Início Menu
17 de Fevereiro de 2006   Filosofia política

Liberdade de expressão

Pedro Madeira

A recente publicação de várias caricaturas sobre o profeta Maomé numa revista dinamarquesa tem suscitado várias reacções diferentes, sendo frequentemente posta a questão de quais devem ser os limites da liberdade de expressão.

O princípio do dano

O problema de saber quais os limites da liberdade de expressão faz parte de um problema mais amplo: o problema de saber quais os limites da liberdade civil. É importante frisar que este problema cai no âmbito da filosofia política, e não da metafísica. O problema metafísico da liberdade é, essencialmente, este: será que a existência das leis da natureza torna impossível o livre-arbítrio — a livre capacidade de fazer escolhas e tomar decisões? Não é este o problema em que estamos, de momento, interessados. O problema em que estamos, de momento, interessados é: em que casos pode o estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos?

Acho que o ponto natural de partida para tentar responder a este problema é a defesa de Mill em Sobre a Liberdade daquele que veio a ser conhecido como o “princípio do dano”. (Mais para a frente explicarei por que razão acho que é o ponto de partida natural para a discussão. Por agora estou só preocupado em explicar o que é.) Mill formula-o do seguinte modo, no primeiro capítulo de Sobre a Liberdade:

“É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas estão justificadas, individual ou colectivamente, em interferir na liberdade de acção de outrem, é a auto-protecção. É o princípio de que o único fim para o qual o poder pode ser correctamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade deste, é o de prevenir um dano a outros”.

A ideia do princípio do dano é, portanto, que só é permissível limitar a liberdade de alguém para garantir a segurança de outra pessoa. O princípio do dano, tal como está formulado, tem vários problemas: um dos mais sérios é a sua recusa (quase) absoluta de leis paternalistas: leis que visam impedir que a pessoa faça mal a si própria. Se o princípio do dano fosse integralmente respeitado, então não seria possível obrigar as pessoas a usar cinto de segurança. Este parece um exemplo bastante inofensivo de uma lei paternalista. Mill aceita, de facto, a implementação de algumas leis que poderiam ser consideradas paternalistas (Mill acharia, por exemplo, que seria legítimo impedirmos uma pessoa de tomar uma bebida envenenada caso a pessoa não soubesse que estava envenenada) — mas isso não interessa agora. Falo sobre isso mais detalhadamente na minha introdução a Sobre a Liberdade (Edições 70, no prelo).

Ponhamos de parte esse problema e concentremo-nos no seguinte: se concordamos com o princípio do dano, então qual deve ser a nossa posição em relação à liberdade de expressão? Lembremo-nos de que o princípio do dano implica, em termos práticos, que o ónus da prova está sempre do lado de quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Mill argumenta que a liberdade de expressão deve ser quase total. A única excepção mencionada por Mill (no princípio do terceiro capítulo) é o caso da pessoa que está numa manifestação em que os ânimos estão exaltados e grita certas palavras de ordem que constituem uma incitação à violência. Mill acha que não é permitida liberdade de expressão para dizer tais palavras de ordem em tais circunstâncias. É importante frisar que as mesmas palavras de ordem, ditas noutras circunstâncias, seriam permitidas. Parafraseando Mill: deve ser permitido escrever um artigo para o jornal a defender que a propriedade privada é um roubo; mas não deve ser permitido dizê-lo à porta da casa de um latifundiário perante uma turba exaltada.

O princípio do dano e as caricaturas de Maomé

Será que o princípio do dano é ou não favorável à publicação de caricaturas como as que foram recentemente publicadas sobre Maomé? Como já foi dito, o ónus da prova está sempre do lado de quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir; por isso, o ónus da prova está do lado de quem quer proibir a publicação do tipo de caricaturas em questão. Só vejo três tipos de argumentos que alguém que aceite o princípio do dano mas se oponha à publicação pode usar: o argumento de que a publicação das caricaturas constitui um dano; o argumento de que a publicação das caricaturas constitui uma incitação à violência; e o argumento de que a própria revista dinamarquesa, antevendo as graves consequências da publicação das caricaturas, se devia ter coibido de as publicar, por um acto de auto-censura. Olhemos para estes três argumentos à vez.

