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Crítica
14 de Setembro de 2016   Estética

O que é uma propriedade estética?

Eddy Zemach
Tradução de Vítor Guerreiro

O Sr. Jones veste a sua camisa de flanela azul e vermelha axadrezada e pega numa gravata de seda amarela às bolinhas pretas. A sua esposa, observando-o horrorizada, interpela:

— Que fazes? Vais usar essa gravata com essa camisa?

— E se usar?

— Nem pensar! Não combinam!

— Se tu o dizes, querida — suspira — Faz-me um favor, anota-me todas as regras do vestir em uso, sabes, o que combina com o quê; faço a lista rimar e memorizo-a. Que tal “Seda e Flanela é como Chocolate e Morcela”? Soa bem, não?

A Sr.ª Jones ignora a rima:

— Não há regras; é só olhar e ver.

O Sr. Jones não se deixa convencer:

— Se não há regras, querida, como sabes que a gravata não vai bem com a camisa?

A Sr.ª Jones resmunga:

— Este homem é cego, completamente cego, valha-me Deus!

E assim termina a discussão.

A Sr.ª Jones afirma observar uma qualidade estética do traje que Jones pretende usar: é hediondo. Crê poder ver a incompatibilidade dos seus componentes tão claramente como vê a cor amarela da gravata, e observar a incongruência entre a camisa e a gravata tão seguramente como vê tratar-se de uma camisa e de uma gravata. O Sr. Jones, por outro lado, afirma não observar quaisquer propriedades estéticas porque não há tais propriedades para serem observadas. A preferência da esposa, assevera, é motivada pela sua obediência a uma regra arbitrária decretada por gurus da moda. Qual dos Jones tem razão? Sibley está de acordo com a Sr.ª Jones e eu também; O Sr. Jones, na nossa perspectiva, não vê o que a sua esposa vê porque não tem gosto. Mas o Sr. Jones é inflexível; memorizámos as regras e convenções da moda, alega, e agimos de acordo com elas; sabemos como se deve vestir hoje em dia, mas não há qualquer faculdade do gosto, semelhante à percepção, que nos informe das chamadas “propriedades estéticas” das nossas roupas. Poderemos convencê-lo de que as pessoas que aparentemente percepcionam propriedades estéticas nas coisas não estão iludidas?

De regresso ao armazém, o Sr. Jones (que é um comerciante de mobiliário) tem de satisfazer um pedido de cinquenta cadeiras. Os seus carregadores são refugiados albaneses, um facto que ele muito aprecia no dia de pagamento, mas que torna penosa a comunicação quotidiana. Agora tem de os ensinar a identificar cadeiras. Jones pronuncia em voz alta a palavra “cadeira” várias vezes, ao mesmo tempo que aponta para uma cadeira e exclama:

— Cadeiras aqui!

O resultado é frustrante. Trazem-lhe algumas cadeiras, de facto, mas também mesas, sofás, camas e um candeeiro. Em desespero, Jones interpela o delegado sindical.

— O que se passa com os seus homens? Será que não veem que as coisas que me trouxeram não correspondem a esta cadeira?

— Se assim o diz, senhor — responde o delegado sindical, lançando um olhar desconfiado à cadeira indicada. — Não correspondem, hum? O.K., você diz-me as regras para fazer a correspondência e eu informo os homens.

— Não há regras para fazer correspondências entre coisas, — protesta Jones — basta olhar e ver se as coisas correspondem ou não.

— Não há regras? — Replica o delegado sindical — Nenhuma? Isso não me agrada; terei de colocar essa questão ao sindicato.

— Está cego? — Exclama Jones — Não vê que as cadeiras correspondem entre si melhor do que correspondem a uma cama ou a uma mesa?

— Uma cadeira e uma mesa — diz o outro — Eis uma boa correspondência, uma correspondência funcional, muito melhor que duas cadeiras.

— Duas cadeiras fazem um par melhor, são mais semelhantes entre si — insiste Jones.

— Um género diferente de par, talvez. Um par cadeira-mesa é um par vívido, um par alegre, faz as coisas acontecerem. Um par de cadeiras é como um casal de idosos, passivo, tranquilo e um pouco monótono. Talvez devesse dizer aos homens que queria uma correspondência tranquila, um conjunto monótono, sereno, discreto.

— Um conjunto monótono? Que quer dizer com isso? Olhe, todas as cadeiras aqui são idênticas, no entanto estes homens trouxeram-me uma série de coisas que não são idênticas.

— Quanto a idênticas não sei — hesita o delegado sindical. — Esta cadeira está riscada, as outras não estão; algumas cheiram a rato, outras não. Não são idênticas.

Jones admite:

— O.K. não são idênticas em todos os aspectos, mas em todos os aspectos importantes são exactamente idênticas.

— Importantes? Para quem? Esta cadeira é facilmente acessível, aquela está presa entre dois pianos. Para um carregador, esse é um aspecto importante.

Jones, exasperado, repete:

— Todas estas cadeiras se assemelham exatamente; uma série delas faz um padrão repetitivo.

— Certo — concorda o delegado sindical, acrescentando com um súbito toque poético — uma série de cadeiras não é um todo dinâmico ou dramático, mas tranquilo ou um tanto seco; sóbrio, se é que me entende. Mas se o senhor queria um todo pacífico deveria ter dito; não temos de adivinhar as suas intenções.

— Deveria, como um compositor, dizer aos carregadores para me buscarem algo lento, modo classico, non espressivo? — Troça Jones.

— Por que não? Poderia também usar gestos com as mãos, como faz um maestro; isso poderia ajudar, também — foi a resposta.

