sinta que o que importa não é que a resposta a que eu chegue deva ser minha, uma resposta pela qual estou preparado para assumir a responsabilidade última; o que importa é que a resposta seja correta. Não penso que minha escolha determine se a resposta é ou não certa. Ao contrário, desejo que minha escolha seja determinada pela resposta certa. É por temer poder escolher erroneamente que acho tão difícil a decisão.
Tais sentimentos estão em tensão: o primeiro parece levar à visão de que não existe nada independente de nossas opiniões morais que determine se elas são ou não corretas: o segundo vai contra uma tal conclusão. Uma vez que as pessoas se ponham a refletir sobre tais posições e tentem desenvolver uma delas, aquela tensão parece estar prestes a gerar um debate entre os dois lados. Cada lado experimentará fragilidades no outro e com isso provocará uma resposta que, por seu turno, evocará um desafio adicional. Na medida em que este diálogo ou dialética se desenvolve, o que eram antes sentimentos bem rudimentares converter-se-á em teorias mais elaboradas sobre a natureza do pensamento moral. Teorias filosóficas sobre a natureza do valor podem assim ser vistas como algo que emerge naturalmente da reflexão sobre sentimentos que todos temos acerca da ética.
Ao tentar contemplar em suas teorias a ambos os sentimentos, os filósofos tendem a se inclinar para um ou outro lado. Aqueles que se deixam impressionar pela primeira vertente provavelmente representarão o pensamento moral como um método para decidir que valores devemos colocar nas coisas (o livro influente de Mackie (1977) nesta tradição tem como subtítulo Inventing Right and Wrong).
Aqueles que estão mais sob a influência da segunda vertente considerarão a experiência moral como uma questão de tentar encontrar um valor pré-existente. Assim, a questão para o debate passa a ser: devemos representar o pensamento moral como uma questão de criar/ inventar valores, ou como uma questão de descobrir / reconhecer valores que existem independentemente de nós?
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Se consideramos a dificuldade óbvia levantada pela primeira linha de pensamento, aquela que nos representa como criadores de valores, podemos ver emergir um padrão típico de desafio e contra-desafio. Se cada um de nós tem que decidir por si quais são seus valores, poderia então parecer que nenhuma opinião moral pudesse jamais ser questionada, muito menos refutada. Posso determinar quais são meus valores, mas não quais devam ser os seus; somente você pode fazer isso. Aparentemente, se os valores morais de cada um de nós estivessem isentos de crítica, qualquer visão seria tão boa quanto a outra. Todavia, isso parece entrar em conflito com o sentimento de que algumas posições morais estariam melhor fundadas do que outras. Certamente que se temos que levar a sério as visões morais de alguém, esse alguém há de ser capaz de produzir alguma justificação para elas.
O defensor do ponto de vista de que nós criamos nossos valores pode bem responder a esta objeção nos lembrando de que, em sua opinião, o que cada um de nós está escolhendo é um conjunto de valores que quem escolhe aceita plenamente e que irá governar toda a sua vida. Estamos todos familiarizados com o hipócrita moral, com a pessoa que finge aceitar uma classe de princípios morais, nos quais ela não acredita. Estamos na verdade perguntando o que está envolvido na adoção sincera de algum conjunto de valores, como algo distinto de meramente alegar possui-los. Primeiramente, ter algumas convicções morais é certamente mais uma questão a respeito do que uma pessoa faz do que a respeito do que ela diz, de sorte que há de se tratar de valores pelos quais a pessoa pode viver. Quaisquer que sejam os princípios morais que uma pessoa adote, eles hão de ser aqueles que ela está disposta a seguir. Em segundo lugar, suas visões morais precisam ser consistentes, do contrário, ela se verá enredada em posições morais conflitantes e, quando precisar colocá-las em prática, não será capaz de viver de acordo com elas.
O defensor do ponto de vista de que cada um de nós tem que decidir quais são nossos valores está agora em uma posição de reivindicar que em seu sistema ético existe espaço para a crítica de posições morais contrárias. Podemos sempre tentar lhe mostrar que suas posições são internamente inconsistentes, e forçá-lo a mudá-las para compatibilizá-las umas com as outras. Filósofos desta persuasão exercitaram uma grande dose de engenho ao mostrar que o que poderíamos chamar de condições de sinceridade de comprometimento moral — que os princípios de uma pessoa sejam consistentes e que ela esteja preparada para viver de acordo com eles — coloca limites rígidos aos tipos de sistema de valor moral que estão disponíveis a cada um de nós.
