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Crítica
18 de Julho de 2006   Ética

Investigação em células estaminais, pessoa e senciência

Lisa Bortolotti e John Harris
Tradução de Claudino Caridade

Neste ensaio defende-se a permissibilidade da investigação em células estaminais nos embriões humanos na sua fase inicial. Sustenta-se que, para ter um estatuto moral, um indivíduo tem de ter interesse no seu próprio bem-estar. A senciência é um pré-requisito para ter interesse em evitar a dor e ser uma pessoa é um pré-requisito para ter um interesse na continuação da sua própria existência. Os embriões humanos na sua fase inicial não são sencientes e, portanto, não são recipiendários de consideração moral directa. Os embriões humanos na sua fase inicial não satisfazem os requisitos para serem pessoas, mas há argumentos no sentido de que, apesar disso, devem ser tratados como pessoas. Há os argumentos da potencialidade, do valor simbólico e o princípio da dignidade humana. Estes argumentos são questionados neste ensaio e defende-se que não apresentam uma boa razão para crer que os embriões humanos na sua fase inicial devem ser tratados como pessoas.

Introdução

Neste ensaio avança-se um argumento para a permissibilidade da investigação em células estaminais nos embriões humanos com base na perspectiva de que apenas seres com interesses no seu próprio bem-estar são candidatos adequados à consideração moral directa. Todos os seres sencientes têm um interesse em evitar a dor e não se lhes deve causar sofrimento desnecessariamente. Os seres sencientes que são também racionais e autoconscientes podem ter um interesse na continuação da sua própria existência e a sua existência não deve ser interrompida desnecessariamente (Harris, 1985).

Este ensaio identificará os critérios que um ser tem necessidade de satisfazer com vista a ser considerado senciente ou uma pessoa. Dados os critérios, sugerir-se-á que os desenvolvimentos recentes na avaliação da dor e da autopercepção em não-humanos aumentam a possibilidade de responder a duas perguntas de classificação: quem é senciente e quem é uma pessoa? Em seguida o enquadramento será aplicado ao contexto da investigação em células estaminais e sugerir-se-á que é permissível fazer investigação em células estaminais em embriões humanos na sua fase inicial, porque nos primeiros catorze dias os embriões humanos não são sencientes nem possuem as capacidades necessárias para os seres sencientes se qualificarem como pessoas.

Neste ensaio não serão consideradas obrigações morais indirectas para com os embriões humanos, mas será dada resposta a três argumentos contra a permissibilidade da investigação em células estaminais embrionárias. Estes são deduzidos de três razões pelas quais os embriões humanos talvez possam ter direito a tratamento respeitoso: i) os embriões são pessoas potenciais; ii) tratar os embriões desrespeitosamente viola o princípio da dignidade humana; iii) os embriões têm um valor simbólico que impõe respeito. Sustenta-se que nenhuma destas objecções põe em causa a conclusão do ensaio.

Porque é que ser pessoa e ser senciente são moralmente relevantes?

Parece razoável pressupor que somente indivíduos com uma vida mental de uma certa complexidade têm direito a consideração moral directa. As abordagens morais rivais (contratualismo, teorias dos direitos e utilitarismo) incluem no seu sistema uma forma de monitorar esta relação entre capacidades mentais e estatuto moral, mas muitas vezes essa relação não é clarificada. Na acepção que será aqui defendida, só os indivíduos que têm um interesse no seu próprio bem-estar têm direito a consideração moral directa.

O uso da palavra “interesse” neste contexto pode ser confuso. Há um sentido no qual é do interesse das minhas plantas que eu as regue regularmente, mas este não é o sentido relevante de “interesse”. As minhas plantas não têm uma vida mental de complexidade adequada para formularem o desejo de serem regadas e, por consequência, não estão elas próprias preocupadas com o seu próprio bem-estar. Como pessoa encarregada de regar as plantas, eu talvez pense que aquilo que eu faço é no interesse delas porque dou valor às minhas plantas, mas elas não estão cientes do seu próprio valor, elas não se valorizam a si mesmas (Harris, 1985). Consideremos outro exemplo. Talvez se possa pensar que é do interesse de uma cidade ter alguns edifícios feios demolidos. Ora, o que isto significa é que a cidade pareceria melhor se aqueles edifícios não estivessem lá, mas a cidade em si não tem o desejo da demolição, a menos que por “cidade” nos refiramos ao colectivo dos seus habitantes, os quais podem ter uma quantidade de desejos acerca do lugar onde vivem e uma quantidade de crenças sobre o modo de o melhorar. Portanto, quando falamos acerca de interesses moralmente relevantes, falamos sobre os interesses daqueles indivíduos que podem ter crenças e desejos acerca do seu próprio bem-estar.

