Menu
Crítica
12 de Outubro de 2016   Estética

Em busca do estético

Roger Scruton
Tradução de Vítor Guerreiro

Quero levantar a que me parece a questão mais importante da estética, nomeadamente: existirá esse assunto? Haverá algum modo de definir ou um objecto ou um método de estudo que isole um domínio de questões acerca de cuja importância os seres racionais possam concordar e que ocuparia o lugar tradicionalmente atribuído à estética entre as áreas da filosofia?

O leitor talvez se pergunte se essa questão não poderia ser levantada a propósito de qualquer área da filosofia. Haverá um assunto como a ética, como a lógica, como a filosofia da matemática, ou a filosofia da ciência? Contudo, tal não sucede, e não somente devido aos óbvios avanços que recentemente se alcançou em todas essas áreas. Pois esses assuntos constituem reflexões sobre um uso pré-filosoficamente definido dos nossos poderes racionais. Todos fazemos juízos morais, usando conceitos partilhados de obrigação, direito, dever e virtude. Não temos como evitar estes juízos ou conceitos, uma vez que a nossa existência como seres racionais e sociais nos compele a fazer uso deles. Basta-nos examinar as credenciais daqueles conceitos para descobrir questões que qualquer pessoa dada à reflexão reconhecerá como questões genuínas, e também questões pertencentes ao domínio da filosofia. Evidentemente que o mesmo vale para as outras áreas da filosofia que acabei de referir.

No que toca à estética, todavia, constatamos não haver qualquer identificação pré-filosófica consensual, seja de uma classe de juízos ou uma bateria de conceitos ou um agregado de estados mentais que conjuntamente possam indicar um domínio universalmente partilhado de pensamento racional e emoção. Há diversas razões pelas quais afirmo isto. A primeira é a óbvia, de que o próprio termo “estética” é uma invenção filosófica, introduzido por Baumgarten em 1750 através de uma obra ostensivamente dedicada ao estudo da relação entre a poesia e a filosofia.1 O termo foi tomado do grego aesthesis, que significa (consoante o contexto) “sensação”, “percepção” ou “sentimento” (como em “anestésico”). Baumgarten usou o termo para denotar o que considerava uma característica distintiva da poesia, nomeadamente, que esta apresenta uma forma de conhecimento “sensual”, pelo qual apreendemos particulares, por contraste com o conhecimento intelectual ou conceptual, que sempre generaliza. A verdade na poesia consiste na apresentação verídica de particulares – é veraz ou Wahrscheinlichkeit. Isto significa que o conteúdo da poesia é sempre de algum modo conteúdo perceptivo, inexprimível somente por conceitos. Estas ideias sugestivas têm tido desde então uma longa história, culminando nas teorias estéticas de Croce e Collingwood, na crítica de T. S. Eliot e na “heresia da paráfrase” de Cleanth Brooks.

Significativamente, Kant, quando dedicou a sua atenção a alguns dos problemas hoje estudados sob a designação de “estética”, não usou esse termo para definir o assunto, apesar da influência de longa data de Baumgarten no seu pensamento. Na verdade, Kant usara já o termo de modo mais próximo ao seu significado grego original, na Crítica da Razão Pura, onde a secção descrita como Estética Transcendental é dedicada aos pressupostos a priori da experiência sensorial.2 Quando Kant desviou a sua atenção para questões que hoje consideramos sob a designação de “estética”, definiu o objecto de estudo como “juízo” (Urteilskraft), um termo densamente técnico introduzido originalmente na Crítica da Razão Pura como parte da teoria labiríntica de Kant sobre as faculdades racionais. O juízo estético era, para Kant, um de dois tipos de juízo – sendo o outro o juízo teleológico. No uso de Kant, o termo “estético” denotava o aspecto sensual da nossa apreciação da beleza, que por seu turno supostamente explica que esta seja “isenta de conceitos”: por outras palavras, fazia parte de uma teoria concebida para explicar os fenómenos que em Baumgarten são meramente observados.

A minha segunda razão para duvidar acerca do objecto de estudo da estética será conhecida pelos que estão familiarizados com o pensamento marxista recente, em particular o tipo de marxismo modernizado ou pós-modernizado que se encontra em Pierre Bourdieu e Terry Eagleton.3 Segundo estes pensadores, o conceito do estético não é sequer parte da filosofia respeitável. É um exemplo de ideologia, no sentido marxista do termo. O conceito é adoptado não porque denota uma realidade com existência independente, mas porque tem uma função em promover certos interesses económicos e políticos. A intenção de Marx em A Ideologia Alemã e alhures era distinguir dois modos diferentes de pensamento humano: o modo de procura da verdade, a que chamava “ciência”, e o modo de procura do poder, a que chamava “ideologia”. As ideias e teorias podem ser adoptadas porque acreditamos serem verdadeiras, caso em que são testadas na prática. Ou podem ser adoptadas porque servem os interesses de uma dada classe, que as promove como parte da tendência para amplificar o seu poder social. Explicamos o avanço da ciência por referência à tendência das nossas faculdades racionais para procurar a verdade. Explicamos o crescimento da ideologia por referência à tendência dos nossos interesses sociais para procurar o poder. A ideologia existe devido à sua função, ainda que aqueles que a adoptam acreditem que o fazem por ser verdadeira. (Sendo essa crença parte da sua “falsa consciência”.)

Assim, Bourdieu e Eagleton procuraram representar o conceito do valor estético como um “momento” particular no desenvolvimento da cultura burguesa, a ser explicado em termos das transformações que produziram a moderna economia capitalista. Quando Kant apresentou a sua teoria do interesse desinteressado (que é grosso modo como ele definiu o estético, ou pelo menos aquela parte que diz respeito à beleza) não estava, segundo a perspectiva neomarxista, a descrever um universal humano mas meramente a apresentar, em idioma filosófico, um exemplo de ideologia burguesa. Este interesse “desinteressado” torna-se disponível só em determinadas condições históricas, e está disponível porque é funcional. Não tem pretensão a ser quer uma parte do nosso aparato mental como seres racionais e autoconscientes, quer um género de ideia sagaz acerca de nós próprios ou do mundo.

