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Crítica
4 de Fevereiro de 2009   Ética

A moralidade de abortar: um outro nível de discussão

José Manuel Fernandes
A Ética do Aborto: Perspectivas e Argumentos
org. de Pedro Galvão
Tradução e introdução de Pedro Galvão
Lisboa: Dinalivro, 2005, 199 pp.

A discussão tradicional sobre o aborto raramente sai de trincheiras muito rasteiras e, sobretudo, quase nunca aborda as questões éticas e morais que a decisão de interromper a gravidez coloca. Debate-se o “direito à vida” contra o “direito ao corpo”, discute-se — por regra de forma pouco informada — a biologia do desenvolvimento do feto, fala-se de saúde pública, ou de terminar com o flagelo do aborto clandestino, ou remete-se o problema para o nível exclusivo da consciência individual. Nalguns casos os dois campos barricam-se em “direitos absolutos” que até interditariam a possibilidade de os cidadãos se pronunciarem em referendo.

Uma das fragilidades da nossa discussão é que nunca leva qualquer argumento até às últimas consequências. Isto é, não se enfrentam todos os corolários das afirmações produzidas. Ora se podemos aceitar isso num debate político — a política é a arte do possível e as leis devem estar em sintonia com o consenso social, permitindo contudo que pelo debate plural se altere ao longo do tempo esse consenso —, numa discussão filosófica sobre ética é importante saber até onde nos levam as premissas que autorizam esta ou aquela legislação específica. Ora é exactamente essa a principal virtude do livro A Ética do Aborto – Perspectivas e Argumentos, organizado por Pedro Galvão, professor na Universidade de Lisboa, e editado com o apoio da Sociedade Portuguesa de Filosofia.

Nesta obra reúnem-se seis dos textos mais marcantes do debate sobre a moralidade do aborto que, nos últimos 35 anos, foram publicados nas mais importantes revistas científicas dos Estados Unidos. Três defendem o aborto, três condenam-no, sendo que todos colocam o debate num nível elevado e sofisticado. Lê-los mostra-nos como alguns dos argumentos mais comuns, se desenvolvidos até ao fim, levam a conclusões pelo menos perturbantes.

O primeiro ensaio é, porventura, o mais conhecido de todos. É a defesa do aborto feita em 1970 por Judith Jarvis Thomson e quase todos os outros textos de alguma forma se lhe referem. Este texto parte de um princípio — é impossível estabelecer uma linha divisória clara no processo de desenvolvimento do feto e do recém-nascido que separe a vida da não-vida ou, se preferirmos, a vida humana da não-vida humana — e desenvolve o seu argumento em torno do conflito entre dois direitos: o direito à vida da mãe e o direito à vida do feto. A autora procura, através do estabelecimento de paralelismos, mostrar-nos que existem circunstâncias em que não se pode exigir à mãe que sustente a vida do feto pois isso representaria uma restrição do seu direito à vida que não lhe pode ser moralmente imposta. Os exemplos desenvolvidos levar-nos-iam a aceitar sem problemas a interrupção da gravidez em casos especiais que não andarão muito longe dos já previstos na lei portuguesa, com a diferença do julgamento pertencer apenas à mulher.

Michael Tooley vai mais longe. Reconhecendo também que a biologia não permite dividir com clareza a vida da não-vida, procura encontrar um critério para definir o momento em que um ser vivo pode ser considerado um ser humano. Não segue por isso as linhas divisórias habituais — o momento da concepção; o momento em que o zigoto não pode dividir-se ou fundir-se com outro; a existência de ondas cerebrais; a viabilidade de sobrevivência fora do útero e ainda o momento do nascimento — e estabelece um novo patamar: o momento em que o indivíduo se torna consciente de si e racional. Esta definição de condição humana tem um corolário, que o autor aceita e defende: a consciência de si só se forma depois do nascimento, pelo que se o aborto é moral, o infanticídio também é moral.

Já o argumento utilitarista, popularizado por Peter Singer, não é objecto de nenhum texto específico apesar do seu argumento se aproximar de algumas sensibilidades presentes no debate português. A sua preocupação é a maximização do bem-estar dos envolvidos, isto é, da mulher grávida e do feto. Ora como até uma determinada fase do seu desenvolvimento o feto não é um ser com sensibilidade à dor, até esse momento não podemos falar do seu bem-estar mas apenas do da mulher grávida. Esta pode então decidir abortar livremente se ter o filho prejudicar, por exemplo, a sua carreira profissional ou diminuir o seu nível de vida.

Os três textos onde se defende que o aborto é imoral a não ser em circunstâncias extremas seguem, no essencial, duas linhas de raciocínio. Por um lado, exploram as consequências dos argumentos anteriores mostrando como elas acabam, no limite, por violentar o senso comum. E se isso é claro no argumento que aceita o infanticídio, o desenvolvimento do argumento utilitarista — a maximização do bem-estar — também serviria para legitimar a eliminação dos bebés deficientes (que nunca terão bem-estar e provocarão muito mal-estar) ou dos avós doentes (pela mesma ordem de ideias). Por outro lado, Stephen Schwarz, Harry Gensler e Donald Marquis desenvolvem linhas de argumentação que, utilizando paralelismos lógicos, procuram mostrar que, se a ciência médica não é capaz de dizer quando é que a vida passa a ser vida humana, devemos então partir da nossa percepção, como seres humanos, do que é aceitável ou inaceitável — moral ou imoral — que nos façam a nós próprios e considerar que a criança antes de nascer tem esses mesmos direitos. Se não aceitamos que nos matem sem dor, que nos matem porque temos uma deficiência ou que nos matem porque constituímos uma carga para outros, então porque havemos de aceitar que se interrompa o desenvolvimento do feto com base em argumentos semelhantes? Esta é a linha de raciocínio kantiana, neste livro melhor desenvolvida por Gensler.

Os dois últimos textos, de Donald Marquis e David Boonin, procuram fugir às linhas tradicionais de argumentação centrando-se no significado de acto de matar. Para Marquis, matar priva a vítima de um futuro com valor, e isso é inaceitável moralmente — logo é inaceitável moralmente interromper uma gravidez já que tal privará o ser em desenvolvimento do futuro a que tem direito. A dificuldade deste argumento, que o autor procura resolver no final do seu ensaio, é que este pode ser extensível aos métodos contraceptivos, pois estes também interrompem um “futuro”. Contudo aí a distinção biológica é possível, já que os gâmetas separados — espermatozóides ou óvulos — só têm futuro se formarem um embrião viável, e não antes disso. Boonin aceita o princípio do mal de matar, mas admite o aborto porque defende que um feto é diferente de um recém-nascido pois não é possível equiparar ambos na possibilidade de acederem a um futuro valioso.

Apesar de constituir apenas uma pequena introdução à abundante bibliografia sobre as implicações eticas do aborto, estes seis ensaios, dos mais citados no debate americano, tem a virtude de mostrar que, mesmo aceitando que o aborto é uma “questao de consciencia”, qualquer que seja a nossa posição ela tem consequências morais e éticas que não podem deixar de ser consideradas numa sociedade civilizada. Os argumentos necessitam por isso de ser aprofundados e não reduzidos à caricatura da propaganda. Se vamos ter um referendo, então preparemo-lo com mais seriedade. Este livro é uma boa ajuda, até porque obriga a repensar, para sermos intelectualmente honestos connosco mesmo, argumentos gastos e regastos no nosso debate doméstico.

José Manuel Fernandes
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ISSN 1749-8457