A próxima questão pergunta que interesses devemos tomar em consideração e a resposta é: aqueles interesses que reflectem as preocupações do indivíduo. Uma raposa talvez não esteja interessada em continuar a viver até à próxima terça-feira, porque não é provável que tenha o conceito de morte e não pode imaginar-se a si própria no futuro. Uma jovem que acabou de dar à luz o seu filho talvez tenha o desejo de continuar a viver até o seu filho se tornar auto-suficiente. Mas quer a raposa quer a jovem talvez estejam interessadas em não serem queimadas num fogo que são capazes de ver ou sentir e recear de imediato. Assim, a mulher dá importância à sua própria vida de uma forma que a raposa não dá, mas quer a mulher quer a raposa valorizam não estarem em sofrimento e perigo.

Visto que as nossas obrigações morais directas seguem as nossas crenças e desejos de primeira ordem que constituem o interesse do indivíduo no seu próprio bem-estar, temos uma obrigação moral directa de não causar qualquer dor desnecessária à mulher e à raposa, mas não temos uma obrigação moral directa de preservar a vida da raposa. Quando se trata de pessoas que têm um desejo de continuar a viver, então a sua valorização da própria vida cria uma obrigação moral de a preservar. Uma pessoa, sendo capaz de se conceber a si própria como um sujeito de experiência, pode ter uma noção da sua própria existência como única e duradoura no tempo e ter crenças e desejos acerca da continuação da sua existência. Isto quer dizer que, em relação às obrigações morais directas que temos para com as pessoas, há mais coisas além de nos abstermos de lhes provocar dor ou outras experiências desagradáveis ou angustiantes.

Naturalmente, pode haver obrigações morais indirectas de preservar a existência de seres não sencientes ou sencientes, mas não serão aqui ventiladas.

O que é ser uma pessoa?

Em linguagem comum, identificamos pessoas com seres humanos, mas o conceito de pessoa e o conceito de ser humano não são co-extensionais. Mais especificamente, ao passo que um indivíduo é considerado um ser humano se pertencer à espécie Homo sapiens, é considerado uma pessoa não em virtude da qualidade de membro da espécie, mas pelas capacidades que possui.

Isto significa que há casos de seres humanos que não são pessoas e, possivelmente, casos de pessoas que não são seres humanos. É sustentável que os bebés humanos e os adultos humanos em estado vegetativo persistente não têm as capacidades exigidas para serem pessoas, ao passo que formas de vida inteligente extraterrestre ou artificial e alguns primatas não-humanos talvez satisfaçam os critérios para serem pessoas.

A definição de pessoa é controversa até certo ponto mas há um grande consenso de que as capacidades requeridas para ser pessoa incluem pensamento racional e autoconsciência. Estes são conceitos muitíssimo teóricos e já se argumentou que não são susceptíveis de definição rigorosa, mas acreditamos que há razões para optimismo. Talvez não entendamos completamente os mecanismos que escoram a racionalidade e a autoconsciência, mas temos uma noção cada vez mais clara sobre que tipos de comportamentos expressam estas capacidades. Voltaremos a este assunto na próxima secção.

Há (pelo menos) três aplicações comuns do termo “racionalidade” que podem ser relevantes para o conceito de pessoa. Um indivíduo talvez seja considerado (instrumentalmente) racional se for capaz de se envolver em raciocínios meios-fins, isto é, se pode identificar os meios pelos quais os seus fins podem ser atingidos, e segue esses meios. Suponhamos que a Ângela quer um jornal e que há um quiosque de jornais do outro lado da rua. Dado o seu objectivo, seria racional para ela, ponderados todos os aspectos, atravessar a rua e dirigir-se ao jornaleiro. Neste sentido, os animais não-humanos também podem ser racionais, como quando um gato caça silenciosamente a sua presa ou monta uma emboscada.

Além disso, um indivíduo talvez seja visto como racional se for capaz de pensar bem, isto é, se o raciocínio em que se envolve não viola qualquer princípio fundamental da lógica. Suponhamos que o Alberto acredita que as pessoas negras e brancas são iguais. Contudo, alguém ouve o Alberto a falar em termos pejorativos acerca de uma mulher negra que acabou de se mudar para a sua vizinhança. Pode-se argumentar que as crenças do Alberto não formam um conjunto consistente e violam o princípio da não-contradição. O Alberto encontra-se em risco de inconsistência (para não dizer preconceito!).

