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10 de Fevereiro de 2001   Filosofia

O especialista instantâneo em filosofia

Jim Hankinson
Tradução de Desidério Murcho

Introdução: o que a filosofia é

Eis uma coisa que o leitor deve sempre evitar tentar explicar. Mas pode desejar ficar com duas coisas claras desde o início.

Em primeiro lugar, a filosofia não é um assunto — é uma actividade. Consequentemente, não se estuda: faz-se. É assim que os filósofos, pelo menos os da tradição anglo-saxónica (que por qualquer razão histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para pôr a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma questão de análise conceptual — ou seja, pensar sobre o pensamento. Por agora, limitemo-nos ao mais básico.

Isto é algo que no sentir de alguns filósofos é impossível, mas não há razão para o leitor lhes seguir o exemplo. Para o visitante casual que observa rapidamente a paisagem, a filosofia parece desconcertantemente difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o facto de os filósofos, salvo raras e honrosas excepções, acharem praticamente impossível usar uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo o português. Acontece até que quando um filósofo quer referir-se à Pessoa Comum (uma espécie que é improvável que ele tenha conhecido em primeira mão, apesar de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca dela), usa a expressão “o homem que apanha a carreira 45 para a Damaia”, aparentemente sem se dar conta de que já ninguém usa a palavra “carreira”, excepto para referir o percurso vicioso dos políticos, nem que a Damaia já não é também o exemplo ideal da mediocridade suburbana lisboeta.

A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo menos uma ténue compreensão do mais profundo alcance do vocabulário técnico, tal como é usado, de forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se preocupe. A competência linguística, tal como o segundo Wittgenstein teria dito (que não deve confundir-se, é claro, com o primeiro Wittgenstein, que não diria tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor não terá realmente de compreender o que quer dizer a maior parte disto, se é que quer dizer alguma coisa.

As vidas dos filósofos

A filosofia é um assunto (perdão, uma actividade) que tem uma história; e como progride tão pouco, se é que progride realmente alguma coisa, a sua história é, consequentemente, mais importante do que a história de outras disciplinas. O especialista instantâneo bem-sucedido tem de se equipar com um conhecimento prático desta história, se quiser singrar na charlatanice.

Para os propósitos deste livro, confinar-nos-emos quase exclusivamente à filosofia ocidental, essa admirável tradição que começou na Grécia no século VII a.C. Há uma boa razão para esta opção. A filosofia da tradição ocidental é um tipo de projecto muito diferente da filosofia oriental. Numa próxima secção daremos alguns conselhos sobre como ser apropriadamente evasivo acerca de temas como a Meditação, o Budismo, a Religião Indiana, as Pessoas com Cabeças Rapadas e Túnicas Amarelas Imundas, e outras ameaças sociais do género.

Portanto, esta secção contém factos mais ou menos interessantes sobre alguns filósofos mais ou menos famosos, factos esses de natureza tanto biográfica como filosófica, dispostos de maneira mais ou menos cronológica.

Os primeiros filósofos gregos são geralmente conhecidos por pré-socráticos, apesar de isto ser enganador: nem todos viveram antes de Sócrates, e, em qualquer caso, não constituíram uma escola coerente; na verdade, a maioria deles não constituíram sequer indivíduos coerentes.

Ninguém sabe por que começou a filosofia quando começou; o especialista instantâneo ambicioso com inclinações marxistas pode tentar oferecer uma explicação em termos de uma dialéctica inexorável de forças históricas, mas nós não o recomendamos. Uma característica notável de muitos pré-socráticos é a sua tentativa de reduzir os constituintes materiais do Universo a uma ou mais Substâncias básicas, tais como a Terra, o Ar, o Fogo, as Sardinhas, os Gorros de Lã Velhos, etc.

Tales de Mileto (c. 620–550 a.C.) foi o primeiro filósofo reconhecido. Poderão ter existido outros antes dele, mas ninguém sabe quem foram. Ele ficou conhecido principalmente por defender duas coisas:

1) Tudo é feito de Água; e
2) Os ímanes têm alma.

O leitor poderá pensar que não foi um princípio muito promissor.

Anaximandro (c. 610–550) pensava que tudo era feito do Apeiron, uma concepção que tem um certo encanto espúrio, até percebermos que não quer realmente dizer coisa alguma.

Anaxímenes (c. 570–510) aventurou-se corajosamente numa direcção completamente nova, apesar de não menos arbitrária, ao afirmar que na realidade tudo era feito de Ar, uma perspectiva talvez mais plausível na Grécia do que, por exemplo, no Barreiro.

Heraclito (c. 540–490) discordou, defendendo antes que tudo era feito de Fogo. Mas ele avançou um passo mais, afirmando que tudo estava num estado de fluxo e que tudo era idêntico ao seu oposto, acrescentando que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, e que não existe qualquer diferença entre o Caminho a Subir e o Caminho a Descer, o que mostra que nunca foi ao Bairro Alto numa sexta-feira à noite. Vale por vezes a pena referir de passagem (o que constitui sempre a melhor maneira de nos referirmos ao que quer que seja em filosofia) a “Metafísica de Heraclito”, para falar da sua doutrina do fluxo, desde que não tenhamos de explicar seja o que for. Heraclito era muito admirado por Hegel (q.v.), o que nos diz talvez mais sobre Hegel do que sobre Heraclito.

Pitágoras (c. 570–510), como qualquer aluno da primária sabe, inventou o triângulo rectângulo; na verdade foi mais longe, ao acreditar que tudo era feito de números. Acreditava também numa forma extrema de reincarnação, defendendo que uma larga gama de coisas improváveis, incluindo os arbustos e os feijões, têm alma, o que tornava a sua dieta bastante problemática, acabando por ser indirectamente responsável pela sua bizarra morte (q.v.).

Empédocles (c. 500–430), um notável médico e político siciliano do século V, completamente doido (veja-se Mortes para mais detalhes), pensava que tudo era feito de Terra, Ar, Fogo e Água, misturando-se ou separando-se tudo através do Amor e da Discórdia, ganhando cada um, à vez, a proeminência no ciclo do eterno retorno, espelhando assim o cosmos, em grande escala, o casamento suburbano típico.

Depois vêm os eleatas, Parménides (520–430) e Melisso (480–420), que foram ainda mais além. Em vez de afirmarem que tudo era na realidade feito de uma substância, defenderam antes que na realidade só havia uma única Coisa, grande, esférica, infinita, imóvel e imutável. Toda a aparência de variedade, movimento, separação entre objectos, etc., era uma Ilusão. Esta teoria extraordinariamente contra-intuitiva (por vezes conhecida por Monismo, da palavra grega “mono”, que quer dizer “dispositivo antiquado de gravação”) revelou-se surpreendentemente popular, sem dúvida por estar de acordo com a experiência que as pessoas têm com algumas instituições, como os Correios e a EDP.

O seu sucessor, Zenão (500–440), avançou um conjunto de argumentos paradoxais para mostrar que nada pode mover-se. Aquiles e a Tartaruga são ainda discutidos, tal como a Flecha: argumentou ele que esta não podia realmente mover-se, o que, a ser verdade, teria sido uma boa notícia para S. Sebastião. Os argumentos tratam de saber em grande parte se o Espaço e o Tempo são infinitamente divisíveis, ou se um deles, ou ambos, é feito, ou são feitos, de quanta indivisíveis — mencione isto para dar a Zenão um ar moderno; se lhe pedirem explicações, mude de assunto.

Os últimos dos pré-socráticos são os atomistas Demócrito (c. 450–360) e Leucipo (450–390). Diz-se por vezes que eles anteciparam a teoria atómica moderna. Isto é completamente falso, e o especialista instantâneo ganha alguns pontos ao dizê-lo, pela simples razão que o que há de crucial nos átomos democritianos é a sua indivisibilidade, ao passo que o que há de crucial nos átomos modernos é o facto de não serem indivisíveis. O leitor pode também fazer notar que Demócrito não gostava de sexo, apesar de não se saber se tal se devia a razões teóricas ou a algum infeliz revés pessoal.

É tudo quanto aos pré-socráticos; vamos agora ao próprio homem que lhes deu o nome, Sócrates (469-399). Sócrates não escreveu coisa alguma: dependemos de Platão no que respeita a qualquer informação sobre ele, e é uma vexata quaestio (uma boa expressão) saber até que ponto Platão reproduziu as ideias de Sócrates, ou se limitou unicamente a usar o seu nome. Não se deixe enredar nesta questão: uma boa manobra é afirmar, com um certo desdém arrogante, que o que conta é o conteúdo filosófico, e não a sua origem histórica.

Platão (427-347) acreditava que os objectos comuns do quotidiano, como as mesas e as cadeiras, eram meras cópias “fenoménicas” imperfeitas de Originais perfeitos que existiam no Céu para serem apreciados pelo intelecto, as chamadas Formas. Também há formas de itens abstractos tais como a Verdade, a Beleza, o Bem, o Amor, os Cheques Carecas, etc. Esta posição trouxe algumas dificuldades a Platão: se tudo o que vemos, sentimos, tocamos, etc., deve a sua existência a uma Forma Perfeitamente Boa, têm de haver Formas Perfeitamente Boas de Coisas Perfeitamente Horríveis. O próprio Platão menciona o cabelo, a lama e a sujidade; mas nós podemos pensar em exemplos muito melhores, tais como peúgas brancas com sapatos pretos, caramelos de Badajoz e galos de Barcelos.

Platão parece ser imensamente sobrestimado como filósofo; se não acredita em mim, veja o seguinte argumento tipicamente platónico, tirado do Livro II da República:

  1. Aquele que distingue as coisas com base no conhecimento (presumivelmente, em vez de ser com base no mero preconceito) é um filósofo;
  2. Os cães de guarda distinguem as coisas (neste caso, os visitantes) consoante os conhecem ou não (esta é uma verdade cara aos carteiros); ergo
  3. Todos os cães de guarda são filósofos.

Experimente usar de vez em quando este argumento, para ver como se sai.

Outra manobra útil de aproximação a Platão é argumentar uma das duas ideias seguintes:

  1. Que ele era um feminista;
  2. Que não era.

Ambas as afirmações podem ser sustentadas e acabar por revelar-se úteis (em ocasiões diferentes, claro). O indício para 1 é o facto de Platão afirmar no Livro 3 da República que as mulheres não devem ser discriminadas em questões de emprego unicamente por serem mulheres. A favor de 2 é o facto de, imediatamente a seguir, Platão comentar que uma vez que as mulheres são por natureza muito menos talentosas do que os homens, esta “liberalização” não faz de qualquer maneira diferença alguma.

Depois de Platão vem Aristóteles (382–322), por vezes conhecido como o Estagirita, que ao contrário do que pode parecer não é o embrião de um estagiário, mas um nativo de Estagira, na Macedónia. Foi aluno de Platão e esperava suceder-lhe como director da Academia. Sentiu-se, por isso, ultrapassado quando Espeusipo (não é necessário saber seja o que for sobre ele) ficou com o lugar, abandonando ofendido a Academia para fundar a sua própria escola, o Liceu — que não deve ser confundido com o lugar misterioso onde os nossos pais perderam a inocência.

