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1 de Março de 2004   Filosofia da ciência

Pensamento teleológico

Miguel Amen
Darwin and Design: Does Evolution Have a Purpose?
de Michael Ruse
Harvard University Press, 2003, 384 pp.

O título deste livro é enganador, pois o objectivo de Michael Ruse não é investigar se a evolução darwinista tem alguma finalidade última que guie os vários processos de variação e selecção, mas sim a de averiguar qual o lugar do pensamento teleológico, qual o lugar de conceitos como desígnio, causas finais, função e propósito, no estudo da biologia e em particular qual a sua aplicação aos organismos e as suas propriedades. Enquanto a primeira formulação questiona se a evolução darwinista leva necessariamente ao Homem ou a seres inteligentes, ou a seres cada vez mais complexos ou a outro plano que seria o fim último do processo evolutivo, a abordagem de Ruse questiona o significado na biologia da aparência de desígnio nos organismos. Por exemplo, os olhos das mais variadas espécies, por diferentes que sejam, têm a mesma função e o propósito de permitir a visão aos organismos. Por um lado, esta linguagem é natural e extensivamente usada na biologia, mas, por outro lado, falar de propósitos e funções remete-nos para uma intenção e para o ser que a teve, o que já não é assim tão natural em ciência, que normalmente trabalha com relações causais. Quando referimos os artefactos humanos e dizemos que servem para isto ou para aquilo, por exemplo, que o propósito dos travões é para travar e da faca para cortar, sabemos que assim é porque alguém assim quis e fez, adequando os meios aos fins. Exactamente o mesmo parece acontecer na natureza quando contemplamos os organismos, como o caso do olho nos sugere claramente, apelando assim a uma intencionalidade criativa por detrás da origem dos seres vivos. Desde que Darwin publicou A Origem das Espécies, em 1859, que supostamente este modo de explicação, a explicação teleológica, deveria ter sido banida da biologia; no entanto, os biólogos continuam a usar as noções de propósito e função com não menos frequência que nos tempos pré Darwin.

Ruse aborda este problema através de uma análise histórico-filosófica do argumento do desígnio. Numa primeira parte, até ao capítulo 11, somos expostos a uma análise do pensamento relevante para a biologia dos vários personagens centrais para a evolução da compreensão biológica, desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho, Hume, Paley e Darwin, prosseguindo através dos pensadores responsáveis pela síntese moderna do darwinismo com a teoria genética de Mendel, até à actualidade. No último capítulo do livro aborda-se o novo desafio lançado na última década do século passado por alguns pensadores americanos a favor de um Arquitecto Inteligente. Numa abordagem mais histórica do que filosófica, vemos como o pensamento teleológico tem sido uma presença incontornável na explicação biológica ao longo de mais de dois mil anos. Como é necessário para a investigação que Ruse se propõe fazer, é feita uma defesa extensa do darwinismo, onde se aborda o desenvolvimento, génese, e é explorado o impacto e a reacção que provocou. Pode-se dividir o impacto e a reacção ao darwinismo em três espaços temporais, desde a publicação da Origem das Espécies, em 1859, até por volta de 1900, na qual começou rapidamente, devido à força dos argumentos, a ser aceite na comunidade científica e mais devagar mas com menos aceitação, na sociedade em geral. Deus, afinal de contas, podia criar como quisesse, e se ele escolhe criar através da seleção natural, é lá com ele, pensaram alguns. Contudo, o darwinismo como ciência não se desenvolveu, em parte devido à falta de um mecanismo hereditário que desse bases à teoria da seleção natural, mas também devido à forma como a teoria de Darwin rapidamente se associou a teorias políticas progressistas e se tornou a religião do ateísmo. Passamos assim para o segundo período, no fim do século XIX princípio do século XX, onde a ideia de evolução ficou de alguma forma associada a má ciência e demasiado impregnado de ideologia, veículo das mais loucas proclamações de progresso humano e tecnológico, que dá origem, mais tarde, nos anos 20, ao Processo de Scopes, em que os fundamentalistas cristãos norte-americanos levam a tribunal um professor por ensinar a teoria da evolução. Por volta de 1930 e até aos nossos dias assiste-se primeiro à consolidação do darwinismo como teoria científica através da fusão da teoria da seleção natural com a teoria genética de Mendel e mais tarde à sua completa aceitação por parte da sociedade, com excepção de alguns sectores fundamentalistas cristãos a operar sobretudo nos Estados Unidos, na chamada “Bible Belt”.