Primeiro argumento contra a publicação das caricaturas

De acordo com o primeiro argumento contra a publicação das caricaturas, a própria publicação de caricaturas do profeta Maomé constitui um dano para todos os muçulmanos, pelo que não deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento pela seguinte razão: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de comportamentos que podem ser considerados danos. Se aceitássemos que a publicação das caricaturas constituía um dano, então várias coisas que intuitivamente não consideramos serem danos seriam considerados danos. Suponhamos que eu professo a religião X, que defende que o simples facto de uma qualquer pessoa dizer em público que não acredita no nosso deus é ofensivo para nós, e constitui um dano. É evidente que tal coisa nunca poderia constituir um dano — dizermos que discordamos de uma pessoa nunca poderia, por si só, ser considerado um dano. No entanto, se aceitássemos que a publicação das caricaturas constituía um dano a todos os muçulmanos, então seria difícil não considerar também um dano a todos os que professassem a religião X o simples facto de se dizer em público que não se acreditava no deus de X. Logo, de modo a não colocarmos demasiado baixa a fasquia do tipo de comportamentos que podem ser considerados danos, devemos considerar que a publicação das caricaturas de Maomé não constituiu um dano.

(Um aparte: sempre que apresento este argumento, muitas pessoas reclamam que a analogia entre o islamismo e a minha religião fictícia não colhe porque... a minha religião é fictícia e o islamismo é uma religião real. Mas isso não tem qualquer importância para o argumento. O exemplo da religião fictícia serve apenas para testarmos as nossas intuições sobre o que deve ou não ser considerado um dano. Para além do mais, não parece muito difícil acreditar que uma tal religião tenha existido. Quando penso, por exemplo, na Inquisição Espanhola, não me custa a acreditar que muitas pessoas reais tenham sentido que a simples existência de pessoas com crenças diferentes das suas constituísse um dano à sua fé. Por isso, o meu exemplo talvez não seja tão rebuscado como possa à primeira vista parecer.)

Há uma lição muito importante a extrair daqui: o facto de um comportamento ser de mau gosto não significa que constitua um dano. Para ilustrar melhor este ponto, gostaria de apresentar um exemplo verídico. Há um ano ou dois houve na Inglaterra alguma consternação pública porque um conhecido cómico de stand-up fez uma piada de mau gosto sobre um inglês que havia sido raptado por terroristas no Iraque. Todos os dias pareciam surgir nos meios de comunicação informações contraditórias sobre a dita vítima: uns dias dizia-se que estava vivo, outros dias dizia-se que estava morto. O cómico disse então qualquer coisa como: “Não acham que eles [os terroristas] deviam simplesmente resolver o assunto de uma vez por todas?” Penso que a maior parte das pessoas concordará que se tratou de uma piada de muito mau gosto. Mas devia o cómico em questão ser proibido de dizer essa piada? Não.

É importante ter em mente que a liberdade de expressão é um problema político, e não ético. Perguntar quais são os limites da liberdade de expressão é perguntar em que casos pode o estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos. Não é perguntar em que casos é imoral dizer algo em público. O comportamento do cómico de stand-up foi imoral, mas não nos passaria pela cabeça dizer que devíamos proibi-lo de se comportar assim. É bom que nem todas as coisas imorais sejam proibidas por lei. Não nos encontrarmos com um amigo à hora marcada porque nos apeteceu ficar em casa a ver televisão e não nos demos ao trabalho de desmarcar o encontro é uma atitude condenável — mas não deve ser punida por lei.

Em conclusão: a publicação das caricaturas de Maomé não constituiu um dano aos muçulmanos.