Aristóteles era estupidamente brilhante. Desenvolveu a Lógica (na verdade, inventou-a), a Filosofia da Ciência (que também inventou), a Taxonomia Biológica (sim, também foi inventada por ele), a Ética, a Filosofia Política, a Semântica, a Estética, a Teoria da Retórica, a Cosmologia, a Meteorologia, a Dinâmica, a Hidrostática, a Teoria da Matemática e a Economia Doméstica. Não é aconselhável dizer seja o que for que não seja elogioso em relação a ele, mas o especialista instantâneo atrevido pode aventurar-se a lamentar a inclinação excessivamente Teleológica da sua Biologia, ou comentar que apesar de a sua teoria lógica ser um feito notável, ela foi no entanto, como é óbvio, ultrapassada pelos desenvolvimentos modernos devidos a Frege e Russell (q.v.). Mas tenha cuidado com estas afirmações, e nunca as produza se estiver a falar com um matemático, mesmo que este seja muito novo. Uma linha de abordagem muito mais segura consiste em depreciar moderadamente os aspectos mais caricatos da Biologia de Aristóteles, dos quais o seguinte argumento sobre a estrutura dos genitais das cobras é um exemplo:

As cobras não têm pénis porque não têm pernas; e não têm testículos por serem tão compridas. (De Generatione Animalum)

Aristóteles não oferece qualquer argumento para sustentar a sua primeira alegação, a não ser a suposição geral a que somos conduzidos de que caso contrário o órgão em causa seria penosamente arrastado pelo chão; mas a segunda deriva da sua teoria da reprodução. Para Aristóteles, o sémen não é produzido nos testículos, mas na espinal medula (os testículos funcionam aparentemente como uma espécie de sala de espera do esperma vagabundo); além disso, o sémen frio é estéril, e quanto mais tiver de viajar, mais arrefece (daí o facto conhecido, comenta ele, de os homens com pénis compridos serem estéreis). Assim, uma vez que as cobras são tão compridas, se o sémen parasse algures no caminho, as cobras seriam estéreis; mas as cobras não são estéreis; logo, não têm testículos. Este esplêndido argumento é um exemplo de Teleologia Excessiva, ou de uma explicação em termos de fins e objectivos, que neste caso põe na verdade tudo de pernas para o ar.

Depois de Aristóteles a filosofia fragmentou-se cada vez mais. Fundaram-se várias escolas rivais para complementar, e desancar, as já existentes Academia e Liceu. As grandes novidades do princípio do século III a.C. são os estóicos, os epicuristas e os cépticos.

Os estóicos acreditavam perversamente numa Providência Divina que tudo abarcava, apesar de todos os dados em contrário, tais como a ocorrência de desastres naturais, o triunfo das injustiças e a existência de hemorróidas. Crisipo, talvez o mais proeminente, e sem dúvida o mais palavroso dos estóicos, argumentou que as pulgas tinham sido criadas por um Providente Benevolente para não deixar as pessoas dormir de mais. Os estóicos contribuíram também com alguns desenvolvimentos importantes na teoria da lógica, o que lhes permitiu formular alguns tipos de argumentos que tinham escapado a Aristóteles. Mas o especialista instantâneo não deve preocupar-se muito com isso.

Os epicuristas, assim chamados em nome do seu fundador, Epicuro (342–270) defendiam que o nosso Fim era o prazer, consistindo este na satisfação dos desejos, o que era um bom começo. Mas depois deram a volta às coisas, afirmando que isto não significava que ter muito prazer era uma coisa boa; pelo contrário, uma pessoa devia limitar o número dos seus desejos, para que assim não acabasse por ficar com muitos desejos por satisfazer — um projecto que tem como consequência uma vida miseravelmente chata (e que, a ser cumprido, implicaria a completa reestruturação das fantasias do adolescente típico). Este ponto de vista é lógico, e ainda mais divertido, e, é claro, completamente oposto àquela ideia da filosofia como a procura do Inefável e do Inatingível — a União Mística com o Criador, a Empatia Total com o Cosmos, ou uma Noite com a Claudia Schiffer. Assim:

Por prazer entendemos a ausência de dor física e mental. Não se trata de beber, nem de festas orgiásticas, nem da satisfação com mulheres, rapazes ou peixe. (Extraído de Carta a Menécio)

Não sabemos aonde foi ele buscar a ideia do peixe, mas asseguramos-lhe que está no texto. A outra característica importante do epicurismo era a sua versão da Teoria Atómica, que era como a de Demócrito, excepto que, para preservar o livre-arbítrio, os epicuristas defendiam que de vez em quando os átomos davam uma guinada imprevisível, causando colisões, mais ou menos como os motociclistas acelerados das cidades. Defendiam também que apesar de os deuses existirem, se estão nas tintas para os homens porque têm mais que fazer.

A outra grande escola deste período, os cépticos, não acreditavam em nada. O seu fundador, Pirro de Elis (c. 360–270), não escreveu quaisquer livros (presumivelmente porque não acreditava que alguém os leria, se acaso os escrevesse), apesar de alguns cépticos posteriores — inutilmente, poderemos pensar — o terem feito, sendo de notar Tímon, que escreveu um livro de sátiras chamado Silloi, Enesidemo e Sexto Empírico. A linha de argumento principal consistia em afirmar que nenhum dado dos sentidos era digno de confiança, apesar de poder ser agradável, e que, consequentemente, ninguém podia ter a certeza fosse do que fosse. Na verdade, ninguém podia ter a certeza que não se podia ter a certeza fosse do que fosse. Para sustentar esta ideia, ofereceram algumas versões do Argumento da Ilusão, que Descartes iria usar mais tarde.

Diz-se que o cepticismo de Pirro era tal que os amigos tinham de o impedir, repetidamente, de cair nos precipícios e nos rios e de caminhar de encontro a carros em andamento, o que não devia dar-lhes qualquer descanso, apesar terem sido aparentemente muito eficientes, pois morreu com uma idade bastante avançada. Diz-se que visitou os gimno-sofistas indianos, ou “filósofos nus”, assim chamados devido ao hábito de fazerem seminários em pêlo. Uma vez ficou tão irritado com as perguntas insistentes que lhe dirigiam em público que se despiu completamente (talvez por influência dos gimno-sofistas), mergulhou no ilusório Rio Alfeu, e nadou vigorosamente para longe, uma táctica que o especialista instantâneo fortemente pressionado pode considerar imitar.

Havia mais algumas escolas menores que tentavam alcançar a ribalta, nomeadamente os cínicos, que eram os mestres do comentário sarcástico, e uma desgraça se apareciam para jantar. Um deles, Crates, era conhecido por irromper nas casas das pessoas para as insultar. O cínico mais famoso foi Diógenes, que vivia numa barrica para fugir aos impostos, e que ficou conhecido por ter uma vez dito a Alexandre Magno, com uma certa aspereza, para lhe sair da frente para não lhe tapar o sol. Costumava também escandalizar as pessoas por comer, fazer amor e masturbar-se em locais públicos, quando e onde lhe dava vontade.

Pode ser útil fingir um certo afecto pelos cínicos: estavam-se completamente nas tintas para o que as outras pessoas pensavam deles, sendo por isso modelos da Temperança Filosófica, ou idiotas chapados, dependendo do seu ponto de vista. É irrelevante o ponto de vista adoptado, mas certifique-se de que adopta um qualquer.

A filosofia vagueou no mundo greco-romano sob da protecção imprevisível dos imperadores romanos, cujas atitudes para com os filósofos variavam consideravelmente. Marco Aurélio, por exemplo, foi ele próprio um filósofo; Nero, por outro lado, matava-os. A influência do cristianismo começou a fazer-se sentir neste período, e a filosofia sofreu com isso.

Agostinho, que por qualquer razão bizarra se tornou um santo, apesar da sua pródiga vida sexual e da sua famosa oração a Deus (“faz-me casto — mas ainda não”) teve algumas ideias interessantes: antecipou o Cogito de Descartes (penso, logo existo; refira-se sempre a isto como “o Cogito”), e desenvolveu uma teoria do tempo segundo a qual Deus está fora da corrente temporal de acontecimentos (sendo Eterno e Imutável, não tinha outra saída), o que quer dizer que o Todo-Poderoso nunca sabe a que horas são as coisas, mais ou menos como os maquinistas da CP.

Havia também os neoplatónicos, alguns dos quais eram cristãos, enquanto outros não, mas cujos nomes parecem todos começar por P. Os que eram cristãos dedicavam-se a mostrar que Platão tinha na realidade sido cristão, uma ideia que exige uma reorganização temporal surpreendente, para não dizer implausível. Os neoplatónicos tinham a tendência para falar de Coisas Abstractas com Letras Maiúsculas, tais como o Uno e o Ser, de uma maneira que ninguém percebia. Isto não é um problema exclusivo deles: Heidegger fez o mesmo, mas é claro que ele era alemão, e isso é o tipo de coisa que se espera de um alemão. Encontrará talvez pessoas que cultivam alguma admiração por esta gente; não hesite em afastá-los sumariamente, especialmente Plotino, Porfírio e Proclo, apesar de poder admitir relutantemente que o último tinha umas ideias interessantes sobre Causas.

Depois disso veio a Idade das Trevas, e a chama da filosofia, como os historiadores palavrosos gostam de dizer, foi mantida no mundo árabe, e em mosteiros que ou eram tão remotos ou tão pobres que não valia a pena saquear. A pouca filosofia que existia na Europa sofreu uma viragem depressivamente teológica, centrando-se sobre disputas tais como se Deus era Uma pessoa em Três ou Três pessoas Numa, a natureza exacta da Substância do Espírito Santo e quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete (no caso improvável de desejarem realmente fazê-lo).

Vale talvez a pena chamar a atenção para Córdova, no sul de Espanha, que estava ocupada pelos árabes, e que era o país natal do maior filósofo judeu, Maimónides, e do grande filósofo árabe, Averróis. Algumas pessoas dirão que o maior filósofo árabe foi Avicena, e não Averróis — mas não se renda (o dogmatismo compensa). Durante várias centenas de anos, os judeus, os árabes e os cristãos conseguiram viver todos juntos. A intolerância religiosa, apesar de ser perene, não tem sido um facto invariável da vida.

Na Europa, a filosofia começou a renascer no século XI com Anselmo, outro dos santos filosóficos, que ficou famoso por ter inventado o enganadoramente chamado Argumento Ontológico da existência de Deus, que é notável pela sua implausibilidade, pela sua longevidade, e pela dificuldade em ser refutado. É assim: pense numa coisa maior do que a qual nada pode existir; mas a existência é ela própria uma propriedade que torna uma coisa melhor. (Esta alegação, implausível quando aplicada à halitose e aos bebés, torna-se mais persuasiva se a entidade em questão for boa em todos os outros aspectos.) Logo, se esta coisa maior do que a qual nada pode ser pensado (i.e., Deus) não existisse, poderíamos imaginar a existência de outra coisa ainda maior, nomeadamente, um Deus existente, que teria todas as propriedades do primeiro, mais a existência como bónus. Mas nós podemos conceber este último. Logo, Deus tem de existir. O próprio Anselmo afirma que foi Deus que lhe enviou uma visão com o argumento pouco depois do pequeno almoço, no dia 13 de Julho de 1087, numa altura em que ele estava a passar um mau bocado com a sua fé. Este é assim o único grande argumento da história da filosofia cuja descoberta pode ser datada com precisão. A não ser, claro, que Anselmo estivesse a contar lérias.

O próximo santo filosoficamente importante foi Tomás de Aquino (1225-74), que foi responsável em grande parte pela reintrodução de Aristóteles no mundo ocidental. (Aristóteles foi delicadamente ignorado durante séculos por académicos que não gostavam de admitir que não sabiam grego.) São Tomás é também o único filósofo oficialmente reconhecido pela Igreja Católica. Tornou-se conhecido por propor as Cinco Vias para provar a existência de Deus — não tinha ficado muito impressionado com Anselmo. Não precisa de saber quais são essas Cinco Vias, mas pode talvez fazer notar que não existe qualquer diferença significativa entre as primeiras três, de maneira que Tomás de Aquino estava a exagerar um bocado.

Ele é também o autor de dois argumentos interessantes contra o incesto. Em primeiro lugar, o incesto tornaria a vida familiar ainda mais infernalmente complexa do que já é; em segundo lugar, o incesto entre irmãos devia ser proibido porque se ao amor típico dos casais se juntasse o amor típico dos irmãos, o vínculo resultante seria de tal maneira poderoso que resultaria em relações sexuais anormalmente frequentes. É uma infelicidade que São Tomás não defina este último conceito intrigante. Podemos também duvidar seriamente se teve realmente irmãos ou irmãs.

Quanto ao resto dos escolásticos medievais, como são conhecidos devido à sua predilecção pedagógica para o intenso pedantismo, a maioria dos mais importantes parecem ter sido franciscanos. Deve afastar-se decididamente deles, ou pelo menos dos pormenores. Poderá recordar que Duns Escoto (1270–1308) era na verdade irlandês, e que era além disso, segundo Gerard Manley Hopkins, “o mais dotado decifrador do real”, seja o que for que isso queira dizer. Outro nome que vale a pena usar é o de Guilherme de Ockham (c. 1290–1349), considerado universalmente o maior lógico medieval, e conhecido sobretudo pela “Navalha de Ockham”, com a qual pôs fim a séculos de filosofia hirsuta. A Navalha é usualmente citada segundo a fórmula “As Entidades não devem ser Multiplicadas sem Necessidade”, ou, melhor ainda, em latim: “Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem” (i.e., Não Inventes). O especialista instantâneo ganha alguns pontos extra se comentar que esta formulação não se encontra, na verdade, em parte alguma da oeuvre extraordinariamente logorreica de Ockham.