Por que razão é o interesse estético, como descrito por Kant e seus seguidores, funcional nas condições “burguesas”? Eis uma sugestão. A percepção “desinteressada” da natureza, dos objectos, dos seres humanos e das relações entre estes, confere-lhes um carácter trans-histórico. Torna-os permanentes, inelutáveis, parte da ordem eterna das coisas. As relações sociais burguesas são assim inscritas na natureza e colocadas além do alcance da mudança social. Este “tornar sagrado” das coisas é portanto uma tentativa de santificar e imortalizar uma organização social transitória. A ideia do estético encoraja-nos a acreditar que isolando os objectos do seu uso, e purificando-os das condições económicas que os produziram, de algum modo vemos o que eles genuinamente são e o que genuinamente significam. Desviamos assim a nossa atenção da realidade económica e contemplamos o mundo como que sob o aspecto da eternidade, aceitando como inevitável e imutável o que devia estar sujeito à transformação política organizada. Além disso, ao mesmo tempo que se regozija na ficção de que as pessoas e as coisas são valorizadas como “fins em si mesmas”, a economia capitalista trata tudo e todos como meios. O que é visto como mais sagrado é ao mesmo tempo tratado como o mais dispensável, e a mentira ideológica facilita a exploração material.

Este modo de subverter como ideologia o que se apresenta a si mesmo como filosofia (isto é, como verdade universal) não está limitado a Marx. O mesmo género de argumento ocorre em Foucault, Raymond Williams, Frederic Jameson, e uma multidão de figuras menores, raramente expresso de modo claro ou aberto, e frequentemente qualificado ao ponto da quase irrefutabilidade. Obviamente, teríamos de perguntar se e em que circunstâncias expor a causalidade de um conceito compromete as suas credenciais, e se as explicações funcionais são sempre suficientes para fazer isto.4 Mas o argumento pelo menos desloca o ónus: somos nós que temos de justificar a introdução desta noção de interesse estético, e mostrar que há uma realidade significativa e filosoficamente intrigante que essa noção consegue circunscrever.

O argumento da ideologia liga-se a uma preocupação mais geral, que é igualmente persistente e também igualmente difícil de exprimir com precisão. Esta preocupação surge daquilo a que poderíamos chamar a historicidade do estético. Independentemente do que se venha a mostrar ser, a estética diz respeito a estados mentais, mundividências e artefactos que estão imersos e adquirem o seu carácter na sequência da história humana. Os estados mentais discriminados como interesse estético estão todos carregados com a cultura e as circunstâncias históricas dos que deles têm experiência. Também as obras de arte são entidades históricas, dirigidas a públicos específicos, sobre um pano de fundo de convenções culturais e expectativas sociais. Parece implausível e presunçoso pressupor que os tipos de interesse que temos agora pelas obras de arte são os tipos de interesse que as pessoas têm para com elas em todos os períodos da história. E é igualmente implausível e igualmente presunçoso supor que os artefactos que tratamos como arte terão idêntica ou comparável importância para as pessoas de outras culturas e de outras épocas. Toda a área da estética, como os filósofos a descrevem, encontra-se num estado de fluxo histórico e a tentativa de extrair uma descrição de um interesse trans-histórico, transcultural, a classificar como “estético”, e supostamente exemplificado pelos seres racionais em todas as circunstâncias da vida terrena, não se funda senão numa recusa provinciana de olhar para além da nossa própria perspectiva.

É uma questão difícil, a do que fazer ao certo com este argumento da historicidade. Mas o argumento regressa constantemente na estética, não raro mudando de forma e ênfase, mas sempre desafiando-nos a encontrar aquela perspectiva trans-histórica cuja possibilidade nega.5

Uma consideração ulterior também relevante é a do vocabulário aberto da estética, e a aparente dificuldade de isolar qualquer gramática partilhada ou conjunto partilhado de termos que distinga o estético de outras formas de juízo. Os filósofos do século XVIII que deram início ao projecto discriminaram o “belo” como o centro das suas preocupações. Mas é abundantemente claro que usamos este termo em todo o género de contextos que parecem, superficialmente, ter pouco ou nada em comum. A bela jogada no xadrez ou no futebol, a prova bela em matemática, o belo carácter e a acção bela – tudo isto parece na melhor das hipóteses relacionado apenas tangencialmente com o belo na arte ou na natureza. E a beleza humana está tão profundamente misturada com emoções morais e desejos sexuais que seria muitíssimo enganador pensar que tem qualquer relação com os contextos típicos do juízo estético.

Além disso, em muitos casos nos quais podemos querer falar de interesse estético, a beleza não faz parte do que procuramos. Assim que o belo ocupou o seu lugar entre os objectos da investigação filosófica os pensadores deram consigo a procurar distinguir entre o belo e o sublime, argumentando que evocam dois interesses distintos embora relacionados. Filósofos mais recentes foram muito mais longe ao reconhecer a multiplicidade de categorias críticas, não somente “o mimoso e o desairoso” na expressão de Austin, mas o tocante e o trágico, o melancólico e o obsceno, o equilibrado, o melodioso e o atabalhoado. Algumas das mais impressionantes obras recentes são resolutamente feias e mesmo ofensivas no seu impacto cru – considere o Mandarim Milagroso de Bartók, Tin Drum de Gunther Grass, a Guernica de Picasso. As tentativas de isolar um “uso estético” especial dos termos – descrevendo-os como articulando um juízo quasi-perceptivo de “gosto”, por exemplo, à maneira de Sibley6 – levam-nos simplesmente de novo ao ponto de partida. Como sabemos que há semelhante faculdade como a do gosto, que se trata de um atributo genuíno e universal da mente racional, e que nos diz algo de importante acerca do seu objecto?

Recentemente, os filósofos procuraram evitar questões acerca do estético voltando a sua atenção para a arte e substituindo a filosofia da arte às anteriores explorações da estética kantiana. Foi neste sentido que Hegel orientou a discussão nas suas grandes palestras sobre estética, que debatem as diversas artes como formas de consciência e as subsomem num esquema conceptual histórico e abrangente. Os filósofos subsequentes tomaram a sugestão da Estética de Croce, escrita há um século, em que a teoria da arte como expressão foi colocada no lugar da teoria kantiana do estético como domínio do interesse desinteressado. Croce propõe uma teoria unificada das artes, que distingue entre a arte e os artefactos comuns, e entre a experiência da arte e todos os outros géneros de experiência, de um modo que relembra directamente a tese original de Baumgarten em Aesthetica. Escusado será dizer que a teoria de Croce não funciona. Mas deixou aos filósofos da arte que se seguiram uma distinção importante – entre representação e expressão – a qual serviu para centrar a questão do significado artístico desde essa altura.