Segundo argumento contra a publicação das caricaturas

Passemos ao segundo argumento contra a publicação das caricaturas. De acordo com este argumento, independentemente de a publicação das caricaturas ter ou não constituído um dano aos muçulmanos, é de qualquer modo verdade que constituiu uma incitação à violência, pelo que não deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento essencialmente pela mesma razão pela qual o primeiro argumento é mau: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de comportamentos que podem ser considerados incitações ao dano. Tomemos o caso dos terroristas americanos que há alguns anos puseram bombas em clínicas que realizavam abortos. Suponhamos que um jornal qualquer publicava caricaturas sobre esses bombistas, e que os bombistas retaliavam colocando bombas nesses jornais. Depois de isso acontecer, faria sentido dizer que quaisquer novas publicações de caricaturas sobre os bombistas constituiriam uma incitação à violência? É evidente que não. Publicar novas caricaturas depois de outros jornais terem sido alvo de ataques talvez fosse algo arriscado para a segurança das pessoas a trabalhar no jornal, mas não constituiria, certamente, uma incitação à violência. No entanto, se considerássemos que a publicação das caricaturas de Maomé constituía uma incitação à violência, então também teríamos de considerar que tais caricaturas sobre os bombistas também constituiriam uma incitação à violência. Logo, a publicação das caricaturas de Maomé não constituiu uma incitação à violência.

É natural que surja agora uma dúvida ao leitor: parece simplesmente falso que a publicação das caricaturas — tanto no caso real como no caso imaginário — não constitua uma incitação à violência. É importante esclarecer esta dúvida para se entender cabalmente as duas objecções apresentadas aos possíveis argumentos contra a publicação das caricaturas. É importante ter isto em mente: os termos “dano” e “incitação à violência” têm sido usados ao longo deste artigo como termos normativos, e não como termos descritivos. O que isso significa é, essencialmente, o seguinte: não basta que um comportamento constitua um dano ou uma incitação à violência, no sentido comum — descritivo — de “dano” e “incitação à violência”, para que seja um dano ou uma incitação à violência no sentido normativo dos termos. No sentido comum do termo “dano”, os presidentes dos clubes de futebol portugueses passam a vida a provocar dano uns aos outros — mas tais não são danos no sentido normativo do termo, e não devem ser proibidas. Do mesmo modo, gritar incentivos a um pugilista durante um combate de boxe constitui uma incitação à violência no sentido comum de “incitação à violência” — mas não no sentido normativo, e não deve ser proibido. Neste artigo, pois, “dano” e “incitação à violência” significam, à falta de termos melhores, dano ilegítimo e incitação ilegítima à violência.

Podemos, então, reformular as duas conclusões até agora alcançadas: a publicação das caricaturas de Maomé não constituiu um dano ilegítimo aos muçulmanos; e a publicação das caricaturas de Maomé não constituiu uma incitação ilegítima à violência.

Terceiro argumento contra a publicação das caricaturas

De acordo com o terceiro argumento contra a publicação das caricaturas, não é tanto o caso que o estado devesse proibir a publicação — as próprias pessoas que publicaram as caricaturas deviam ter tido o bom senso de não as publicar. Ou seja, este argumento não defende a não publicação das caricaturas por proibição superior; mas sim que, sabendo as pessoas da revista que a publicação das caricaturas traria graves problemas, elas próprias deviam ter-se coibido de as publicar por um acto de auto-censura. Suspeito que muitas das pessoas que se opuseram à publicação das caricaturas se estariam a basear neste argumento, e não nos outros dois que já discuti. É por isso fundamental explicar este argumento em pormenor.

Antes de mais, é importante perceber a diferença subtil entre este argumento e o segundo argumento. O segundo argumento procura mostrar que a publicação das caricaturas foi moralmente equivalente ao caso da pessoa que grita palavras de ordem incendiárias em frente da casa de um latifundiário perante uma turba exaltada. Este terceiro argumento não procura estabelecer uma conclusão tão forte. Só procura estabelecer o seguinte: independentemente de publicar as caricaturas ter ou não sido moralmente equivalente a gritar palavras de ordem incendiárias perante uma turba exaltada, é de qualquer modo verdade que, sabendo as pessoas da revista que a publicação das caricaturas traria graves problemas, elas próprias deviam ter-se coibido de as publicar por um acto de auto-censura. Penso que este terceiro argumento também não funciona; passo a explicar porquê.