Jones está possesso. Se fosse um filósofo, poderia ter-se lembrado de Wittgenstein, o qual argumentava que não se pode proscrever e restringir o uso de um termo com regras ou definições, inclusive ostensivas. Nas Investigações Filosóficas e alhures, Wittgenstein mostra que as aplicações anteriores de um dado termo (digamos, “cadeira”), juntamente com todas as imagens mentais que lhe associamos, não podem decidir para qualquer novo item se este é ou não uma cadeira. Logicamente, nenhum objecto está desqualificado como cadeira somente pelo nosso uso anterior do termo “cadeira”: os exemplos, não importa quão numerosos sejam, nada podem excluir. Por exemplo, o leitor pode interpretar todos os anteriores espécimes de “cadeira” como denotando gatodeiras, em que “x é uma gatodeira” é verdadeiro sse x é ou uma cadeira ou o meu gato recém-nascido. Como, portanto, posso censurá-lo se, após ter definido ostensivamente “cadeira”, lhe pedir uma cadeira e o leitor me trouxer o meu gatinho? Onde está o erro na sua interpretação? Suponhamos que, em vez de apontar cadeiras, explico por palavras o que “cadeira” significa; ajudará? Não, de todo. As palavras que uso na minha explicação precisam também de ser explicadas; para as explicar tenho de usar outras palavras, e assim sucessivamente. Por fim, tenho de definir os meus termos básicos apontando um espécime ao qual se aplicam e assim sujeitá-los a uma infinidade de interpretações (erróneas). Portanto, todas as palavras podem ser interpretadas de uma infinidade de modos, sem excluir qualquer aplicação. Como, então, pode haver normas que regem o uso de “cadeira”? Como pode o uso de termos ser restringido? É esse o paradoxo de Wittgenstein.

Noutros ensaios1 argumentei (pace Kripke) que Wittgenstein resolveu este paradoxo de um modo não-cético. O paradoxo é o de que qualquer continuação de uma sequência satisfaz alguma regra. Dada a sequência 2, 4, 6, 8, 10 — qualquer coisa serve como sexto membro uma vez que há alguma regra que a sequência 2, 4, 6, 8, 10, x, satisfaz, para qualquer x que seja. Logicamente, a sequência 2, 4, 6, 8, 10, 2000 (chamemos-lhe “S”) não é pior do que a sequência 2, 4, 6, 8, 10, 12 (chamemos-lhe “P”). Assim, como podemos afirmar, como sem dúvida fazemos, que P está bem e S está mal? A resposta é que S e P têm diferentes propriedades estéticas: P é harmoniosa, S não o é; parece forçada e caótica. É a vantagem estética que P tem sobre S que justifica a nossa preferência por 12 em vez de 2000 como sexto membro da sequência. Essa vantagem é perceptível, no entanto não é lógica: vemos que 12 está bem para aquela sequência e 2000 mal porque P é esteticamente melhor do que S. As propriedades estéticas de S são negativas, as propriedades estéticas de P são positivas, e isso faz de P um todo melhor, um objecto perceptivamente preferencial.

Será que uso a palavra “cadeira” correctamente se a aplico ao meu gato? O Paradoxo das Regras de Wittgenstein é que não há uma razão lógica para rejeitar essa aplicação. Porém, há outra razão, uma razão estética, para o fazer: perceptivamente, o conjunto S, que consiste em cadeiras e no meu gato, não se conjuga tão bem como P, que consiste somente em cadeiras. P não é regido por regras em maior grau do que S, mas S tem propriedades estéticas negativas ao passo que P tem propriedades estéticas positivas: S é esteticamente destoante ao passo que P parece harmonioso.

Mas não preferimos, em muitas ocasiões, a dissonância à harmonia? Não é verdadeiro que a harmonia pode ser, como afirmou o delegado sindical, um pouco aborrecida? Certo: a dissonância pode ser localmente preferível à harmonia, mas não pode orientar a percepção em geral; o caos é feio em extremo. A dissonância é um desvio bem-vindo, um alívio de uma ordem que se tornou demasiado rígida e sufocante, mas em geral a harmonia produz melhores Gestalten. Aquelas por meio das quais estruturamos o nosso mundo perceptivo exemplificam propriedades estéticas positivas. Não, as propriedades estéticas positivas são precisamente aquelas que encontramos em boas Gestalten. A regra está integrada nos nossos mecanismos reguladores da percepção: vemos o mundo de acordo com a Gestalt esteticamente melhor ao nosso dispor.

Formulemo-lo deste modo: pela própria definição de “gatodeira”, o meu gato e aquela cadeira são do mesmo tipo: são ambos gatodeiras. Logicamente, S não é menos coerente do que P. No entanto, em virtude das suas propriedades estéticas, S é inferior a P, e essa é razão suficiente para ver o mundo como povoado de cadeiras e gatos, mas não de gatodeiras. Isso justifica a nossa intuição básica de que P está bem e S está mal. As gatodeiras não são menos reais do que as cadeiras, porém temos uma forte preferência por percepcionar as coisas como cadeiras e não como gatodeiras. O conjunto das gatodeiras é tão feio, desordenado e incipiente que ao passo que não temos qualquer dificuldade em adquirir o conceito cadeira por ostensão, não podemos aprender a usar “gatodeira” do mesmo modo. O mesmo se aplica ao “verdul” de Goodman e outras invenções conceptuais monstruosas (Wittgenstein dá muitos exemplos 2 de conceitos classificativos arrepiantes desse género, incluindo uma língua que trata as mesas de segunda-feira como distintas em género das mesas de terça-feira!).3