É improvável que esta resposta satisfaça inteiramente a seu oponente, que considera o pensamento moral muito mais uma questão de descobrir os valores corretos do que em criá-los. Parece perfeitamente possível que possa haver muitos sistemas morais que são internamente consistentes, mas inconsistentes entre si.
Com efeito, poderia parecer que existam diversos sistemas prontos, disponíveis no mercado moral. Cristãos, budistas, marxistas, utilitaristas e outros, requerem que seus adeptos subscrevam um sistema moral completo e é no mínimo concebível que mais do que um desses sistemas sejam internamente consistentes ou poderiam se tornar consistentes. Alguém que pensa que inventamos nossos sistemas de valores parece comprometido com a visão de que qualquer posição consistente é tão boa quanto qualquer outra, uma vez que as únicas razões para se criticar um sistema de valor é sua inconsistência interna. Seu oponente irá receber com entusiasmo este ponto.
Suponhamos que eu esteja tentando decidir entre dois ou mais sistemas rivais, porém consistentes. Como vimos anteriormente, o segundo sentimento que temos com respeito a escolhas morais difíceis é que, se estou intrigado sobre qual deles escolher, é porque quero escolher o melhor e ainda não sei qual é. A mesma objeção re-aparece mesmo que eu esteja escolhendo sistemas de princípios morais e não apenas tomando decisões morais individuais. Não quero escolher qualquer sistema consistente de valores pelo qual consiga viver minha vida; quero escolher o sistema certo. A imagem de cada um de nós como criador de seus próprios valores não deixa espaço para a questão de saber qual sistema é o correto para ser escolhido, dado que qualquer sistema consistente é tão bom quanto qualquer outro.
Uma via alternativa para se formular esta objeção seria colocá-la em temos de verdade. As pessoas freqüentemente possuem crenças conflitantes sobre um amplo espectro de assuntos. A consistência em um conjunto de crenças de uma pessoa é certamente uma condição necessária mas não suficiente (para sua verdade). Pode haver muitos conjuntos internamente consistentes, embora rivais entre si; todavia, normalmente pensamos que não mais que um conjunto seja verdadeiro. É natural supor que o que determina se uma crença é verdadeira é o modo como as coisas são no mundo.
Minha crença de que o leite contém vitamina D é verdadeira exatamente se o leite contiver vitamina D. Assim, a classe de crenças verdadeiras será aquela que reflita de modo acurado o modo como as coisas são. Poderíamos agora exprimir a preocupação do último parágrafo dizendo que, quando me defronto com sistemas éticos rivais, porém, internamente consistentes, o que quero é escolher o conjunto que seja realmente verdadeiro.
Se expressamos a objeção deste modo, podemos ver que emergiu uma diferença adicional entre as duas linhas de abordagem. O sentimento de que temos que descobrir, mais do que inventar, quais valores morais são corretos, conduz naturalmente à visão, segundo a qual existem verdades morais. A verdade moral é pensada como independente de quaisquer decisões morais que eu possa eventualmente alcançar. O que aspiramos em nosso pensamento moral, com base nessa visão, é atingir a verdade moral. Por outro lado, o sentimento de que valores são um produto de nossas escolhas conduz, também de modo natural,à visão contrária, segundo a qual não há verdade moral; não existe nada independente de nossas escolhas que pudesse eventualmente determinar qual sistema consistente de valores morais é o correto.
Ao desenvolver a visão de que as respostas a questões morais são independentes de nós e necessitam ser descobertas, seria natural recorrer aos conceitos inter-relacionados de verdade, crença e realidade. A noção de verdade está intimamente relacionada à de crença. Crenças aspiram à verdade, elas são verdadeiras se atingem sua marca, falsas se deixam de fazê-lo. Se descobrimos que duas de nossas crenças são inconsistentes, precisamos abandonar ao menos uma delas, porque duas crenças inconsistentes não podem ser ambas verdadeiras. Que nossas crenças sejam consistentes é uma condição necessária, mas não suficiente de sua verdade. A consistência no âmbito de nosso sistema de crenças não é garantia nenhuma de que elas sejam verdadeiras. Se nossas crenças são ou não verdadeiras, isso depende de algo que é independente delas, a saber: da realidade: o modo como as coisas são, o modo como o mundo é. Segue-se que nossas crenças morais serão verdadeiras se as coisas são, moralmente, como supomos que o sejam. A visão que deriva do segundo sentimento sobre a ética, poderia ser melhor denominada como realismo moral, pois ela insiste na existência de uma realidade moral que é independente de nossas crenças morais, e que determina se elas são verdadeiras ou falsas. Tal visão sustenta que as propriedades morais são propriedades genuínas de coisas ou ações; elas são, como algumas vezes foi formulado de modo pitoresco, parte do mobiliário do mundo. Podemos ou não ser sensíveis a uma propriedade moral particular; todavia, se essa propriedade está presente, isso é algo que é independente do que pensamos sobre o assunto.