Ruse mostra-nos o amadurecimento científico do darwinismo ao longo destes 150 anos, simultaneamente expondo o que os personagens centrais neste processo pensavam do argumento do desígnio e a importância da teleologia.

Do capítulo 12 em diante, Ruse muda para um registo mais filosófico e apresenta e desenvolve a sua posição. O que justifica o uso do pensamento teleológico em biologia, é-nos dito, não é o facto de os organismos serem o fim de uma vontade criadora; afinal de contas, o darwinismo mostra como os organismos podem ser melhor explicados recorrendo à selecção natural. O que justifica é o facto de os organismos estarem adaptados às condições de vida em que se encontram. É porque os organismos exibem adaptações que parecem ter sido criados com o fim de existirem nas condições em que se encontram. Se os organismos não exibissem adaptações, então não dariam a aparência de terem sido criados, mas também não teriam sido seleccionados. Mas porque foram seleccionados pelo mecanismo que Darwin propôs segue-se que exibem adaptação e consequentemente parece que foram criados. Para Ruse, o modo teleológico usado em biologia não deve ser tomado de uma forma literal, que é de facto impedido pela explicação darwinista, mas sim como uma metáfora que abre pontos de partida para a investigação do mundo orgânico — metodologicamente, o uso do pensamento teleológico é rico. O uso da teleologia é justificado pelo simples facto de haver adaptação. Como ele nos diz muitas vezes e de formas diversas “a biologia tal como a conhecemos ficaria terrivelmente empobrecida sem uma perspectiva que perguntasse — para quê?”. Neste ponto, Ruse concorda com todos aqueles que no passado defenderam a importância do ponto de vista teleológico na biologia.

Como o argumento do desígnio é central para Ruse, pois a sua análise é necessária para rejeitar um tipo de resposta (aquela que justifica a teleologia com base na criação divina) no que se segue vou fazer uma breve análise do argumento e veremos o que Ruse pensa sobre o assunto.

Tanto antes como depois de Darwin sempre houve quem desse uma resposta diferente da de Ruse quando se perguntou, ao longo dos anos, por que razão a teleologia parece ser rica na explicação biológica. Antes de Darwin, pois não parecia haver outra explicação, e depois de Darwin devido a dúvidas na capacidade do mecanismo proposto para realizar e produzir a complexidade orgânica, a resposta muitas vezes dada era a de que os organismos exibem características e propriedades que sugerem a marca de um criador, porque na realidade foram criados por Deus.

Este tipo de pensamento, que olhava para a natureza, acima de tudo para a natureza viva, para identificar as marcas do Criador, desenvolveu-se sobretudo na Inglaterra nos séculos precedentes a Darwin, em grande parte como resultado da reforma anglicana que devido a motivos de ordem tanto política como teológica, defendeu que a bíblia dava suporte ao uso da razão e da informação encontrada na observação da natureza para se decidir não só em matérias de ordem natural como em matéria de fé e doutrina. A Bíblia e o Papa deixavam deste modo de ser os únicos meios de se chegar aos desígnios divinos abrindo assim espaço para o desenvolvimento da teologia natural.

William Paley foi provavelmente o maior expoente da teologia natural, e nele vemos o emprego de argumentos e factos naturais colocados em uso de forma elegante para demonstrar a existência do Criador.