A viragem na direcção da arte não nos ajuda realmente a escapar às dúvidas cépticas já consideradas. A arte está tão sujeita à historicidade como qualquer outro objecto cultural; a pressuposição de que outras épocas e culturas compreenderiam a arte como nós o fazemos é simplesmente injustificada; o próprio conceito de arte é argumentavelmente tanto uma invenção filosófica – ou em todo o caso intelectual – como o conceito do estético. Será que outras épocas e culturas têm qualquer conceito que coincide com o nosso, e se têm, será isto mais do que um mero acidente? Foi plausivelmente argumentado (por Kristeller7) que o nosso conceito de arte cresceu a partir da ideia latina das artes ou aptidões somente no século XVIII, quando a distinção entre as “belas artes” e as “artes úteis” se tornou corrente – ao mesmíssimo tempo, na verdade, que o termo “estética” começou a adquirir o significado que modernamente tem nas obras de filósofos.

Estas preocupações combinam-se com os avanços da filosofia analítica recente, que nos sugere a distinção entre tipos naturais e tipos não-naturais, e reconhece que os últimos são determinados pelos nossos interesses e não por uma natureza real comum.8 A arte não é um tipo natural, nem sequer (ao que parece, pelo menos) um tipo funcional como mesa ou faca. Por que princípio distinguimos entre a arte e a não-arte, portanto, e qual o propósito de o fazer? Esta questão, tomada na direcção para que tende naturalmente, levar-nos-á ao mesmíssimo ponto que a estética kantiana – a tentativa de definir um tipo específico de interesse racional, de que a arte é o objecto característico ou central. E que razões temos para supor que há semelhante interesse e que está ligado à racionalidade como tal, em vez de a um estado efémero da cultura humana?

À luz dessa consideração parece-me que muito da estética recente tem realmente sido algo fútil. Em particular a controvérsia constante acerca da definição de arte, sobre se os found objects são obras de arte, se 4’33’’ de John Cage é uma obra de música – até mesmo sobre se as obras de arte são tipos ou espécimes, se a notação determina a identidade, se os arranjos são idênticos aos originais ou versões destes, se as cópias são versões ou novas obras de arte, e assim por diante – todas estas questões me parecem levar a lado nenhum. Pois podem todas ser respondidas como se queira, sem que se faça luz alguma sobre a razão por que as obras de arte são importantes para nós e que tipo de importância têm. As coisas seriam diferentes se tivéssemos uma explicação viável do interesse estético. Pois nesse caso podíamos definir a arte como um tipo funcional, nomeadamente o tipo concebido como objectos de interesse estético, do modo como as anedotas são concebidas como objectos de diversão. Isso permitir-nos-ia finalmente por termo a questões arbitrárias e disputas disparatadas sobre limites. Mas também nos levaria novamente ao ponto de partida, com a tarefa de definir o interesse estético como uma característica importante e não acidental da condição humana.

É por isso que me parece que a abordagem de Kant ao assunto é a correcta. Temos de tentar isolar um ato ou estado mental que está de algum modo profundamente implicado nas nossas vidas como seres racionais e que tem o tipo de consequência para nós que justificaria a emergência da estética como disciplina. Ora, para Kant a racionalidade era uma questão de tudo ou nada. Ou se a tem ou não se a tem. Quando se a tem, tem-se todos os aspectos dela: entendimento, razão prática e juízo. O primeiro dá-nos o conhecimento teórico, a segunda dá-nos o conhecimento prático (por outras palavras, a lei moral) e o terceiro dá-nos – o quê exactamente? Kant não deu qualquer resposta clara a esta pergunta. Mas não há dúvida de que acreditava que todos os seres racionais fazem, e têm de fazer, juízos estéticos, e que ao fazê-lo são, no seu modo de dizer, “aspirantes ao acordo” com o seu género.

Neste ponto, poder-se-ia objectar não ser verdade que todos os seres racionais fazem, muito menos que têm de fazer, juízos estéticos. Muitas pessoas parecem viver num vácuo estético, preenchendo os seus dias com cálculos utilitários e sem qualquer sentido de que estão a perder algo de uma vida mais elevada. A resposta de Kant a isto é negá-lo. As pessoas podem parecer viver num vácuo estético, diria, apenas a quem acredita que o juízo estético tem de ser exercido numa área específica, como a música, a literatura, ou a arte. Na verdade, contudo, a apreciação das artes é um exercício secundário do interesse estético. O exercício primário do juízo é na apreciação da beleza natural. Nisto todos estamos igualmente envolvidos, e embora possamos divergir nos nossos juízos de gosto em paisagens e coisas semelhantes, todos concordamos no facto de os fazermos.

A ênfase de Kant na apreciação da beleza natural faz parte de uma tentativa de evitar a objecção da historicidade. A natureza, ao contrário da arte, não tem história, e as suas belezas estão disponíveis a todas as culturas e em qualquer época. Uma faculdade dirigida à beleza natural teria uma hipótese real de ser ao mesmo tempo um universal humano e escorada numa pretensão universal – por outras palavras, uma pretensão racional. Infelizmente, Kant está aberto à mesmíssima objecção que procura evitar. Nada é mais temporalmente indexado e provinciano em Kant do que o interesse na beleza natural, e a distinção entre o sublime e o belo, através da qual procura explicar a sua profunda importância filosófica. Poder-se-ia mesmo argumentar que a beleza natural foi uma descoberta do Esclarecimento. É o domínio sobre a natureza, a sua conversão num lar seguro e comum para a nossa espécie, e o crescente desejo de proteger o minguante mundo selvagem, que explica a súbita atitude para com o mundo natural como um objecto de interesse intrínseco, em vez de um meio para os nossos objectivos práticos. A estética de Kant é um produto do seu tempo tal como os poemas de Ossian e a Nouvelle Héloise de Rousseau, apenas a um passo da arte paisagística romântica de Friedrich, Wordsworth e Mendelssohn, e tão temporalmente indexada no seu enfoque como estes. Outras eras e outras culturas seguramente não têm uso para a atitude contemplativa para com o mundo natural. Para a maioria das pessoas na maioria dos períodos da história a natureza tem sido hostil e inóspita, algo contra o qual temos de lutar pela nossa subsistência e que não oferece qualquer consolo quando contemplada com o olhar frio do observador.

Ainda assim, mesmo sendo isto verdade, há mais a dizer a favor de Kant. Tendo identificado o interesse estético como essencialmente passivo e contemplativo, Kant estava naturalmente inclinado a identificar o seu objecto característico como algo que não é feito mas que é descoberto. Com os artefactos a nossa razão prática está não raro vigorosamente comprometida, segundo lhe parecia, para permitir o distanciamento exigido pelo juízo estético. E Kant fez uma distinção entre a beleza “livre” de que temos experiência com os objectos naturais, a qual nos chega sem o uso de quaisquer conceitos da nossa parte, e a beleza “dependente” de que temos experiência nas obras de arte, e que depende de uma conceptualização prévia do objecto.9 Só para com a natureza podemos alcançar um desinteresse sustentado, quando os nossos próprios objectivos se tornam irrelevantes para o objecto da contemplação.

