Menu
Crítica
26 de Maio de 2009   Metafísica

O erro de Leibniz

Desidério Murcho

Num texto de 1697, Leibniz formula uma pergunta radical: “Por que há algo em vez de nada?” O seu objectivo é sustentar a existência de um deus que seria a origem da realidade. Esta ideia, contudo, precisa de ser cuidadosamente formulada, para não dar origem ao absurdo de sustentar que há algo porque Deus, que não é algo, o criou. Ao invés, a ideia é sustentar que Deus, que é algo, é eterno e não poderia não existir, pelo que assim está explicado por que há algo: porque sempre houve e não poderia não haver.

No decurso da sua argumentação, contudo, Leibniz comete um erro crucial. Quando se faz a pergunta radical por ele formulada, as alternativas óbvias de resposta são as seguintes:

  1. Cada acontecimento ou objecto do universo tem a sua origem noutro acontecimento ou objecto anterior, que é a sua explicação e razão de ser, ad infinitum;
  2. Os objectos e acontecimentos formam um círculo explicativo, de modo que A explica B que explica C que explica A;
  3. Há um algo especial — Deus — que fez tudo o resto.

Leibniz favorece 3, mas para isso tem de se livrar de 1, que pelo menos à primeira vista não é mais implausível. 2, evidentemente, não é particularmente atraente como modelo teórico da razão de ser da realidade. Além disso, Leibniz pensa ter um argumento que refuta simultaneamente 1 e 2. Acontece que o argumento está errado. Matematicamente errado.

Imaginemos que temos uma explicação da realidade nos moldes de 1. A analogia óbvia a fazer é com a série infinita dos números. Do mesmo modo, os objectos e acontecimentos do universo estender-se-iam para sempre, infinitamente. Dado cada objecto ou acontecimento da série de objectos e acontecimentos que constituem a realidade ter uma explicação — apelando ao objecto ou acontecimento anterior — parece que tudo está explicado.

Mas não está, argumenta Leibniz. Fazendo uma analogia com o livro Elementos de Geometria, Leibniz argumenta que podemos explicar a existência de cada exemplar apelando ao exemplar anterior do qual foi copiado; e caso essa série fosse infinita, teríamos sempre explicação para a existência de cada exemplar do livro; mas não podemos explicar por que razão há a própria série dos livros, em vez de outra ou nenhuma. Assim, apesar de podermos explicar todos os acontecimentos e objectos do mundo apelando a acontecimentos e objectos anteriores, resta ainda explicar por que há algo em vez de nada, resta explicar por que existe a série de acontecimentos e objectos, em que cada membro é explicado por outro membro.

Este argumento está inequivocamente errado, pois exige uma explicação depois de tudo ter sido explicado. Isto compreende-se melhor se deixarmos de falar no infinito e passarmos a falar de um conjunto finito e muito pequeno, pois apesar de a mente de Deus ser supostamente infinita e sábia, a dos seres humanos é finita e dada a erros elementares. Tome-se um conjunto de quatro pessoas, em que a primeira é mãe da segunda, esta da terceira e esta da quarta. Se perguntarmos por que existe cada uma delas, a resposta é que a sua mãe a gerou. Claro que num modelo finito não temos explicação para a primeira delas. A ideia de um modelo infinito é, precisamente, haver desse modo explicação para todas, pois nunca falta uma mãe anterior para explicar a existência da pessoa posterior. O argumento de Leibniz é então admitir que numa série infinita cada membro está plenamente explicado pelo membro anterior, mas exigir explicação para a série em si. Aplicando o seu argumento ao modelo com quatro pessoas, Leibniz considera que depois de explicar a existência de cada uma delas com base na sua mãe, temos de explicar a existência da série. A resposta a este argumento é que nada há para explicar agora, excepto apelar à noção matemática de conjunto. Nada há num conjunto excepto os membros do conjunto, e como os membros não podem existir sem que exista o conjunto, explicar a existência dos membros é eo ipso explicar a existência do conjunto. A pergunta de Leibniz é o mesmo que, depois de se ter explicado a existência de cada uma das três bananas em cima da mesa, exigir que se explique a existência do conjunto das três bananas. A resposta óbvia é que já explicámos a existência do conjunto das três bananas depois de termos explicado a existência de cada uma das bananas. Mais: nada pode explicar a existência do conjunto das três bananas excepto o que explica a existência de cada uma das três bananas. Não é como se Deus pudesse criar três bananas em sucessão e depois pudesse decidir não criar o conjunto das três bananas. Criar cada uma das bananas é eo ipso criar o conjunto das três bananas, e explicar a existência de cada uma das três bananas é explicar a existência do conjunto das três bananas.

A estratégia de Leibniz, note-se, é admitir a possibilidade de uma série infinita na qual cada membro é explicado por outro membro anterior. A ideia é mostrar que mesmo admitindo tal possibilidade, não teríamos uma explicação da realidade alternativa à explicação supostamente dada por Deus. Dado que o seu argumento está errado, resta-lhe negar a possibilidade de uma série infinita na qual cada membro seja explicado por outro membro anterior. Mas isso exige um argumento diferente.

Desidério Murcho

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457