Davidson é conhecido pelas suas duas confortantes máximas: é a priori necessário, argumenta, que na maioria dos casos aquilo em que acreditamos é verdadeiro e o que fazemos é bom. Quero acrescentar uma terceira: é a priori necessário que na maioria dos casos o que vemos é belo (i.e. tem propriedades estéticas positivas). A preferência perceptiva por coisas esteticamente boas, que normalmente nos impede de objectificar o que exemplificaria formas esteticamente inferiores, torna a definição ostensiva, e portanto a aquisição de linguagem, possíveis; sem isso nenhuma língua poderia alguma vez ser aprendida. Suponhamos que estendo a minha mão, aponto com o dedo e digo “isto”. Qual desse número infinito de objectos que poderiam ser denotados pelo meu espécime de “isto” é aquele que efectivamente denota? Só as propriedades estéticas dos objectos supostamente indicados podem decidir. Não temos de comparar conscientemente os méritos estéticos de uma infinidade de objectos que podiam ser denotados pelo termo indexical; isso, evidentemente, não podemos fazer. Ao invés, normalmente vemos apenas os objectos esteticamente mais bem dotados. Achamos fácil aprender a palavra “cadeira” porque vemos os objectos à nossa volta como cadeiras, e não como gatodeiras, e vemo-los porque as cadeiras são esteticamente boas; são bem concebidas.

É muito importante sob que conceito um dado item é identificado. Visto como cadeira, aquela coisa ali parece razoavelmente bonita, uma vez que é facilmente memorizável. Se eu for raptado por alienígenas e criado numa sociedade não-humana que tem uma preferência estética pelo que consideramos feio, por exemplo, se me pedem para reidentificar coisas como gatodeiras, cores como verdul, e nas aulas de aritmética fazer quadição em vez de adição, darei toda a aparência, de facto, de ser um aluno atrasado mental. Se na sua maioria os objectos que me pedem para identificar estão, como as gatodeiras e as esmeriras, repletas de propriedades estéticas inferiores, a minha educação será um estrondoso fracasso, pois as coisas feias são difíceis de ver e identificar. São as propriedades estéticas de uma coisa identificada sob um dado conceito classificativo que determinam se esse conceito classificativo é ou não suscetível de ser aprendido por nós: evitamos instintivamente os conceitos classificativos que objectivam e portanto se aplicam a coisas feias. Wittgenstein pergunta: “Como pode haver um modo correcto de seguir uma regra?” E responde: “O modo correcto de seguir uma regra é aquele que, em geral, resulta na identificação de objectos esteticamente bons”.

Alhures4 pedi ao leitor que tentasse a seguinte (bastante difícil) experiência em percepção: tentar ver o seu gato como uma cobra gorda, ou como um tigre deformado; se o conseguir fazer notará o quão repugnante o seu gato subitamente se tornou. Escrevi:

Se o leitor vê Jemima como um gato ela pode parecer-lhe grande e bonita, mas se […] a vir como um minúsculo tigre deformado, parece distorcida, mirrada, patética, penosamente pequena e feia. Visto como tal-e-tal, um objecto tem um sentido: orienta-nos para um contexto pertinente […] Uma experiência de significado é específica relativamente a aspectos. Wittgenstein chama-lhe […] “uma imagem” (Vorstellung) […] uma imagem é dotada de aspectos e portanto determina a sua própria aplicação. Que o faz em virtude da relação interna entre ela (digamos, o pato-coelho visto como um pato) e determinadas coisas (patos) […] Porque maioritariamente temos as mesmas imagens (vemos as coisas sob os mesmos aspectos) as definições demonstrativas podem funcionar afinal. […] Podemos ensinar às crianças o significado das palavras por gestos uma vez que partilham a nossa noção do que é esteticamente correcto e incorrecto […] as causas biológicas e psicológicas podem determinar a nossa preferência por uma dada Gestalt sobre outras, mas a nossa razão para tal preferência é estética: “aquela”, dizemos, “parece melhor”.

Chegamos assim (para usar uma metáfora de basebol) à primeira base: o argumento de Wittgenstein, de que uma aptidão para seguir regras pressupõe uma tendência para se centrar em objectos esteticamente bem talhados, leva-nos à perspectiva de Kant, de que temos um poder mental, a imaginação produtiva, que forja objectos esteticamente superiores, facilmente reidentificáveis, a partir de uma multiplicidade sensorial caótica. 5 Kant pensava que há somente um modo de talhar esses objectos, mas os filósofos neokantianos, em especial Cassirer, pensavam diferentemente. Os psicólogos Gestaltistas, também, mencionam diversos modos de formar distintos objectos esteticamente superiores (“prenhes”).6 Não é portanto contrário ao espírito de Kant afirmar, como faço aqui, que as propriedades estéticas assinalam a excelência dos objectos como tal (überhaupt).

O mundo como o conhecemos é uma conjunção de coisas diversas, coisas que percepcionamos subsumidos em conceitos classificativos comuns. Vemos claramente navios e sapatos, couves e reis, e nunca vemos os seus rivais filosoficamente urdidos, engendrados. Isto não sucede porque os últimos não existam, mas porque os navios e sapatos são esteticamente superiores às gatodeiras, à quadição e às esmeriras verduis. As propriedades estéticas são, portanto, os diversos modos, ou estilos, em que um objecto pode ou ser tão bem concebido a ponto de chamar a nossa atenção para ele (consideramo-lo então como um indivíduo genuíno), ou não chegar a merecer a nossa atenção, ou seja, não ser digno de atenção qua objecto de percepção. As propriedades estéticas gerais (belo/feio) avaliam quão bom um objecto é enquanto objecto de atenção humana, ao passo que as propriedades estéticas mais específicas assinalam as características estruturais que tornam um dado objecto perceptivamente saliente, ou não-saliente, num dado estilo. Esses pares de propriedades são emocional/sentimental, distinto/trivial, delicado/anémico, dramático/bombástico, vívido/garrido, gracioso/floreado, sólido/rude, sóbrio/monótono, frugal/embotado, direto/vulgar, poderoso/extravagante, preciso/seco, despretensioso/vulgar, e assim por diante.