Kant está seguramente errado nisto; mas ao explorar o seu erro espero por em destaque a profunda verdade que ele tenta fazer passar. Pace Kant, há um tipo de contemplação desinteressada envolvida mesmo nos assuntos mais práticos, e que faz parte de saber o que estamos a fazer e de fazê-lo bem. Wittgenstein tem um exemplo revelador disto.10 Suponha que está a ajustar uma porta numa parede e a marcar o lugar da moldura. Recuará ocasionalmente e perguntar-se-á: parece bem? Esta é uma questão real, mas não é uma questão que possa ser respondida em termos funcionais ou utilitários. A moldura da porta pode ser precisamente o que é necessário para permitir o movimento, pode cumprir todos os requisitos de saúde e segurança, mas pode simplesmente não parecer bem: demasiado alta, demasiado baixa, demasiado larga, com a forma errada, e assim por diante. Tais juízos não nos referem a qualquer objectivo utilitário ou funcional, mas são racionais ainda assim. Podem ser o primeiro passo num diálogo, em que se fazem comparações, intimam exemplos e discutem alternativas. E o assunto deste diálogo tem algo a ver com o modo como as coisas se ajustam entre si, e uma esperada harmonia na prossecução de uma tarefa física comum.

Este é o tipo de exemplo, parece-me, que Kant devia ter usado, de modo a firmar a sua perspectiva de que há um exercício das faculdades racionais que se dirige além do propósito, e que envolve uma contemplação da aparência das coisas. Pois o exemplo mostra não só que há na verdade um semelhante exercício das faculdades racionais, mas que integra a tomada de decisões práticas. Há outros exemplos que mostram o mesmo ponto. Considere o que se passa quando põe a mesa para as visitas: este é um exemplo que o próprio Kant usa11 como ilustração daquilo a que chama arte “agradável” (por contraste com “bela”), embora não se aperceba da sua centralidade para os seus próprios propósitos. Ao por a mesa o leitor não se limitará a largar os pratos e talheres de qualquer maneira. Será motivado por um desejo de que as coisas pareçam bem – não apenas para si próprio mas também para os seus convidados. De igual modo, quando se veste para uma festa ou um baile, até mesmo quando dispõe os objectos na sua secretária ou arruma o seu quarto pela manhã: em todos estes exemplos procura a disposição correcta ou apropriada, e esta disposição tem a ver com a aparência das coisas. Os exemplos orientam-nos para aquilo a que chamo “a estética da vida quotidiana”, um tópico bastante descurado, cuja negligência explica, na verdade, muitos dos modos pelos quais as pessoas não compreendem a arquitectura e o design.12

Os exemplos não nos levam ainda muito longe. Dizem-nos que há escolhas remanescentes quando a utilidade é satisfeita, que estas escolhas dizem respeito, ou tendem a dizer respeito, às aparências, que podem ser discutidas e que nessa medida são racionais. Mas não nos dizem o real propósito ou valor de fazer essas escolhas, se podem ser objectivamente satisfeitas, ou que papel desempenham na vida de um ser racional. Podem parecer um mero resíduo – algo que fica depois de as decisões reais terem sido feitas, um modo de nos decidirmos arbitrariamente por uma entre uma infinidade de opções.

O que mais há a mostrar para ressuscitar a posição kantiana? Primeiro, parece-me, precisamos de mostrar o lugar dessas escolhas estéticas na vida de um ser racional. E será útil aqui comparar a situação dos animais não racionais. Também eles vivem num mundo de redundâncias. Um cavalo, deparado com uma cerca nivelada, dispõe de inúmeros pontos em que pode saltar sobre ela. Se salta é porque o quer fazer – seja para escapar a um inimigo ou para seguir a manada. E o seu saltar pode ser explicado segundo o habitual modelo de crença-e-desejo do comportamento deliberativo. Mas não há, para o cavalo, qualquer resposta à pergunta sobre que ponto na cerca é o lugar apropriado para saltar, não porque todos os pontos estejam em paridade mas porque para o cavalo essa questão não se coloca. Nós podemos colocar questões como essa, visto que temos o hábito de eliminar redundâncias, justificando acções individuais, fazendo não só o que nos permite alcançar os nossos objectivos mas também o que nos permite alcançá-los do modo mais “apropriado”.

Este ponto pode ser posto em destaque também por uma comparação com o canto das aves. Como hoje sabemos, o canto das aves tem uma função territorial, e é emitido nos momentos do dia – ao despertar e antes de dormir – quando um macho activo precisa de marcar os limites da sua parcela de território. Esta função não é um propósito da ave: ela não tem propósitos, mesmo que seja motivada por desejos, uma vez que a sua vida não é vivida de acordo com quaisquer planos. Além disso, o canto é subdeterminado pela função, que requer somente que o canto seja suficientemente intenso para ser ouvido pelos rivais e potenciais companheiras, e reconhecível ou como voz da espécie ou, quando os territórios estão em proximidade e confinados, como a voz do ocupante individual. Os grandes predadores não beneficiam geneticamente do reconhecimento individual, e por necessidade têm territórios vastos e fronteiras permeáveis. Não surpreende que os seus chamamentos tendam a ser chamamentos específicos, como os do abutre ou do falcão. Os genes das aves canoras, contudo, são beneficiados se os chamamentos individuais podem ser reconhecidos selectivamente por companheiras e rivais: pois isto marca uma “estratégia evolutivamente estável” na competição por companheiras e território.13 Não surpreende, portanto, que estas aves emitam chamamentos diversos e variáveis, procurando expressões e notas antes de se fixarem em alguns modos de expressão característicos, que figuram como refrães na sua litania diária.

Escutamos estas expressões como afins ao cantar, e descrevemos o chilrear das aves como um género de música. Mas nada há no comportamento da ave que nos pudesse levar a dizer que esta escolheu uma nota como a sucessora adequada de outra, que acertou nesta expressão como precisamente a expressão correcta para o contexto, que escuta uma nota como a continuação da expressão que a precedeu, e assim por diante. Nenhum destes juízos tem aplicação em ornitologia, visto que são juízos que se aplicam somente a seres racionais – seres que não se limitam a acertar numa entre uma infinidade de alternativas diante de si, mas que procuram razões para o fazer, seja antes ou depois do sucedido.

Como pode um ser racional eliminar redundâncias do tipo que permanecem eternamente em aberto no canto de uma ave? Regressemos ao exemplo do carpinteiro. Como escolhe o carpinteiro entre as possíveis molduras para a porta que se ajustam à função em causa? Com base no que parece bem. Ele ajuíza o objecto em termos da sua aparência e procura nesta aparência uma razão que justificaria a sua escolha.

