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27 de Setembro de 2015   Epistemologia

O problema do cepticismo

Álvaro Nunes

Os argumentos dos cépticos

O cepticismo, na sua versão mais extrema, é a ideia de que o conhecimento não é possível. Os cépticos podem apresentar o seguinte argumento a favor da sua posição:

Se S sabe que P, então não é possível que S esteja enganado acerca de P.
É possível que S esteja enganado acerca de P.
Portanto, S não sabe que P.

Este argumento é um modus tollens e tem, por isso, forma válida. Se as premissas forem verdadeiras, o argumento é sólido e a conclusão verdadeira. A primeira premissa é meramente a expressão da condição que uma proposição tem de estar justificada de modo a garantir a sua verdade para que possa ser conhecimento. Admitamos, por isso, que é verdadeira. E a segunda? Como prova o céptico esta premissa? É possível defendê-la apelando, por exemplo, aos erros e ilusões dos sentidos ou às limitações da memória e da razão. Mas também é possível defendê-la com um argumento mais geral que vise mostrar que nunca podemos justificar as nossas crenças e, portanto, que é sempre possível que estejamos enganados acerca delas.

Para vermos como, pensemos numa qualquer afirmação de cuja verdade julguemos estar absolutamente certos, como, por exemplo, que “A Lua é o único satélite natural da Terra”, ou que “Portugal situa-se na Europa”. A questão crucial é esta: que justificação temos para estarmos certos da sua verdade? Temos de ter uma justificação, claro. Caso contrário essas crenças não constituem conhecimento. Podemos justificar as nossas crenças dizendo, por exemplo, que as aprendemos na escola com os nossos professores de Geografia ou de Ciências da Natureza, que, dada a sua formação, são especialistas no assunto. O que fizemos, deste modo, foi justificar uma crença com outra crença. Mas isto, como é óbvio, levanta uma outra questão: que justificação temos para esta nova crença? Esta crença está, afinal de contas, numa posição similar à primeira. Se essa precisa de uma justificação, porque sem ela não constitui conhecimento, o mesmo se passa com esta. E, evidentemente, se esta não constitui conhecimento, também não pode justificar a primeira. Uma forma de justificar esta segunda crença é, claro, recorrer a uma outra da qual ela possa derivar. É fácil ver, no entanto, que o mesmo problema se colocará em relação a essa nova crença. Também ela precisará de uma justificação. Cada afirmação precisa de uma justificação e a justificação de uma nova justificação, numa regressão sem fim. Desse modo, parece, nem a primeira nem qualquer das outras crenças está justificada.

Há alguma forma de evitar esta consequência? Uma possibilidade é parar numa dada crença e não recuar mais na cadeia das justificações, deixando essa crença sem qualquer justificação. A outra é recuar nas nossas justificações até, eventualmente, voltarmos a uma crença que já usámos como justificação, raciocinando em círculo. Por que razão devemos acreditar no professor de Geografia ou de Ciências da Natureza? Porque o que ele diz está de acordo com o manual da disciplina. E por que devemos acreditar nesse manual? Porque foi escrito por especialistas. E como sabemos que são especialistas? Porque se não o fossem, não escreveriam manuais.

Estas três possibilidades em conjunto constituem o chamado trilema de Agripa, do nome do céptico grego do século I a quem a tradição atribui a sua formulação. De acordo com este trilema, quando pretendemos justificar uma crença por intermédio de outras crenças estão disponíveis apenas três alternativas:

  1. Remontar infinitamente na cadeia de justificações;
  2. Raciocinar em círculo;
  3. Parar numa crença não suportada.

Nenhuma destas três possibilidades, afirmam os cépticos, é melhor que a outra. Parar arbitrariamente na cadeia de justificações e raciocinar em círculo não é uma forma mais apropriada de justificar as nossas crenças do que regredir ao infinito. E como não existe outra alternativa, eles concluem que não é possível justificar nenhuma das nossas crenças e que, portanto, o conhecimento não existe.