Finalmente, temos o mais exigente conceito de racionalidade, o qual requer não apenas a conformidade do comportamento de um indivíduo com determinados padrões (de racionalidade instrumental, bom raciocínio, etc.), mas a reacção do indivíduo a tais padrões. O que queremos dizer é que, voltando ao caso do Alberto, ele será considerado racional se i) tiver um conjunto consistente de crenças e preferências e ii) se se assegurar de que tais crenças são consistentes porque sabe perfeitamente que, de outro modo, estaria a violar uma regra ou valor fundamentais da racionalidade. O ser racional, neste terceiro sentido mais exigente, é o ser que tem a capacidade de obedecer a normas de racionalidade porque avalia a sua força normativa. No contexto da explicação do que é ser uma pessoa, exige-se a capacidade de reacção a normas. Esta capacidade dá substância à força moral, que é o outro critério para se ser uma pessoa em algumas teorias contratualistas (Rawls, 1971; Scruton, 2000).

Quando se trata de autoconsciência, é importante fornecer uma descrição das diferenças entre i) a capacidade de ter experiências conscientes e reagir adequadamente aos estímulos externos e ii) a capacidade de ter um sentido do eu, isto é, uma consciência da própria existência no passado, no presente e no futuro e da própria qualidade de ser único. A primeira capacidade é muitas vezes chamada “senciência”. É algo que nós, como seres humanos normais, partilhamos com muitos animais não-humanos. Um cão tem consciência da comida que come e das outras criaturas à sua volta, mas não tem consciência de quem é, do que o torna único como o indivíduo que teve experiências no passado, que está a tê-las agora e que as terá no futuro. Os seres humanos adultos normais têm o sentido do eu que é exigido para se ser uma pessoa. Quando vejo uma cadeira, tenho a experiência visual consciente de uma cadeira, sei que a cadeira está lá e sei o que é uma “cadeira”, sei que um banco e um sofá desempenham funções similares, sei como utilizar uma mesa como cadeira (e vice-versa), em suma, tenho a noção de uma cadeira. Mas posso também saber que tenho essa experiência, que sou eu quem está a ver a cadeira, a mesma pessoa que comeu esparguete ontem à noite. Este é o sentido do eu que é exigido para se ser uma pessoa e que permite que alguém tenha os seus próprios pensamentos ou experiências como objectos de reflexão.

Tipicamente, as pessoas, enquanto seres racionais e autoconscientes, têm crenças, desejos e preferências e são autónomas, isto é, podem agir de acordo com as suas próprias decisões. É por isso que as pessoas são definidas muitas vezes em termos da sua capacidade de decidir o que farão nas circunstâncias em que têm uma opção e são capazes de agir como agentes morais.

A questão da distribuição e a determinação da pessoa

Como decidimos que indivíduos são pessoas? Se um indivíduo é racional e autoconsciente, então é uma pessoa. Mas há quem receie que a autoconsciência ou a racionalidade não possam ser medidas e, portanto, não possam ser úteis como marcas da pessoa. Isto, algumas vezes, equivale à rejeição da importância moral do conceito de pessoa. Contudo, nos últimos quarenta anos têm-se feito excelentes progressos no esforço de clarificar estes conceitos e fornecer critérios comportamentais mais rigorosos.

Na bibliografia psicológica sobre o raciocínio, na etologia cognitiva e na psicologia comparativa têm sido idealizadas experiências interessantes para investigar, respectivamente, a competência de raciocínio dos seres humanos (Nisbett e Ross, 1980; Kahneman e outros, 1982) e a presença de autoconhecimento e capacidades de resolução de problemas em outros animais (Griffin, 2001). Será utilizado apenas um exemplo para ilustrar como o trabalho empírico filosoficamente esclarecido pode fazer luz sobre a validação dos critérios para se ser uma pessoa que são necessários para responder à questão da classificação.

Uma capacidade considerada relevante para a autoconsciência (ainda que de modo algum suficiente) é o conhecimento do próprio corpo. Para confirmar se outros animais manifestam este conhecimento, têm sido testados primatas sobre a sua capacidade de reconhecer a sua própria imagem reflectida num espelho. Nós utilizamos imagens de espelho de nós próprios todos os dias e quase automaticamente. Contudo, esta é uma capacidade muito sofisticada e que é adquirida no decurso do nosso desenvolvimento normal. Os adultos humanos afectados por alucinações de incorrecta auto-identificação ao espelho ou agnosia do espelho perdem esta capacidade na sequência de um trauma na região frontal do lado direito do cérebro, a região responsável pelo processamento emocional, a alta cognição e traços da personalidade.