Note-se que este não é o único modo de eliminar redundâncias. O carpinteiro podia procurar razões para a sua escolha não no modo como a porta lhe aparece mas no modo como é. Podia descrever a sua forma – um rectângulo em secção dourada, digamos – como a forma apropriada, independentemente da sua aparência. Mas por que razão é a forma apropriada? Uma resposta seria: a religião exige que construamos em secções douradas. Mas se essa é a resposta final, então apenas especificámos outra exigência funcional. Caso em que as redundâncias surgirão alhures – no tamanho da porta, talvez, nos materiais a usar, etc. Se a religião especifica tudo, de modo a não haver lugar para escolha, então simplesmente elimina a ideia da forma “apropriada”, da aparência “apropriada”. Não há um correcto ou incorrecto independentes acerca da aparência, uma vez que a questão não pode ser colocada. Mas em toda a prática humana efectiva pode sempre ser colocada, e uma religião que tente impedir isto não apelará durante muito tempo àqueles a quem se pede que construam os seus templos. Normalmente, portanto, ao escolherem o que consideram a forma “apropriada” para uma porta, os carpinteiros orientam-se pela aparência das coisas. Quando as questões de função e utilidade foram respondidas, que interesse resta para um carpinteiro satisfazer, que não o nosso interesse na aparência das coisas?

Seguem-se consequências importantes. Quando escolho uma moldura para uma porta pela razão de que parece bem, tenho de confrontar, quer a partir de mim ou de outrem, a pergunta “Porquê?” Uma resposta possível é “Porque sim”. Ou posso fazer comparações, procurar significados, costumes e tradições que justificam a minha escolha. Mas o que não posso fazer é atribuir à aparência um valor meramente instrumental, por exemplo, afirmando que “as portas com essa forma atraem clientes mais velhos”. Pois isso seria abandonar o meu juízo inicial. Seria apoiar o meu argumento não na aparência que a porta tem para mim, mas na utilidade de ter essa aparência para outros. É recuar para um juízo de utilidade, o qual poderia razoável e sinceramente afirmar mesmo que a moldura da porta me parecesse de todo inapropriada.

Os animais olham para objectos, procurando informação acerca de ameaças e promessas. Mas os animais não olham para as coisas como o carpinteiro olha ao estudar a moldura da porta. Todo o instante em que se observa um animal demorando-se na aparência ou sonoridade de algo pode ser igualmente descrito, sem perda de poder de previsão, como um caso de curiosidade, de escutar ou lobrigar informação. Nada parece haver no repertório comportamental de um animal que nos permita afirmar que este contempla a aparência ou a sonoridade de algo. Pode estar à procura de informação pela observação ou audição; ou pode, como o melro, estar a fazer sons instintivamente, que transmitirão informação aos seus semelhantes. Mas em todos estes casos a aparência das coisas está subordinada, na consciência de um animal, à informação que dela tira, ou ao instinto servido na sua produção. Nós, que podemos recuar e estudar aparências e basear as nossas escolhas no que então percebemos, podemos encontrar um lugar no nosso comportamento e nas nossas vidas para a pura aparência, como faz o carpinteiro ao escolher uma forma particular para a moldura de uma porta.14

Ao contemplar a aparência da moldura da porta, o carpinteiro encontra o modo de eliminar a redundância de escolhas que tem perante si. Uma vez que no seu pensamento a aparência foi separada das considerações práticas que propõem como igualmente apropriadas uma infinidade de molduras de porta, ele encontra-se agora num caminho de descoberta – para encontrar as razões que justificariam esta moldura, e que a justificariam com base na sua aparência. Comparará a moldura da porta com outras e também com os aros da janela que serão colocadas num ou noutro lado. Procurará descobrir o que se “ajusta” aos outros detalhes visuais no edifício. Tentará “fazer corresponder” a moldura da porta ao edifício como um todo, e também às suas partes. Um resultado deste processo de correspondência é um vocabulário visual: ao usar molduras idênticas na porta e janela, por exemplo, a correspondência visual torna-se mais fácil de reconhecer e aceitar. Outro resultado é o que descrevemos livremente como “estilo” – o uso repetido de formas, contornos, materiais, etc., a sua adaptação a usos especiais, e a procura de um repertório de gestos visuais.

Até agora o leitor poderá pensar que nada se acrescentou às deliberações do carpinteiro além de um tipo de jogo que ele joga consigo próprio, por via de eliminar as redundâncias deixadas pelas decisões práticas reais. Contudo, duas considerações surgem que lançarão dúvida sobre essa resposta. A primeira é a de que o carpinteiro não é a única pessoa que terá uma perspectiva sobre o assunto da moldura da porta. Também outros observarão e irá agradar-lhes ou desagradar-lhes as suas proporções. Alguns terão um interesse na porta, como futuros residentes do edifício ao qual esta se irá ajustar. Outros terão o interesse de transeuntes e vizinhos. Mas todos terão um interesse na aparência da porta: e quanto menor for o seu envolvimento prático, maior será esse interesse. Eis aqui o início daquilo a que os especialistas em teoria dos jogos chamam “problema de coordenação”.

Um modo de resolver este problema é procurar um acordo: se há uma única escolha – ou um leque de escolhas – em que todos podemos concordar, então o problema deixa de o ser.15 Mesmo na ausência de um acordo explícito, contudo, pode ao longo do tempo emergir uma solução, à medida que as escolhas impopulares são rejeitadas e as populares são adoptadas. Assim os grandes inovadores como Palladio sugerem formas e composições que suscitam a aprovação espontânea de outros, enquanto os construtores comuns de ruas adoptam um processo de tentativa e erro. Ambos os processos acrescentam algo ao vocabulário partilhado de formas, materiais e ornamentos. Um tipo de discurso racional emerge, cujo propósito é construir um ambiente partilhado em que todos possamos estar em casa, e que satisfaça a nossa necessidade de as coisas parecerem bem a todos. Este aspecto do estético – o seu estatuto socialmente derivado e socialmente motivado como um guia para o nosso ambiente partilhado – é algo sugerido, mas não contido, na sua natureza como um mecanismo de eliminar redundâncias.

