Podemos ter razões de tipos diferentes para agir desta ou daquela maneira. São essas razões que influenciam a escolha das acções. Mas nem sempre é fácil escolher a acção apropriada. De facto, por vezes as razões são complexas, de tipos diferentes e pesam a favor de acções contrárias. Não há um método para determinar qual delas tem mais peso nos diversos casos. E também não é possível saber com segurança em que casos as razões morais podem ser suplantadas por outros tipos de razões. Na falta de um método, temos então de pensar arduamente antes de agir. Ao pensamento que considera e avalia razões práticas chamamos “deliberação”. Quando resulta deste tipo de pensamento, uma acção é realizada deliberadamente. Há no entanto acções que, por serem tão habituais, quase não exigem, ou não exigem de todo, qualquer deliberação. Geralmente, o processo de deliberação atende a três tipos de razões: técnicas, prudenciais e morais.
As razões acerca da maneira mais eficiente de fazer alguma coisa são razões técnicas. Os nossos projectos e tarefas quotidianas levantam questões técnicas. Quando cozinhamos, por exemplo, procuramos a melhor maneira de fritar batatas ou grelhar carapaus; se praticamos futebol, procuramos a maneira mais eficiente de jogar no meio campo. Temos então razões técnicas para cozinhar e jogar futebol de certas maneiras. Estas razões são moralmente neutras; logo, não é por termos uma razão técnica para cozinhar e jogar futebol de certas maneiras que estas actividades particulares estão certas ou erradas. Do mesmo modo, o assassino incapaz de ponderar acerca do bem e do mal — o assassino amoral — não deixará de pesar razões técnicas para os seus actos.
E também não deixará de pesar razões prudenciais, pois é de admitir que considere se certos actos satisfazem o seu interesse-próprio, ou o seu bem-estar, a longo prazo. Um acto prudente é então aquele que se prevê ter consequências futuras interessantes para o agente. Requer, por isso, que este tenha a capacidade de projectar as consequências futuras dos actos e de ser por elas motivado. Pessoas razoavelmente prudentes têm esta capacidade mais educada do que pessoas pouco prudentes. Isto explica em parte que umas procurem satisfazer desejos momentâneos a que outras se opõem por razões de prudência. É o caso do estudante aplicado que modera as suas saídas nocturnas para obter vantagens cognitivas de longo prazo; ou do empresário que se abstém de consumir bens de luxo para investir na melhoria da capacidade produtiva da sua empresa.
As razões prudenciais são distintas das razões morais. Todavia, pesar cuidadosamente razões prudenciais conduz em muitos casos a um comportamento que é correcto do ponto de vista moral. Isso implica que comportamentos incorrectos do ponto de vista moral geralmente sejam também imprudentes. Há por isso quem veja no interesse-próprio esclarecido um importante princípio moral. Dado que é esclarecido, este interesse-próprio não é estreito e egoísta, consistindo antes na consideração dos interesses de todos os que são afectados pelas nossas escolhas. Esta é uma consideração tipicamente moral. Logo, o interesse-próprio esclarecido serve-se inteligentemente de razões morais. E, de facto, não é prudente ser apenas prudente.
Há razões morais que contrariam acções eficientes e prudentes. Por razões prudenciais, o estudante aplicado modera as suas saídas nocturnas. Se ocorrerem circunstâncias em que, pela mesma razão prudencial, se abstém de socorrer um amigo que se encontra doente e a precisar da sua ajuda, parece razoável concluir que o seu comportamento é incorrecto do ponto de vista moral. Como tantos outros, este é um caso em que razões morais e razões prudenciais recomendam acções diferentes e incompatíveis. As nossas intuições morais comuns apoiam a alternativa de ajudar o amigo doente. Além disso, as considerações morais são intuitivamente reconhecidas como prioritárias em relação ao interesse-próprio esclarecido. É por isso que actos como matar ou agredir, ainda que as suas vantagens de longo prazo sejam grandes, estão à partida excluídos do processo de deliberação por razões morais.
Muitos casos, todavia, não são óbvios e não é claro que acção é moralmente certa, ou que acção é mais plausível do ponto de vista moral. A ponderação cuidadosa desses casos enfrenta conflitos, que podem ser de dois tipos: aqueles em que há disputa entre razões morais e razões prudenciais e aqueles em que há disputa entre diferentes razões morais. Este último tipo de conflito faz da deliberação um processo especialmente duro — tão duro que talvez não seja possível eliminar os conflitos entre razões morais e tomar uma decisão que inspire confiança. Vejamos um desses casos.
Um médico vê-se na necessidade deliberar cuidadosamente para decidir qual dos três doentes seguintes deve tratar. Os três são casos urgentes da mesma doença, que tem neles sintomas e efeitos muito semelhantes. O tratamento a aplicar será igualmente bem-sucedido em cada um dos casos. A é um seu paciente de longa data; B foi-lhe enviado por um colega; C é um estrangeiro que participa numa conferência de matemáticos, na qual participam também A e B. O médico sabe que B tem tido uma vida desafortunada e sofre de outros problemas sérios de saúde; que C tem um outro problema de saúde menos sério e que A tem apenas este. E sabe ainda que C promete ter uma carreira brilhante num ramo da matemática pura, se curado desta doença, enquanto A é menos talentoso e B ainda menos.
O médico considera que há três tipos de razões morais aplicáveis neste caso: razões de igualdade, de excelência e de direito. Cada uma destas razões ordena as alternativas do seguinte modo:
O conflito entre razões morais é evidente. Como se desenvolve a partir daqui o processo de deliberação? Até agora ordenámos as alternativas a partir de cada razão moral tomada isoladamente. A partir daqui teríamos de ordenar as alternativas ponderando qual a melhor relação entre estas razões morais no caso em apreço. Trata-se de pesar e contrabalançar razões. Nada disto é fácil e não há um método estabelecido que liberte cada um da dificuldade de pensar pela própria cabeça, discernindo uma solução satisfatória. Pode não ser possível chegar a uma decisão que resolva, ou atenue, o conflito entre razões morais. Isso não implica tomar uma decisão errada. O que é errado, isso sim, é pressupor que os conflitos morais são sempre elimináveis. Mas uma coisa é decidir por uma das razões em conflito sem ponderação; outra é decidir por uma das razões em conflito depois de um processo de deliberação cuidadoso. Nisso reside toda a diferença entre um deliberador sofisticado e um moralista dogmático.
Uma decisão é racional se resulta de um processo de deliberação cuidadoso. De modo algum isso quer dizer que estamos seguros de que é correcta. Podemos ter dúvidas de que é a decisão tecnicamente correcta, ou de que é a decisão prudencialmente correcta, ou ambas. Frequentemente, temos ainda mais dúvidas de que é a decisão moralmente correcta. Fugir às perplexidades naturais de quem enfrenta decisões difíceis é que não seria racional. Mas não faltam situações mais afortunadas em que estamos seguros da correcção técnica, prudencial e moral da decisão tomada. Talvez não fosse possível viver de outro modo. E também estamos seguros de que, para ser racional, uma decisão terá de atender às razões técnicas, prudenciais e morais do caso, não evitando as dificuldades consideráveis que estas últimas levantam. É errado pretender que uma decisão é racional apenas porque satisfaz inteligentemente o interesse-próprio de longo prazo. Decidir racionalmente envolve sabedoria moral.
Faustino Vaz