Li recentemente que a Opus Dei defende que certas partes do novo filme de Ron Howard, O código Da Vinci, baseado no livro com o mesmo nome de Dan Brown, devem ser cortadas, porque podem dar aos espectadores uma ideia errada da Opus Dei. Urge agora perguntar às mesmas pessoas que defendem que a revista dinamarquesa se devia ter auto-censurado e não publicado as caricaturas: deverá Ron Howard auto-censurar-se também e cortar as partes do filme com as quais a Opus Dei não está satisfeita? Vejamos as duas opções à vez.

Suponhamos que dizem que sim. Isso constituiria, efectivamente, uma redução ao absurdo da posição de que a revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as caricaturas por um acto de auto-censura. Ou seja: não faz sentido dizer que essas partes devem, por um acto de auto-censura, ser retiradas do filme só porque não são do agrado da Opus Dei (porque isso colocar-nos-ia numa encosta escorregadia em direcção a uma sociedade onde nada que tivesse a possibilidade remota de ofender alguém devesse passar o teste da auto-censura e ser publicado); logo, se ao defendermos que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido de publicar as caricaturas por um acto de auto-censura estamos comprometidos com a posição de que essas partes que não agradam à Opus Dei devem, por um acto de auto-censura, ser retiradas do filme, então devemos simplesmente rejeitar a posição de que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido de publicar as caricaturas por um acto de auto-censura. Podemos agora começar a vislumbrar que tipo de sociedade é que seria gerada por uma cultura de auto-censura supostamente baseada no bom-senso e no respeito mútuo — e é evidente que não parece sítio em que a maior parte de nós quisesse viver.

Suponhamos agora que as pessoas que defendem que a revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as caricaturas por um acto de auto-censura dizem que Ron Howard não devia retirar, por um acto de auto-censura, essas partes que não agradam à Opus Dei. Nesse caso, é de perguntar: será que só nos devemos auto-censurar e não publicar uma opinião ou uma caricatura quando haja o risco de os potenciais ofendidos retaliarem violentamente? Esta seria uma atitude digna dos mais fervorosos seguidores da Realpolitik — uma doutrina cínica da vida política (que no século XX teve talvez em Henry Kissinger o seu expoente máximo) de acordo com a qual os estados devem tomar decisões unicamente com base no seu próprio interesse, e não em ideais como a justiça e a fraternidade.

Eu consideraria que o simples facto de a posição de que a auto-censura é justificada apenas quando haja a forte possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem violentamente se basear unicamente em razões puramente egoístas, e não em princípios morais, já seria suficiente para minar essa posição. No entanto, dado o grande número de adeptos (assumidos ou envergonhados) da Realpolitik, é provável que esta minha posição receba um sorriso condescendente. Por isso, vale também a pena notar que fomentar a auto-censura apenas quando haja a forte possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem violentamente não é sequer uma boa ideia em termos egoístas! Isto por uma razão simples: coibirmo-nos sistematicamente de criticar pessoas de quem discordamos, para não provocarmos a sua ira, é algo que cheira, na melhor das hipóteses, a hipocrisia (dado que os muçulmanos que ficaram ofendidos com as caricaturas obviamente já sabiam que algumas das ideias implícitas nas mesmas estavam amplamente difundidas na Europa); e cheira, na pior das hipóteses, a um paternalismo altamente ofensivo (porque pode fazer que esses mesmos muçulmanos sintam que os ocidentais acham que eles são bárbaros com os quais não vale a pena discutir). E comprar a paz com o forte risco de incorrer em suspeitas de hipocrisia e paternalismo é estar a comprar uma paz podre.