A segunda consideração é a de que a aparência de algo, quando se torna objecto de interesse intrínseco, acumula significado. Pode-se simplesmente fruir a aparência por si mesma. Mas os seres racionais têm uma necessidade inerente de interpretar e quando o objecto da sua atenção é uma aparência, estes interpretarão a aparência como algo intrinsecamente significativo. Mesmo algo tão simples como a concepção de uma moldura de porta estará sujeito a esta necessidade. O carpinteiro associará formas de portas com formas específicas de vida social, com modos de entrar e sair de uma sala, com estilos de vestuário e comportamento. Na verdade, há muito que se reparou no facto de as modas no vestuário e as modas na arquitectura terem a tendência a imitar-se mutuamente, e que ambas reflectem os modos transitórios como o ser humano e o corpo humano são percepcionados.

Tomando conjuntamente essas duas considerações, chegamos à seguinte sugestão interessante, que é a de que sempre que as pessoas procuram eliminar a redundância do raciocínio prático escolhendo entre aparências, estão também propensas a interpretar essas aparências como intrinsecamente significativas e a apresentar o significado que descobrem por meio de um género de diálogo racional, cujo propósito é assegurar um certo acordo nos juízos entre os que têm um interesse na escolha. Ao afirmar isto, aproximamo-nos bastante da ideia setecentista do gosto como uma faculdade pela qual os seres racionais ordenam as suas vidas através de um sentido, socialmente engendrado, da aparência correcta e incorrecta. E não é de todo irrazoável sugerir que começamos a localizar um domínio genuíno da vida racional que corresponde à ideia filosófica do estético, que é ao mesmo tempo importante em si mesma e filosoficamente problemática.

Ao escolher a moldura da porta pela sua aparência, o carpinteiro liberta-se do raciocínio instrumental. Depara-se com uma escolha, em que o objecto escolhido não é o meio para um fim mas um fim em si mesmo. A sua escolha não é ditada por restrições externas mas emerge de um sentido de envolvimento pessoal. Num certo sentido ele exprime e realiza a sua própria natureza, e aquilo que escolhe pertence-lhe como criação sua. Este tipo de escolha pode ser descrito como “pura alegria”, o que significa que está imbuída da liberdade daquele que escolhe e vindica essa liberdade, imprimindo a sua marca no mundo.

A porta parece bem ao carpinteiro que a escolhe, e este “parecer bem” leva-o a interpretar a aparência vendo nela coisas que não contém literalmente. A porta tem, aos seus olhos, uma aparência natural, informal e honesta. Traz à mente a forma e estilo de um modo de vida. A moldura da porta não é simplesmente preferida mas interpretada, e a interpretação envolve metáforas, analogias e referências oblíquas e associativas a coisas que nada têm em si a ver com portas – honestidade, domesticidade, e assim por diante.

Ora, é seguramente óbvio que uma vez surgido este hábito de interpretar aparências, surgirá também o hábito de criar objectos para serem fruídos pela sua aparência e cuja aparência é para ser interpretada puramente pelo que significa e sem referência a alguma função prática (ulterior). Parece-me ser este o núcleo do ímpeto artístico: a criação de um objecto de interesse, cujo significado reside na sua aparência e cuja aparência é fruída pelo seu significado. Se isto está correcto, então demos um passo no sentido de definir a arte como um tipo funcional, e de decidir sobre todos aqueles casos problemáticos, que não serão de todo problemáticos, agora que temos um modo de os resolver.

O exemplo dependeu crucialmente do facto de, uma vez as questões de função e utilidade plenamente satisfeitas, a aparência ser tudo o que resta, de modo que uma tentativa de eliminar redundâncias tem de encontrar uma solução na aparência das coisas. E este interesse nas aparências parece corresponder a duas das condições que Kant estabelece para o estético: está ligado à experiência sensível e é desinteressado, surgindo somente quando os nossos interesses práticos foram ou satisfeitos ou postos de parte. Procedendo nesta direcção, aproximamo-nos de uma concepção credível da estética da vida quotidiana, capaz de explicar por que os valores estéticos são importantes, por que procuramos constantemente o acordo acerca deles, e por que resultam numa busca partilhada pela ordem e o estilo. Todavia, se não podemos extrapolar a partir deste caso para as formas de arte que têm maior importância para nós, não fomos bem-sucedidos em fazer a conexão crucial entre o estético e o artístico – a conexão que subjaz à história do tópico.

Aqui podemos fazer uma de duas coisas. Primeiro, podemos abandonar a busca de uma única coisa denominada “interesse estético”, que unificará as diversas formas de arte proporcionando uma teoria do seu valor e um fundamento para o juízo crítico. Isso seria efectivamente abandonar a ideia da estética, como uma área distinta da filosofia. Segundo, podemos procurar no nosso exemplo um fio que nos conduzisse às diversas formas de arte de modo a por fim ligar mesmo o aparentemente mais remoto do nosso exemplo – a prosa ficcional – ao “interesse desinteressado nas aparências” que proporciona a ideia filosófica nuclear. Este é o caminho pelo qual desejo enveredar. Pois me parece que o “interesse nas aparências” que descrevi não é senão um caso especial de um interesse mais vasto no modo como as coisas se apresentam, e que este é um interesse comum a todos os seres racionais.

Antes de prosseguir nessa linha, contudo, há uma lição mais a tirar do exemplo do carpinteiro. Ao concentrar-se na aparência da moldura da porta, a sua reação fundamental pode ser expressa, como apontou Wittgenstein, em termos como os seguintes: “demasiado alto”, “demasiado baixo”, “mesmo à justa” – expressões com força normativa que levantam a questão “Porquê?” Há (grosso modo) dois tipos de resposta que o carpinteiro pode dar a essa pergunta – supondo que lhe responde de todo. A um tipo de resposta podemos chamar “formal”: permanece centrada na forma e dimensões da moldura da porta simplesmente descrevendo-a e contextualizando-a. O carpinteiro poderá dizer: “Esta é a forma que corresponde às janelas, que melhor se ajusta ao estilo da casa”, etc. O outro tipo de resposta transmite uma ideia de significado. O carpinteiro poderá dizer que a moldura da porta tem uma aparência serena, pacífica ou acolhedora. Aqui as descrições são frequentemente metafóricas, importadas de outro contexto, mais central. E situam o objecto na corrente da vida humana, dotando-a de um significado moral ou social.

Quando afirmamos de uma pessoa que “parece serena”, isto pode ser tomado num sentido epistémico, com o significado “ela aparenta estar serena” – isto é, pode-se inferir a partir da sua aparência a probabilidade de estar serena. Mas a expressão pode também ser tomada num sentido não epistémico, com o significado “ela tem uma aparência serena”, independentemente de na verdade estar ou não serena. É este sentido não epistémico de “aparência” que está envolvido na descrição da moldura da porta. Não interpretamos as aparências como um guia para a realidade, mas procuramos o significado que têm nelas próprias.