Em frente do espelho, os chimpanzés e os orangotangos inicialmente atacam o espelho pensando que a imagem reflectida é outro símio. Os macacos nunca chegam a aperceber-se de que é o seu próprio reflexo, mas os chimpanzés e os orangotangos dão esse passo num prazo que vai de algumas horas a alguns dias, dependendo do indivíduo. De seguida, usam o espelho como uma ferramenta para cuidar de partes do corpo que não podem ver normalmente e comportam-se de formas que não seriam possíveis sem um espelho, tais como tocar repetidamente numa parte do seu corpo que tinha sido pintada de vermelho por treinadores humanos enquanto estavam a dormir (Anderson e Gallup, 1999: Keenan, 2003).

Este é apenas um exemplo de como alguns elementos do sentido do eu podem ser detectados em casos nos quais não estão disponíveis relatos verbais. Estes critérios podem ser utilizados para responder à questão da classificação e, em última instância, ajudar-nos-ão a decidir que espécies e que indivíduos são candidatos ao interesse moral reservado às pessoas. Se descobríssemos que alguns animais satisfazem os critérios para ser pessoa, então também teríamos uma obrigação moral directa de respeitar o seu desejo de continuar a viver e de nos abstermos de os aprisionar. Estes constrangimentos limitariam a utilização de animais na investigação experimental. Presentemente, a perspectiva maioritária entre os cientistas é a de que, embora alguns animais possam solucionar problemas originais, comunicar, ensinar os seus descendentes e enganar outros, os critérios de racionalidade e autoconsciência ainda estão longe de serem satisfeitos. Por esta razão pensa-se que não há obrigação moral directa de preservar a vida de animais não-humanos, porque eles só poderiam formular o desejo de continuar a viver se tivessem um sentido do eu completamente desenvolvido. As contribuições científicas coligidas por Cavalieri e Singer (1994) no The Great Ape Project constituem uma excepção digna de nota a esta perspectiva.

O que é a senciência?

Uma breve definição de senciência foi dada atrás quando foi feita a distinção entre a capacidade de ter experiências e reagir adequadamente a estímulos externos (senciência) e a capacidade adicional de estar ciente de si próprio enquanto indivíduo distinto cuja existência começou um dia no passado e se prolongará no futuro (autoconsciência). Ao fazer essa distinção, pressupôs-se que a senciência e a consciência representam a mesma capacidade e que ser senciente consiste em ter experiências conscientes. A senciência será aqui examinada com mais profundidade porque na bibliografia sobre o bem-estar animal e na ética aplicada em geral este conceito é utilizado de forma ambígua para distinguir duas capacidades diferentes.

Num dos sentidos de “senciência”, o conceito não implica consciência fenomenológica (ou saber o que é ter uma certa experiência). É apenas reactividade discriminativa, isto é, a capacidade de reagir a estímulos externos. As plantas e os computadores podem fazê-lo, sem estarem cientes dos aspectos qualitativos dos estímulos a que reagem. Ter experiências fenomenologicamente conscientes requer o conhecimento de alguns aspectos qualitativos (ou qualia) das experiências que temos, por exemplo a vivacidade de uma cor que distinguimos visualmente. Pressupomos que os outros seres humanos são fenomenologicamente conscientes tal como nós, mas (saber) se alguns animais não-humanos são fenomenologicamente conscientes é uma discussão em aberto (Carruthers, 1992). De notar que nem todos os filósofos acreditam que a consciência fenomenológica seja um conceito digno de respeito e alguns têm sustentado que a existência dos qualia enquanto tais é um mito (Churchland, 1988; Dennett, 1988).

A outra caracterização de senciência como capacidade de sentir dor ou prazer inclui a presença da consciência fenomenológica, ou é neutra em relação a ela. Embora as plantas e os computadores possam reagir a estímulos externos de uma forma adequada, não podem sentir dor ou prazer porque carecem da estrutura interna que permita que a dor ou o prazer sejam percepcionados. Quando se trata de animais não-humanos, não se pode fazer uma afirmação geral. Alguns animais têm um sistema nervoso semelhante ao nosso, e é provável que sintam dor quando confrontados com estímulos adversos, ao passo que outros animais não. A questão de quão similares a nós eles precisam de ser com vista a serem-lhes atribuídas sensações de dor será analisada na próxima secção.

