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Crítica
8 de Março de 2004   Ética

Aborto

Mary Anne Warren
Tradução de Tomás Magalhães Carneiro

1. Introdução

Será que as mulheres têm o direito de interromper uma gravidez não desejada? Ou estará o estado habilitado (senão mesmo eticamente obrigado) a proibir o aborto intencional? Deverão alguns abortos ser permitidos enquanto outros não? O estatuto legal do aborto decorre directamente do seu estatuto moral? Ou deverá o aborto ser legalizado, mesmo que seja algumas vezes, ou mesmo sempre, moralmente errado?

Estas questões suscitaram intensos debates ao longo das duas últimas décadas. Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas durante a segunda metade de século XIX. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Por vezes também se argumentava que os fetos são seres humanos a partir do momento da concepção e, como tal, o aborto intencional seria uma forma de homicídio. Agora que os avanços médicos tornaram os abortos, quando correctamente efectuados, mais seguros que os partos, o argumento clínico perdeu toda a força que alguma vez possa ter tido. Consequentemente, o ponto central dos argumentos anti-aborto mudou-se da segurança física das mulheres para o valor moral da vida do feto.

Quem defende o direito de as mulheres escolherem o aborto respondeu de diversas formas ao argumento anti-aborto. Examinarei três linhas de argumentação da perspectiva do direito de escolha: 1) que o aborto deve ser permitido pois a proibição do aborto leva a consequências altamente indesejáveis; 2) que as mulheres têm o direito moral de escolher o aborto; e 3) que os fetos ainda não são pessoas e, como tal, ainda não têm um direito substancial à vida.

2. Argumentos consequencialistas a favor do aborto

Se avaliarmos a moralidade das acções pelas suas consequências, podemos construir um forte argumento contra a proibição do aborto. Ao longo dos tempos as mulheres têm vindo a pagar um terrível preço pela ausência de métodos contraceptivos e abortivos seguros e legais. Obrigadas a dar à luz muitos filhos a intervalos excessivamente curtos, as mulheres eram frequentemente muito fracas e morriam jovens — um destino comum na maioria das sociedades anteriores ao século XX e, ainda hoje, em grande parte do Terceiro Mundo. A maternidade involuntária agrava a pobreza, aumenta as taxas de mortalidade nos bebés e nas crianças e obriga as famílias e os estados a grandes esforços económicos.

O aperfeiçoamento dos métodos de contracepção veio aliviar de alguma forma estes problemas. No entanto, nenhuma forma de contracepção é ainda 100% eficaz. Além disso, muitas mulheres não têm acesso a qualquer tipo de contracepção, seja por não poderem pagar, ou por não se encontrar disponível no sítio onde vivem ou por não estar disponível a menores sem a autorização dos pais. Em quase todo o mundo, trabalhar por um salário tornou-se uma necessidade para muitas mulheres, tanto solteiras como casadas. As mulheres que têm de ganhar o seu sustento sentem a necessidade de controlar a sua fertilidade. Sem esse controlo é-lhes praticamente impossível obter o grau de educação necessário para um emprego digno, ou é-lhes impossível combinar as responsabilidades da maternidade com as do seu emprego. Isto é uma verdade tanto para as sociedades socialistas como para as capitalistas, pois em ambos os sistemas económicos as mulheres têm de lutar com esta dupla responsabilidade de trabalhar em casa e fora de casa.

A contracepção e o aborto não garantem a autonomia reprodutiva pois muita gente não pode ter (ou adequadamente educar) qualquer criança, ou pelo menos tantas quantas desejariam; outras ainda são involuntariamente inférteis. No entanto, quer a contracepção quer o aborto são essenciais para as mulheres que queiram ter o mínimo de autonomia reprodutiva, algo que é perfeitamente possível nos dias de hoje.

A longo prazo, o acesso ao aborto é essencial para a saúde e sobrevivência não apenas das mulheres e das famílias, mas também dos próprios sistemas sociais e biológicos dos quais todos dependemos. Dada a insuficiência dos actuais métodos contraceptivos e a falta de acesso universal a esses métodos, se quisermos evitar um rápido crescimento populacional é necessário que se recorra a algumas práticas de aborto. A menos que as taxas de crescimento populacional diminuam nas sociedades empobrecidas em que estas continuam altas, a mal-nutrição e a fome crescerão para níveis ainda mais assustadores que os actuais. Até poderia haver comida suficiente para alimentar toda a população mundial, se ao menos aquela fosse mais equitativamente distribuída. Contudo, isto não permanecerá assim indefinidamente. A erosão dos solos e as alterações climatéricas causadas pela destruição das florestas e pelo consumo dos combustíveis fósseis ameaça reduzir a capacidade que a terra tem de produzir comida — talvez drasticamente — já na próxima geração.