É interessante observar que, neste aspecto, os estados (e, de um modo geral, grandes grupos de pessoas) não parecem comportar-se de modo muito diferente de pessoas individuais. É sabido que, quando duas pessoas estão irritadas uma com a outra, o mais pequeno incidente pode levar a grandes discussões. Mas a solução para o problema não é simplesmente evitar a todo o custo a discussão; isso provavelmente só aumentaria a tensão e eventualmente faria que qualquer discussão que viesse a rebentar causasse inevitavelmente uma ruptura irreversível. A mesma coisa se passa, creio, no caso dos estados (e, de um modo geral, grandes grupos de pessoas): evitar a todo o custo querelas (comparativamente) pequenas como esta das caricaturas, e causar assim a suspeita de hipocrisia e de paternalismo, que por sua vez levam a uma subida da tensão, poderá talvez servir para assegurar a paz a curto prazo, mas também aumenta fortemente a possibilidade de que um dia venha eventualmente a ocorrer uma ruptura irreversível.

Gostaria ainda de fazer outra simples constatação empírica. A verdade é esta: de um modo geral, é mais fácil termos respeito por pessoas acerca das quais fazemos piadas do que por pessoas em relação às quais estamos sempre de pé atrás para termos o cuidado de não as ofender. Não percebo exactamente por que razão são as coisas assim. O meu palpite é este: fazermos piadas sobre as pessoas ajuda-nos a sentir empatia por elas; ajuda-nos a sentir que são seres imperfeitos como nós, e não seres estranhos de outra galáxia. Assim, não posso deixar de aqui mencionar a resposta absolutamente exemplar dada por Miguel Góis no blog do Gato Fedorento a dois leitores que o criticaram por ter feito uma piada a gozar com a doença de Stephen Hawking (veja-se a piada original no arquivo de 28 de Julho de 2004 e a resposta aos leitores em 12 de Agosto do mesmo ano em http://gatofedorento.blogspot.com/). Diz ele que evitar a todo o custo fazer piadas sobre deficientes constitui “uma perversa forma de os inferiorizar”. E dá mais abaixo, na mesma resposta, um exemplo revelador de como toda essa preocupação em fazer humor politicamente correcto se acaba por revelar uma forma encapotada de paternalismo: em várias séries e filmes americanos, os negros costumavam ser retratados como pessoas simpáticas “para além do humanamente possível”. Isto faz-me exactamente pensar na atitude de alguns intelectuais que procuram a todo o custo evitar dizer o que quer que seja de negativo em relação aos muçulmanos — supostamente para mostrar respeito por eles, e não os hostilizar. Tal como no caso referido por Miguel Góis, a solução não é essa. Góis menciona então o caso exemplar da série Tudo em família, que incluía a personagem de Lionel Jefferson: “Mr. Jefferson é a personagem negra mais antipática e arrogante que jamais surgiu no pequeno écran; Lionel parodia justamente a figura do negro simpatiquíssimo e submisso”. Penso que a solução a adoptar em relação ao islamismo deve ser semelhante: não devemos ter medo de brincar com o islamismo; a longo prazo, brincar com o islamismo ajudará aqueles de entre nós que não são muçulmanos a sentir empatia por eles, e a encará-los como seres imperfeitos como todos os outros, e não como seres estranhos de outra galáxia.

Para além da importância da liberdade de expressão para o estabelecimento de relações fraternas entre pessoas de diferentes proveniências, crenças e meios sociais, que até aqui realcei, é preciso também não esquecer que, como Mill defende no segundo capítulo de Sobre a Liberdade, um dos grandes benefícios da liberdade de expressão é o facto de que constitui um importante motor para a busca da verdade. Pois se a opinião que se procura censurar for verdadeira, então censurá-la priva-nos de descobrir a verdade; e se a opinião censurada for falsa, então censurá-la priva-nos de conseguirmos fornecer uma mais robusta defesa da nossa posição. Parafraseando Mill, quando as opiniões não são questionadas e confrontadas, tornam-se em opiniões “mortas” — coisas que repetimos sem saber muito bem porquê. Por isso, censurar uma opinião é sempre mau para a preservação da saúde da democracia — quer essa opinião seja verdadeira, ou não.