Como vimos, parece natural considerar como uma visão oposta aquela que nega a existência de qualquer verdade moral. Uma vez que os conceitos de verdade, crença, e realidade estão tão intimamente conectados, sua negação naturalmente é acompanhada de irrealismo moral — a alegação de que não há realidade moral — a sugestão de que as convicções morais não são melhor pensadas como crenças. Se cada um de nós tem que inventar seus próprios valores morais, então eles não são apropriadamente pensados como aspectos de um mundo independente. Não podemos, com base nesta posição, ser sensíveis ao modo como as coisas são, falando moralmente, pois não há realidade moral. Se nossas opiniões morais não podem ser verdadeiras ou falsas, então elas não podem ser crenças, pois crer em alguma coisa é crer que ela seja verdadeira. Não há nada no mundo que as torne verdadeiras ou falsas. Esta reconstrução da visão de que nós criamos nossos valores é até aqui inteiramente negativa: ela nega que exista uma realidade moral, que possa existir verdade moral, que compromissos morais sejam vistos como crenças. Pode o irrealista moral produzir alguma caracterização positiva do que é uma convicção moral?
Encontrar-se em um determinado estado cognitivo, tal como, por exemplo, acreditar em algo, duvidar de alguma coisa ou conhecer algo, não parece estar essencialmente relacionado ao sentir. Obviamente posso gostar muito de alguma crença minha, posso querer muito que ela seja verdadeira. Mas parece perfeitamente possível, talvez até desejável, que sejamos desapaixonados com relação a nossas crenças. Afinal, o que importa, em última instância, é se elas são ou não verdadeiras, e isso depende de como as coisas são e não de como nós as sentimos ou do que sentimos em relação a elas. Em contraste, nossas posições morais parecem envolver nossos sentimentos de uma forma direta. Certamente não é possível ter-se uma convicção moral profundamente arraigada sobre algum assunto e não se preocupar com ele. Os termos que usamos para descrever ações que moralmente condenamos como ultrajantes, horríveis, intoleráveis, traem a conexão com o sentimento.
O irrealista moral acentua esta conexão entre nossos sentimentos e convicções morais e sugere que devemos pensar nos compromissos morais como sendo algo semelhante a sentimentos ou emoções. Ao adotar esta reconstrução, alega, ele pode explicar esta conexão de um modo que seu oponente não o pode. Se visões morais não passam de crenças, como sustenta o realista moral, por que existe uma conexão forte entre aquelas visões e nossos sentimentos? Certamente que, com base na reconstrução realista, alguém pode ter uma classe de crenças morais e, a despeito disso, estar emocionalmente inteiramente distanciado delas. Isso parece ser um defeito da posição realista.
O irrealista está agora em posição de desenvolver sua sugestão na direção de uma reconstrução positiva da natureza do compromisso moral. Podemos melhor explicar suas visões por meio de um exemplo. Suponhamos que eu veja algumas crianças atirando pedras em um cachorro ferido. Em razão do que vejo, adquiro uma grande variedade de crenças — que existem três crianças, que o cão está sangrando, etc. Estou horrorizado com o que vejo; estou seguro de que tal comportamento é cruel e errado. O que significa fazer um tal julgamento moral? De acordo com o irrealista, não estou, como supõe o realista, formando uma crença adicional sobre o que as crianças estão fazendo, a saber, que o que fazem é errado. Antes, estou reagindo emocionalmente ao que vejo. Minha condenação moral é para ser pensada como uma reação afetiva — uma reação do lado sentimental de minha natureza — às minhas crenças sobre o modo como são as coisas. A conexão estreita entre sentimento e julgamento moral é assim explicada: Sustentar que algo é errado é simplesmente ter uma reação emocional negativa a isso; dizer a outros que algo é errado é exprimir esse sentimento.