Respostas aos cépticos

O argumento dos cépticos, apesar da sua aparente força, está em conflito com as nossas crenças de senso comum. Pensamos e agimos com base na convicção de que temos conhecimento. É, portanto, natural que tenham surgido respostas ao trilema de Agripa com o objectivo de mostrar que, ao contrário do que esse trilema pretende, o conhecimento existe. São três as principais respostas.

A primeira resposta que vamos considerar é o infinitismo. O infinitismo é o ponto de vista segundo o qual é possível justificar as nossas crenças por intermédio de cadeias infinitas de crenças. Os defensores do infinitismo recusam, portanto, que a primeira opção do trilema de Agripa não permita justificar as nossas crenças. Embora tenha alguns defensores recentes, esta posição é, de todas, a menos popular e historicamente menos importante. Com efeito, não se vê como uma cadeia infinita de crenças pode justificar uma crença. Por mais que remontemos nas crenças há sempre uma crença que não está justificada e que carece de justificação.

Uma segunda tentativa de resposta é o coerentismo. Os defensores desta tese recusam que não seja possível justificar uma crença por uma cadeia circular de justificações, como pretende o trilema de Agripa. Segundo eles, as nossas crenças constituem uma espécie de rede ou de teia, que se for suficientemente vasta, permite às crenças que a constituem suportarem-se mutuamente. Deste ponto de vista, uma crença está justificada se se integra coerentemente, isto é, sem conflito, nesse conjunto de crenças que constitui a rede. Uma objecção clássica ao coerentismo é, no entanto, que é possível ter um conjunto coerente de crenças falsas, como acontece, por exemplo, com as pessoas que sofrem de paranóia ou na maioria das teorias da conspiração.

A última opção, e a mais popular, é o fundacionismo. O fundacionismo recusa a conclusão que os cépticos tiram da terceira possibilidade do trilema de Agripa e, portanto, deste ponto de vista, o facto de uma crença não ter suporte não é impedimento a que justifique outras crenças. Para o fundacionismo, as nossas crenças são de dois tipos: fundacionais (ou básicas) e não-fundacionais (ou não-básicas). As crenças fundacionais são crenças que 1) se autojustificam ou que 2) não precisam de justificação, ou que 3) são justificadas, não por outras crenças, mas, por exemplo, pela experiência, que não precisa ela própria de justificação. Seja como for que as crenças fundacionais sejam concebidas, a ideia é sempre que uma crença não-fundacional, isto é, uma crença que carece de justificação e que tem de ser justificada por outras crenças, é justificada, directa ou indirectamente, por uma crença fundacional, para a qual o problema da justificação não se põe, tal como num edifício os pisos superiores são fundados pelos inferiores até se chegar às fundações, que não estão, elas próprias, fundadas em nada.

Recordemos a objecção dos cépticos à concepção de conhecimento segundo a qual uma crença tem de ser justificada de modo a garantir a sua verdade. Segundo essa objecção, esta concepção é tão exigente que nenhuma crença a pode satisfazer, pelo que não há conhecimento. Os cépticos suportam esta posição com a afirmação de que é sempre possível as nossas crenças serem falsas. Esta afirmação, por sua vez, é suportada com o trilema de Agripa.

Que podem os fundacionistas responder a esta objecção? Os fundacionistas podem responder que há certas crenças ― as crenças fundacionais ― que são autoevidentes, ou não precisam de justificação ou são justificadas pela experiência, o que garante a sua verdade e a verdade de todas as crenças não-fundacionais que são justificadas por seu intermédio. Isto é, os fundacionistas podem responder que o conhecimento existe porque podemos justificar as nossas crenças por intermédio de outras crenças que, por serem fundacionais, é impossível serem falsas. A teoria do conhecimento de Descartes constitui ainda hoje a melhor tentativa de explicar o conhecimento com base nesta associação entre a concepção de conhecimento segundo a qual uma crença tem de estar justificada de forma a garantir a sua verdade e o fundacionismo.

Álvaro Nunes

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ISSN 1749-8457