Na lista acima, cada par de predicados identifica um modo singular de formar um objecto para observação: um estilo. A diferença entre os dois predicados no par não reside no estilo mas no sucesso; um descreve o objecto como (nesse aspecto) esteticamente bom (belo), o outro diz-nos que o objecto é (nesse aspecto) esteticamente mau (feio). Por exemplo, o lírico difere do sentimental não no modo de objectivação mas no sucesso estético; o lírico é bom de observar, o sentimental é mau; o sentimental é um fracasso lírico. As obras líricas e sentimentais são concebidas do mesmo modo M, mas uma obra lírica é um M belo ao passo que uma sentimental é um M feio. Isto resolve, espero, o enigma de Sibley sobre se a identificação de propriedades estéticas exige ou não uma faculdade do gosto. Seguramente, os critérios não-estéticos bastam-nos para distinguir entre o lírico, o dramático e o vivaz, e o mimoso. O gosto é preciso somente para distinguir o esteticamente bom do esteticamente mau dentro de um estilo. Assim, o mimoso e o anémico são não-esteticamente semelhantes entre si, bem como o vívido e o garrido; só o gosto, isto é, a capacidade de apreciar esteticamente, pode distingui-los. O gosto, portanto, é a capacidade de identificar o sucesso estético, de distinguir entre o bom e o mau design num dado estilo.

Regressemos ao Sr. Jones que, por esta altura, já se deve ter apercebido de que a esposa tinha afinal razão: percepcionamos mesmo propriedades estéticas. As propriedades estéticas de um objecto determinam como o vemos enquanto espécime de um tipo de objecto; dizem-nos o que nesse objecto o torna um objecto digno (ou indigno) de atenção e o tornam uma coisa perceptivamente reidentificável de um determinado tipo (uma cadeira, um gato, uma gatodeira, e assim por diante). Devido à excelência estética das cadeiras, as suas propriedades estéticas discretas, compactas, Jones pode vender cadeiras, pois de outro modo as pessoas não veriam de todo estes itens como cadeiras e não as poderiam reidentificar como tais. Os predicados estéticos, assim, descrevem o grau a que, e o modo em que, os objectos são bons qua objectos: que características os tornam perceptivamente salientes (ou não-salientes) e a que ponto atingem essa saliência. Dizem-nos por que são, como afirmou São Tomás, bons de observar.7

Os conceitos dividem a natureza em tipos cujos espécimes prontamente percepcionamos devido à sua excelência estética: são bons qua objectos de atenção. Um ser insensível a propriedades estéticas não pode seguir regras, e assim não pode ter qualquer linguagem: achará as definições ostensivas impossivelmente ambíguas, uma vez que não tem razão para preferir qualquer conceito classificativo (um dispositivo gerador de objectos) a qualquer outro. Quando a sua mãe diz “bebé” este não saberá se a palavra se refere a ele ou ao todo mereológico que consiste em ele-e-a-parede. Não terá preferência perceptiva por um ou outro destes objectos, considerando as suas Gestalten com equanimidade estética. Se esse ser é finito, nada pode percepcionar de todo: como o burro de Buridano, dispondo de demasiadas opções em aberto para ver, demasiados objectos em que dividir o mundo, achará a escolha impossível: nada verá.

Se seguirmos Sibley ao definir gosto como a capacidade de percepcionar propriedades estéticas, podemos afirmar que o gosto é necessário à vida humana. Para saber se um novo objecto x é F ou não olhamos e vemos se x se ajusta às coisas até então chamadas “F”, isto é, se a anterior extensão de F mais x forma ou não um bom objecto de atenção, num dos modos de ser esteticamente bom. Os sujeitos de percepção desprovidos de gosto, por outro lado, não fazem ideia do que seja ver x como algo que se conjuga bem com “F”, ou ser adequado à sua extensão anterior. Cada um destes observadores perfeitamente lógicos, mas desprovidos de gosto, pode ver x diferentemente, pois não tem qualquer razão para ver x sob qualquer conceito classificativo particular. Nenhum deles pode adivinhar como os outros classificam x: veem-no como um gato ou como uma cobra gorda? Uma vez que para tais criaturas desprovidas de gosto ambas as opções são igualmente admissíveis, podem ter somente linguagens privadas, isto é, nenhuma linguagem.

Sabendo o que as propriedades estéticas fazem, podemos agora avançar para a segunda base: descobrir quais das propriedades são estéticas. Sibley usou a intuição linguística para compilar listas de predicados estéticos que incluem predicados valorativos gerais (“belo”, “feio”) bem como predicados descritivos específicos (“garrido”, “desairoso”); mas a intuição não é suficiente. Por que razão os predicados “quadrado” e “frio” são estéticos quando usados metaforicamente, mas não quando usados literalmente? Sem dúvida ambos os sentidos se aplicam genuinamente a muitas obras de arte? Se as propriedades estéticas são as que citamos para justificar juízos estéticos, preto é uma propriedade estética, pois é a sua cor preta, inter alia, que dá à Guernica de Picasso o seu poder estético; como difere da atmosfera sombria dessa obra, que é também essencial ao seu caráter estético? Devemos concluir, como fazem alguns autores,8 que não há diferença de género entre sombrio e preto? Sibley afirma que sombrio mas não preto é uma propriedade estética porque precisamos de gosto para discernir a primeira mas não a segunda propriedade; porém, dada a definição de “gosto” de Sibley, como a faculdade necessária para discernir propriedades estéticas, isto é totalmente vácuo. Afirmar que sombrio é uma propriedade estética porque precisamos de gosto para a discernir não é, portanto, senão afirmar o seguinte: “sombrio é uma propriedade estética porque é uma propriedade estética”. Essas “explicações” são, evidentemente, inúteis.