Esta reconstrução explica por que não podemos ser emocionalmente desprendidos quando consideramos um assunto que pensamos ser moralmente importante. Ter uma convicção moral forte sobre algum assunto é se preocupar com ele. Esta reconstrução explica algo a mais sobre aquilo no qual o irrealista deposita ênfase. Princípios morais sinceramente mantidos, relembremos — são considerados como algo com base nos quais nós agimos, algo pelo qual nós vivemos. Podemos agora mostrar por que nossas visões morais têm influência sobre nossas ações. Dar importância para algum assunto e desejar que algumas coisas aconteçam são coisas que caminham juntas. Se realmente dou importância ao bem-estar animal, então é típico de uma tal situação que eu queira que uma série de coisas sejam verdadeiras: que fazendas industriais sejam eliminadas, que o dinheiro seja fornecido para clínicas destinadas a animais, etc. Uma vez que desejo tais coisas estarei motivado a dar efetividade a elas, na medida em que posso. Quanto maior a importância que dou a algo, tanto mais fortes serão meus desejos e mais motivado estarei. Uma vez que ter uma convicção moral é dar importância, é também ser motivado a agir de acordo com ela.
O realista moral pensa em visões morais como puramente cognitivas. Elas são simplesmente crenças sobre o modo como o mundo é, moralmente falando. Seu oponente irrealista alega que o que é característico das visões morais é que elas contêm um elemento não cognitivo, um elemento que provém do lado sentimental ou emocional de nossas naturezas. Podemos, portanto, chamar tal posição de não-cognitivismo moral. Uma vez que o não-cognitivista nega que visões morais devam ser pensadas como crenças sobre os fatos, ele precisa encontrar algum outro termo para descrevê-las. Permita-nos introduzir o conceito de “atitude”. Adotar uma atitude não é formar uma crença acerca dos fatos, mas avaliar aqueles fatos. Atitudes podem ser positivas ou negativas, pró ou contra. Termos de avaliação tendem a ocorrer em pares (por exemplo, certo/errado, bom/mau), possibilitando-nos exprimir uma atitude favorável ou desfavorável com respeito ao que está sendo avaliado. Posso, obviamente, avaliar coisas sob outros pontos de vista que não o moral. Se acho que ópera é maçante, sem vida e artificial, estou certamente avaliando-a negativamente, porém, minhas objeções a ela não são de ordem moral. Uma atitude moral é um tipo de atitude; nem todas as questões de valor são questões morais.
O não-cognitivista considera o pensamento valorativo em geral e a experiência moral em particular, como possuindo dois aspectos distintos. Podemos ilustrar isto recorrendo a nosso exemplo das crianças atirando pedras no cachorro. Primeiro, temos algumas crenças sobre o que consideramos serem os fatos; poderíamos adquirir estas crenças vendo as crianças se comportarem deste modo ou sendo informado a respeito. Se nossas crenças sobre os fatos são rudimentares ou incompletas, isto pode invalidar o julgamento moral que elaboramos com base naquelas crenças. Nossas crenças necessitam ser sensíveis aos fatos, ao modo como o mundo é. Segundo, somos constituídos de tal forma, pela natureza ou educação, que reagimos com repulsa a um tal comportamento. Esta reação é obra de nossos sentimentos e revela algo sobre nós, mas nada sobre o mundo. Dado que as pessoas diferem em sua constituição emocional, é possível que duas pessoas concordem sobre todos os fatos e ainda divirjam nos valores que atribuem àqueles fatos. Poderíamos exprimir isto dizendo que as pessoas podem concordar quanto à crença e discordar quanto à atitude moral.
Afirmei que a primeira abordagem da ética, que desembocou no não-cognitivismo moral, apelava para uma crença comum, a de que não existem peritos morais. O não-cognitivista está agora em posição de oferecer suporte para esta crença. Onde questões factuais estão envolvidas, posso apelar com segurança a um perito, que se acha em uma posição melhor do que a minha para saber o que é verdadeiro. Entretanto, a noção de um perito moral não faz sentido a partir de uma perspectiva não-cognitivista. Não existem fatos morais sobre os quais ele ou ela pudesse ter um conhecimento especial. O que eu necessito saber quando elaboro um juízo moral é o que sinto sobre a situação; sobre tais questões cada um de nós é seu próprio perito.
