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4 de Abril de 2004   Lógica

Conteúdo empírico: um dogma persistente

Célia Teixeira

A crença na lei da contradição é uma crença acerca de coisas, não é apenas uma crença acerca de pensamentos. Não é, por exemplo, a crença de que se pensamos que uma certa árvore é uma faia, não podemos ao mesmo tempo pensar que não é uma faia; é antes a crença de que se uma árvore é uma faia, não pode ao mesmo tempo não ser uma faia. Logo, a lei da contradição é acerca de coisas e não apenas acerca de pensamentos. [...] Se aquilo em que acreditamos quando acreditamos na lei da contradição não fosse verdade acerca de coisas do mundo, o facto de sermos compelidos a pensar que é verdade não salvaria a lei da contradição de ser falsa; e isto mostra que a lei não é uma lei do pensamento. (Bertrand Russell, The Problems of Philosophy, p. 50)

É comum encontrar-se nos livros de filosofia afirmações como a de que as verdades da lógica não têm conteúdo factual, que nada dizem acerca do mundo, e, como tal, são imunes à refutação pela observação. Este é um dos dogmas mais enraizados do positivismo lógico. O objectivo deste artigo é desfazer o dogma.

Para compreender o argumento por detrás do dogma, vejamos as seguintes frases:

1) Portugal vai ganhar ou não vai ganhar.
2) Portugal ganhou.

Para que a frase 2 seja verdadeira, Portugal tem de ganhar; se Portugal perder a frase é falsa. Para sabermos se a frase é verdadeira ou falsa temos de olhar para o mundo: temos de observar se Portugal ganhou ou não.

Vejamos agora a frase 1. Parece que o facto de Portugal ganhar ou perder é irrelevante para a verdade da frase. Se Portugal ganhar, é verdade que ou Portugal ganha ou não ganha. Se Portugal perder, é verdade que Portugal ganha ou não ganha. Deste modo, concluem os positivistas, a frase nada tem a ver com Portugal nem com o facto de ele ganhar ou não, nem com coisa alguma. Uma vez que para sabermos que a frase é verdadeira não precisamos de olhar para o mundo, então a frase nada exprime acerca do mundo: não tem conteúdo factual. Daí que não seja de estranhar que se substituirmos a frase “Portugal vai ganhar” por uma qualquer outra frase, a frase que resultar desse processo será sempre verdadeira. Por exemplo, se substituirmos “Portugal vai ganhar” por “a neve é branca” ficamos com a frase verdadeira “Ou a neve é branca ou a neve não é branca”. Se substituirmos por “Existem unicórnios” chegamos ao mesmo resultado, e isto acontece para qualquer expressão gramaticalmente admissível. E o mesmo acontece para todos os outros casos de verdades lógicas.

Passemos então a ver as teses por detrás deste tipo de argumento.

Tese I

A primeira tese é a de que se uma dada frase é verdadeira seja o que for que aconteça no mundo, então nada diz acerca do mundo.

Antes de podermos refutar a tese I é preciso distinguir dois tipos de verdades: as verdades contingentes e as verdades necessárias. Diz-se que uma verdade é contingente se for verdadeira mas poderia ter sido falsa. Por exemplo, Jorge Sampaio ganhou as últimas eleições presidenciais, mas poderia não ter ganho. Esta é, portanto, uma verdade contingente. Já a frase Jorge Sampaio existe ou não existe, é uma verdade necessária, dado que não poderia ter sido falsa. Ou seja, não há qualquer circunstância em que isso poderia não se verificar. Assim, o que os positivistas defendem é que as verdades necessárias não têm conteúdo factual. (Note-se que os positivistas não aceitam termos modais como o de possibilidade e necessidade, mas como nós aceitamos não há problema em reformularmos a tese deles apelando a tais noções.) Contudo, do facto de não existir circunstância alguma em que algo não seja o caso, não se segue que esse algo não seja acerca do mundo. Por exemplo, aconteça o que acontecer no mundo, eu seria sempre igual a mim própria, mesmo que não exista. Mas certamente que essa frase diz algo acerca do mundo, nomeadamente, que o mundo é tal que eu serei sempre igual a mim própria. Do mesmo modo, do facto de a neve ser branca ou não em todas as circunstâncias possíveis, não se segue que essa frase não seja acerca de coisa alguma. É claro que é; nomeadamente, é acerca do facto de que o mundo, por mais diferente que seja, nunca poderá ser tal que a neve seja branca e não seja branca ao mesmo tempo. Se o mundo não tivesse uma estrutura lógica, se fossem possíveis impossibilidades, então seria o caso que a neve era e não era branca ao mesmo tempo. Mas as impossibilidades não são possíveis.

Segundo esta tese positivista, todas as frases necessárias diriam a mesma coisa, nomeadamente, nada. Mas certamente que a frase “a neve é branca ou a neve não é branca” diz algo diferente da frase “Portugal ganha ou Portugal não ganha”. Nomeadamente, a primeira frase é acerca do facto necessário de a neve ser ou não branca, e a segundo acerca do facto igualmente necessário de Portugal ganhar ou não.

Alguns filósofos defendem que frases como “A água é H2O” e “Sócrates é um ser humano” são necessárias. Se a tese positivista fosse correcta, o que estes filósofos estariam a dizer é que estas frases nada dizem nada, o que é absurdo.