A idade moderna da filosofia começa efectivamente com a descoberta, na renascença, do cepticismo grego; foi traduzido por Lorenzo Valla e usado por Michel de Montaigne. Depois de ascender de Valla para Montaigne, a epistemologia céptica formou a base a partir da qual Descartes iria reconstruir uma filosofia positiva.

René Descartes, (1596-1650), como quase todos os ensaios dos caloiros de filosofia lhe dirão, foi o Pai da Filosofia Moderna. Descartes foi em muitos aspectos uma personagem apaixonante: tinha muita dificuldade em levantar-se de manhã, e inventou o Cogito (lembre-se de o chamar sempre assim) enquanto estava escondido num quarto aquecido da Baviera, em 1620, para ver se escapava à tropa. Nunca casou, mas teve uma filha ilegítima. É aconselhável decorar o famoso slogan filosófico de Descartes em pelo menos três línguas, pois em português rende muito pouco. O próprio Descartes publicou-o em latim e em francês: Cogito, ergo sum; “Je pense, donc je suis” (a versão do Discours de la Méthode, que é menos conhecida do que a das Meditações latinas, constituindo portanto um material melhor para o especialista instantâneo). Os especialistas instantâneos mais experientes podem divertir-se oferecendo versões em alemão, servo-croata, hindustani, etc. Descartes chegou à conclusão que pelo menos isso era certo, depois de tentar sistematicamente duvidar de tudo o resto, tendo começado com coisas comparativamente simples, como as laranjas, o queijo e os números reais, avançando depois gradualmente para as verdadeiramente difíceis, como Deus e a sua senhoria.

Descartes descobriu que podia duvidar da existência de tudo, excepto da realidade dos seus próprios pensamentos. (Ele tinha mesmo algumas dúvidas quanto ao seu próprio corpo, e com razão, a acreditar nos retratos que nos chegaram.) Partindo desta certeza inabalável, Descartes passou à “reconstrução de uma ponte metafísica” (use esta expressão: soa bem) para chegar à realidade comum, por meio da demonstração da existência de Deus (exactamente como fez ele tal coisa não deve preocupar-nos: basta saber que o fez), acabando assim por deixar tudo mais ou menos como estava antes. Mas a filosofia é mesmo assim, como mais tarde diria Wittgenstein. O leitor pode legitimamente perguntar-se no seu íntimo se valeu a pena o esforço: mas não deixe jamais transparecê-lo.

A partir desta altura a filosofia começa a mostrar sinais de se dividir em duas tradições, a britânica e a continental. Este tipo de comentário enfurece os franceses e os alemães que, não sem alguma razão, gostam de pensar que têm tradições independentes — por isso vem mesmo a jeito quando falamos com eles.

Os britânicos tendem a ser agrupados como empiristas, o que quer dizer que, tal como o nome sugere, constroem os seus sistemas com base no que pode ser sentido, observado, ou objecto de experiência. As personagens mais importantes parecem uma anedota racista: era uma vez inglês (Locke), um irlandês (Berkeley) e um escocês (Hume). Mas quem gosta de anedotas ficará desapontado ao descobrir que, apesar dos estereótipos, Berkeley era muito esperto e Hume muito generoso.

Mas comecemos com John Locke (1632–1704), que pensava que os objectos tinham dois tipos de atributos:

  1. Qualidades Primárias, como a Extensão, a Solidez e o Número, tidas como inseparáveis e inerentes aos próprios objectos, e
  2. Qualidades Secundárias, tais como a Cor, o Sabor e o Cheiro, que parecem estar nos objectos, mas que estão na verdade em quem percepciona. (Qualquer pessoa que tenha passado há pouco tempo por um campo recentemente adubado com estrume de cavalo pode sentir-se na disposição de duvidar disto.)

Que há-de fazer-se ao certo com atributos como a Extrema Maldade, que parece simultaneamente estar espalhada e ser objectiva, ninguém sabe: mas ele defendia que o Feio, tal como o Belo, são relativos, o que significa que ainda podemos ter esperança.

Locke pensava também que não tínhamos Ideias Inatas (sendo assim, a mente de um recém-nascido seria uma tabula rasa, uma ardósia limpinha: tal como muitas mentes de adultos, a julgar pelas aparências) e que todo o nosso conhecimento do mundo exterior ou foi directamente derivado do mundo exterior, ou indirectamente extrapolado a partir dele. Isto deu-lhe alguns problemas para conseguir dar conta de conceitos altamente abstractos, como o Número, o Infinito e a Cantina Universitária. Locke defendeu ideias interessantes sobre a Identidade Pessoal — como me distingo das outras mentes? Qual é o Conteúdo da Continuidade da minha Personalidade? Serei eu a mesma Pessoa que casou com a minha mulher à cinco anos? Se sou, ainda estou a tempo de fazer alguma coisa? etc. —, sustentando que nem todos os Homens eram Pessoas, pois para se ser uma Pessoa exige-se um certo nível de autoconsciência, e que nem todas as Pessoas eram Homens. A razão pela qual ele acreditava nesta última ideia devia-se unicamente à sua crédula aceitação de uma história de um viajante latino-americano que afirmava ter conhecido no Rio de Janeiro uma arara inteligente que falava português.

George Berkeley (1685-1753), apesar das desvantagens de ser simultaneamente irlandês e bispo, era mais radical. Defendia que as coisas só existiam se fossem percepcionadas (“Esse est percipi”: não se esqueça desta), e a razão pela qual ele acreditava nesta ideia extraordinária, que ao que parece ele pensava ser no entanto simples senso comum, é que era impossível pensar numa coisa impercepcionada, pois no momento em que tentamos pensar nela como coisa impercepcionada já estamos, por pensar nela, a percepcioná-la.

A filosofia de Berkeley esteve fortemente em voga, e teve a virtude de irritar imenso o Dr. Johnson, que afirmou tê-lo refutado ao dar um pontapé numa pedra — uma forma particularmente pouco filosófica de refutação que falhou completamente o que Berkeley tinha em vista. As pessoas que defendem estas ideias chamam-se idealistas (ver Glossário). Tal como a maior parte das coisas em filosofia, os idealistas são mais ou menos lunáticos; G. E. Moore comentou uma vez que os idealistas só acreditam que os comboios têm rodas quando estão nas estações, uma vez que não as podem ver quando viajam. Segue-se também, o que é muito interessante, que as pessoas não têm corpos a não ser quando estão nuas, um facto que, a verificar-se, tornaria completamente inútil grande parte da especulação quotidiana.

O sucessor natural deste género de ideias é uma forma de cepticismo: e é aqui que entra Hume (1711–76). Hume publicou o seu primeiro livro, o Treatise of Human Nature, em 1739, e ficou um bocado ofendido porque ninguém lhe ligou nenhuma. Sem se deixar abater, no entanto, limitou-se a reescrevê-lo e a publicá-lo com outro título (Enquiry Into Human Understanding), e as pessoas deram-lhe imediatamente importância e atenção.

A perspectiva geral é que a Enquiry é muito inferior ao Treatise: o especialista instantâneo pode tentar opor-se a esta perspectiva (a Enquiry tem pelo menos a virtude de ser muito mais pequena). Entre as coisas que é útil saber sobre Hume contam-se o facto de ele ter oferecido um tratamento original das causas, de acordo com o qual as causas e os efeitos são unicamente os nomes que damos aos acontecimentos ou itens que foram repetidamente observados juntos: a “Conjunção Constante”. Tente notar que, na Enquiry, as três formulações de Hume deste princípio não são equivalentes: uma faz das causas condições necessárias dos seus efeitos; uma segunda fá-las condições suficientes; e a terceira parece ser ambígua. E o leitor pode comentar que este princípio não consegue distinguir as causas dos efeitos colaterais. Hume pensava também que o livre-arbítrio e o Determinismo podiam ser compatíveis: duvide disto delicadamente.

Entretanto, de volta ao continente, temos de dar conta de indivíduos como Espinosa (1634-77), um polidor de lentes de Amesterdão. Foi muito admirado (mas não, aparentemente, pelos seus contemporâneos, que primeiro o excomungaram publicamente, tendo depois tentado assassiná-lo, quando isso não deu resultado) pelo seu Sistema Ético, que pôs de pé como um conjunto de deduções formais em geometria. Não é surpreendente, devido ao seu método, que ele tivesse sido um forte Determinista, tendo acreditado ainda numa Necessidade Lógica inabalável. A melhor aproximação a Espinosa é equilibrar uma certa admiração pelo homem, com um leve sentido de desapontamento por ter usado um sistema tão impróprio para um tema como a ética. A ética, pode dizer-se sentenciosamente (como na realidade o fez Aristóteles), não é apropriada para ser exibida num sistema formal axiomático.

Leibniz (1646-1716) é popularmente conhecido através da caricatura de Pangloss, no Cândido de Voltaire, o parvo optimista que pensa que estamos no melhor dos mundos possíveis, o que é um completo disparate. Contudo, Leibniz só escreveu coisas desse género para reconfortar os monarcas. Podia pensar-se que eles já tinham conforto suficiente, mas não. Leibniz escreveu também muito sobre assuntos Lógicos e Metafísicos, mas estas especulações não foram publicadas durante a sua vida, porque não eram muito reconfortantes para os monarcas. No caso improvável de este nome vir a lume, reflicta tristemente na diferença entre a qualidade do pensamento privado de Leibniz, e a pobreza das suas afirmações públicas.

O espaço não nos permite dizer muito sobre os filósofos franceses do século XVIII, cujas figuras de proa foram Voltaire, Rousseau e Diderot. Eles são notáveis por terem sido todos presos ou exilados, ou ambas as coisas. Está cada vez mais na moda exaltar a originalidade, o instinto, a humanidade e a excelente prosa erótica de Diderot, desprezando os outros, acrescendo ainda que vale a pena cultivá-lo mais que não seja porque pouco do que ele escreveu, excluindo La Réligieuse, está correntemente disponível em português. Experimente introduzir na conversa La Reve de d’Alembert ou Jacques Le Fataliste — e nunca se esqueça de mencionar que ele vivia da escrita de textos porno.

O Marquês de Sade é um bom investimento, parcialmente por ser um exemplo de um aristocrata maluco com um comportamento extravagantemente desviante, mas também devido ao seu tipo particularmente louco de filosofia do estado de natureza: o seu mote poderia ter sido qualquer coisa como “se sabe bem, não hesites”. Sabia bem, ele não hesitou e acabou preso por causa disso. Pode mencionar a Philosophie dans le Boudoir, uma mistura extraordinária de filosofia política, moral e sócio-biológica com muito sexo sadomasoquista imaginativamente coreografado. Pode perguntar-se suspeitosamente se a sua filosofia terá sido levada suficientemente a sério (na verdade foi: mas não precisa de o mencionar).

O que nos conduz aos alemães do século XIX. O nosso conselho é este: evite-os a todo o custo. Tudo o que precisa de saber do seu precursor, Kant, pode encontrar-se noutra secção (ver Ética). Tudo o que todas as pessoas sabem sobre Hegel pode escrever-se num postal ilustrado, e mesmo assim seria ininteligível. Ele possuía, de forma muito avançada, esse talento comum aos advogados, entusiastas de computadores e filósofos alemães, que consiste em tornar o basicamente simples fantasticamente complexo.

Começou por usar a palavra “dialéctica” para referir as inter-relações das forças históricas opostas, sendo assim importante para a pré-história do marxismo. Para além disso, a terminologia filosófica alemã pode impressionar bastante, quando usada convenientemente (v. glossário). O mesmo se pode dizer, mais ou menos, de Schopenhauer.