O não-cognitivismo pode ser captado sob uma perspectiva muito atraente. Ele pode se afigurar como uma doutrina da libertação, como uma afirmação da liberdade humana individual em face de determinados intentos— de pessoas que pensam que sabem o que é melhor para nós, e pensam poder ditar como devemos levar nossas vidas. A explosão de conhecimento conduziu a uma explosão de peritos. Em uma sociedade cada vez mais complexa, na qual nenhuma pessoa singular pode captar uma fração do conhecimento disponível, existem peritos em tudo, nos dizendo o que devemos crer e fazer. Se temos que nos curvar à opinião do perito em muitas áreas da vida, no reino da escolha moral nos encontramos, finalmente, em uma área na qual o laudo de um especialista está fora de cogitação. Aqui temos a liberdade de formar nossas opiniões sobre como viver nossas vidas.
O não-cognitivismo preserva uma área de vida na qual o sentimento e a emoção conseguem seu espaço. No que tange a questões factuais não é o que sentimos que importa, mas o que a evidência raciocinada sugere ser a verdade. Tal raciocínio é frequentemente visto como frio e impessoal, um método abstrato de determinar a verdade que pode ser aplicado por qualquer pensador. No pensamento moral, entretanto, são os sentimentos pessoais que são cruciais.
O não-cognitivismo rejeita, pois, a filosofia de vida e a teoria da educação avançada por Mr. Gradgrind no início do livro Hard Times de Dickens: “Agora o que quero são fatos. Não ensine a estes meninos e meninas nada além de fatos. Somente fatos são requeridos na vida. Não plante nada e erradique tudo o mais”. Cada um de nós necessita de sentimentos, assim como de conhecimento sobre fatos, para que possa dispor de alguma razão para preferir um modo de vida a outro. Que sentimentos possuo é algo que depende de mim, ao passo que o que é um fato e o que não é, está fora de meu controle. Ao defender a tese de que questões morais são questões factuais, o realismo moral pode aparecer como sendo uma ameaça à nossa autonomia moral, nossa liberdade de decidir sobre questões morais por nós mesmos. O não-cognitivismo pode parecer uma doutrina da tolerância. Se ninguém está em uma posição melhor que qualquer outro para decidir qual é a coisa certa a fazer, então ninguém tem autoridade para interferir nas escolhas de outras pessoas. A cada um de nós deveria ser permitido fazer sua própria coisa. O realista, em contraste, pode parecer como um dogmático. A partir da afirmação de que existe uma verdade moral a ser conhecida ele parece estar a um passo de alegar que você a encontrou e que outras pessoas estão simplesmente erradas porque não a vêem da forma que você a vê.
É um erro, entretanto, pensar que a tolerância pertença de uma forma tão direta ao não-cognitivismo. Pois isso seria alegar que o não-cognitivismo pode mostrar que uma atitude de tolerância é preferível a uma atitude de intolerância. Entretanto, seria inconsistente, como muitos não-cognitivistas reconheceram, sustentar não só que somos livres para escolher que atitudes morais tomar, e também que podemos demonstrar que uma atitude de tolerância é superior a uma de intolerância. Ademais, uma breve reflexão mostrará que a tolerância não pode ser ilimitada. Se você sustenta, por exemplo, que caçar raposas é perfeitamente aceitável do ponto de vista moral e eu sinto como cruel e bárbaro, então não posso tolerar sua caça sem abandonar minha atitude. Ter uma atitude moral é agir em circunstâncias apropriadas. Não posso, portanto, estar comprometido a prevenir a crueldade de raposas e ao mesmo tempo pensar que nada deveria ser feito para detê-la, sem ser inconsistente. E o mesmo vale para muitas outras atitudes morais.
Esta percepção pode fazer com que a liberdade da qual o não-cognitivismo se vangloria se afigure menos atraente. Se questões morais não são questões de fato e se não existem respostas corretas, como os conflitos de atitude hão de ser resolvidos? Se não se pode mostrar que uma atitude é superior a uma outra, então desacordos morais terão de ser resolvidos por métodos não racionais tais como persuasão, ameaças e, em última análise, pela força. Em resposta, o não-cognitivista pode nos lembrar de que podemos mostrar que uma posição moral é injustificada, se ela é inconsistente e se nós ainda não exploramos até que ponto esta estratégia nos levará. Entretanto, se permanecerem choques irreconciliáveis de atitude, pode ser o caso de que nós simplesmente tenhamos que lutar pelo que acreditamos, assim como os homens lutaram através dos séculos.