Paley convida-nos a examinar um relógio que tenhamos encontrado ao passear no bosque; a reparar na complexidade e engenho que denota; como as suas partes estão colocadas de modo a contribuir para o resultado final, de tal forma que a mais pequena alteração de uma parte decerto levaria ao mau funcionamento do todo, tornando o relógio inútil para o propósito de nos dizer o tempo. E perguntando pela “causa desta subserviência [das partes] a um uso, da relação [das partes] para um fim” conclui que “não pode haver desígnio sem criador [...]; organização sem uma coisa capaz de organizar; subserviência e relação para um propósito, sem aquilo que poderia projectar um propósito”. Complexidade e engenho para servir um uso ou fim implicam a presença de inteligência e de uma mente. Como poderia ser de outra forma? Paley pergunta se tal poderia ser resultado de um processo que tivesse nem arte nem engenho e sem mais demoras conclui que tal é um absurdo. A sua conclusão é a de que temos de atribuir a existência do relógio à intenção de um criador. Seguidamente Paley convida-nos a observar a natureza à nossa volta e a comprovar com ele a complexidade e engenho dos organismos que nele habitam. Não só é essa complexidade evidente para o naturalista, mas essa complexidade e engenho ultrapassa em muito aquela exibida nos artefactos humanos, como o relógio. Uma vez demonstrado o engenho e a complexidade orgânica, Paley argumenta que tal complexidade requer explicação. Tal como os artefactos humanos foram produto do desígnio humano, a complexidade orgânica tem de ser resultado do desígnio de um criador; mas devido ao maior, ou mesmo infinitamente maior, engenho e complexidade encontrada nos organismos, este criador tem de ser segundo Paley, Deus. Obtemos assim o tradicional argumento do desígnio.

Convém, contudo, separar claramente as diferentes componentes deste argumento, para melhor se perceber porque é que depois de Darwin se torna irrelevante enquanto depois de Hume poderá ainda ser relevante. Primeiro temos um argumento com base científica; Ruse chama-lhe o argumento a favor da complexidade, e é resultado de responder à seguinte pergunta “tem o mundo orgânico um nível de complexidade que parece requerer alguma forma especifica de explicação?” Como acabamos de ver, Paley responde afirmativamente a esta pergunta, e veremos mais tarde que Darwin (e todos aqueles que se maravilharam e maravilham com o estudo do mundo orgânico) concorda com Paley aqui. No segundo componente do argumento do desígnio, obtemos uma pergunta com importantes elementos teológicos, “supondo que tal nível de complexidade é um facto, necessitamos de uma explicação que apele a uma inteligência divina?” Paley responde afirmativamente a esta pergunta também, mas como sabemos Darwin discorda de Paley. A esta resposta Ruse chama Argumento a favor do desígnio. Juntos o argumento a favor da complexidade e o argumento a favor do desígnio formam o tradicional argumento do desígnio.