Em suma: a censura é sempre uma coisa má, quer seja imposta superiormente, ou auto-imposta; quer seja uma censura de jure — imposta por lei — ou uma censura meramente de facto — não imposta por lei, mas inculcada na mente das pessoas. Como já disse, fazer por instalar um clima em que não se publiquem caricaturas ou opiniões só para evitar o risco de ofender outras pessoas nada augura de bom.

O princípio do dano não permite proibir a publicação das caricaturas de Maomé

Como já foi dito, o ónus da prova está sempre do lado de que quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Por isso, o ónus da prova está do lado de quem quer proibir a publicação de caricaturas como as que foram recentemente publicadas. Foram analisados os três principais argumentos conta a publicação das caricaturas. Mostrou-se que todos os argumentos são maus. Por isso, a conclusão geral a retirar deste artigo é que quem aceite o princípio do dano, tal como está formulado, deverá também aceitar que o estado não deve proibir a publicação de caricaturas como as que foram recentemente publicadas.

O director da revista dinamarquesa que publicou as caricaturas disse que perguntarem-lhe se se arrependia de ter publicado as caricaturas era como perguntarem a uma vítima de violação se se arrependia de ter ido com uma mini-saia para a discoteca na sexta à noite. Acho que esta resposta acerta em cheio no alvo: tanto a revista como a hipotética vítima de violação fizeram algo que tinham todo o direito a fazer, mas sofreram por isso.

Princípio do dano: o ponto de partida natural

Tal como prometido no início do artigo, passo agora a dizer por que razão penso que o princípio do dano constitui o ponto de partida natural para a discussão dos limites da liberdade civil. Penso isso porque, por um lado, um princípio mais liberal, que procure limitar ainda mais os casos de intervenção legítima do estado na liberdade dos cidadãos, corre o perigo de nos empurrar para o anarquismo; e um princípio menos liberal terá de ser teoricamente muito complicado para conseguir responder às objecções que nos chamam a atenção para exemplos aparentemente positivos de paternalismo, como a lei que nos obriga a usar cinto de segurança (o que não quer dizer que um princípio menos liberal não seja afinal verdadeiro, claro: a verdade não costuma ser simples).

Devo repetir que não acho que o princípio do dano seja o fim da discussão — acho que é o princípio da discussão. Talvez uma analogia ajude a entender o que quero dizer. Quando se ensina lógica aos alunos, começa-se por ensinar-lhes lógica clássica, e não lógicas intuicionistas ou paraconsistentes. Porquê? Bom, porque tanto as lógicas intuicionistas como as paraconsistentes se afastam, de algum modo, da lógica clássica: as lógicas intuicionistas rejeitam a lei da bivalência; as lógicas paraconsistentes rejeitam a lei da não-contradição. Para que os alunos entendam bem as lógicas intuicionistas e paraconsistentes — e venham a conseguir formar uma posição informada sobre elas, positiva ou negativa — têm primeiro de dominar a lógica clássica. Como dizia o meu professor de lógica: primeiro aprende a andar de bicicleta como deve ser; depois, se quiseres, já podes guiar sem mãos.

Penso que a mesma coisa se passa com o princípio do dano. Primeiro devemos todos ter a humildade de tentar entendê-lo e perceber quais as suas vantagens e desvantagens. Depois, se quisermos, podemos então abandonar o princípio do dano e tentar defender uma posição que penda mais para o anarquismo, ou para o paternalismo.

Conclusão

Num interessante artigo que escreveu recentemente para o Der Spiegel, Ibn Warraq começou por citar John Stuart Mill. Passo a transcrever a citação:

“É estranho que os homens admitam a validade dos argumentos a favor da livre discussão, mas objectem a que sejam “levados ao extremo”; não vendo que a menos que as razões sejam boas para um caso extremo, não são boas para qualquer caso”.

Aceitar os argumentos até aqui apresentados e mesmo assim estar reticente em relação à legitimidade da publicação das caricaturas seria estar a cometer o erro para que Mill alerta. Seria como se um proprietário de escravos aceitasse os nossos argumentos a favor da posição de que é errado bater nos escravos, e depois logo de seguida nos perguntasse se não fazia mal bater-lhes só às quintas-feiras.

Pedro Madeira

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457