Mesmo assim, os opositores do aborto negam que o aborto seja necessário para evitar tais consequências indesejáveis. Algumas gravidezes são causadas por violações ou incestos involuntários, mas a maior parte resulta aparentemente de comportamentos sexuais voluntários. Por conseguinte, os opositores do aborto afirmam frequentemente que as mulheres que procuram abortar se “recusam a assumir responsabilidades pelos seus próprios actos”. Segundo o seu ponto de vista, as mulheres deveriam evitar ter relações sexuais heterossexuais a menos que estivessem preparadas para levar a cabo uma gravidez daí resultante. Mas será esta uma exigência razoável?

As relações sexuais heterossexuais não são biologicamente necessárias para a sobrevivência ou para a saúde das mulheres — nem dos homens. Pelo contrário, as mulheres celibatárias ou homossexuais são menos vulneráveis a contrair cancro do colo do útero, SIDA, assim como outras doenças sexualmente transmissíveis. Nem sequer é claro que o sexo seja necessário para o bem-estar psicológico tanto das mulheres quanto dos homens, apesar de a crença em contrário ser generalizada. É, no entanto, algo que as mulheres acham extremamente agradável — um facto que é moralmente significativo para a maior parte das teorias consequencialistas. Além disso, faz parte do modo de vida escolhido pela maioria das mulheres em todo o lado. Em alguns sítios, as mulheres lésbicas estão a criar formas de vida alternativas que parecem servir melhor as suas necessidades. Mas para a maior parte das mulheres heterossexuais a escolha de um celibato permanente é muito difícil. Em grande parte do mundo é muito difícil a uma mulher solteira sustentar-se a si própria (quanto mais sustentar uma família); e as relações sexuais são normalmente um dos “deveres” da mulher casada.

Resumindo, o celibato permanente não é uma opção razoável para se impor à maioria das mulheres. E como todas as mulheres são potenciais vítimas de violação, mesmo as homossexuais ou celibatárias podem ter de enfrentar gravidezes não desejadas. Como tal, até que surja um método contraceptivo totalmente seguro e de confiança, disponível para todas as mulheres, a argumentação consequencialista a favor do aborto permanecerá forte. Mas estes argumentos não convencerão aqueles que rejeitam as teorias morais consequencialistas. Se o aborto for intrinsecamente mau, como muitos acreditam, nesse caso não poderá ser defendido como um meio de evitar consequências indesejadas. Como tal, devemos procurar saber se as mulheres têm o direito moral de abortar.

3. Aborto e direitos das mulheres

Nem todos os filósofos morais acreditam na existência de direitos morais. Como tal, é importante que se diga algo acerca do que são os direitos morais; na secção 8 direi algo mais acerca da sua importância.

Os direitos não são entidades misteriosas que descobrimos na natureza; não são, na verdade, entidades de espécie alguma. Dizer que as pessoas têm o direito à vida é dizer, grosso modo, que ninguém deve ser morto deliberadamente ou privado do necessário para viver, a não ser que a única alternativa seja um mal muito maior. Os direitos não são absolutos, mas também não podem ser desprezados em favor de um qualquer bem aparentemente maior. Por exemplo, podemos matar em legítima defesa quando não existe outra hipótese de evitar sermos mortos ou gravemente feridos; mas não podemos matar outra pessoa simplesmente porque outros ganhariam alguma coisa com a sua morte.

Os direitos morais básicos são aqueles direitos que todas as pessoas têm, em contraste com os direitos que dependem de circunstâncias particulares, como por exemplo as promessas ou os contractos legais. Normalmente consideram-se direitos morais básicos o direito à vida, à liberdade, à autodeterminação, e o direito a não ser maltratado fisicamente. A proibição do aborto parece ir contra todos estes direitos morais básicos. A vida das mulheres é posta em perigo de pelo menos duas maneiras. Onde o aborto é ilegal, as mulheres escolhem frequentemente abortar de modo ilegal e inseguro; a Organização Mundial de Saúde estima que mais de 200 000 mulheres morrem todos os anos devido a estes abortos ilegais. Muitas outras morrem devido a partos involuntários, quando não encontram onde abortar, ou quando são pressionadas a não o fazer. É claro que os partos voluntários também acarretam um certo risco de morte; mas na ausência de qualquer tipo de coerção não existe violação do direito à vida da mulher.