As intuições de Sibley acerca de propriedades estéticas estão, creio, correctas. Por exemplo, está correcto que quando é predicado de um poema, “negro” denota uma propriedade estética, mas quando predicado de uma superfície não. No entanto, tais intuições somente podem ser vindicadas por uma teoria geral de propriedades estéticas como a que esbocei acima: que as propriedades estéticas dão objectidade. Permita-se-me agora explicar como essa teoria vindica a referida intuição de Sibley. Qual a conexão entre o sentimento e a estética? Por que razão quando atribuímos uma emoção a um objecto inanimado (chamamos-lhe “triste”, “alegre”, etc.) se trata de uma propriedade estética que lhe atribuímos?

O que faz um objecto ser perceptivamente saliente? Obviamente, o mais poderoso intensificador da saliência de um objecto é a sua relevância para nós. Vemos as coisas em termos da sua importância para nós, e é por isso que percepcionamos as situações com que nos deparamos como portadoras de algumas propriedades emocionais. Por exemplo, uma situação que nos enfurece é apreendida como irritante. Ou seja, vemos essa situação como uma situação que justifica eminentemente a fúria; vemos que é apropriada, isto é, que legitima uma reação furiosa. Uma situação assustadora é a que vemos que justifica o medo. Portanto, o comportamento temeroso (e.g. a fuga) parece evidentemente apropriado à situação. O mesmo se aplica a coisas que percepcionamos: uma coisa adorável é algo que vemos que justifica a adoração, uma coisa delicada é algo que vemos que justifica cuidado, uma coisa lastimável é algo que vemos que justifica compaixão, e assim por diante. As coisas são directamente vistas como atraentes, ominosas, poderosas, tímidas, etc. Ou seja, algumas propriedades que vemos nas coisas são as que sugerem a sua relevância para nós, as que nos dizem espontaneamente por que aquele objecto se destaca e requer a nossa atenção imediata.

A negritude como tal, abstraída do seu significado emocional, não tem para nós importância inerente, pelo que o seu coeficiente de saliência é baixo. Preto não é uma propriedade estética porque x ser preto apenas contribui minimamente para a sua capacidade de exigir a nossa atenção. O facto de x ser preto, por si só, não justifica qualquer comportamento particular para com x. Assim, é desinteressante. Na verdade, que x seja preto pode numa dada circunstância ser muito importante para uma pessoa, mas essa importância varia de caso para caso, dependendo de factos ulteriores acerca de x que conferem à sua característica de ser preto, nessas circunstâncias, uma importância particular. Por outro lado, uma atmosfera sombria coloca seja o que for que a exemplifica no centro da nossa esfera humana de interesses e invoca imediatamente estratégias complexas e modos de comportamento adequado com respeito ao objecto. Assim, o termo “preto”, quando usado metaforicamente, é um predicado estético: afirmar de um poema que é negro é caracterizá-lo em termos de uma emoção que exemplifica, portanto em termos do comportamento que é visto como tornando apropriado.

Ao dar um rosto humano memorável a uma coisa inanimada fazemo-la integrar a nossa comunidade íntima; obviamente, isso aumenta a sua saliência para nós e portanto o seu grau de objectidade (i.e. o quão bom é qua objecto). A mera cor preta não faz uma coisa ser organicamente unificada e saliente para nós, portanto boa como objecto de atenção. Só pode ser isso se lhe for dada alguma importância emocional própria. A negritude metafórica é um muito melhor objectificador do que a negritude literal: a primeira exige atenção, facilita o reconhecimento e leva à reidentificação, muito mais do que a última. A negritude metafórica cristaliza o seu objecto numa ordem mais elevada de unidade do que a que lhe é conferida pela mera cor preta; a primeira, mas não a última, faz aquilo que a exemplifica destacar-se como objecto. É por isso que muitos predicados estéticos são termos psicológicos usados metaforicamente: são bons construtores de objectos visto que a atribuição de características mentais torna um objecto difuso num indivíduo bem definido, um quase organismo vivo, que tem de ser tomado em consideração. Antropomorfizar é unificar significativamente um objecto, isto é, dar-lhe uma forma significante:9 torná-lo ao mesmo tempo formalmente unificado e substancialmente rico em significado. Ser bom qua objecto é, assim, ser rico em detalhes significativos, porém, unificado. Semelhante objecto é bom de apreender; está em sintonia com as nossas necessidades cognitivas e exige a nossa atenção. Pelo que mais uma vez chegamos, via Sibley, a uma tese kantiana: ser belo, afirmou Kant, é ser bom para ser apreendido,10 e São Tomás, como vimos, sustentou uma perspectiva semelhante. Na esteira de São Tomás, Kant, Wittgenstein e Sibley, sugiro portanto uma definição: as propriedades estéticas são as medidas e modos da objectidade.

Por que razão sucede, então, os termos psicológicos usados literalmente não serem predicados estéticos? Seguramente as propriedades que denotam unificam os seus objectos tão ricamente e significativamente como as propriedades psicológicas metafóricas? Se “triste”, aplicado a uma peça musical, é um predicado estético, não devia também ser um predicado estético quando aplicado literalmente a uma pessoa? A resposta é “não”, porque as qualidades estéticas são essencialmente percetíveis, mas todos (exceto talvez os comportamentalistas obstinados) sabemos que Jones pode estar com dores sem permitir que se note. As propriedades estéticas são todas publicamente observáveis, mas os estados mentais das pessoas não têm de o ser. Uma peça musical cujo desespero não pode ser escutado não é desesperada; uma peça musical esconder tão bem o seu pesar que este se torna inteiramente indetectável é coisa que não existe, mas uma pessoa em desespero pode esconder por completo o seu desespero. Na sua maioria os termos psicológicos são teóricos, atribuíveis falivelmente a pessoas por força de generalizações; daí que os estados psicológicos não sejam directamente observáveis. Propriedades estéticas inobserváveis, por outro lado, são conceptualmente impossíveis. Um predicado psicológico é estético, portanto, só no seu sentido metafórico, somente quando refere características manifestas dos objectos.