O argumento de Paley não é propriamente original, já tinha sido formulado muitas vezes no passado por filósofos e teólogos; contudo Paley teve a vantagem de o formular depois da crítica de Hume, que normalmente é considerada decisiva, dando o que é muitas vezes considerada a resposta oficial da teleologia natural às críticas de Hume, sublinhando, segundo Ruse, um aspecto do argumento que escapa às objecções mais fortes do céptico escocês. A que vamos considerar é a pretensão de que o argumento do desígnio apela a uma analogia entre os artefactos e os organismos para extrair a conclusão de que os organismos foram criados por uma inteligência. Porém prossegue esta crítica, até que ponto são os organismos e os artefactos realmente semelhantes para extrairmos tal conclusão? Afinal de contas, tanto o material como o nível de complexidade e função que os organismos apresentam são muitíssimo diferentes daqueles que se encontram nos produtos da elaboração humana. Que podemos nós realmente inferir das causas dos organismos se eles estão de facto noutro patamar de explicação daquele onde se encontram os engenhos humanos? Contudo, este argumento perde muito da sua força se percebemos melhor o que Paley estava a dizer, ou talvez como ele gostaria de ter sido interpretado. Ele não estava a argumentar que se os organismos são como os artefactos, também têm de ter um criador. Não, o argumento deve ser lido assim: porque os organismos são semelhantes aos artefactos, os artefactos fornecem um modelo para compreender a origem da complexidade orgânica. E este modelo é o melhor que temos. O argumento deve ser entendido como uma inferência a favor da melhor explicação. Uma vez aceite o argumento a favor da complexidade, a necessidade de uma resposta para explicar a adaptação dos organismos é premente. Como Paley pergunta repetidamente, como é que algo sem engenho nem arte poderia dar origem à complexidade organizada? Antes de Darwin, a única teoria que normalmente era proposta como alternativa para explicar a complexidade orgânica era a de que esta tinha sido o resultado de um processo puramente aleatório. Quando colocamos estas duas teorias lado a lado, um processo puramente aleatório e a criação divina, e perguntamos qual delas melhor explica os factos, a resposta foi sempre a mesma; supondo a ausência de uma vontade criadora qual é a chance de um processo puramente aleatório produzir as maravilhas orgânicas que nos rodeiam? A resposta normalmente dada era a de que parecia ser muito difícil senão mesmo impossível tal acontecer, o que de facto é difícil de duvidar. Mas supondo uma vontade criadora por detrás da complexidade orgânica (mais uns detalhes acerca das intenções do criador! Mas podemos deixar isso de parte por ora) então a probabilidade é absoluta. Se deus existe, então é possível explicar a complexidade orgânica. Logo, a explicação divina oferece a melhor resposta ao argumento a favor da complexidade.

A crítica de Hume fica assim muito mais limitada na sua aplicação, pois o defensor do argumento do desígnio pode sempre dizer a Hume que, por mais duvidosa que seja a analogia entre organismos e artefactos, há sempre alguma semelhança, e por mais ténue que seja esta semelhança para ser o ponto de partida para o modelo proposto, é sempre melhor do que as teorias concorrentes. É por isso que Dawkins diz que antes de Darwin não era possível ser um ateu intelectualmente satisfeito. Afinal de contas, os organismos requerem explicação e o ateu não conseguia oferecer nenhuma que fosse convincente.

Só quando Charles Darwin propôs o mecanismo de seleção natural para explicar o porquê da adaptação se obteve uma teoria com suficiente força explicativa e coerência para que lentamente a teoria do Deus criador se tornasse obsoleta, sem que no entanto esta forma de explicação tenha desaparecido completamente, como as tentativas de impor o ensino do criacionismo nas escolas em certos estados dos Estados Unidos da América lamentavelmente nos recorda. Mas, no meio científico, o darwinismo é hoje em dia uma teoria com excelentes credenciais e enforma praticamente todas as actividades no foro da investigação biológica.

Contudo, quando inquirimos acerca das implicações para a teleologia, a explicação de Darwin teve um sucesso duvidoso. Enquanto em Inglaterra Henry Huxley escrevia em 1864 que “a teleologia, tal como é normalmente considerada, recebeu um golpe de morte às mãos do Sr. Darwin”, Asa Gray, o maior defensor de Darwin nos Estados Unidos naquele tempo, escreveu em 1872 “Que o grande serviço de Darwin para as ciências naturais foi trazê-las de volta para a teleologia”. E hoje em dia o caso não está completamente decidido na medida em que a discussão se mantém entre aqueles, como Michael Ghiselin, que acham que Darwin, longe de preservar a teleologia a substitui por uma forma inteiramente nova de pensar sobre as adaptações, enquanto James Lennox pensa que a correcta interpretação de Darwin mostra que esta é “irredutivelmente teleológica”.