A proibição do aborto também viola o direito das mulheres à liberdade, à autodeterminação e à integridade física. Ser forçada a dar à luz uma criança não é apenas um “inconveniente”, como aqueles que se opõem ao aborto frequentemente afirmam. Levar uma gravidez até ao fim é uma tarefa árdua e arriscada, mesmo quando é voluntária. Certamente que muitas mulheres desfrutam das suas gravidezes (pelo menos de grande parte destas); mas para aquelas que permanecem grávidas contra a sua vontade a experiência deverá ser completamente miserável. E a gravidez e o parto involuntários são apenas o início dos sofrimentos causados pela proibição do aborto. As mulheres têm ou de ficar com a criança ou entregá-la para adopção. Manter a criança pode impossibilitar a mulher de prosseguir a sua carreira profissional ou impedi-la de estar à altura das suas outras obrigações familiares. Entregar a criança significa que a mulher terá de viver com o triste facto de saber que tem um filho ou uma filha do qual não pode cuidar e, muitas vezes, nem sequer saber se está vivo e de boa saúde. Vários estudos sobre mulheres que entregaram os seus filhos para adopção demonstram que, para a maioria, a separação dos seus filhos é a causa de um sofrimento profundo e duradouro.

Mesmo que aceitemos que os fetos têm direito à vida, será difícil justificar a imposição de tantos sofrimentos a mulheres que não estão dispostas a suportá-los para salvaguarda da vida fetal. Como assinalou Judith Thomson no seu muito discutido artigo de 1971, “Uma Defesa do Aborto”, em nenhum outro caso a lei obriga os indivíduos (que não foram condenados por nenhum crime) a sacrificar a sua liberdade, autodeterminação e integridade física por forma a preservarem a vida de outros. Talvez um caso análogo ao do parto involuntário seja o recrutamento militar obrigatório. No entanto, tal comparação apenas moderadamente apoia a posição anti-aborto, dado que a justificabilidade do recrutamento militar obrigatório é discutível.

Segundo a opinião popular, principalmente nos Estados Unidos, a questão do aborto é frequentemente encarada como, pura e simplesmente, um “direito que as mulheres têm de controlar o seu corpo”. Se as mulheres têm o direito moral de abortar gravidezes não desejadas, nesse caso a lei não deve proibir o aborto. No entanto, os argumentos a favor deste direito não resolvem totalmente a questão moral do aborto. Pois uma coisa é ter um direito, outra é o exercício desse direito numa circunstância particular ser moralmente justificável. Se os fetos têm igual e total direito à vida, então nesse caso o direito que as mulheres têm em abortar apenas deverá ser exercido em circunstâncias extremas. E talvez devamos ainda perguntar se os seres humanos férteis — de qualquer um dos sexos — têm direito a ter relações sexuais quando não estão dispostos a ter uma criança e assumir as responsabilidades por ela. Se as actividades heterossexuais comuns custam a vida de milhões de “pessoas” inocentes (ou seja, fetos abortados), não deveríamos pelo menos tentar desistir dessas actividades? Por outro lado, se os fetos ainda não tiverem direito substancial à vida, nesse caso o aborto não será tão difícil de justificar.

4. Questões acerca do estatuto moral dos fetos

Em que altura do desenvolvimento de um ser humano é que ele ou ela começam a ter pleno direito à vida? A maior parte dos sistema legais contemporâneos tratam o nascimento como o ponto em que uma nova pessoa, no sentido legal, começa a existir. Como tal, o infanticídio é considerado uma forma de homicídio, enquanto que o aborto — mesmo onde é proibido — normalmente não. No entanto, à primeira vista, o nascimento parece um critério de estatuto moral totalmente arbitrário. Por que razão os seres humanos obtêm todos seus direitos morais básicos quando nascem e não numa qualquer outra altura, anterior ou posterior?

Muitos autores procuraram estabelecer um critério universal do estatuto moral, através do qual se distinguiriam as entidades que têm plenos direitos morais das que não têm quaisquer direitos morais, ou menos e diferentes direitos. Mesmo aqueles que preferem não falar de direitos morais podem sentir a necessidade de um critério de estatuto moral universalmente aplicável. Por exemplo, os utilitaristas precisam de saber quais as entidades que têm interesses que devem ser considerados nos cálculos de utilidade moral, enquanto os deontologistas kantianos precisam de saber o que tratar como fim em si mesmo e não simplesmente como meio para atingir determinado fim. Foram propostos muitos critérios de estatuto moral. Os mais comuns incluem a vida, a senciência (ter a capacidade de experiências, incluindo a de dor), a humanidade genética (identificação biológica à espécie Homo sapiens) e a personalidade (que será definida mais à frente).