Nietzsche (1844-1900) era um excêntrico, sendo por isso o assunto ideal para as vernissages. As opiniões contemporâneas têm tendência para o classificar juntamente com Wagner como um proto-fascista; ele era sem dúvida alguma anti-semita, mas na Prússia do século XIX toda a gente o era. Ele achava que Deus estava morto, ou pelos menos de férias, e odiava fanaticamente as mulheres, apesar de ser duvidoso se ele chegou realmente a conhecer alguma.

Avançou também a doutrina do Eterno Retorno, de acordo com o qual tudo acontece repetidamente, uma e outra vez, exactamente da mesma maneira. Ele achava que isto era reconfortante, mas na verdade condena-nos a uma eternidade de um tédio repetitivo, ou, alternativamente, se cada retorno for precisamente igual a todos os outros de maneira a que nenhum contenha memórias de nenhum outro, não faz qualquer diferença. Nietzsche ficou definitivamente louco em 1888 (algumas pessoas diriam que já estava louco há muito mais tempo) e começou a escrever livros com capítulos intitulados Por Que Sou Tão Esperto, e Por Que Escrevo Livros Tão Bons.

Entre os não alemães do século XIX, deve mencionar Kierkegaard, mais que não seja para mostrar que sabe pronunciar o nome: “Quírquegôr”.

O filósofo francês mais notável deste período foi Henri Bergson. Era um Vitalista, acreditando portanto que o que distinguia a matéria animada da inanimada era a presença na primeira de um misterioso Élan Vital, uma força misteriosa e indefinível que por alguma razão desaparece do corpo humano na adolescência. Conseguiu também, o que é notável, escrever um longo livro sobre o riso que não contém uma única boa piada.

O que nos conduz aos americanos.

A contribuição originalmente americana para a filosofia foi o pragmatismo, que não é, como na política, uma designação alternativa para uma rejeição esfarrapada e indulgente de quaisquer princípios, mas antes a crença de que a verdade e a falsidade não são absolutas mas sim uma questão de convenção, ou que, como alguns filósofos modernos gostam de dizer, “estão em aberto”. Pensando melhor, talvez o pragmatismo tenha afinal qualquer coisa a ver com a política. Esta ideia foi defendida por William James e John Dewey. Se citar estes nomes, não se esqueça que James era irmão do romancista Henry James.

Isto conduz-nos ao fim da secção histórica desta exposição: os filósofos do século XX serão tratados numa outra secção (e com um bocado mais de cuidado, uma vez que muitos deles ainda estão vivos, podendo portanto vir a processar-me).

As mortes dos filósofos

Acabámos portanto a vida dos filósofos. Segundo os epicuristas, a morte nada é para nós — mas apesar da opinião deles, incluímos a seguinte lista de mortes filosóficas bizarras, para efeitos de completude.

Há duas tradições no que respeita à morte de Empédocles. De acordo com uma delas, ele morreu de uma perna partida; mas a outra defende que ele saltou para a cratera do Monte Etna para provar assim que era um deus. Não se sabe como poderia isto constituir tal prova.

Heraclito, contudo, contraiu hidropisia em resultado de viver de erva e de outras plantas numa encosta de uma montanha, numa veneta misantrópica. Ao ser informado pelos médicos que o seu estado não tinha cura, tomou o tratamento a seu cargo, obrigando-se a ser coberto da cabeça aos pés com estrume, sendo depois deixado na rua (ou talvez tivesse acontecido apenas que ninguém o queria em casa). Segundo o historiador Diógenes Laércio, “ele não conseguiu tirar o estrume, e, estando assim irreconhecível, foi devorado pelos cães”. Talvez os cães não o tivessem devorado se soubessem quem era.

Nunca mencione a morte de Sócrates com cicuta numa cela ateniense; mas se tiver a infelicidade de alguém lho mencionar, tente fazer notar que a descrição da sua morte no Fédon de Platão é completamente inconsistente com os efeitos conhecidos da cicuta: por isso, alguém estava a mentir.

Pitágoras foi uma vítima do seu próprio vegetarianismo extremo. Ao ser perseguido por vários clientes insatisfeitos, chegou a um campo de feijão, e, para não o pisar, ficou onde estava, acabando assim por ser morto.

Crínis, o estóico (uma escola famosa pela sua atitude imperturbável e indiferente em relação aos aspectos terrenos) morreu de medo com um guincho de um rato. A filosofia estóica nunca conseguiu recuperar completamente deste revés.

Crisipo, o estóico, por outro lado, morreu a rir de uma das suas terríveis anedotas. Um macaco de uma velha, assim reza a história, comeu uma vez uma grande quantidade dos figos de Crisipo, após o que este lhe ofereceu o seu odre, dizendo “É melhor ele dar um golo para acompanhar os figos”, após o que desatou às gargalhadas. Depois morreu. Com um sentido de humor assim, não temos de nos sentir culpados se pensarmos que foi uma sorte nenhum dos seus 700 livros ter sobrevivido.

Diógenes terá morrido de uma das seguintes três maneiras:

  1. Porque não se deu ao trabalho de respirar.
  2. Devido a uma grave indigestão em resultado de comer polvo cru.
  3. Por ter sido mordido no pé ao dar polvo cru aos seus cães.

Depois do período antigo a qualidade das mortes filosóficas decaiu consideravelmente, apesar de valer talvez a pena registar que Tomás de Aquino morreu na retrete, tal como já tinha acontecido a Epicuro. Francis Bacon morreu em resultado de uma pneumonia que apanhou quando tentava congelar uma galinha na neve, em Hampstead Heath. É talvez o único homem que morreu em resultado de uma investigação relacionada com a comida, e não por a ter efectivamente comido.

Finalmente, Descartes teve a pouca sorte de morrer por se levantar demasiado cedo. Atraído pela corte da Rainha Cristina da Suécia, descobriu para seu horror que ela queria ter explicações diárias e que a única hora que tinha livre era às cinco da manhã. O choque matou-o.

As questões básicas da filosofia

A sua primeira apreciação da Filosofia tem de incluir a Ontologia, que é o estudo sobre O Que Há, e a Epistemologia, que é o estudo de como chegamos a saber disso. Estas palavras podem ser usadas de várias maneiras; o filósofo instantâneo em princípio de carreira deve cingir-se a algumas regras básicas para evitar meter-se em trabalhos; os mais avançados podem fazer as suas próprias regras.

A Epistemologia surge muitas vezes ligada aos nomes dos filósofos, tal como “a epistemologia de Platão” ou “a epistemologia de Kant”, apesar de devermos ter sempre muito cuidado em relação a Kant, ou, na verdade, em relação a qualquer outro filósofo alemão.

A Ontologia é menos frequentemente atribuída a filósofos individuais, por isso não se arrisque, a não ser que tenha a certeza que a pessoa com quem está a falar é mais ignorante do que você. Em filosofia, esta é geralmente uma suposição segura, mas tenha cuidado: os erros acontecem, e podem sair bastante caros. As ontologias, contudo, podem ser mais ou menos ricas: em termos simples, quanto mais rica for uma ontologia, mais coisas se defende que existem.

Quine (Willard van Orman Quine: chame-lhe “Quine”, ou, caso se sinta particularmente à vontade, “van Quine”) observou uma vez que todas as questões importantes da filosofia são regularmente formuladas por crianças de quatro anos. São elas:

  1. “Que há ali?” (ontologia)
  2. “Como é que sabes?” (epistemologia)
  3. “Por que hei-de fazer isso?” (que pode ser interpretada como uma questão da ética)

Mas as crianças não se aventuram na Metafísica (q.v.), o que é sem dúvida sensato da parte delas. No entanto, a pergunta juvenil mais comum e irritante de todas, “Porquê?”, é a Questão Básica da Filosofia.

Níveis e Metaníveis

“Meta” é uma palavra, ou melhor, um prefixo, absolutamente essencial para o especialista instantâneo ambicioso. O seu uso teve origem na invenção da Metafísica por Aristóteles. O significado literal de “meta” em grego é “com” ou “depois”, e a “Metafísica” de Aristóteles era apenas aquelas coisas que vinham depois da “Física”. Pensa-se por vezes que se chamava assim a essas coisas por conterem verdades de um nível mais profundo, fundamental e recôndito do que as da “Física”. Mas isto é completamente falso. A verdade é que na primeira edição canónica de Aristóteles (feita por um tal Andronico de Rodes), os volumes da Metafísica vinham depois dos volumes da Física. Como resultado desse incidente histórico, combinado com o facto de ninguém ser capaz de apresentar um nome alternativo aceitável para a misturada de lógica, teologia, epistemologia e matemática que constitui a “Metafísica” de Aristóteles, o termo “meta” acabou por significar qualquer estudo de um nível mais profundo do que o estudo que prefixa.

Assim, quando o leitor faz metamatemática, e o nosso conselho é não o fazer, não estuda os teoremas e as demonstrações da própria matemática, mas as bases para os aceitar e a Estrutura Formal que exemplificam. O mesmo acontece com a metaética, que não estuda o que devemos fazer, mas antes a natureza das teorias que nos dizem o que devemos fazer. É claro que, usada como deve ser, a palavra “meta” é um instrumento de uma força conversacional devastadora.

Uma metalinguagem é uma linguagem na qual se discute a estrutura de outra linguagem, conhecida como “linguagem objecto”. Pode tentar fazer notar que a linguagem objecto está muitas vezes contida na metalinguagem, mas nunca vice-versa: não se preocupe com o que isto quer dizer. Assim, as últimas frases, nas quais discutimos a metalinguagem, são na verdade um exemplo de uma metametalinguagem; e esta última frase... bom, já está a apanhar a ideia. Há assim a possibilidade de uma regressão ao infinito, que é o equivalente filosófico de bater repetidamente com a cabeça numa parede. Alfred Tarski, um lógico do período que medeia entre as duas guerras, quando todos os lógicos pareciam ser polacos (apesar de não ser verdade, é claro, que todos os polacos eram lógicos), defendeu mesmo que só podemos explanar (uma boa palavra) como funciona a noção de verdade na linguagem comum se postularmos uma hierarquia teoreticamente infinita de linguagens. As razões disto são extremamente complexas e difíceis, e só podem ser dominadas depois de anos de estudo, por isso vale a pena referi-lo.

Facilmente relacionado com Tarski, apesar de igualmente difícil (há quem diga mesmo impossível) de compreender, é o filósofo americano Donald Davidson, que começou por ser psicólogo de investigação, mas achou que isso era na verdade demasiado fácil, tornando-se por isso filósofo. Adoptou e expandiu o programa de Tarski, numa tentativa de fornecer à filosofia e às linguagens naturais uma Teoria do Significado. Pode tentar perguntar-se delicadamente se a extensão de Davidson da semântica de Tarski é realmente viável: mas não se deixe atolar no tema por nada deste mundo.

Com alguma prática, pode facilmente criar as suas próprias metadisciplinas, e até mesmo mais do que isso: G. E. L. Owen costumava referir-se ao seu “metadiário”, que era o pedacinho de papel onde ele apontava onde tinha deixado o diário. Não há dúvida, contudo, que de todas as “metas” legítimas, a metafísica é a maior.

Metafísica

A metafísica trata do que realmente há (e não do que meramente há, que é o tema, claro, da ontologia), aquilo a que as pessoas tendem distraidamente a referir como a Estrutura Fundamental do mundo. Dito assim, soa a física contemporânea das partículas, apesar de não ser tão obviamente atomista, e há na verdade um sentido segundo o qual a metafísica tradicional foi substituída pela ciência moderna. A metafísica é difícil; se os Positivistas tiverem razão, é impossível. É de facto cada vez mais comum chegar ao fim de uma licenciatura em Filosofia sem chegar a ter a mínima ideia da sua natureza. O leitor, como bom especialista instantâneo, só precisa de ter a mais vaga das noções — mas é importante, como sempre, ter ideias firmes.

A questão de saber se Deus existe, ou qual a natureza da Substância, ou a estrutura das conexões causais, ou se a Carris existe ao Domingo — pode dizer-se de todas estas questões que são em grande parte metafísicas, o que é o mesmo que dizer, entre outras coisas, que não há respostas claras para elas. Por isto é que os Positivistas Lógicos, um grupo de filósofos vienenses com nomes absurdos do período que medeia entre as duas guerras, não gostavam da metafísica.