A razão desta disparidade de opiniões deve-se sobretudo ao modo como o darwinismo responde ao desafio de Paley. Por um lado, Darwin considerava o argumento a favor da complexidade o facto mais importante da biologia. Os organismos têm propriedades que indiciam concepção, parecem ser o produto de desígnio, têm características com funções claramente definidas; mas, por outro lado, Darwin renuncia ao argumento a favor do desígnio, substituindo-o por um mecanismo, a seleção natural. Assim, enquanto Darwin sublinha a importância do argumento a favor complexidade, está também a fazer notar o facto de que os organismos parecem ter sido concebidos com certos fins em vista. Nesta medida, Darwin pode ser lido como que a validar o uso da teleologia; por outro lado, quando Darwin recusa dar um substrato ontológico a esse uso, recorrendo-se da seleção natural como uma causa cega da adaptação, é visto como que a trazer a biologia para o lado das ciências verdadeiras que recorrerem a causas eficientes nas suas explicações.

Mesmo depois de se compreender que a teoria de Darwin dava uma explicação completa das causas da adaptação dos organismos, o uso da teleologia não desapareceu devido à proeminência que o argumento a favor da complexidade tem na biologia. Este uso tem causado desconforto àqueles que olham para a teleologia como uma ameaça ao estatuto científico da biologia. Por um lado os conceitos teleológicos foram perdendo a sua conexão com Deus, mas, por outro, começaram a ficar associados com forças míticas e sobrenaturais por detrás dos organismos: o vitalismo, tanto na forma apresentada por Hans Driesch recorrendo-se da “entelequia”, como no conceito do “elán vital”, por parte de Henri Bergson, pareciam continuar a não permitir que a biologia se elevasse a uma verdadeira ciência.

Mas talvez o maior problema para aqueles que viam a biologia como necessitando de uma estrutura teórica científica era tanto o facto de a teleologia ser incompatível com a explicação mecanicista das ciências físicas como a preocupação relacionada de que o uso das noções de propósito e causa finais se não fossem naturalizadas poderiam causar problemas devido à inversão do sentido normal da causalidade e ao facto de que o objectivo final que supostamente é a causa, não ser atingido. Ruse analisa várias formas de reduzir a linguagem teleológica, começando por Nagel, onde vemos um esforço de reduzir logicamente a linguagem teleológica à física, e mais tarde através da tentativa tanto de Wright como de Cummins, de fornecer uma análise não teleológica dos usos da noção de função. Para Ruse, contudo, todas as tentativas de dar uma análise não teleológica de explicações biológicas que usem termos teleológicos está condenada ao falhanço pelo facto de que o “propósito se aplica quando valores estão em causa”. O uso de conceitos teleológicos é apropriado quando há valores em jogo, como no caso em que se afirma que a função do olho é fornecer a visão. Ver é um bem, um objectivo que vale a pena ter para um organismo, e por isso o uso da linguagem teleológica justifica-se. Contudo, nenhuma análise que use termos puramente descritivos vai captar a noção de mais-valia que é fundamental para compreender o mundo orgânico. Darwin mostrou como é que a adaptação é possível com uma explicação natural; contudo esta noção trás consigo a ideia de mais-valia das características presentes na adaptação para a sobrevivência e reprodução do organismo. Como já foi mencionado, Ruse acha que este uso deve ser entendido metaforicamente, para explicar os organismos, sem que contudo nos tenhamos de preocupar com problemas causais visto que a seleção natural oferece uma explicação suficiente.