Como escolher um de entre estes critérios de estatuto moral em conflito? Duas coisas são bem claras. Primeiro, não devemos encarar a selecção de um critério de estatuto moral como um simples caso de preferência pessoal. Os racistas, por exemplo, não têm o direito de reconhecer direitos morais somente aos membros do seu grupo racial, dado que nunca foram capazes de provar que os membros das raças “inferiores” carecem de uma qualquer característica considerada relevante para a atribuição de estatuto moral. Segundo, uma teoria do estatuto moral deve proporcionar uma descrição plausível do estatuto moral não apenas dos seres humanos, mas também dos animais, das plantas, dos computadores, de possíveis formas de vida extraterrestre e de tudo o mais que possa surgir. Irei argumentar que a vida, a senciência e a personalidade são todas elas relevantes para o estatuto moral, ainda que não da mesma maneira. Tomemos em consideração cada um destes critérios sucessivamente, começando pelo mais básico, ou seja, pela vida biológica.

5. A ética de “respeito pela vida”

Albert Schweitzer defendeu uma ética de respeito para todas as criaturas vivas. Segundo ele todos os organismos, dos micróbios aos seres humanos, têm uma “vontade de viver”. Como tal, afirma, qualquer pessoa que tenha “o mínimo de sensibilidade moral considerará natural interessar-se pelo destino de todas as criaturas vivas”. Schweitzer poderá ter errado ao afirmar que todas as criaturas vivas têm uma vontade de viver. A vontade é mais facilmente explicada em termos de uma faculdade que requer pelo menos algumas capacidades de pensamento e que, por isso mesmo, é pouco provável que exista em organismos simples sem sistema nervoso central. Talvez a pretensão de que todos as criaturas vivas partilham uma vontade de viver seja uma afirmação metafórica do facto de os organismos estarem teleologicamente organizados, de tal modo que geralmente actuam de modo a promover a sua própria sobrevivência ou da sua espécie. Mas por que razão deverá este facto levar-nos a sentir respeito por todas as formas de vida?

Na minha opinião, a ética de respeito pela vida retira a sua força de preocupações ecológicas e estéticas. A destruição de criaturas vivas danifica frequentemente aquilo que Aldo Leopold chamou a “integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica”. Proteger a comunidade biótica de danos desnecessários é um imperativo moral, não apenas para o bem da humanidade, mas também porque o mundo natural merece ser preservado intacto.

O respeito pela vida sugere que, sendo as outras criaturas iguais, é sempre melhor evitar matar uma criatura viva. Mas Schweitzer tinha a noção que nem todas as mortes podem ser evitadas. Defendia que nunca se deveria matar sem uma boa razão e certamente que nunca por desporto ou diversão. Assim, de uma ética de respeito por toda a vida não se segue necessariamente que o aborto seja moralmente errado. Os fetos humanos são criaturas vivas, assim como os óvulos não fecundados e os espermatozóides. Todavia, muitos dos abortos podem ser entendidos como um matar “compelido por uma necessidade compulsiva”.

6. Humanidade genética

Os opositores do aborto dirão que é errado abortar não apenas porque os fetos humanos estão vivos, mas porque são humanos. No entanto, por que razão deveremos nós acreditar que a destruição de um organismo humano vivo é sempre moralmente pior que a destruição de um organismo de outra espécie qualquer? A pertença a uma espécie biológica em particular não parece, em si, um factor mais relevante para o estatuto moral que a pertença a uma raça ou sexo em particular.

É um acidente da evolução e da história que toda a gente a quem actualmente reconhecemos plenos direitos morais pertença a uma única espécie biológica. As “pessoas” do planeta Terra poderiam muito bem ter pertencido a muitas outras espécies diferentes — e na verdade talvez pertençam. É bem possível que alguns animais não-humanos, tais como os golfinhos, as baleias e os grandes símios, tenham suficientes capacidades “humanas” para serem correctamente considerados pessoas — ou seja, seres capazes de raciocínio, consciência, relacionamento social e reciprocidade moral. Alguns filósofos contemporâneos consideram que (alguns) animais não-humanos têm essencialmente os mesmo direitos morais básicos que as pessoas humanas. Quer estejam certos ou errados, é sem dúvida parcialmente verdade que qualquer estatuto moral superior atribuído aos membros da nossa própria espécie deve ser justificado em termos de diferenças moralmente significativas entre os seres humanos e as outras criaturas vivas. Defender que a espécie por si só nos fornece a base para um estatuto moral superior é arbitrário e vão.