Tese II

A segunda tese positivista é a de que se não precisamos de observar o mundo para saber que uma frase é verdadeira, então esta nada diz acerca do mundo. Por exemplo, não precisamos de olhar para o mundo para sabermos que ou chove ou não chove. Logo, se a tese II fosse correcta, a frase “Chove ou não chove” não seria acerca do mundo. Mas se não é acerca do mundo é acerca do quê? Será que pelo facto de podermos descobrir coisas pelo pensamento apenas se segue que isso não é acerca do mundo? Ou seja, pelo facto de eu saber pelo pensamento apenas que se juntar dois objectos mais dois obtenho quatro objectos será que se segue que isto não é um facto acerca do mundo? Pelo contrário, parece que é um facto acerca do mundo: nomeadamente, é acerca do facto de o mundo ser tal que sempre que juntamos dois objectos mais dois objectos obtemos quatro objectos. Também parece evidente que eu posso saber pelo pensamento apenas que existo; mas isto é com toda a certeza um facto acerca do mundo, e não acerca de nada.

Um exemplo mais flagrante de que esta tese não pode ser correcta é aquele que podemos retirar da física teórica. Muita da física teórica que se faz hoje em dia tem por base a matemática pura. Ou seja, os físicos chegam a resultados com base na matemática. É claro que eles têm como objectivo resolver problemas empíricos, e também é claro que eles depois testam empiricamente os resultados assim obtidos. Mas isso é irrelevante para o caso. A verdade é que os físicos constroem hipóteses físicas com base na matemática apenas, ou seja, pelo puro pensamento apenas. Será que por esse facto esses resultados não são acerca do mundo? Claro que são.

Por exemplo, durante muitos séculos julgou-se que o espaço era euclidiano (ou plano). Muitos anos antes de se testar tal tese foram desenvolvidos outros tipos de geometrias, as chamadas geometrias não-euclidianas (que pressupõem o espaço curvo). Mais tarde chegou-se à conclusão que o espaço obedecia aos axiomas da geometria não-euclidiana. Se os positivistas tivessem razão, não poderíamos ter chegado a uma tal conclusão. Porquê? Porque as geometrias não-euclidianas (assim como as euclidianas) foram obtidas sem olhar para o mundo, pelo pensamento apenas. Logo, não poderiam ter conteúdo factual. E se não tivessem conteúdo factual, não poderíamos concluir que elas espelhavam a estrutura real do espaço.

A tese II diz-nos que se chegamos a uma verdade pelo pensamento apenas, então essa verdade não tem conteúdo factual. A questão agora é saber como chegaram os positivistas a tal tese. Não parece que esta tese possa ser formulada com base na observação do mundo. Afinal que tipo de observação poderia suportar tal tese? De modo que os positivistas só poderiam chegar a tal tese pelo pensamento apenas. Mas isto refuta a própria tese, pois se eles tivessem razão, a tese nada diria acerca do mundo.

Tese III

Segundo esta tese se uma frase não poder ser empiricamente refutada, nada diz acerca do mundo.

Por exemplo, não é possível refutar a frase “a neve ou é branca ou não”, porque esta exprime uma verdade necessária. Será que daqui se segue que então nada diz acerca do mundo? Se nada diz acerca do mundo diz acerca do quê? É obvio que esta frase diz qualquer coisa. E também parece evidente que aquilo que diz é diferente daquilo que diz a frase “Nenhum solteiro é casado”. Nomeadamente, a primeira é acerca da neve e a segunda é acerca de solteiros e do facto de nenhum deles ser casado. De modo que estas frases dizem qualquer coisa acerca do mundo, apesar de não poderem ser empiricamente refutadas.

Se for verdade, como muitos filósofos defendem e como é difícil recusar, que a água é necessariamente H2O, então não é possível refutar esta afirmação. Mas é evidente que esta afirmação é sobre o mundo. Poder-se-ia responder: metafisicamente, não se pode refutar esta afirmação, porque é verdadeira em todas as circunstâncias possíveis. Mas logicamente pode-se refutá-la, porque não é uma verdade lógica. Mas isto é só uma maneira de voltar a formular o dogma: que as verdades da lógica nada nos dizem acerca do mundo. Ora, o que se pretendia com este argumento era defender esta ideia, e não voltar a formulá-la de uma maneira enviesada.

A tese III enfrenta problemas ainda mais graves quando levarmos em consideração o projecto empirista no seu todo. Os positivistas não acreditavam numa série de coisas, como na existência de princípios morais, metafísicos ou o que quer que seja que não fosse estabelecido cientificamente. Ora, a tese III só pode fazer sentido na medida em que apela à noção modal de possibilidade, que é um dos bichos por eles abandonados como criaturas esquisitas. Aquilo que a tese III diz é que se não for possível refutar uma certa frase, então esta nada diz acerca do mundo. Uma vez que eles não podem apelar à noção modal de possibilidade resta-lhes reformular a tese do seguinte modo: se não refutarmos uma frase, esta nada diz acerca do mundo. Tendo em conta que muitas verdades estabelecidas pela menina dos olhos dos positivistas, a ciência, não foram refutadas, elas nada dizem acerca do mundo. E isto é um resultado absurdo mesmo para os positivistas.

Célia Teixeira

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