A resposta serve, entretanto, somente para levantar outra dúvida. Pode o não-cognitivismo conferir sentido ao comprometimento das pessoas para com um ideal moral no qual elas crêem e pelo qual elas estão, talvez, preparadas até para morrer? A dificuldade é esta. O não-cognitivismo convida-nos a permanecer fora de nossos próprios comprometimentos valorativos e a reconhecer que, deste ponto de vista externo, nada é intrinsecamente valioso, pois valores não são partes do mundo real, mas são criados ou inventados por nós. Pode nosso comprometimento para com diversos valores sobreviver a este reconhecimento? Isto é, uma vez que tenhamos nos dado conta de que não existem valores objetivos, será que podemos continuar zelando e lutando por coisas que valorizamos, ou devemos nos tornar convencidos de que nada importa?
A resposta usual não-cognitivista a esta preocupação repousa em uma distinção entre o que é logicamente e o que é psicologicamente possível. Podem existir posições com respeito às quais seja logicamente possível aceitar, mas psicologicamente difícil ou mesmo impossível. É logicamente possível manter uma posição se ela não contém contradições ou incoerências. O não-cognitivista sustenta que não existe nada de incoerente em se acreditar que não existem valores objetivos e ao mesmo tempo se devotar apaixonadamente a várias questões. Assim, A. J. Ayer, um proponente do não-cognitivismo durante toda sua vida, está sempre escrevendo cartas de protesto para o The Times, embora, ao fazer isso, não esteja sendo falso ou insincero para com suas crenças filosóficas. Nenhuma crença, nem mesmo filosófica, pode ditar que atitudes podemos ou não tomar, uma vez que atitudes são independentes de crenças. O não-cognitivista está bem preparado para conceder que alguém que seja um realista moral não reflexivo pode, ao se defrontar com argumentos em favor do irrealismo moral, experimentar sentimentos de inquietação e um senso de alienação de seu próprio sistema de valores. Tais escrúpulos são, entretanto, de interesse meramente psicológico e não levantam nenhuma dificuldade lógica para o não-cognitivismo.
A inquietação a que o irrealismo quanto a valores freqüentemente dá azo não é tão facilmente aplacada. Desejamos algo porque acreditamos que ele é valioso. Não pensamos que seja desejável ou valioso porque o desejamos. Encontramos significado em várias atividades porque pensamos nessas atividades como sendo valiosas; não achamos que elas sejam dignas de serem perseguidas somente porque as queremos perseguir. Somente a convicção de que o que estamos fazendo é objetivamente digno pode tornar razoável para nós aceitar os sacrifícios e dificuldades que podem estar envolvidos em trazer à fruição qualquer projeto maior, tal como educar crianças ou escrever um livro. O não-cognitivismo ameaça solapar as crenças sobre a natureza do valor que confere a muitas de nossas atividades o seu sentido. Se não cremos que nossos objetivos mais acariciados tenham algum valor independente de nosso desejo de vê-los realizados, então, aqueles projetos, e mesmo a própria vida, pode cessar de ter qualquer significado. O não-cognitivista precisa contudo mostrar que pode permitir espaço para uma concepção de valor que nos capacitaria a ver a vida como dotada de alguma razão.
Enquanto a maioria dos não-cognitivistas provenientes da tradição anglo-americana tem tentado mostrar que a verdade de sua teoria não tornaria a vida sem sentido — freqüentemente pelo método não engenhoso de pretender que eles não podem dar sentido à questão de saber se a vida tem um significado — alguns filósofos europeus da tradição existencialista endossaram a conclusão de que a vida não tem nenhum sentido. De modo semelhante ao não-cognitivista o existencialista nega que existam valores objetivos e sustenta que cada um de nós é responsável, a cada momento, por escolher como devemos viver.É má-fé tentar evitar a agonia dessa escolha pretendendo que existam valores objetivos ou deveres externos. O que quer que tenhamos decidido ontem não pode ser simplesmente transferido para hoje; precisamos reafirmar aquela escolha ou fazer uma nova. A vida é absurda; uma vez que tenhamos reconhecido esse fato, temos que viver de acordo com uma série interminável de escolhas radicais ou fazer a escolha final e irrevogável do suicídio.