Uma experiência pode ter significado para nós num de dois modos: pela percepção e pela imaginação. O modo da percepção é o que partilhamos com os outros animais. Envolve o uso das nossas capacidades sensoriais para obter informação acerca do mundo, e esta informação chega-nos de duas formas: como parte do modo como as coisas nos aparecem, e como inferência a partir do modo como as coisas aparecem. O objecto diante de mim parece uma mesa e aqui a informação acerca do objecto reside na própria aparência. Também infiro a partir da aparência que alguém tentou deslocar a mesa. Distinguir entre a informação que reside numa experiência, e a informação que se infere a partir de uma experiência é uma tarefa importante na filosofia da mente. Pressuporei que temos uma compreensão intuitiva do que a distinção envolve.

O modo da imaginação é ilustrado por imagens, como quando vejo um rosto num retrato. Este “ver em” é mais uma vez objecto de muito trabalho na filosofia da mente. Como com o modo da percepção, posso distinguir entre o conteúdo que faz parte da própria aparência e o conteúdo que é inferido, ou antes importado, por associação e reflexão. Vemos o rosto e também contamos a nós próprios uma história acerca dele. Mas em nenhum dos casos precisamos de lidar com informação acerca do mundo real. Alguém pode afirmar, sob a influência da filosofia, que lidamos com informação acerca de um mundo imaginário, e nenhum mal há nisso, desde que recordemos que os mundos imaginários não são necessariamente mundos possíveis. O que é importante, todavia, é que nesses casos o nosso ver dá-se em dois modos, que apresentam objectos diferentes e incomensuráveis: um é uma imagem física, outro é o rosto representado nela. Este tipo de “dupla intencionalidade” exibe-se somente em criaturas com imaginação. E isso significa seres racionais, como o leitor e eu.

Quando vejo uma cena numa pintura é como se me apresentassem uma história. A minha experiência visual contém um tipo de narrativa. Esta narrativa apresenta-se através da aparência da imagem. Não há outro acesso à história, nenhum facto que se possa abordar independentemente, nenhum modo de descartar a imagem e lidar directamente com o mundo – a imagem é o mundo. Como com todas as ficções, não é a verdade literal da imagem que nos preocupa, mas a sua “veracidade”, a sua Wahrscheinlichkeit, como Baumgarten afirmou da poesia – a sua capacidade de apresentar o objecto que cria, de modo a torná-lo credível. Na sua teoria do carácter “desinteressado” do juízo estético, Kant argumentou que a atitude desinteressada tem de permanecer indiferente à existência real do objecto de interesse,16 e as ficções dão um bom exemplo do que isto pode significar – embora não um exemplo que teria agradado a Kant, visto que para ele as ficções têm, quando muito, beleza “dependente” e não são senão exemplos impuros do estético.

As imagens interessam-me, contudo, por outra razão. Constituem um caso paradigmático de representação artística, e ilustram o modo como um interesse na representação difere bastante de um interesse na coisa representada. A representação é uma forma de apresentação, e não é a própria coisa, mas o modo como essa coisa é apresentada, que capta a nossa atenção. Um mundo ficcional apresenta-se-nos, e não é por meio da apresentação que este mundo ficcional entra nos nossos pensamentos. O nosso interesse no mundo da imagem é ao mesmo tempo um interesse na aparência da imagem: o mundo e a aparência são um.

As imagens permitem que façamos uma ligação ao caso problemático da prosa literária. A literatura tem algo em comum com a música: é uma arte que se estende no tempo, e as partículas de que é composta – as palavras – têm também um som e em contextos normais são compreendidas através do seu som. No caso da poesia, portanto, parece plausível afirmar que o som do verso é o foco da nossa atenção. Todavia, as palavras não são apenas som – em particular, há o significado. E as palavras não têm significado do mesmo modo que as imagens o têm, nem soam como a música o faz. São sui generis em ambos os aspectos, e embora a grande poesia resista a ser traduzida pela razão de que o som verbal e os ritmos sintácticos são explorados pelo poeta como fontes independentes de significado – fontes independentes das regras semânticas que regem o uso das palavras – pertence à essência da prosa o ser traduzível: pois trata-se de usar palavras de acordo com as suas regras semânticas, e estas regras têm como consequência inevitável o serem traduzíveis. Se a prosa não fosse traduzível, algumas das nossas mais importantes experiências da arte seriam inacessíveis – por exemplo, a experiência de ler Ana Karenina em tradução.

Curiosamente, quando o conceito moderno de arte, como esfera unificada de acção humana, começou a emergir no século XVIII, a prosa literária nunca foi mencionada como parte do mesmo. A ênfase foi dada à pintura, à escultura, à música e à poesia – com a arquitectura e a dança por vezes introduzidas como respostas tardias.17 Isto pode ser tomado por um lado como uma demonstração ulterior do cepticismo historicista apresentado antes, segundo o qual o objecto de estudo da estética está demasiado sujeito à variação histórica para que se justifique o seu estatuto como ramo da filosofia ou, pelo contrário, como demonstração do poder da filosofia para descobrir ligações que não foram antes objecto de atenção. Adopto a segunda abordagem, uma vez que acredito poder ser vindicada não só na esfera da estética mas em toda a disciplina da filosofia, do modo como esta se configurou desde Kant.

O interesse na prosa literária não é um interesse na “sonoridade das palavras”. Mas isto não significa que não seja um interesse em aparências, num certo sentido mais amplo da expressão. É crucial para toda a experiência da literatura o desenrolar de uma história – uma história que é criada pelas palavras que lemos ou escutamos, e não tem, ou pode não ter, qualquer realidade independente. Não estamos de qualquer modo interessados na história narrada, nem num resumo ou sinopse – ou se temos semelhante interesse, isto não faz parte da nossa apreciação da prosa como arte. Interessamo-nos pela própria narrativa: os detalhes que se traz à imaginação, as observações, as imagens, as reflexões e as acções tal como são invocadas e o ritmo da história. Interessamo-nos, por outras palavras, no modo como o mundo imaginário da história é apresentado na nossa experiência, como quando estudamos uma pintura. E a mesma característica de dupla intencionalidade molda a nossa resposta, na qual o que está ausente e imaginado é conjurado através do que está presente e é objecto de crença.