Quando falar, ou (o que é muito mais seguro) quando mencionar a metafísica, é melhor adoptar uma de duas estratégias. Pode recusar pura e simplesmente a existência de tal assunto (resulta melhor com um sorriso paternalista), caso em que os Positivistas vêm mesmo a calhar; ou, alternativamente, pode tentar atacar o tema produzindo os seus comentários com o ar de quem está a penetrar num mistério inefável. O primeiro Wittgenstein (q.v.) é ideal para a primeira estratégia; o segundo dá para a última. Wittgenstein é sempre um bom investimento pela excelente razão de que, apesar de quase toda a gente ter ouvido falar dele, quase ninguém chegou a lê-lo, e ainda menos pessoas podem afirmar convictamente que o compreenderam.

Com os Positivistas, o melhor material vem do seu Princípio da Verificabilidade, que afirma que só sabemos o significado de uma frase se soubermos o que tornaria tal frase verdadeira. Se não houver qualquer método para verificar a sua verdade, pelo menos em princípio, a frase não fará sentido. Esta estratégia tem o efeito devastador, e nada desagradável, de tornar quase toda a metafísica tradicional, assim como a maior parte do que dizem os economistas e os padres portugueses, literalmente sem sentido.

Ética

Um dos grandes prazeres da vida dos filósofos é poder dizer a toda a gente (e não apenas às crianças e aos cães) o que devem fazer. A ética é isto. Em geral, podemos afirmar, e afirme sempre seja o que for em geral, que há basicamente dois tipos de Teoria Ética (o Comunitarianismo e a chamada Ética da Assistência, recentemente em voga, representam na verdade pouco mais do que afirmar que é simpático — e feminista, e não paternalista, etc. — ser simpático com as pessoas: isto só dificilmente pode qualificar-se como uma teoria).

O leitor pode ser um Consequencialista ou um Deontologista. O primeiro sustenta que a qualidade moral de uma acção é unicamente determinada pelos seus resultados. O segundo, por outro lado, sustenta que há coisas que devemos fazer, e outras que não devemos fazer, independentemente dos resultados reais ou prováveis da acção. A versão mais famosa do consequencialismo é o Utilitarismo, cuja formulação clássica se deve a Bentham e Mill, surgida no século passado, mas que ainda mexe. A forma clássica da ética Utilitarista sustenta que se deve agir de maneira a produzir o maior bem para o maior número. Como definir esse bem, e por quem, que fazer no caso de bens incompatíveis, e a questão de saber se o número total das pessoas envolvidas deve ou não contar, e se contar, como é que conta, são apenas alguns dos problemas iniciais na interpretação da doutrina.

O problema principal do Utilitarismo, ou, na verdade, de qualquer das suas variedades (há vários sabores), consiste em conduzir, em alguns casos problemáticos, a resultados “contra-intuitivos”. Experimente o seguinte com uma pessoa que afirma ser Utilitarista. Suponha-se que temos três pessoas, cada uma das quais sofre de uma doença terminal num dos seus órgãos vitais, ao passo que o leitor, por outro lado, é um animal escandalosamente saudável. Como Utilitarista, deveria considerar seriamente a ideia de ser arrastado para o hospital, para ser aberto, de maneira a transplantar os seus órgãos saudáveis para os corpos dos seus infelizes amigos, assegurando assim um ganho inequívoco de duas vidas. Os Anti-utilitaristas sentem, talvez plausivelmente, que o leitor poderia não ficar propriamente exultante com a ideia.

A vantagem do Utilitarismo, ou pelo menos da sua ideia básica, é ser razoavelmente simples, apesar de se objectar por vezes que se levarmos o consequencialismo a sério, passamos todo o tempo a tentar calcular o efeito preciso de cada acção, acabando assim por não fazer seja o que for. Em geral não é uma boa ideia defender que isto é, em si mesmo, uma vantagem da teoria.

Os Deontologistas, pelo contrário, levantam ainda mais problemas. A dificuldade óbvia consiste em dizer exactamente o que são os deveres, e os direitos concomitantes. Há sobre isto muito pouco consenso, e a coisa acaba por ir parar ao debate Subjectivismo/Objectivismo: a moral é descoberta, como defende o objectivista, por uma faculdade peculiar, ou é a moral apenas uma questão de costumes, criados mais ou menos arbitrariamente, de maneira a tornar possíveis as actividades sociais, tal como a maior parte das anti-sociais? É uma boa ideia ter uma opinião qualquer a este respeito.

Caso se decida pelo subjectivismo, deve ter consciência de que isso o comprometerá quase certamente, a não ser que consiga inventar uns labirintos bastante inesperados, com o Relativismo Cultural, uma posição que tem os seus perigos. Um Relativista Cultural sustenta que nenhuma sociedade tem o direito de dizer o que está bem ou mal em qualquer outra sociedade, o que torna a vida um bocado aborrecida, para além de tornar as relações internacionais, tal como são correntemente praticadas pela Casa Branca, completamente impossíveis. Isto implica que apesar de o infanticídio e a castração feminina poderem ser um bocadinho desapropriados em Freixo de Espada à Cinta, podem ser perfeitamente aceitáveis na Nova Guiné. Isto pode trazer-lhe sérias dificuldades, especialmente com as feministas.

Talvez a melhor estratégia a adoptar seja a de Dick Hare, que comentou nunca ter conseguido perceber a diferença entre as duas coisas — acrescentando devastadoramente que também nunca tinha conhecido ninguém que percebesse. Este é um exemplo brilhante de uma das técnicas mais úteis do especialista instantâneo avançado: fingir que o claramente óbvio é de facto inescapavelmente obscuro — acontecendo apenas que os menos dotados não conseguem detectar a sua complexidade inerente. Wittgenstein usou este método de tempos a tempos, mas o mestre é sem dúvida Hare, que uma vez chegou mesmo a dizer que não conseguia realmente compreender o significado da palavra inglesa it.

Mas sejam quais forem as suas ideias sobre a origem da moral, deve sempre tomar uma posição em relação à teoria moral — o que nos conduz outra vez às Deontologias. Kant é o nome a evocar para as versões clássicas desta teoria, juntamente com o seu famoso Imperativo Categórico. Há várias formulações diferentes do Imperativo na obra de Kant (o que é óptimo para o especialista instantâneo: a pergunta “Sim, mas que versão do Imperativo Categórico tens em mente?” funciona às mil maravilhas), mas a sua formulação mais usual, ainda que obscura, é a seguinte:

Age apenas de acordo com aquela máxima que possas ao mesmo tempo querer que se torne numa lei geral.

Geralmente, diz-se que isto quer dizer que só devemos fazer o tipo de coisas que não nos importaríamos que toda a gente fizesse. Isto arrasta algumas dificuldades. O leitor pode muito bem querer passar pelas brasas, mas não gostaria muito da ideia de encontrar toda a gente na sua cama.

Os principais defensores das deontologias hoje em dia são as igrejas e alguns grupos do CDS-PP. Os filósofos, que são na sua maioria, pelo menos na sua vida pessoal, um belo lote de tratantes amorais (isto é particularmente verdade em relação aos filósofos morais), têm a tendência para pensar menos em termos de deveres do que em termos de direitos, criando assim Teorias dos Direitos. O leitor tem um Direito desde que haja qualquer coisa que merece, ou qualquer coisa de que possa safar-se sem pagar.

Um princípio importante da maior parte das Teorias dos Direitos é o da “Universalizabilidade”, que é, por causa do seu tamanho, uma palavra excelente para esgrimir. Significa que tanto o leitor como eu só temos um direito se todas as outras pessoas tiverem um direito análogo. Assim, caso se fique pela Teoria dos Direitos e caso a junte à Universalizabilidade, tem de ter muito cuidado com os direitos que reivindica para si, não vá outro palhaço qualquer deitar-lhe as mãos.

No entanto, os direitos rendem muito. Para começar, quase toda a gente que pensa ter direitos tem crenças inconsistentes sobre eles (defendendo, por exemplo, que todas as pessoas têm direito à vida, mas também que os povos oprimidos têm o direito de matar os tiranos), não sendo geralmente necessária muita criatividade para as descobrir e explorar. Isto dar-lhe-á uma óptima sensação de superioridade intelectual, deixando o seu adversário a alimentar um forte desejo, se bem que moralmente proibido, de lhe arrancar os olhos — que é, afinal de contas, o objectivo da coisa.

A desvantagem, claro, é a possibilidade de o próprio leitor ser acusado de sustentar um Conjunto Inconsistente de princípios. Se isto acontecer, deve dizer que os princípios que caiu no erro de admitir, têm de ser qualificados; por outras palavras, não há regra sem excepção, seja o que for que isto quer dizer. Em certas circunstâncias especificáveis (tente a todo o custo ter de especificá-las), certos princípios têm precedência sobre outros: o seu conjunto principal, deverá o leitor comentar sabiamente, é hierarquizado; e poderá mesmo notar com um ar grave que, no fundo, trata-se de sistematizar a sua teoria moral.

Outra distinção técnica bastante útil é a que existe entre as teorias da ética centradas na acção e as centradas no agente. Como está certamente a ver, trata-se de saber se o que conta realmente na moral é o tipo de coisas que fazemos, ou antes o tipo de pessoa que somos (pois todos sabemos que os piores cancros sociais, como os advogados, podem por vezes fazer coisas que aprovamos). É claro que nenhuma teoria sensata é exclusivamente qualquer uma das duas coisas; e, em geral, é seguro afirmar qualquer coisa desse género, sem ter medo de ser forçado a dizer a exacta proporção que adoptamos de uma e de outra. Outro golpe útil é perguntar: “Não achas que isso pressupõe uma perspectiva da moralidade excessivamente centrada sobre os actos (ou sobre o agente, consoante o caso)?”

Como regra geral, é aconselhável ter um conjunto de opiniões pouco ortodoxas (e enfurecedoras), em particular sobre os Novos Problemas Morais, se é que são realmente novos. Os NPM são dificuldades geradas por alguns avanços científicos, tais como os bebés proveta, as mães de aluguer, as experiências com fetos e coisas assim. A possibilidade da clonagem em alta escala é outro NPM, ainda que potencial.

A eutanásia, que tem sido praticada de uma maneira ou de outra desde a emergência da humanidade, é frequentemente considerada, por alguma razão estranha, um Novo Problema Moral. Seja adequadamente evasivo em relação a isto. Há uma distinção corrente entre a eutanásia activa e a passiva. A primeira é matar de facto, ao passo que a outra é apenas deixar morrer. Tente defender que esta distinção é espúria. “Afinal de contas, o médico que recusa tratar pretende que o paciente morra; e ele tem a possibilidade de prolongar a vida: logo, pela sua negligência, ele é tão responsável pela morte do paciente como se lhe tivesse dado com o cutelo do talho”. Uma variação subtil disto é sustentar que a eutanásia passiva é na realidade mais imoral do que o seu correlato activo, que afinal de contas pode ser realizada de maneira humana e indolor; ao passo que com a primeira se assegura a morte extremamente dolorosa do paciente. Este argumento é particularmente eficiente junto dos médicos — consegue enfurecê-los, e há poucas coisas na vida tão doces como o espectáculo de um médico a saltar de raiva.

Quanto aos outros problemas morais, quer sejam novos, de meia-idade, ou decididamente velhos, o nosso conselho é tocar a música consoante a ocasião. Se uma feminista introduzir o tema do aborto, ou qualquer problema relacionado com os Direitos dos Fetos, o leitor pode perguntar-lhe delicadamente se o Direito de Escolha da Mulher se alarga até ao Direito de Escolher Matar. O especialista instantâneo tem de estar preparado para isto e ter boas razões para pensar que os fetos têm direitos; não basta neste caso ser católico — a ideia de Bentham de que a capacidade de sofrer dor confere direitos, pode vir mesmo a calhar.

Esta é uma área em que a criatividade argumentativa compensa. Não é isenta de riscos, mas vale a pena. Encontre uma opinião moral qualquer, fortifique-a com os argumentos necessários (que não têm de ser relevantes, mas convém que sejam válidos — veja o glossário sobre esta importante distinção) e está lançado. Ao fim de um bocado irá provavelmente verificar que a maioria dos seus amigos estão também lançados na discussão. Por exemplo, o leitor pode defender que o casamento é imoral. Isto é surpreendentemente fácil e deliciosamente irritante, em especial para os recém-casados e para os seus pais — mas os pormenores terão de ser desenvolvidos por si. Ser especialista instantâneo é uma actividade criativa.