Em 1991, Phillip Johnson, um professor de direito americano lançou o que seria a primeira salva no reavivar das hostes dos defensores da teoria do Criador Inteligente. O livro de Johnson tinha como título Darwin on Trial e nele vemos Darwin a ser julgado, condenado e pateticamente arrastado em correntes. Mais tarde, num verdadeiro salto de sofisticação, Micheal Behe em Darwin's Black Box e William Dembski em vários artigos e livros, o último dos quais intitulado No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot be Purchased Without Inteligence, defendem que um Criador inteligente tem de estar por detrás da complexidade orgânica, pois esta exibe o que Behe qualifica de complexidade irredutível. Vale pena seguir os traços gerais deste argumento. Como exemplo de complexidade irredutível, Behe aponta para uma ratoeira — se esta não possuir no mínimo uma base, uma mola, uma trave para fazer pressão contra a base e se estes elementos constitutivos não estiverem dispostos do modo apropriado, então não temos uma ratoeira. Devido a esta interacção precisa das suas partes e a necessária presença destas para que a função da ratoeira seja possível, esta exibe uma complexidade irredutível, visto que o desaparecimento de uma das partes leva à disfunção do todo. Segundo Behe, certos sistemas, aqueles que exibem complexidade irredutível, não poderiam surgir de acordo com a teoria da selecção natural, pois esta usa o material e características existentes nos organismos como matéria-prima para gradualmente, ao longo das gerações, aperfeiçoar ou desenvolver novas funções. Mas certas funções dos organismos possuem complexidade irredutível e assim não poderiam ser o resultado de pequenas alterações sucessivas; teriam de aparecer de uma só vez a funcionar de forma específica, ou a não aparecer de todo, visto que estas características só são efectivas para o propósito final quando se apresentam a interagir no seu todo. Como os sistemas com complexidade irredutível não poderiam surgir através da selecção natural, pois supostamente não são compatíveis com o gradualismo desta, têm de aparecer de uma só vez prontos a funcionar e a única forma de tal acontecer parece ser através de um momento de criação.

Vemos mais uma vez o uso da inferência a favor da melhor explicação. O mundo orgânico apresenta complexidade irredutível, o darwinismo não consegue fornecer uma explicação, mas se tivesse havido uma intervenção inteligente no mundo, não seria especialmente surpreendente a existência de tais características; logo, é racional pensar que houve Intervenção Inteligente.

Ruse responde começando por fazer notar que ninguém põe em causa que se retirarmos certas partes dos organismos estes deixariam de ser capazes de exercer certas funções. A questão é se estas funções poderiam ter sido o produto da seleção natural. O modo como Behe coloca o problema pressupõe que os modos intermédios na construção de certas funções que exibem complexidade irredutível não podem de maneira alguma contribuir para adaptabilidade do organismo. Mas isto é simplesmente falta de compreensão do modo como funciona a seleção natural. É verdade que se uma certa adaptação F tiver a propriedade de ser irredutivelmente complexa, então os modos intermédios não vão dar aos organismos as capacidades que F dá; contudo não se segue que não dariam outras. Este é afinal o coração do darwinismo. Certas características presentes hoje no organismo, que devem a sua existência a razões da história evolutiva do organismo, são agora usadas pela seleção natural para implantar F. Contudo, esta é uma questão essencialmente empírica, e Ruse dá alguns exemplos de como estas coisas podem acontecer.

Ruse fica-se por aqui, satisfeito em mostrar que o darwinismo consegue explicar a complexidade irredutível. Contudo há mais a ser dito sobre o novo assalto do criacionismo. Não é suficiente mostrar os pontos negativos do darwinismo para que o criacionismo seja vindicado. É necessário que o criacionismo tenha pontos positivos para ser uma alternativa válida. Isto é, pressupondo uma inteligência criadora, que podemos afirmar acerca da existência do mundo orgânico tal como é? Repare-se agora que os modernos defensores desta teoria não estão em melhor posição que Paley para poder avançar sequer um princípio de resposta. Tanto estes como Paley têm de pressupor que tal Inteligência quer de facto criar os organismos tal como eles são para que a sua explicação seja pelos menos tão boa como as opostas. Mas a teoria da inteligência criadora não se baseia no conhecimento das intenções do Criador, mas somente nas capacidades de um criador e somente no mínimo necessário para dar origem aos organismos. Esta Inteligência poderia, de facto, ter uma predilecção por seres de postura erecta e uma inteligência incipiente, mas nós não podemos saber tal coisa com base no argumento do desígnio. Talvez na verdade tal ser favoreça um mundo tranquilo sem vida tal como a conhecemos. Quem pode decidir em tais matérias? Às vezes é-nos dito que deus é bom e por isso nos criou. Mas há dois erros fundamentais neste argumento. Primeiro, como acabamos de ver, nada acerca da bondade de deus se segue do argumento do desígnio. O que acontece é que normalmente se tem uma ideia mais ou menos definida de algumas características divinas que provêm da tradição religiosa que se usa depois para argumentar a favor da necessidade dos organismos. Mas tal é terrivelmente vicioso, como é claro. É evidente que se soubesse que deus existe com as características (e a vontade de criar os organismos) usuais, então seria sempre uma possibilidade séria que os factos acerca da existência terrena se devessem à sua intervenção. Mas o argumento do desígnio quer provar a existência de deus e por isso não o pode pressupor. Em segundo lugar, mesmo que de uma forma independente se pudesse mostrar que tal criador é bom, nada se seguiria, mais uma vez, acerca da existência dos organismos tal como existem. Isto é, não há razão suficiente para inferir que se deus é bom, nos iria criar a nós ou aos organismos tal como existem na terra. Afinal de contas não há qualquer razão óbvia para que não se pudesse criar um mundo orgânico com muito mais perfeição e menos sofrimento. A minha impressão, que nestas matérias vale tanto como outra qualquer, é a de que um criador realmente bom não criaria os organismos tal como existem.