Os dois sentimentos sobre a ética mencionados no início conduziram a teorias bem distintas. O realista sustenta que existe uma realidade moral independente, da qual podemos ser conscientes; o não-cognitivista nega isto. O realista pensa em visões morais como crenças sobre o modo como o mundo é; seu oponente as concebe como atitudes que tomamos em relação aos fatos. O realista insiste na existência de verdade moral; o não-cognitivista rejeita tal noção. Ambas as teorias ainda se encontram em um estado bastante rudimentar. Na medida em que vão sendo refinadas, em resposta a dificuldades e objeções óbvias, o contraste entre elas tende a se tornar menos nítido. A principal diferença entre as duas, que subsiste através de todas as guinadas e voltas de seu desenvolvimento, diz respeito ao estatuto das propriedades morais. O pilar central da posição realista é a insistência, como o nome sugere, na existência de uma realidade moral; na experiência moral somos genuinamente sensíveis a propriedades morais, as quais são tanto uma parte do mundo real como quaisquer outras propriedades. Embora os detalhes da posição não-cognitivista da experiência moral possam variar, eles todos estão comprometidos com o irrealismo, com a negação de que propriedades morais são parte do mobiliário do mundo. É porque o não-cognitivista nega que exista uma realidade moral da qual podemos nos tornar conscientes que ele sustenta que a experiência moral não pode ser puramente cognitiva, mas precisa envolver um elemento não cognitivo.
Como a última observação sugere, existem várias formas que podem ser assumidas por nossas duas teorias.Este livro está principalmente concernido com o debate entre elas. Não explorarei todas estas formas, mas tentarei desenvolver a versão mais plausível de cada uma de sorte que estejamos em uma posição de julgar a força e a fraqueza das melhores versões de cada uma das abordagens. Seria enganoso querer dizer que estas são as únicas teorias neste campo de estudos. Em particular, o realismo moral não representa aúnica resposta possível ao que pode parecer o aspecto mais perturbador da posição não-cognitivista — sua negação de que exista algo de objetivo, algo de independente de nossas reações morais, sobre o qual aquelas respostas são fundadas. A alegação de que existe uma realidade moral é um intento de prover uma alicerce para aética, mas existem outras possibilidades.
Uma outra tradição provém da teoria ética do filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant. Kant estava, em parte, reagindo às visões de outro filósofo do século XVIII, David Hume, cujas idéias fornecem a principal inspiração para boa parte do pensamento moderno não-cognitivista. Kant procura fundar a moralidade na natureza da razão. Nós não somente usamos a razão teoricamente, para descobrir como é o mundo, mas também praticamente, para descobrir o que nós devemos fazer. Kant defende que existem limites, não somente com respeito a que crenças é racional aceitar, mas também com respeito a que planos de ação é racional adotar. Seria irracional, por exemplo, perseguir um objetivo de tal forma que eu solapasse qualquer chance que pudesse ter de alcançá-lo. Através de uma série de argumentos engenhosos, mas altamente questionáveis, Kant tenta demonstrar que a ação imoral é irracional. Kant concorda com o não-cognitivista que afirma que alegações sobre o que devemos fazer não são enunciados sobre o modo como as coisas são e não podem ser verdadeiras ou falsas em virtude do modo como o mundo é. Ele diverge de Kant ao sustentar que a razão requer que realizemos certas ações e nos abstenhamos de outras, bem independentemente de nossos desejos. O que devemos fazer é independente do que queremos fazer. Podemos mostrar quais princípios são objetivamente justificados e quais não são através da reflexão sobre a natureza da racionalidade prática. Princípios morais de ação são racionalmente insustentáveis e temos portanto boa razão para não adotá-los.
Embora alguma versão do Kantismo seja freqüentemente apresentada como sendo a principal rival do não-cognitivismo, não creio que represente uma alternativa viável. Existem objeções sérias à própria teoria de Kant e muitos filósofos estão de acordo em que por mais interessante e estimulante que seja a abordagem kantiana sobre a ética, ela é profundamente falha. Um aspecto da teoria de Kant desempenha, todavia, um papel central em nosso debate. Pois, como veremos, o realista moral concorda com Kant em que os requerimentos morais exigem nossa aceitação, e isso é independente do que possamos, casualmente, desejar.