Lógica

Este é um ramo importante da investigação filosófica. A lógica, enquanto estudo formal, é diabolicamente difícil, e portanto o melhor é não lhe tocar. O especialista instantâneo só precisa de saber que tudo estava a correr bem quando toda a gente se entregava à Silogística Aristotélica (algumas pessoas, incluindo a maior parte dos filósofos católicos, parecem estar convencidos que isto é ainda o caso); mas as coisas ficaram todas de pernas para o ar com os desenvolvimentos da lógica matemática do século passado, devidos a Gottlob Frege (um excelente nome para mencionar, apesar de ter sido — muito mais do que Nietzsche — um anti-semita proto-fascista), Russell e Whitehead (q.v.). A nova lógica pode fazer muito mais coisas (em termos técnicos, pode lidar com a lógica das relações; as relações entre as coisas, quero eu dizer, e não os processos mentais do seu sogro), mas é muito mais difícil.

As coisas tornaram-se ainda piores com o desenvolvimento das Lógicas Alternativas, por vezes surpreendentemente chamadas Lógicas Desviantes. Estas lógicas aumentam o número de valores de verdade e põem em causa a validade de certas leis lógicas tradicionais, tais como a Lei do Terceiro Excluído, que afirma (mais ou menos) que as coisas ou são ou não. Nunca se comprometa em circunstância alguma com isto.

Para além da Lógica Formal, e é claro, da metalógica, há a Lógica Filosófica. Tal como muitas outras coisas, isto soa muito melhor com sotaque brasileiro: experimente e verá. A Lógica Filosófica é uma área vasta e confusa, mais ou menos como os terrenos da Expo 98, e, tal como os terrenos da Expo 98, deve ser decididamente evitada. Pode desejar saber que um dos seus temas centrais é a Teoria do Significado, mas duvido. Pode chegar mesmo a comentar tristemente que nenhuma das Teorias Semânticas disponíveis parece muito satisfatória, mas não tente jamais explicar porquê. Em geral, esta abordagem é segura, pois uma das características obstinadas da filosofia é não haver nela coisa alguma que seja inteiramente satisfatória.

Epistemologia

Tudo o que precisa realmente de saber sobre a epistemologia é como se soletra a palavra. “Mas como podemos saber que sabemos isso?” é por vezes eficiente, mas não deve abusar. A epistemologia é hoje em dia frequentemente feita debaixo dos auspícios de uma coisa chamada Ciência Cognitiva, um híbrido de lógica, linguística, psicologia e informática, que tem a ver com a criação de modelos do raciocínio, quer humano, quer mecânico (a Inteligência Artificial, ou melhor, a IA), usando muito as Lógicas Desviantes (o que não é surpreendente, pelo menos no caso da linguística). É também demasiado complicado para poder ser compreendido (a não ser, talvez, por uma Inteligência Artificial).

Filosofia da Religião

Tal como a maior parte das coisas na filosofia, a filosofia da religião é muito melhor como uma actividade destrutiva do que como uma actividade construtiva. As pessoas com ideias religiosas muito marcadas são excelentes vítimas para o bom filósofo instantâneo, uma vez que, apesar de serem usualmente muito sensíveis e de poderem sentir-se profundamente magoadas com o que lhes dizemos, são quase invariavelmente demasiado educadas para o confessar.

Se não quiser embrenhar-se na questão de saber se Deus existe, e caso exista, que pensa Ele que anda a fazer, a melhor área para a qual deve conduzir a conversa é o Problema do Mal: se Deus nos ama, a nós e ao mundo, por que razão somos nós, e o mundo, tão indizivelmente grotescos?

Lactâncio forneceu uma bela e elegante versão formal deste argumento:

Dado que o mal existe (e tendo em conta os atributos atribuídos a Deus), então ou

  1. Deus sabe o que se passa, preocupa-se com isso, mas não pode fazer seja o que for; ou
  2. Ele preocupar-se-ia com isso, poderia fazer alguma coisa, mas não sabe o que se passa; ou
  3. Ele sabe o que se passa e poderia fazer qualquer coisa, mas está-se nas tintas.

Filosofia da Ciência

Uma vez que a filosofia é essencialmente uma meta-actividade, podem existir filosofias mais ou menos de tudo, e a ciência não é uma excepção. Como desenvolvem os cientistas as suas teorias? Qual é a relação entre a teoria e a experiência? Em que consiste o método experimental? Como ganha uma teoria precedência sobre outra sem haver aumentos súbitos de riqueza? Estas, e outras questões semelhantes, são o domínio da Filosofia da Ciência. A Filosofia da Ciência desenvolveu-se muito nos últimos cinquenta anos, em parte porque dá aos filósofos a sensação, para eles nova, de que aquilo que estão a fazer tem uma certa relevância para alguma coisa, e em parte porque é mais uma área na qual têm o prazer de dizer às pessoas que se enganaram.

Karl Popper (um bom nome) foi uma figura de proa no desenrolar dos debates, com a sua ideia de que as teorias nunca podem ser verificadas (i.e., demonstradas como verdadeiras); só podem ser falsificadas (i.e., denunciadas como irrevogavelmente sem esperança). A razão para isto é que nenhuns dados empíricos poderão jamais mostrar para lá de quaisquer dúvidas que o mundo irá continuar a comportar-se da maneira como parece ter-se comportado sempre; ao passo que basta um só mau resultado, como por exemplo a água ferver aos doze graus, ou um filme português bem feito, para falsificar toda uma teoria.

Isto é assim, segundo Popper, porque as teorias científicas são feitas de generalizações universalmente quantificadas que não admitem excepções, ou, por outras palavras, porque consistem em frases com a forma “Toda a coisa é outra coisa qualquer”. Segundo Popper, a ciência progride por meio de Conjecturas Ousadas (“O mundo é feito de manteiga”), seguidas de Refutações Conclusivas (“Não pode ser: este bocado não se consegue barrar no pão”).

O problema desta ideia é que, em geral, quanto mais ousada for a conjectura, mais obviamente refutável é. Várias pessoas ofereceram perspectivas diferentes: um bom nome para invocar é o de T. S. Kuhn, que prefere falar de Revoluções Científicas, que envolvem o que ele chama Mudanças de Paradigma. Esta ideia é extraordinariamente difícil de formular claramente, sendo por isso mesmo de um valor inestimável. Significa, vagamente, que as pessoas decidem, pura e simplesmente, parar de olhar para o mundo de uma maneira e começam a olhar para ele de outra maneira. Mas mais devastador para Popper foi Hilary Putnam, que comentou que se Popper tivesse razão, também nenhuma teoria seria falsificável, uma vez que nenhuma teoria, tal como nenhum homem, é uma ilha. As teorias envolvem sempre Hipóteses Auxiliares sobre a natureza do universo, de maneira que, confrontado com uma Anomalia, podemos sempre escolher: ou deitamos fora a teoria, ou uma Hipótese Auxiliar, ou até ambas, se estivermos num dia não.

A propósito, Putnam é talvez o filósofo americano contemporâneo mais distinto. E é muito útil para o especialista instantâneo por causa do seu hábito encantador de abandonar completamente as suas ideias extremamente subtis e complexas precisamente quando os outros filósofos começam a pensar que finalmente as conseguem compreender — mais ou menos de dez em dez anos —, conseguindo mesmo ultrapassar o próprio Wittgenstein. O especialista instantâneo pode assim prefixar a qualquer afirmação que fizer as palavras “como diz Putnam”, com a certeza de que houve ou haverá um período qualquer, numa obra qualquer, em que Putnam o terá dito ou irá dizer.

Outros nomes bons para deitar na fervura são Imre Lakatos, se conseguir pronunciá-lo, e Paul Feyerabend, um anarquista metodológico assumido, que exorta os cientistas a adoptar como mote da sua investigação a máxima “vale tudo”. Para além de ter trazido Cole Porter para a filosofia, uma coisa que mais ninguém tinha conseguido fazer, Feyerabend era um excêntrico notável: costumava acabar as suas aulas na School of Economics de Londres saltando de uma janela (felizmente no rés-do-chão) para a sua potente moto, afastando-se depois ruidosamente.

A cena contemporânea: Os filósofos anglo-saxónicos

Os filósofos anglo-saxónicos (incluindo, é claro, os finlandeses), têm tendência para negar que fazem parte de uma qualquer escola ou corrente: na verdade, costumam encarar o sectarismo filosófico como um perigoso hábito continental, devendo por isso ser desprezado. No entanto, têm realmente tendência para se juntar, como se precisassem de apoio, acreditando talvez, possivelmente com razão, que precisam dele. São invariavelmente classificados em bloco como “Filósofos Analíticos”, mesmo que nunca tenham na verdade analisado seja o que for.

Antes da Primeira Guerra Mundial, as duas personalidades mais importantes da filosofia britânica eram provavelmente (lembre-se, nunca se comprometa, se o puder evitar) Bertrand Russell e G. E. Moore. Russell conseguiu a sua reputação com a publicação de Principia Mathematica, cujo co-autor foi A. N. Whitehead, e que por isso é por vezes conhecida como “Russell e Whitehead”, à maneira dos grandes estudos sobre sexo. Esta obra é uma exposição extremamente pormenorizada da lógica simbólica formal, e como tal não é uma leitura recomendável para viagens longas de comboio; na verdade, não é uma leitura recomendável seja em que situação for.

Moore, para não ser ultrapassado no que respeita a títulos latinos sonoros e portentosos, reagiu com o seu influente tratado Principia Ethica, no qual sustentava que a palavra “bem” é indefinível, apesar de ser o nome de uma qualidade não natural. Um conceito de Moore muito discutido neste contexto é o da “Falácia Naturalista”. No entanto, é muito difícil dizer exactamente o que é isto: a ideia de Moore parece ser que não podemos definir termos éticos em termos de termos não éticos, e que não se podem deduzir proposições éticas de proposições factuais, não éticas.

Esta confusão faz com que a Falácia Naturalista seja extremamente útil, especialmente se o leitor seguir os passos do próprio Moore, e nunca argumentar a favor da ideia de que isto é uma falácia, mas se limitar ao invés a asseverar que é. O leitor pode complementar isto de maneira muito útil, numa conversa de café, com outro conceito de Moore, o Argumento da Questão em Aberto. Este argumento defende que, seja o que for factualmente o caso em relação a um objecto ou propriedade particular (que as pessoas gostam dele, por exemplo; ou que sabe a queijo), continua a ser uma Questão em Aberto se isso é um bem ou não. Moore era famoso pela sua robusta aproximação à filosofia, não admitindo disparates sem sentido; uma vez informou uma turma atónita que nada era mais certo do que o facto de ter duas mãos. Não se sabe claramente quem tinha estado disposto a duvidar disso.

Quanto a Russell, as outras grandes contribuições suas para a filosofia (para além das outras actividades suas, que incluíam o pacifismo e a promiscuidade, podendo assim ser definidos pelo slogan dos anos sessenta “Make Love Not War”, o que Russell fez até uma idade invejavelmente avançada) incluem a descoberta do Paradoxo de Russell, com o qual pôs fim a uma coisa depreciativamente conhecida por “teoria ingénua dos conjuntos”, assim como a Teoria das Descrições. A Teoria das Descrições é uma tentativa de analisar a lógica da linguagem natural (não se esqueça desta expressão) e em particular o problema dos Nomes Próprios. Este último, tal como a maioria dos problemas filosóficos, não é um problema para mais ninguém a não ser para os filósofos. Russell usou como exemplos algumas frases regularmente usadas pelos ingleses, como “O actual Rei de França é careca” ou “Scott escreveu o Waverley”. Esta última, segundo Russell, significa na realidade que “alguém escreveu o Waverley; só uma pessoa escreveu o Waverley; e se alguém escreveu o Waverley, essa pessoa era Scott”. Com isto uma pessoa pode sentir-se tentada a inferir que os filósofos sabem tanto acerca da linguagem comum como sabem acerca das pessoas comuns (v. introdução).