Passando para a terceira base, chegamos à questão mais difícil: as propriedades estéticas são reais? O que afirmei até agora sugere que, sendo dependentes de observadores e relativas a interesses, as propriedades estéticas não são propriedades do mundo como é em si. Uma vez que as propriedades estéticas dependem de características contingentes daqueles que as percepcionam, parece que não podem ser propriedades independentes da mente, do mundo real. Dependem, por exemplo, das dimensões do corpo humano (os Alpes não pareceriam tão sublimes a gigantes com quinze quilómetros de altura), o tamanho do nosso cérebro (o que para nós é tão entediantemente repetitivo, ou confusamente profuso, não o parecerá a seres que processam informação muito mais rápida ou lentamente do que nós). Estão essencialmente em sintonia com o paroquialismo das nossas necessidades e interesses humanos. É portanto comum entender as propriedades estéticas como modos relacionais, especificamente humanos de reação à realidade exterior, e não como características enraizadas nessa mesma realidade. Como outras propriedades fenoménicas, as propriedades estéticas não parecem corresponder a qualquer característica real do mundo, uma característica que interesse os cientistas naturais. Além disso, o relativismo acerca do gosto estético, uma doutrina generalizada (De gustibus non est disputandum), sugere o irrealismo. Na verdade, o irrealismo em estética é uma teoria muito tentadora. Contudo, ou pelo menos assim argumentarei, está errada: as propriedades estéticas são demonstravelmente reais.

A melhor razão para sustentar que um dado x é real é o facto de x figurar proeminentemente num modelo explicativo bem-sucedido da experiência. Acreditamos que há realmente vírus e que estes têm a propriedade de invadir células vivas, porque uma teoria que reconhece que os vírus têm essa propriedade é muito bem-sucedida na previsão e explicação do que observamos. Este é o Argumento do Milagre: se na realidade não há vírus e a nossa teoria acerca deles é completamente errónea, o seu sucesso empírico parece milagroso. O que mais bem explica esse sucesso é a suposição de que os vírus existem efectivamente e são, mais ou menos, como a dita teoria os descreve. O mesmo se aplica a características gerais de teorias. Se as teorias que têm uma característica F são muito mais bem-sucedidas do que as que não a têm, temos uma razão para sustentar que F é uma característica da realidade, pois por que outra razão as teorias F se dão melhor do que as teorias não-F? A realidade de F explica por que razão as teorias que se conformam a F são verotrópicas; de contrário, o seu sucesso pareceria um milagre inexplicável. Por exemplo, os resultados miseráveis da ciência teleológica, acompanhada de princípios aristotélicos, quando comparados com o sucesso da ciência mecanicista pós-newtoniana, fizeram-nos pensar que a natureza é como que um mecanismo inanimado. Outro exemplo é o elevado grau de matematização da física moderna; esse facto inclina-nos a atribuir um caráter matemático à própria natureza e a rejeitar a imagem qualitativa da realidade dominante em gerações anteriores. Há uma abundância de outros exemplos. Ora, é bem sabido que a característica mais dominante das teorias científicas adoptadas no século XX é a sua grande beleza. Não devia esse facto inclinar-nos a sustentar que a beleza é uma característica real do mundo real?

Os físicos que investigam a natureza procuram invariavelmente modelos belos da mesma. O sucesso documentado dos modelos belos está longe de ser óbvio, pois por que razão haveriam as leis da natureza de parecer belas aos seres humanos? Aderir à beleza parece tão provavelmente verotrópico como sujeitar a ciência às Escrituras ou ao dogma religioso; no entanto, a verdade é que, no século XX, procurar uma teoria bela foi a estratégia mais eficaz de descoberta científica. É uma regra operativa bem estabelecida que uma teoria feia não funcionará. O grande matemático britânico G. H. Hardy escreveu que “os padrões do matemático, como os do pintor ou do poeta, como as cores ou as palavras, têm de se conjugar harmoniosamente. A beleza é o primeiro teste: não há lugar permanente no mundo para a matemática feia”.11 Um célebre vencedor do Prémio Nobel em física afirma que “o milagre da adequação da linguagem da matemática para a formulação das leis da física é um dom maravilhoso que nem compreendemos nem merecemos”.12 Essa perspectiva é comum entre os físicos: “Parece-me bastante assombroso que seja possível prever o que sucederá pela matemática, que consiste simplesmente em seguir regras que na realidade nada têm a ver com a coisa original”,13 isto é, com os dados empíricos. Esse surpreendente e no entanto demonstrável sucesso da virtude estética em criar modelos funcionais da realidade levou alguns cientistas a tirar uma conclusão arrojada: “É mais importante ter beleza nas nossas equações do que estas se ajustarem à experimentação […] se se trabalha da perspectiva de colocar beleza nas nossas equações, e se temos realmente uma sólida ideia sagaz, estamos no caminho seguro para o progresso”.14 Para Einstein, “o mais elevado louvor que se pode dar a uma boa teoria era o de ser bela”.15 (Einstein) estava fortemente convencido de que a beleza é um princípio orientador na procura de resultados importantes na física teórica”.16