7. O critério da senciência

Alguns filósofos defendem que a senciência é o critério primordial no que se refere à atribuição de estatuto moral. A senciência é a capacidade de ter experiências — por exemplo, experiências visuais, auditivas, olfactivas, ou outras experiências perceptivas. No entanto, a capacidade de sentir prazer e dor parece particularmente pertinente para o estatuto moral. É um postulado aceite pelas éticas utilitaristas que o prazer é intrinsecamente bom e a dor intrinsecamente má. Na verdade, a capacidade de sentir dor é frequentemente uma mais-valia para o organismo, habilitando-o a evitar ferimentos ou a sua própria destruição. Por outro lado, a longo prazo, alguns prazeres podem ser prejudiciais para o organismo. Não obstante, podemos dizer que os seres sencientes têm um interesse basilar em sentir prazer e em evitar a dor. O respeito por este interesse fundamental é o cerne das éticas utilitaristas.

O critério da senciência sugere que, em igualdade de circunstâncias, é moralmente pior matar um organismo senciente que um organismo não senciente. A morte de um ser senciente, mesmo quando indolor, priva-o de quaisquer experiências agradáveis que pudesse vir a desfrutar no futuro. Assim, a morte é tida como um infortúnio maior para esse ser do que para um ser não senciente.

Mas como podemos saber quais são os organismos vivos sencientes? Bem, quanto a isso, como podemos saber que os seres não vivos, tais como as rochas ou os rios, não são sencientes? Se esse conhecimento requer a absoluta impossibilidade de erro, então provavelmente nunca saberemos a resposta. Mas aquilo que de facto sabemos indica claramente que a senciência requer um sistema nervoso central funcional — que está ausente nas rochas, nas plantas e nos microorganismos simples. Esse sistema nervoso central também está ausente nos fetos com poucas semanas. Muitos neurofisiólogos acreditam que os fetos humanos normais começam a ter uma certa senciência rudimentar pelo segundo trimestre da gravidez. Antes dessa fase, os seus cérebros e órgãos sensoriais estão demasiado subdesenvolvidos para permitirem a ocorrência de sensações. As provas comportamentais apontam na mesma direcção. No fim do primeiro trimestre o feto pode já ter alguns reflexos inconscientes, mas ainda não responde ao seu ambiente de uma forma que sugira sensibilidade. No entanto, no terceiro trimestre algumas partes do cérebro do feto estão já funcionais e o feto pode reagir a barulhos, luz, pressão, movimento e outros estímulos sensíveis.

O critério da senciência apoia a crença comum de que o aborto tardio é mais difícil de justificar que o aborto feito ainda no inicio da gravidez. Ao contrário do feto pré-senciente, um feto no terceiro trimestre da gravidez é já um ser — ou seja, já é um centro de sensações. Se for morto, pode sentir dor. Além disso, a sua morte (como a de qualquer ser senciente) será o fim de uma corrente de sensações, algumas das quais poderão ter sido agradáveis. Na realidade, o uso deste critério sugere que o aborto não coloca qualquer questão moral séria quando é efectuado cedo, ao menos no que diz respeito ao impacto no feto. Enquanto organismo vivo mas não senciente, o feto no primeiro trimestre ainda não é um ser com interesse numa vida continuada. Como o óvulo não fecundado, pode ter o potencial de se tornar um ser senciente. Mas isto apenas significa que tem o potencial de se tornar num ser com interesse numa vida continuada, não significa que já tenha esse interesse.

Se por um lado o critério da sensibilidade implica que o aborto tardio é mais difícil de justificar que o aborto nas primeiras semanas da gravidez, tal não significa que o aborto tardio seja tão difícil de justificar quanto o homicídio. O princípio de respeito pelos interesses dos seres sencientes não implica que todos os seres sencientes tenham um igual direito à vida. Para vermos por que isto é assim temos de pensar um pouco mais no alcance deste princípio.

A maior parte dos animais vertebrados adultos (mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes) são claramente sencientes. É também bastante provável que muitos animais invertebrados, tais como os artrópodes (ou seja, insectos, aranhas e caranguejos), sejam sencientes. Pois também eles têm órgãos sensoriais, sistemas nervosos e comportam-se frequentemente como se pudessem ver, ouvir e sentir bastante bem. Se a senciência é o critério de estatuto moral, nesse caso nem sequer uma mosca deveria ser morta sem uma boa razão.