A atitude correcta em relação à History of Western Philosophy de Russell é elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que se manifestam algumas reservas quanto ao seu conteúdo: “Uma leitura maravilhosa, claro, mas não pensas que é um pouco tendenciosa?” A expressão “não pensas” faz parte de uma pergunta de retórica e nunca deve ser tomada literalmente.

Talvez o mais influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira Guerra Mundial tenha sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem) Wittgenstein se encontrou com Russell em Cambridge e lhe perguntou (a Russell) se ele (o Jovem Wittgenstein) era um completo idiota; é que, se acaso o fosse, iria para piloto de aviões. Russell disse-lhe que escrevesse qualquer coisa; o Jovem Wittgenstein assim fez, Russell leu uma linha e disse-lhe que ele era demasiado esperto para ser um aviador.

A guerra interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge, mas regressou depois disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a dominar a vida filosófica de Cambridge, e não só, durante os trinta anos seguintes. Sendo uma personagem encantadoramente excêntrica, apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira de espaldar debaixo de um aquecedor eléctrico, num quarto do Trinity College, que fora isso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda a sua vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, no qual trata de problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem a linguagem significado, assim como as noções de verdade e de falsidade.

As suas investigações fizeram-no acreditar que só as proposições construídas através das conectivas lógicas a partir de proposições atómicas tinham sentido. Daí o nome “Atomismo Lógico” que designa este tipo de filosofia. Tudo o resto não tinha literalmente sentido, o que nos livra da metafísica, juntamente com muitas outras coisas. Na verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que quase todo o Tractatus seja ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for verdade.

O Primeiro Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma maneira já soubéssemos o que ele queria dizer poderíamos compreender o seu livro; e que a sua filosofia era como uma escada que deitamos fora depois de a subirmos. Muitas pessoas interpretaram a metáfora literalmente. A última frase do livro resume a ideia: “Do que um homem não pode falar, tem um homem de fazer silêncio”; ou, para o especialista instantâneo realmente ambicioso: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen”.

Depois disso, Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos, convencido de que já tinha dito tudo. Contudo, acabou mais tarde por mudar de ideias: este é o ponto crucial em que o Primeiro Wittgenstein se torna no Segundo Wittgenstein, e, enquanto tal, a segunda figura (depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da filosofia do período entre as duas guerras.

No Tractatus, Wittgenstein pensava que as proposições tinham significado porque eram como imagens dos factos que referem. Mas o Segundo Wittgenstein discordava disto, assimilando ao invés o significado ao uso, concedendo ainda que a linguagem comum era mais complexa (e mais rica em significado) do que o Primeiro Wittgenstein pensava. O resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas. Morreu em 1951; desde essa altura, têm aparecido regularmente, em publicação póstuma, apontamentos, registos de aulas, listas de compras, notas que escrevia à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a distinção extraordinária de ter escrito apenas um livro em toda a sua vida, mas mais ou menos quinze depois de morto. E tudo leva a crer que a sua actividade editorial póstuma está para durar.

Depois da guerra, a filosofia inglesa centrou-se em Oxford, apesar de Cambridge discordar desta ideia, quando uma misteriosa entidade conhecida por “Filosofia de Oxford”, ou, ironicamente, “filosofia linguística”, veio à existência. Os seus principais expoentes eram Gilbert Ryle, um fumador de cachimbo de renome, e J. L. Austin, outro fumador de cachimbo de renome. Austin era conhecido pelas suas “manhãs de Sábado”, nas quais um grupo de filósofos distintos, que se distinguiam sobretudo por fumarem todos cachimbo, se reuniam para discutirem as subtis nuances da linguagem comum, ou para discutirem minhoquices, conforme a sua perspectiva. Estas discussões tinham tendência para acabar por distinguir seis significados diferentes de expressões como “carrinho de mão”, não sendo por isso surpreendente que provocasse raiva e escárnio entre os que eram excluídos por qualquer razão, como não serem suficientemente espertos, ou não fumarem cachimbo.

Contudo, aceita-se geralmente, excepto como é natural em Oxford, que a partir da guerra o centro de gravidade da filosofia anglo-saxónica se mudou para a América do Norte (até mesmo o bocadinho finlandês), um estado de coisas que pode ter talvez alguma relação com o facto de as universidades americanas pagarem enormes salários. O Grande Patriarca da filosofia americana é Willard van Orman Quine (“Van” para os amigos), conhecido por sustentar que a distinção de Kant entre o analítico e o sintético (v. glossário) é, na melhor das hipóteses, vaga e, na pior, inútil, tal como por ter chamado a um livro seu From a Logical Point of View por causa de uma música popular das Caraíbas de Harry Belafonte.

Os seus sucessores incluem Saul Kripke, no campo da lógica filosófica e no estudo da Modalidade (não vale a pena saber o que é isto), cuja obra mais importante, Naming and Necessity — sobre Nomes Próprios, Sentido e Referência, Mundos Possíveis, e muitos outros termos que encontrará no glossário — vale a pena mencionar de passagem como a obra filosófica provavelmente mais significativa escrita depois da Guerra.

O leitor reparará também que o Nome Absurdo é uma ajuda tão grande na filosofia americana como o foi para os Positivistas de Viena — muitos dos quais foram parar à América, talvez por isso mesmo —, impressão essa confirmada por Alvin Plantinga, um lógico modal e um filósofo da religião (uma combinação ligeiramente instável), e Robert Nozick, um anarquista político da direita radical que pensa que se deve privatizar tudo.

Um filósofo americano importante é John Rawls, cuja obra magna, Uma Teoria da Justiça, tem sido muito vendida. Basicamente, Rawls defende que a justiça pode ser analisada em dois princípios:

  1. Que toda a gente deve ter a mesma liberdade, e, dado esse constrangimento, tanta liberdade quanta for possível;
  2. Que as desigualdades entre as pessoas só se justificam se os que estão pior estiverem na realidade melhor do que estariam num outro sistema qualquer mais igualitário.

Tenha cuidado com isto: não é tão idiota como parece à primeira vista, apesar de ser verdade que permite desigualdades extremas, o que pode ser usado contra ele — a não ser, é claro, que o leitor calhe a ficar beneficiado. Este tipo de coisa é conhecido como uma Teoria da Justiça Distributiva, e pode em algumas circunstâncias vir mesmo a jeito.

Os continentais

Há duas variedades principais de continentais: os franceses e os alemães.

O movimento filosófico continental mais importante nos últimos tempos foi talvez o existencialismo, que teve partidários franceses e alemães. O expoente francês principal foi Sartre, um erudito invejável que combinava a filosofia com a agitação política marxista, a autoria de romances e de peças de teatro, e uma capacidade prodigiosa para o álcool. Foi ele que introduziu o slogan “A existência precede a essência”, que quer dizer, mais ou menos, que devemos estar menos preocupados com o tipo de coisas que as coisas são, do que com o facto de serem.

Os existencialistas resistem a ser classificados, insistindo geralmente na autonomia do individual: logo, têm tendência para ficar um bocado irritados só pelo facto de lhes chamarmos existencialistas. O existencialismo, ou pelo menos a sua linha francesa, tem conexões literárias muito fortes, sendo Camus e o próprio Sartre os seus maiores expoentes. A literatura tende a concentrar-se no conceito de acte gratuit (refira-a em francês, claro), que constitui supostamente a essência da afirmação existencialista da sua própria existência. Mas para o resto das pessoas parece-se mais com um caso de crueldade caprichosa. Uma vez que o acte gratuit, pelo menos na literatura, tem tendência para ter uma natureza violenta, ou, no mínimo dos mínimos, anti-social, viver com um existencialista (pelo menos com um existencialista francês) deve ser de arrasar com os nervos.

Os alemães, dos quais vale a pena referir Martin Heidegger e Karl Jaspers, são um grupo muito diferente. Não têm pretensões literárias, felizmente, e tendem a ser mais explícitos quanto às suas influências, referindo filósofos como Kierkegaard e Edmund Husserl, um filósofo alemão dos princípios do século que desenvolveu de uma maneira sistemática e tipicamente alemã o conceito de Fenomenologia, i.e., a tentativa de penetrar, por entre as aparências superficiais das coisas, na realidade básica da nossa apreensão consciente delas (ou coisa assim).

O existencialismo não arrasta consigo qualquer compromisso religioso para qualquer dos lados: Sartre era ateu, Jaspers cristão; Heidegger era nazi, mas isto é em geral convenientemente esquecido. Um ponto interessante a notar é que os livros de filosofia escritos em inglês têm em geral de ter três elementos nos seus títulos, sendo Language, Truth and Logic (Linguagem, Verdade e Lógica) Truth, Probability and Paradox (Verdade, Probabilidade e Paradoxo) e Mind, Language and Reality (Mente, Linguagem e Realidade) alguns exemplos proeminentes, ao passo que o número de elementos exigidos para os títulos existencialistas parece ser de apenas dois, como em Sein und Zeit (Ser e Tempo) de Heidegger, e em L’Etre e le Neant (O Ser e o Nada) de Sartre. Os filósofos analíticos anglo-saxónicos têm tendência para desprezar o existencialismo por não ser suficientemente analítico; os existencialistas têm tendência para desprezar os filósofos analíticos anglo-saxónicos por não serem suficientemente.

Já falámos o suficiente sobre o Positivismo Lógico e, em qualquer caso, os seus expoentes estão na realidade mais próximos da tradição anglo-saxónica. Nos anos trinta, muitos deles fugiram da Europa e de Hitler em direcção à América, onde Rudolph Carnap e Carl Hempel foram particularmente influentes desde a guerra, especialmente na filosofia da ciência. Entre os ingleses, o mais importante dos Positivistas Lógicos (que, a propósito, incluem o Primeiro, mas não o Segundo, Wittgenstein) foi A. J. Ayer (refira-se sempre a ele como “Freddie”), que continua a ser conhecido pela sua primeira obra, Language, Truth and Logic, apesar de ele mais tarde ter acabado por pensar que estava tudo errado de uma ponta à outra, o que deve ter sido muito humilhante. Ayer foi também muito influenciado por Russell, inclusivamente na condução da sua extravagante vida pessoal.

Falta discutir um grande movimento do pensamento continental: o estruturalismo e o seu obscuro sucessor, o pós-estruturalismo, que por sua vez parece ter-se tornado no positivamente opaco pós-modernismo.

O estruturalismo começou originalmente com Saussure como um método em linguística, tendo-se alastrado à antropologia com Lévi-Strauss, e desde então nunca mais parou, pelo menos em França e nos departamentos de literatura inglesa das universidades americanas. Quase ninguém admitirá hoje em dia ser um estruturalista e em qualquer caso é muito difícil defini-los com precisão. No entanto, é importante ter ideias firmes acerca deles. São quase completamente ignorados nos departamentos de filosofia britânicos, o que demonstra as preocupações rigorosamente analíticas da filosofia britânica, ou a sua extraordinária insularidade — depende do lado em que o leitor estiver. Certifique-se de que está de um lado qualquer, mas de um apenas. Uma característica do estruturalismo e do pós-estruturalismo é a sua desconfiança em relação às disciplinas académicas, e a sua gíria impenetrável.

Entre os seus expoentes mais importantes incluem-se Roland Barthes (no campo da crítica literária e das suas ramificações sociais), Michel Foucault (história, sociologia e, por fim, sexo) e Jacques Derrida (linguagem, crítica literária, retórica). Este último é em muitos aspectos o mais interessante, apesar de ser também o mais irritantemente obscuro. As opiniões variam imenso quanto ao seu estatuto como pensador: génio ou charlatão, depende do gosto. Aborreceu em especial os filósofos analíticos (quer dizer, os anglo-saxónicos), pelo menos os que se deram ao trabalho de o ler, por tentar mostrar que por debaixo da superfície cuidadosamente cultivada de rigor, lógica, análise e investigação desapaixonada, a filosofia analítica era uma actividade altamente tendenciosa, retórica e subjectiva.

Fê-lo empregando um método conhecido como desconstrutivismo, que se tornou entretanto numa imensa indústria americana. Consiste essencialmente em mostrar que qualquer obra literária gera necessariamente dentro de si mesma contradições fatais, minando assim o argumento que avança ostensivamente.