A teoria de grupos, uma estrutura matemática de refinada beleza, é interpretável no espaço tridimensional, mas não tem significado intuitivo em espaços hilbertianos n-dimensionais; aí, tudo o que tem é beleza. No entanto, precisamente nesses espaços, isto é, quando aplicada à realidade quântica, mostra-se maximamente precisa: as suas previsões atingem uma impressionante décima segunda ordem de magnitude.17 Geronimo Cardano inventou o cálculo de números complexos em 1545 como um adorável jogo cujo propósito era somente o da diversão estética; designou as suas novas fórmulas como “sem sentido”, “fictícias”, “místicas” e “imaginárias”;18 360 anos depois A. Einstein mostrou que este bonito jogo capta com precisão a métrica do espaço-tempo. Ora, se o pobre registo da ciência que procurava causas finais é indício da sua irrealidade, o sucesso da física moderna que procura a beleza é indício da realidade da última. Se as propriedades estéticas se aplicassem somente a modos subjetivos de senciência, uma física que observasse restrições estéticas seria tão ridícula como uma física que se orientasse pelas restrições do marxismo-leninismo. As suas hipóteses de sucesso previsivo seriam nulas. No entanto, a física moderna, vinculada por uma exigência de mostrar o que nós vemos como estruturas elegantes, é a teoria mais bem-sucedida em termos previsivos que já se produziu. Temos portanto uma razão, a melhor razão que há, para acreditar que as propriedades estéticas são de facto características da realidade. Uma vez que a discriminação estética da beleza, como nos surge a nós, é o nosso melhor guia para a verdade, incorremos numa obrigação epistémica de acreditar que pelo menos a mais elevada propriedade estética, a beleza, é uma característica básica do mundo real.

A última informação pode levar-nos a conclusões injustificadas. Note-se, por favor: argumentei que a beleza existe no mundo real, mas não que é bela nele, também. Para esclarecer isto permita-se-me usar um exemplo familiar. Kripke argumentou19 que o calor é algo que nós sentimos de um modo fenomenal, mas esse modo não tem de ser uma propriedade daquilo que sentimos, o calor, em si; a sensação quente pode ser apenas o efeito que o calor tem em nós, seres humanos, não uma propriedade inerente sua. In propria persona, isto é, na realidade, o calor é o movimento molecular mediano, nada mais. Ou seja, o calor pode ter a propriedade quente só no nosso mundo fenoménico, a Lebenswelt, e não noutros mundos, incluindo o mundo real. Quente é apenas como o calor (um certo nível de energia molecular) aparece aos seres humanos; na realidade pode nada ser de semelhante. Penso que Kripke tem razão. Aplicar-se-á essa consideração também à beleza? Poderá a beleza ser, na realidade, não como aparece a nós, isto é, não bela? No meu livro Real Beauty20 argumentei que isto não pode ser assim, mas mudei de ideias.

Permita-se-me formular com maior precisão. Alhures21 argumentei que comummente usamos diversas funções individuadoras para reunir itens de diversos índices numa só coisa transindexal. Segundo uma função individuadora o item d1 na primeira guerra mundial e o item d2 na segunda guerra mundial são ocorrências da mesma coisa, mas segundo outra função individuadora são ocorrências de coisas distintas.22 As coisas, portanto, pertencem a tipos diferentes de acordo com a função que as identifica. À função que usa a origem como critério primário para identificar coisas transindexais chamo “Referência” e à função que usa a semelhança como critério primário para identificar coisas transindexais chamo “Sentido”. Permita-se-me usar maiúsculas romanas para denotar as coisas baseadas na referência e maiúsculas gregas em itálico para denotar coisas baseadas no sentido. Chamo ao mundo real “M0” e ao mundo do senso comum, o mundo fenoménico que normalmente representamos (aquele mundo onde o céu é azul, a neve é fria e a Lua paira acima da Terra) “M1”. Seja BEAU o item residente em M1 que recorre onde quer que haja beleza em W1.23 BEAU é a ocorrência M1 de mais do que uma coisa transmundial. É a ocorrência W1 da coisa C baseada na referência, mas também da coisa Γ baseada no sentido. Γ, cuja identidade se baseia na semelhança qualitativa, é bela em todos os mundos em que ocorre, mas C não o é. A sua ocorrência em M0 de facto explica a origem da beleza em M1, mas não tem ela própria de ser bela.24

Se a beleza é real, então C, cuja ocorrência em M1 BEAU conhecemos e tanto adoramos, ocorre também em M0. Mas talvez Γ (a coisa baseada no sentido cuja ocorrência em M1 é BEAU) não ocorre em M0. Sei que há uma coisa real, C, que a nós humanos parece bela. Ou seja, C é bela em M1. Em M0, todavia, C não tem de ser bela tal como o calor não tem de ser quente em M0. Embora C em M0 explique a origem de BEAU, a sua presença em M1, em M0 C não tem de ser semelhante a BEAU.

A beleza é uma escotilha através da qual vislumbramos a realidade, o nosso guia para um mundo de quarks, leptões e gluões, mas vemos a Beleza só como é no mundo fenoménico. Como esta é na realidade não sabemos. A ocorrência de C em M0 (a contraparte M0 de BEAU) pode ser bela também, ou pode ser inteiramente diferente. Os pensadores, desde os dias da Bíblia, passando por Santo Agostinho até a autores contemporâneos como Paul Davis25 argumentam a partir da beleza da natureza a favor da perfeição do seu autor: o seu raciocínio é o de que um mundo perfeito reflete um criador perfeito. Esse argumento assenta no pressuposto de que ser belo é essencial à coisa que conhecemos como BEAU, portanto é bela em M0 tal como em M1; mas esse pressuposto é duvidoso. A genuína natureza dessa característica básica da realidade, que a nós aparece como bela e elimina o erro, é-nos desconhecida.