Mas o que conta como um motivo suficientemente bom para matar uma criatura viva cuja principal reivindicação para o seu estatuto moral é a sua provável senciência? Os utilitaristas geralmente defendem que os actos são moralmente errados se aumentarem a quantidade total de dor ou sofrimento existentes no mundo (sem que esse aumento de dor seja compensado com um aumento da quantidade total de prazer ou felicidade), ou vice-versa. Mas a morte de um ser senciente nem sempre tem tais consequências adversas. Em qualquer ambiente há espaço para apenas um número finito de organismos de uma determinada espécie. Quando um coelho é morto (de um modo mais ou menos doloroso) é provável que outro coelho tome o seu lugar, portanto a quantidade total de “felicidade coelhar” não diminui. Além disso, os coelhos, como muitas outras espécies que se reproduzem rapidamente, têm de ser caçadas por outras espécies para que a saúde do sistema biológico seja preservada.

Assim, sob a perspectiva utilitarista, a morte de seres sencientes não é sempre um mal. Contudo, seria moralmente ofensivo sugerir que as pessoas podem ser mortas simplesmente porque existem em grande número e, como tal, perturbam o meio ambiente. Se matar pessoas é mais difícil de justificar do que matar coelhos — como até os mais radicais defensores dos direitos dos animais acreditam — deve ser porque as pessoas têm um estatuto moral que não se baseia simplesmente na sensibilidade. No próximo capítulo analisaremos alguns dos possíveis argumentos deste ponto de vista.

8. Personalidade e direitos morais

Uma vez ultrapassada a infância, os seres humanos possuem não apenas a capacidade de sentir, mas também capacidades mentais “superiores”, tais como consciência de si e racionalidade. São ainda seres altamente sociais, capazes de — excepto em casos patológicos — amar, educar os filhos, cooperar e responsabilizarem-se moralmente (o que implica a capacidade de orientarem as suas acções através de ideais e princípios morais). Talvez estas capacidades sociais e mentais nos possam dar razões sólidas para atribuirmos às pessoas um direito à vida mais forte do que aos outros seres sencientes.

Um argumento a favor desta conclusão diz-nos que estas capacidades distintivas das pessoas permitem-lhes valorizar as suas próprias vidas e as dos outros membros da sua comunidade de um modo que os restantes animais não fazem. As pessoas são os únicos seres que planeiam o seu futuro distante e também os únicos que vivem frequentemente assombrados pelo medo de uma morte prematura. Talvez isto signifique que uma pessoa valoriza mais a sua vida que um ser senciente que não é uma pessoa. Se assim for, matar uma pessoa é um mal moral muito maior que matar um ser senciente que não é uma pessoa. Mas também pode acontecer que a ausência de medo do futuro torne a vida dos seres sencientes que não são pessoas mais agradável e mais valiosa para eles, que as nossas vidas para nós. Como tal, temos de procurar noutro lado uma explicação racional para o estatuto moral superior que a maioria das pessoas (humanas) atribuem umas às outras.

Falar dos direitos morais é um modo de falar acerca de como devemos agir. É evidente que somente as pessoas compreendem a ideia de direito moral, mas isso não nos torna “melhores” que os outros seres sencientes. No entanto, dá-nos algumas razões convincentes para nos tratarmos uns aos outros como semelhantes morais, com direitos básicos que não podem ser desprezados por razões estritamente utilitaristas. Se não pudéssemos acreditar que os outros não estão dispostos a assassinar-nos sempre que julguem que da nossa morte poderá resultar um qualquer tipo de bem, as relações sociais tornar-se-iam incomensuravelmente mais difíceis e as vidas de todos, com excepção dos mais poderosos, empobreceriam imenso.

Uma pessoa moralmente sensível respeitará todas as formas de vida e procurará não infligir dor ou matar sem necessidade outros seres sencientes. No entanto, respeitará os direitos morais básicos de outras pessoas como ela, não apenas porque estão vivas e são sencientes, mas também porque pode esperar e exigir que demonstrem em relação a ela o mesmo respeito. Os ratos e os mosquitos não são capazes desta reciprocidade moral — pelo menos não nos seus relacionamentos com os seres humanos. Quando os seus interesses entram em conflito com os nossos, não podemos esperar que um argumento moral os convença a aceitar um compromisso razoável. Assim, é quase sempre impossível conceder-lhes um estatuto moral igual ao nosso. Mesmo a religião Jaíne na Índia, que considera o acto de matar qualquer ser um obstáculo à iluminação espiritual, não exige que tal acto seja evitado em qualquer circunstância, exceptuando nos casos daqueles que professaram votos religiosos especiais.