Há outra questão mais geral levantada pela minha abordagem ao assunto. Em todos os casos que considerei, do simples caso do carpinteiro ao do romancista reflexivo lido em tradução, procurei mostrar que o nosso interesse se centra no objecto, como este objecto se nos apresenta na experiência, e que ao fazê-lo procuramos e descobrimos significado. De que tipo de significado se trata, que não é separável do seu modo de apresentação? Baumgarten já nos orientava para esta questão – ou antes no sentido desta bateria de questões – na sua perspectiva da poesia como vinculada a percepções. Pensadores subsequentes seguiram Batteaux (ele próprio influenciado por Platão e Aristóteles nas suas discussões da poesia e da música) ao referir a “imitação” como o núcleo do significado artístico, e ao procurar ampliar esse termo para abranger a relação entre a pintura e as coisas que vemos nela, entre a poesia e as coisas que nela compreendemos, e entre a música e as paixões. A noção de imitação, suficientemente ténue para com ela se começar, foi a tal ponto desgastada com isto que não surpreende se os filósofos começaram a procurar distinções, em vez de semelhanças, entre as formas de significado artístico. Quando Croce distinguiu entre a representação e a expressão, foi com vista a descobrir um tipo de significado que pertence aos actos comuns de comunicação, ao jornalismo, à fotografia e ao entretenimento. A minha própria perspectiva é a de que devemos procurar não um único tipo de significado exemplificado por todas as artes, mas um único tipo de compreensão, que direccionamos para esses objectos que apreciamos esteticamente. Uso o termo “imaginação” para abranger os diversos exercícios desta “compreensão estética” e procuro mostrar que a “dupla intencionalidade” é o princípio orientador.

Temos razões para crer que há algo que é o interesse estético, que este tem a importância que Kant e outros pensadores do Esclarecimento lhe atribuíram, e que é o locus de problemas filosóficos complexos e interligados. Na verdade, podemos afirmar acerca do interesse estético que se trata precisamente de uma descoberta filosófica: sempre existiu, mas precisava da filosofia para ser identificado e limpo dos obstáculos mentais. Tendo-o isolado, contudo, os filósofos podem – creio – dar uma contribuição real para o autoconhecimento da humanidade, mostrando o modo como o interesse estético orienta as nossas escolhas, e o modo como tais escolhas podem, consequentemente, ser justificadas. Uma conclusão a tirar do exemplo do carpinteiro é uma conclusão já sugerida por Schiller, segundo a qual numa das suas aplicações, pelo menos, o interesse estético orienta e medeia a nossa procura por um lar comum. Dá-nos um modo de nos centrarmos naqueles aspectos do nosso ambiente que sobrevivem à extinção dos nossos propósitos presentes, que têm igual importância para todos nós, e que nos mostram, reflectindo-a, a imagem da nossa condição social e do nosso compromisso de viver em paz com os nossos vizinhos.

Roger Scruton
Retirado British Journal of Aesthetics, Vol. 47, n.º 3, 2007, pp. 232–250.

Notas

  1. Aesthetica (1750; parte II, 1758); cf. também J. C. Hamann, Aesthetica in nuce (1762). ↩︎︎

  2. Kant repudia explicitamente o uso que Baumgarten faz do termo “estética” em B36, embora seja argumentável que a primeira Crítica contém uma elaboração extensa do contraste feito por Baumgarten, entre as faculdades sensuais e intelectuais. A influência do uso de Baumgarten foi exposta por Robert Dixon, em The Baumgarten Corruption: From Sense to Nonsense in Art and Philosophy (Londres e East Haven, 1995). ↩︎︎

  3. Pierre Bourdieu, Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste, trad. Richard Nice (Londres, 1984); Terry Eagleton, The Ideology of the Aesthetic (Oxford: Oxford U. P., 1990). ↩︎︎

  4. Algumas das subtilezas são introduzidas por G. A. Cohen em Karl Marx’s Theory of History, a Defence (Princeton, NJ: Princeton U. P., 1978). ↩︎︎

  5. Pode-se encontrar uma versão do argumento, expressa noutros termos, em Hans-Georg Gadamer, “The Relevance of the Beautiful”, em The Relevance of the Beautiful and Other Essays, trad. Nicholas Walker, org. Robert Bernasconi (Cambridge: Cambridge U. P., 1986). ↩︎︎

  6. F. N. Sibley, “Aesthetic Concepts”, Philosophical Review, Vol. 68 (1959), pp. 421–450; “Aesthetic and non-Aesthetic”, Philosophical Review, Vol. 74 (1965), pp. 135–159. ↩︎︎

  7. Por exemplo, P. O. Kristeller, “From the Renaissance to the Enlightenment”, em Studies in Renaissance Thought and Letters, Vol. III (Roma, 1993). ↩︎︎

  8. Veja Hilary Putnam, “Is Semantics Possible?”, em Mind, Language and Reality: Philosophical Papers, Vol. 2 (Cambridge: Cambridge U. P., 1975). ↩︎︎

  9. A distinção aqui não está claramente delineada e é também objecto de disputa académica entre os comentadores. Veja The Critique of Judgement , trad. J. C. Meredith (Oxford: Oxford U. P., 1952), p. 70. ↩︎︎

  10. Lectures and Conversations on Aesthetics, Psychology and Religious Belief, org. C. Barrett (Oxford: Blackwell, 1966), p. 13. ↩︎︎

  11. Critique of Judgement, pp. 165–166. ↩︎︎

  12. Argumentei a favor desta aplicação do raciocínio estético em The Aesthetics of Architecture (Londres e Princeton, NJ: Princeton U. P., 1979). ↩︎︎

  13. O conceito de “estratégia evolutivamente estável” foi desenvolvido na adaptação de Maynard Smith da teoria dos jogos para abranger a competição no patamar genético. Ver Helena Cronin, The Ant and the Peacock: Altruism and Sexual Selection, from Darwin to Today (Cambridge: Cambridge U. P., 1991). ↩︎︎

  14. O argumento deste parágrafo é uma aplicação do princípio em etologia animal, conhecido como o Cânone de Lloyd Morgan: ver C. Lloyd Morgan, Habit and Instinct (Londres, 1896). ↩︎︎

  15. Esta é a ideia subjacente ao contrato social, tanto na versão lockiana como na rawlsiana. Contraste-se, porém, a perspectiva Adam Smith/Hayek, de que as ordens consensuais emergem da escolha, mas não são objecto de escolha. Um estilo em arquitectura é mais como uma “ordem espontânea” no sentido de Hayek, do que como a ordem planeada do contrato social. (Ver F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 2 [Londres: Routledge, 1976].) ↩︎︎

  16. Critique of Judgement, p. 43. ↩︎︎

  17. Ver por exemplo, o Abbé Batteaux, Les beaux-arts reduits à une même príncipe (1746), e a discussão em Kristeller, “From the Renaissance to the Enlightenment”. ↩︎︎

Copyright © 2024 criticanarede.com
ISSN 1749-8457