A corrida final, da terceira para a quarta e última base, é breve. A quarta base é o trabalho pioneiro de Frank Sibley. A sua noção realista, objectivista de propriedades estéticas abre uma ampla nova via para a estética: é a única alternativa viável ao pós-modernismo e à desconstrução em estética. Se a razão sobreviver ao niilismo desta época e a estética continuar viva como um ramo sério da filosofia, é a Frank Sibley que o devemos agradecer.

Eddy Zemach
Aesthetic Concepts: Essays After Sibley, ed. E. Brady e J. Levinson (Oxford University Press, 2001).

Notas

  1. E.g. no meu “Meaning, The Experience of Meaning and the Meaning-Blind in Wittgesntein’s Late Philosophy”, The Monist, 78 (1995), 479–495. ↩︎︎

  2. L. Wittgenstein, Last Writings, i (Chicago: University of Chicago Press), 288–329. ↩︎︎

  3. Ibid., 288. ↩︎︎

  4. The Reality of Meaning and the Meaning of Reality (Hanover e Londres: Brown University Press, 1992), Cap. 2. ↩︎︎

  5. I. Kant, Critique of Pure Reason, trad. N. Kemp-Smith (Londres Macmillan), A100-A102, A119-A124. Numa nota a A120, pode-se dizer, Kant antecipa a psicologia gestaltista: “Os psicólogos até agora não se aperceberam de que a imaginação é um ingrediente necessário da própria percepção”. Em suma, Kant afirma: “(…) a afinidade das aparências e com ela a sua associação, e através disto, por seu turno, a sua reprodução segundo leis, e assim a própria experiência, só devia ser possível por meio desta função transcendental da imaginação” (A123, trad. Kemp-Smith). ↩︎︎

  6. “A ordem dos campos sensoriais (…) mostra uma forte predileção por tipos particulares de organização” (W. Köhler, Gestalt Psychology (Nova Iorque: Mentor Books, 1959), 85). ↩︎︎

  7. Summa Theologica i, 5, 4 ad. 1. ↩︎︎

  8. R. D. Broiles, “Sibley’s Aesthetic Concepts”, Journal of Aesthetics and Art Criticism, 23 (1964), 219–225; T. Cohen, “Aesthetic/Non-Aesthetic and the Concept of Taste”, Theoria, 39 (1973), 113–152; M. Freedman, “The Myth of Aesthetic Predicates”, Journal of Aesthetics and Art Criticism, 26 (1968), 49–55; P. Kivy, “Aesthetic Aspects and Aesthetic Qualities”, Journal of Philosophy, 65 (1968), 85–93; P. Kivy, “What Makes ‘Aesthetic’ Terms Aesthetic?”, Philosophy and Phenomenological Research, 36 (1957), 197–211; H. R. G. Schwyzer, “Sibley’s Aesthetic Concepts”, Philosophical Review, 72 (1963), 72–78; etc. ↩︎︎

  9. Essa, evidentemente, é uma glosa sobre o termo de Clive Bell, que ele deixa praticamente destituído de significado. ↩︎︎

  10. I. Kant, Critique of Judgement (Oxford: Oxford University Press), 217. ↩︎︎

  11. G. Hardy, A Mathematician’s Apology (Cambridge: Cambridge University Press, 1940), 85. ↩︎︎

  12. E. Wigner, Symmetries and Reflections (Bloomington, Ind. e Indianapolis: Indiana University Press, 1967), 237. ↩︎︎

  13. R. Feynman, The Character of Physical Law (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1967), 171. ↩︎︎

  14. P. M. A. Dirac, “The Evolution of the Physicist’s Picture of Nature”, em Scientific American 208:5 (1963). ↩︎︎

  15. Hans Einstein, em G. J. Whitrow, Einstein (Londres: BBC Publications, 1967), 19. ↩︎︎

  16. H. Bondi, em Whitrow, Einstein, 82. ↩︎︎

  17. A teoria de grupos é discutida detalhadamente em Mark Steiner, The Applicability of Mathematics as a Philosophical Problem (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1997). ↩︎︎

  18. Citado em T. Danzig, Number, The Language of Science (Londres: Macmillan, 1930). ↩︎︎

  19. Em Naming and Necessity (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1972), 129–136. ↩︎︎

  20. Real Beauty (University Park, Pa.: The Pennsylvania State University Press, 1992), 107–111. ↩︎︎

  21. Em The Reality of Meaning and the Meaning of “Reality”, cap. 4. ↩︎︎

  22. A ideia deve-se originalmente a Hintikka, que sugeriu haver diversos modos de identificar indivíduos ao longo de vários mundos possíveis, sendo a semelhança perceptiva um deles; pelo que as linhas hereditárias transmundiais que constituem os indivíduos (há quem chame a estas linhas “conceitos individuais”) intersectam-se. J. Hintikka, The Intentions of Intentionality and Other New Models for Modalities (Dordrecht: Reidel, 1975), 26–42. ↩︎︎

  23. Para a lógica de tipos ver o meu Types: Essays in Metaphysics (Leiden e Nova Iorque: Brill, 1992), cap. 1. ↩︎︎

  24. Note-se que a questão “O que é (o item fenoménico) x na realidade?” não tem sempre de fazer sentido: não tem de haver uma só contraparte no mundo real ao item x de M1. Suponhamos que alguém pergunta “Quem, na realidade, é o homem cego no meu sonho?” ou “O que é na realidade a aurora borealis?” Traçar a origem de uma entidade fenoménica não tem de conduzir a uma única entidade real. ↩︎︎

  25. E.g. The Mind of God (Nova Iorque: Touchstone, 1993), e outros livros de Davis. ↩︎︎

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