Se a capacidade de reciprocidade moral é essencial para a personalidade, e se a personalidade é o critério para a igualdade moral, então os fetos humanos não satisfazem esse critério. Os fetos sencientes estão mais próximos de serem pessoas do que os óvulos fertilizados ou do que os fetos com poucas semanas e, à custa disso, poderão ganhar um certo estatuto moral. No entanto, ainda não são seres com raciocínio e consciência de si, capazes de amor e reciprocidade moral. Estes factos apoiam o ponto de vista de que até mesmo o aborto tardio não equivale a homicídio. Com base nisto, podemos razoavelmente concluir que o aborto de fetos sencientes pode por vezes ser justificado por razões que não poderiam nunca justificar a morte de uma pessoa. Por exemplo, o aborto tardio pode por vezes encontrar justificação numa severa anomalia do feto, ou no perigo que a gravidez acarreta para a mulher, ou quaisquer outros sofrimentos pessoais.

Infelizmente esta discussão não pode terminar aqui. A personalidade é importante como um critério de igualdade moral inclusivo: qualquer teoria que negue um estatuto moral igual a certas pessoas deve ser rejeitado. No entanto, a personalidade parece de alguma forma menos credível enquanto critério exclusivo, uma vez que parece excluir crianças e indivíduos com deficiências mentais que não tenham as capacidades mentais e sociais características das pessoas. Além disso — como sublinham os opositores do aborto — a história demonstra que é com muita facilidade que os grupos dominantes racionalizam a opressão declarando, com efeito, que as pessoas oprimidas não são realmente pessoas, devido a uma suposta deficiência mental ou moral.

Tendo em conta isto, poderá ser sensato adoptar a teoria segundo a qual todos os seres humanos sencientes têm direitos morais básicos plenos e iguais. (Para evitarmos uma atitude “especista”, podemos conceder o mesmo estatuto moral aos seres sencientes de qualquer outra espécie cujos membros adultos normais acreditamos serem pessoas.) Segundo esta teoria, desde que um indivíduo seja ao mesmo tempo humano e senciente, a sua igualdade moral não pode ser questionada. Porém, existe uma objecção quanto à atribuição de estatuto moral igual aos fetos, mesmo no que concerne aos fetos sencientes: é impossível na prática atribuir direitos morais iguais aos fetos sem se negar esses mesmo direitos às mulheres.

9. O nascimento tem importância moral?

Existem muitos casos em que os direitos morais de diferentes indivíduos entram aparentemente em conflito. Por regra, tais conflitos não podem ser resolvidos de um modo justo negando-se simplesmente estatuto moral a uma das partes. A gravidez, porém, é um caso à parte. Devido à relação biológica única entre os dois, a atribuição de um estatuto moral e legal ao feto idêntico ao da mulher tem consequências perversas para os direitos básicos desta.

Uma das consequências é que o aborto “a pedido” não seria permitido. Se a sensibilidade é o critério, então o aborto só seria permitido no primeiro trimestre. Há quem diga que este é um compromisso razoável, uma vez que dá tempo suficiente à mulher para descobrir que está grávida e decidir se quer ou não abortar. No entanto, certos problemas relativos a uma má formação do feto, à saúde da mulher, ou à sua situação pessoal ou económica, por vezes só aparecem ou se agravam numa altura mais avançada da gravidez. Se se partir do princípio que os fetos têm os mesmo direitos morais do que os seres humanos já nascidos, então a mulher será frequentemente pressionada a continuar grávida mesmo tendo em conta os riscos para a sua vida, saúde, ou bem-estar pessoal. Poderá mesmo ser forçada a submeter-se, contra a sua vontade, a procedimentos médicos perigosos e agressivos (uma cesariana, por exemplo) sempre que outros considerem que tal seria benéfico para o feto. (Inúmeros casos desses já ocorreram nos Estados Unidos.) Assim, a atribuição de plenos direitos morais básicos aos fetos ameaça os direitos básicos da mulher.