Se toda a concepção encontrada na natureza pode ser explicada como resultado dos processos cegos da selecção natural, segue-se que a teologia natural, que Paley tão bem defendeu está morta. Como Ruse diz, “A revolução darwinista esta acabada, e Darwin ganhou”. No fim do livro, contudo, Ruse sugere que substituamos a teologia natural, por uma teologia da natureza, “que vê e aprecia a natureza orgânica, na sua complexidade e gloriosa adaptação, que se regozija e treme perante ela” e “a nossa compreensão dos organismos é alterada, iluminada e tornada mais completa pela aceitação da existência e poderes criativos de Deus”. Ruse parece dizer-nos que, perante o argumento a favor complexidade, pelo facto de os organismos exibirem extraordinária adaptação, impõe-se uma nova atitude para substituir aquela que encontramos em Paley. Mas Ruse não apela simplesmente a uma nova apreciação da natureza, a necessidade de uma resposta estética perante a maravilha orgânica. Faria sentido apelar ao argumento a favor da complexidade, chamar a atenção para a natureza intricada e engenhosa dos organismos, notar as marcas da concepção e talvez fazer notar que seria apropriado maravilharmo-nos com ela. Mas isto é o que de facto acontece com praticamente todos os que se demoram a estudar as adaptações dos organismos. Tal causa espanto e admiração. Mas introduzir aqui espaço para uma persistência religiosa como a citação acima indica, que de alguma forma nos informa em tais assuntos, nem que seja para nos manter viva esta admiração pela natureza, parece-me de todo descabida, na medida em que tem elementos religiosos. Afinal de contas em Darwin and Design Ruse pretende mostrar que deus não é necessário para compreender os organismos, isto é, os organismos não foram de facto produto da concepção ou desígnio, e consequentemente que a linguagem teleológica não tem carga ontológica.

Este livro consiste numa discussão bastante interessante sobre o problema do desígnio no pensamento evolucionista. Contudo na medida em que se procura aqui um tratamento filosófico exaustivo da questão da teleologia e uma defesa da concepção metafórica que Ruse propõe, o leitor pode ficar algo desapontado. Ruse demora-se ao longo de capítulos inteiros a mostrar os desenvolvimentos científicos do darwinismo. Ele necessita fazer isto para mostrar que o darwinismo consegue explicar a aparente concepção da natureza orgânica. A análise que temos é sobretudo sobre os factos da evolução histórica do darwinismo e as suas implicação para o argumento do desígnio. Se, por um lado, Ruse definitivamente mostra que o mecanismo proposto por Darwin fornece a melhor explicação da adaptação dos organismos, por outro lado a sua defesa da teleologia como metáfora, apesar de apresentada de um modo plausível, não é completamente convincente por falta de um tratamento filosófico mais detalhado.

Miguel Amen

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