Note-se que de facto o desconstrutivismo se desconstrói a si mesmo (um pouco como o Tractatus de Wittgenstein), um facto que não parece preocupar os próprios desconstrutivistas (para grande irritação dos filósofos analíticos: esta pode ser uma técnica que valha a pena imitar).

A grande vantagem do pós-modernismo é que ninguém, incluindo os seus expoentes, faz ideia do que seja. Dizer de uma coisa (ou, na verdade, seja do que for) que é “pós-moderno” é um golpe útil muito usado pelos seus defensores principais, incluindo Deleuze e Baudrillard.

As melhores estratégias a adoptar com a filosofia continental em geral são as seguintes:

  1. Afirmar que não faz, literalmente, sentido.
  2. Dizer, causticamente, que seja ela o que for, não é filosofia (a estratégia analítica);
  3. Comentar cuidadosamente que não deve ser afastada irreflectidamente. (Esta técnica funciona melhor quando alguém está a defender uma das duas outras ideias.)

Algumas técnicas úteis

Oferecemos nesta secção um pequeno guia para algumas das mais importantes técnicas do especialista instantâneo filosófico; as outras podem ser inferidas a partir do resto do texto.

1. A pergunta

É sempre uma boa ideia ocultar os seus comentários numa pergunta, em especial se não faz qualquer ideia do que está a falar, o que acontece mais ou menos 85 por cento das vezes em filosofia. Assim, deve preferir “Não achas que isso pressupõe algumas premissas implausíveis?” a “Isso pressupõe algumas premissas implausíveis”.

2. A ambiguidade

Nunca se comprometa: se for possível ser ambíguo, e em filosofia isso é quase sempre possível, então seja ambíguo. Deixe em aberto algumas saídas para se poder escapulir. Uma vantagem desta atitude, que vem mesmo a propósito, é conferir ao especialista instantâneo um ar de cautela intelectual culta. Deve cultivar-se expressões como “Pelo menos a mim, parece-me que” (quando não lhe parece) ou “Estou inclinado a pensar que” (quando não está) e “Talvez existam boas razões para isso” (particularmente quando é óbvio que não existem). O especialista instantâneo filosófico diplomado nunca dirá seja o que for do qual não se possa escapar com calma e sem dificuldades, se isso se tornar necessário. Neste aspecto, é muito parecido com o filósofo profissional.

3. O tom

É importante que faça os seus comentários no tom de voz apropriado; deve falar devagar, pausada e concentradamente. Tente dar a impressão de que tudo o que diz foi cuidadosamente pensado: vai ver que o disparate mais banal pode parecer inteligente e profundo.

4. A Aparência

Muitos especialistas instantâneos competentes noutros aspectos desperdiçam a sua oportunidade de glória por não darem uma atenção suficiente à aparência. Em termos gerais, há dois tipos de filósofo:

  1. O Super-Homem nietzschiano, preciso, arrumado, impecavelmente vestido;
  2. O Destroço Humano inacreditavelmente desalinhado, desarrumado e com um ar ausente.

O último é talvez mais comum, mas o primeiro não é de maneira alguma desconhecido, e a verdade é que uns modos suaves, frios e controlados dão montes de vantagens; enquanto que, por outro lado, a extraordinária excentricidade do Agostinho da Silva é muito difícil de levar até ao fim. Assim, se não houver uma razão especial para fazer outra coisa, recomendamos a aparência 1, a menos que sofra de uma desqualificação pessoal que o diminua profundamente, como, por exemplo, a psique de Frankenstein aliada ao sentido estético do Marco Paulo. A hipótese 1 é particularmente recomendável para as mulheres: ganham uma audiência indubitavelmente melhor.

5. A enumeração

O que se espera da filosofia é que seja uma actividade metódica e precisa, que trata de assuntos confusos e difíceis de maneira lógica, rigorosa e lúcida (a sério). O verdadeiro especialista instantâneo de sucesso é o que consegue dar a impressão de estar a fazer isto, quando na realidade está a fazer precisamente o contrário; e uma ajuda para fazer isto é a enumeração. “Isso parece-me levantar pelo menos três questões” é um bom começo, especialmente se nenhuma se levantar. Quantas mais questões conseguir levantar, melhor. Em geral, atire para cima: três é o mínimo, quatro é adequado e sabe-se que seis ou até mesmo sete questões conseguem causar uma destruição devastadora. Confie na sorte e na inventividade para conseguir ir arranjando questões à medida que for avançando. Em qualquer caso, se o número de questões for apreciável, o seu adversário perderá facilmente a conta.

6. Os Adereços

Estamos agora a chegar ao estágio mais avançado, e a maior parte dos grandes entusiastas cultivam o uso de pelo menos um adereço. Para os homens o mais eficiente e versátil é o cachimbo. Muitos filósofos genuínos fumam cachimbos. A razão é provavelmente evidente: se lhe fizerem uma pergunta realmente embaraçosa, ou se por outro motivo qualquer ficar encurralado, basta tirar o cachimbo do bolso (o leitor acabará por descobrir que o resultado disto é o bolso ficar particularmente nojento ao fim de alguns dias: mas também os especialistas instantâneos têm ossos do ofício, como toda a gente), depois de fazer um comentário preliminar como “Bom, o que é realmente importante em relação a isso parece-me ser talvez o seguinte”, começando então a acendê-lo. Qualquer especialista instantâneo consegue fazer durar esta operação pelo menos por cinco minutos sem qualquer dificuldade, e com alguma prática por muito mais tempo; e desde que resmungue um comentário ocasional de uma natureza inteiramente não comprometedora à medida que bate, limpa, raspa, sopra, desmonta, volta a soprar, remonta, sopra mais uma vez, ataca, calca, volta a bater, acende, puxa, reacende, volta a calcar, puxa mais uma vez e emite finalmente grandes nuvens de fumo nocivo, ninguém suspeitará que está só a fazer tempo. Se o fizer suficientemente bem, conseguirá evitar completamente responder à pergunta.

Outros adereços e tiques sociais, como oferecer cigarros, limpar óculos, assoar enérgica e cuidadosamente o nariz, ou até mesmo fingir um ataque de tosse, têm a sua utilidade, mas nenhum consegue bater o cachimbo, que consegue também, por qualquer motivo, fazer com que seja quem for que o esteja a fumar pareça uma pessoa culta.

7. A linguagem

Seleccione algumas expressões da gíria filosófica cujo som lhe agrade; depois use-as a torto e a direito. E não se esqueça da Regra de Ouro: nunca diga seja o que for em português se puder dizê-lo em qualquer outra língua (de preferência alemão).

8. Ganhe tempo

Nunca fica mal declarar, com um ar de profunda seriedade, que terá de pensar mais sobre a questão em causa. Esta é também um técnica com um duplo efeito, uma vez que por um lado afasta a obrigação de dizer seja o que for que o possa comprometer, e por outro lado porque costuma fazer com que o seu adversário se sinta inferior. Este último efeito é especialmente conseguido quando o assunto em questão não podia de facto ser mais óbvio. Não se esqueça: arranje sempre maneira de complicar o que é essencialmente simples.

9. Pretensão de profundidade

Este aspecto está, é claro (repare neste “é claro”: adequadamente usado, é uma arma de um poder conversacional devastador), estreitamente relacionado com a técnica anterior: “Na verdade, isto é muito mais difícil do que a maior parte das pessoas suspeita” é uma excelente afirmação para usar numa crise.

10. A invenção

Se alguma vez estiver realmente apertado, sem qualquer possibilidade de fuga, não subestime o poder da pura invenção. Descartes comentou uma vez que não existia qualquer doutrina, por mais absurda que seja, que não tivesse já sido sustentada por um filósofo qualquer. Com esta pista, sinta-se livre para inventar filósofos à vontade. Para isto, o ideal são os metafísicos alemães pouco conhecidos do século XIX. Pode usar por exemplo Heinrich Niemand, Professor de Filosofia dos Lacticínios na Universidade de Bad Homburg, um homem maravilhoso que, para além de ter a virtude de nunca ter realmente existido, nos tira de todo o tipo de dificuldades: “Bom, pode ser idiota, mas era o que Niemand dizia”, afirma o especialista instantâneo nestas ocasiões, o que em geral funciona às mil maravilhas.

O que a filosofia não é

Uma concepção errada, mas habitual, vê a filosofia como qualquer coisa que na verdade é mais ou menos como a religião. Uma boa estratégia a adoptar em relação a isto é observar que a filosofia trata de questionar e fazer desmoronar os dogmas, ao passo que a religião trata unicamente da sua aceitação e defesa.

O leitor irá igualmente encontrar pessoas (se não tiver cuidado) que afirmam estar interessadas numa coisa chamada “Filosofia Oriental” ou “Misticismo Oriental”. Só há uma coisa a fazer quando confrontado com este tipo de pessoa: faça notar firmemente que, seja a Filosofia Oriental ou o Misticismo Oriental o que forem, não são filosofia. Seja firme em relação a isto. Isto não é subestimar os praticantes desta arte arcaica: algumas pessoas dão-se bastante bem e o misticismo pode levar-nos longe.

Nota: como ser um místico

  1. Invente alguns paradoxos sem sentido (tais como “a única verdadeira luz encontra-se nas trevas” ou “cada passo em frente é um passo atrás”).
  2. Use com um ar misterioso provérbios sem qualquer significado (tais como “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão” ou “quanto maior é a altura, maior é a queda”).
  3. Professe uma crença em pelo menos um absurdo metafísico palpável, tal como na afirmação que Tudo é o Uno Único ou que a Realidade Comum é meramente uma Ilusão Básica em Comparação com a Vera Luz da Divindade. Não se esqueça de falar com Letras Maiúsculas.
  4. Dê a entender de maneira obscura que a Via para a Iluminação, apesar de Longa e Árdua, será no Fim Cumprida; e sugira que um bom método para o conseguir é entrar numa Relação Física de Comunhão consigo mesmo.
  5. Adopte permanentemente um Sorriso Benigno, que para todos os efeitos práticos não se consiga distinguir do Esgar Inane.

Glossário

Não se esqueça da Regra de Ouro do Especialista Instantâneo: as coisas soam sempre melhor em línguas que as pessoas não sabem. Por qualquer razão, isto é especialmente verdade do alemão. Assim:

Mas o especialista instantâneo não consegue safar-se só com o alemão. Tem de ter alguma ideia (ainda que ténue) do vocabulário técnico português.

Sobre o autor

Nascido na Nigéria por motivos fiscais em 1957, Jim Hankinson evidenciou na mais tenra infância um espírito naturalmente inquisitivo, que teve como consequência uma propensão para fazer muitas perguntas (algumas das quais altamente impertinentes), o que levou muitos observadores a prever uma carreira em filosofia e muitos outros a prever uma morte precoce. Na escola era universalmente reconhecido como uma inteligência sem par; mas hoje em dia, por força da ingestão persistente de álcool, é apenas uma inteligência perdida.

Passou o período da sua licenciatura no Balliol College, em Oxford, onde aprendeu que a Superioridade Sem Esforço pode ser difícil, e que cultivar a ociosidade e a degenerescência dá imenso trabalho.

Depois de obter, para grande surpresa de toda a gente, uma boa licenciatura, passou um período em banhos de sol a tempo inteiro, em Creta, antes de escrever a sua dissertação de doutoramento no King’s College, em Cambridge, numa área da filosofia tão obscura que ninguém podia realmente examiná-lo. Com base nisto, ensinou (no sentido fraco da palavra “ensinar”) filosofia na Grã-Bretanha, no Canadá e nos Estados Unidos, tendo-se sempre esforçado por conseguir iludir as autoridades fiscais.

Um defensor do valor da disciplina rigorosa e da automotivação, o Autor faz questão de trabalhar todos os dias (incluindo aos sábados) pelo menos cinco minutos. Os seus outros interesses, quando a azáfama do trabalho o permite, incluem o cinema europeu, a fermentação de cerveja e o desenvolvimento de fantasias cada vez mais complexas e improváveis envolvendo Claudia Schiffer.

Jim Hankinson
Livro original publicado pela Gradiva/Público.
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ISSN 1749-8457