O realismo moral e o não-cognitivismo são, em minha opinião, as duas teorias mais plausíveis acerca da natureza da ética. Elas são também as mais atuais, no sentido de que o debate entre elas está na dianteira da recente discussão. Com efeito, a ética no século vinte, pelo menos no que tange ao mundo anglofônico, pode ser vista como um debate continuado entre as duas, no início ganhando o primeiro lado, depois o outro. Nos primeiros trinta anos do século, uma forma de realismo, freqüentemente conhecido como intuicionismo, teve a hegemonia; entre seus defensores mais proeminentes estavam G. E. Moore, W. D. Ross, H. L. Prichard e C. D. Broad. (Obras representativas encontram-se nas referências.) Durante os anos 30 do século XX os não-cognitivistas, tais como Ayer e Stevenson, lançaram um ataque virulento à tradição realista prevalecente. E, desde então, o não-cognitivismo tendeu a dominar a filosofia moral anglo-saxã, com uma resistência ocasional de autores das tradições realista e kantiana. O líder não-cognitivista foi indubitavelmente Hare, mas a teoria teve muitos defensores competentes de ambos os lados do Atlântico, incluindo, mais recentemente, John Mackie, Simon Blackburn, Gilbert Harman, e, em certa medida, Bernard Williams. O realismo moral re-emergiu ultimamente como o mais forte desafiante da tradição não-cognitivista. Assim como seus proponentes britânicos, John McDowell, David Wiggins, Mark Platts, John Finnis e Jonathan Dancy, não faltam defensores nos Estados Unidos, tais como Hilary Putnam, Thomas Nagel, Nicholas Sturgeon, Richard Werner e David Brink. O debate entre as duas teorias éticas continua se desenvolvendo, mas uma tendência que será saliente neste livro já emergiu; com efeito, o interesse renovado pelo realismo moral tem sido desafiar as visões tradicionais, não somente na ética, mas em outras áreas da filosofia também.
A filosofia moral pode ser dividida em pelo menos três ramos. Primeiro, existe a ética prática, o estudo de problemas morais específicos: é o aborto moralmente aceitável? Que estruturas seriam encontradas em uma sociedade perfeitamente justa? Segundo, existe a teoria moral, o intento de desenvolver uma teoria da moralidade que nos dará um método geral para responder a todas as questões morais específicas que são levantadas no âmbito da ética prática. Terceiro, existem questões morais sobre a natureza e o estatuto de nosso pensamento moral: existem verdades morais?É possível mostrar que uma visão moral é melhor do que outra? É com respeito a este terceiro tipo de questão que este livro está primariamente concernido. Pensar sobre o estatuto do pensamento moral é algumas vezes caracterizado como metaética, para distinguir a última abordagem da ética prática e a construção de teorias morais. Evitarei esta denominação moderna desajeitada e usarei o termo tradicional ‘ética’.
Estas três áreas não são, obviamente, inteiramente independentes umas das outras; as opiniões de alguém em uma área não podem ser dissociadas de suas visões nas outras duas. Questões éticas são básicas; as conclusões a que chegamos sobre a natureza e o estatuto de nosso pensamento moral estão prestes a ter um efeito sobre nossas visões acerca de como podemos proceder para determinar a solução correta para algum problema moral, ou mesmo se existe algo como uma resposta correta. Perto do final do livro veremos que implicações para a teoria moral se seguem da adoção do não-cognitivismo ou do realismo.
Tampouco a ética pode ser mantida separada de outras áreas da filosofia; já vimos que nosso debate levanta questões sobre a verdade, a natureza da realidade, a motivação para a ação e o significado da vida — todas as áreas mais importantes da controvérsia filosófica têm seu espaço. Qualquer teoria ética satisfatória precisa ter algo a dizer em todas estas áreas e assim constituir um quadro integrado do mundo e de nosso lugar nele, o qual é muito mais amplo do que o campo da ética.
Se ambas as nossas teorias estão primariamente tentando compreender a natureza do valor moral, qualquer projeto como este precisa ser visto como parte de um empresa mais ampla, que consiste em dar sentido à nossa experiência de valor em geral. Assim, muitos dos temas deste livro serão relevantes para problemas em outras áreas que têm a ver com a questão do valor, especialmente a estética. Ambas as nossas teorias encontram importantes paralelos, assim como diferenças, entre a experiência moral e a estética. O realismo moral, em particular, freqüentemente recorre à experiência estética como um modelo para nossa experiência moral. Uma comparação detalhada de ambas as áreas só pode favorecer nossa compreensão de cada uma delas.