Mesmo assim, tendo em conta estes conflitos entre os direitos do feto e os direitos das mulheres podemos sempre perguntar por que motivo deverão ser os direitos da mulher a prevalecer. Por que não favorecer antes os fetos, seja porque são mais indefesos, ou porque têm uma maior esperança de vida? Ou por que não procurar um compromisso entre direitos fetais e direitos maternais, com iguais concessões de ambos os lados? Se os fetos fossem já pessoas, no sentido acima descrito, seria arbitrário favorecer os direitos das mulheres sobre os deles. Mas é difícil afirmar que quer os fetos quer os recém-nascidos sejam pessoas nesse sentido, visto que as capacidades de raciocínio, consciência de si e reciprocidade moral e social parecem desenvolver-se apenas depois do nascimento.

Por que razão, então, devemos nós tratar o nascimento, em vez de algum outro ponto posterior, como o limiar da igualdade moral? A principal razão é que o nascimento torna possível a atribuição de direitos morais básicos à criança sem que se viole os direitos morais básicos de outrem. Em muitos países, é possível encontrar boas famílias de adopção para as crianças cujos pais biológicos não têm condições ou não os querem educar. Uma vez que todos desejamos vigorosamente proteger as crianças, e como hoje em dia podemos fazê-lo sem impor demasiados sofrimentos às mulheres e às famílias, não existe qualquer razão para não o fazermos. Mas os fetos são diferentes: considerá-los iguais seria considerar as mulheres desiguais. Sendo a outra criatura igual, é pior negar direitos morais básicos a seres que claramente ainda não são pessoas. Mas visto que as mulheres são pessoas e os fetos não, em caso de conflito, devemos procurar respeitar primeiro os direitos das mulheres.

10. Personalidade potencial

Alguns filósofos afirmam que, apesar de os fetos não serem pessoas, o seu potencial para se tornarem pessoas dá-lhes os mesmo direitos morais básicos. Este argumento não é aceitável, uma vez que em nenhum outro caso tratamos o potencial de atingir certos direitos como se implicasse, por si, esses mesmos direitos. Por exemplo, todas as crianças nascidas nos Estado Unidos são um eleitor em potência, mas ninguém com menos de dezoito anos tem direito a votar nesse país. Além disso, o argumento da potencialidade prova demasiado. Se o feto é uma pessoa em potência, então também o é um óvulo humano não fecundado, juntamente com a quantidade de esperma necessária para efectuar a fecundação; no entanto, muito pouca gente concordará em atribuir a estas entidades vivas pleno estatuto moral.

Mesmo assim, o argumento da personalidade potencial do feto recusa-se a desaparecer. Talvez porque essa potencialidade inerente aos fetos é frequentemente uma forte razão para valorizar e proteger os fetos. A partir do momento em que uma mulher grávida se comprometa a cuidar do feto, ela e aqueles que lhe estão próximos seguramente que terão tendência a pensar no feto como um “bebé por nascer”, e a valorizá-lo pelo seu potencial. O potencial do feto encontra-se não só no seu ADN, mas também nesse compromisso maternal (e paternal). A partir do momento em que a mulher se empenha na sua gravidez, é bom que ela valorize o feto e proteja o seu potencial — como a maioria das mulheres o faz, sem qualquer tipo de coerção legal. Mas está errado exigir a uma mulher que complete uma gravidez quando esta não pode ou não quer levar a cabo esse enorme compromisso.

11. Sumário e conclusão

O aborto é muitas vezes encarado como se fosse uma questão de direitos apenas do feto; e outras vezes como se fosse uma questão de direitos apenas da mulher. A proibição de um aborto seguro e legal viola os direitos da mulher à vida, à liberdade e à integridade física. Se o feto tivesse o mesmo direito à vida do que uma pessoa, o aborto seria, ainda assim, um acontecimento trágico e de difícil justificação, excepto nos casos mais extremos. Como tal, mesmo os defensores dos direitos das mulheres devem preocupar-se com o estatuto moral dos fetos.

Nem mesmo uma ética de respeito por todas as formas de vida exclui toda a morte intencional. O acto de matar requer sempre uma justificação, e é um tanto ou quanto mais difícil justificar a destruição deliberada de um ser senciente que a de uma criatura viva que não é (ainda) um centro de sensações; mas os seres sencientes não têm todos os mesmos direitos. A atribuição de um estatuto moral aos fetos idêntico ao das mulheres ameaça os direitos morais mais básicos destas. Ao contrário dos fetos, as mulheres já são pessoas. Elas não devem ser tratadas como algo menos simplesmente porque estão grávidas. É por isso que o aborto não deve ser proibido, e é também por isso que o nascimento, e não qualquer outro ponto anterior, marca o começo do estatuto moral pleno.

Mary Anne Warren
A Companion To Ethics, org. por Peter Singer (Blackwell, 1993, pp. 303-314)

Referências

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ISSN 1749-8457