A senciência no último sentido será examinada por duas razões. Primeiro, não acreditamos que o conceito de consciência fenomenológica seja particularmente útil, se é que é de todo legítimo. Segundo, este último é o sentido no qual a maioria dos filósofos e outros indivíduos preocupados com o bem-estar animal utilizam a palavra. Visto que o que interessa para a consideração moral directa é a presença de crenças e desejos acerca do próprio bem-estar, sentir dor é uma condição necessária para querer evitar a causa da dor. A capacidade de sentir dor é aquilo que nos parece moralmente relevante, mas alguns filósofos preferem uma abordagem diferente (Carruthers, 1999).

A questão da distribuição e a avaliação da dor

Tornou-se habitual em qualquer contribuição para a bibliografia sobre o bem-estar animal ridicularizar a perspectiva cartesiana de acordo com a qual os animais são autómatos. Mas se achamos extremamente implausível que gatos e cães pudessem ser vistos como máquinas sem senciência, ainda temos uma imagem mecânica do comportamento de muitos outros animais.

Precisamos de uma resposta à questão da distribuição: quão largamente distribuída é a senciência, que espécies animais (ou indivíduos) têm senciência? Uma forma de responder à questão é estabelecer alguns critérios para a dor e ver que animais satisfazem estes critérios.

De acordo com uma abordagem antropocêntrica, os animais não-humanos podem ser considerados capazes de sentir dor se i) tiverem os mesmos mecanismos que são responsáveis pela dor nos seres humanos e ii) se se comportarem de formas que são similares às formas como os humanos se comportam quando estão a sofrer (Bateson, 1991). Por uma questão de simplicidade, i será referido como o critério fisiológico e ii como o critério comportamental.

Entre os factores relevantes, Bateson destaca a forma como o sistema nervoso funciona, a existência de partes no sistema nervoso destinadas a impedir o dano, o tamanho relativo do cérebro e as capacidades cognitivas. Em alguns casos, esta lista de factores é insatisfatória e não ajuda a chegar a uma resposta conclusiva: por exemplo, os insectos têm um sistema nervoso complexo, mas não um sistema de fibras equivalente às fibras de dor dos vertebrados. Além disso, Bateson observa que há casos em que a decisão de proteger uma espécie é baseada simplesmente em respostas comportamentais. Os cefalópodes (por exemplo, o polvo e a lula) são invertebrados e têm um sistema nervoso complexo muito dissemelhante do dos seres humanos. Contudo, as suas respostas comportamentais são tão sofisticadas que os cientistas decidiram dar-lhes o benefício da dúvida. Assim, os cefalópodes foram protegidos ao abrigo do Animals Procedures Act de 1986 e não podem ser utilizados para investigação que seja provável que lhes cause dor.

Recentemente, os resultados de algumas experiências em trutas arco-íris sugeriram que podem sentir dor (Sneddon e outros, 2003). Esta é, em absoluto, uma descoberta, pois a perspectiva usual é que mamíferos, aves, répteis e anfíbios são sencientes, mas não os peixes. Sneddon também reconhece a presença de critérios comportamentais e não comportamentais para a dor. Ela enfatiza o critério fisiológico: afirma ter encontrado nas trutas receptores de dor que são similares aos encontrados em anfíbios, aves e mamíferos. Mas admite que a presença de nociceptores não é suficiente para confirmar que a truta arco-íris pode sentir dor. Para provar a percepção da dor é necessário mostrar que o comportamento da truta é afectado desfavoravelmente por uma experiência potencialmente dolorosa e que as mudanças comportamentais apresentadas não são respostas reflexas. Ora, a distinção não é fácil de fazer, mas uma resposta reflexa (tal como pestanejar) é produzida como o resultado habitual de uma simples reacção neurológica a um simples estímulo, ao passo que um comportamento não reflexo ou operante resulta de causas neurais complexas. No último caso, afirma Sneddon, o animal evita o estímulo como uma consequência de saber que o estímulo está associado a uma experiência desagradável.

Na experiência levada a cabo por Sneddon, foi injectado veneno de abelha ou ácido acético nos lábios de algumas trutas arco-íris, enquanto outros peixes eram injectados com solução salina ou simplesmente manuseados para formar grupos de controlo. Todos os peixes tinham sido previamente condicionados a alimentarem-se num comedouro do seu tanque onde eram apanhados para manuseamento ou injecção. A truta em que tinha sido injectado veneno de abelha manifestou um movimento repetitivo, para trás e para a frente, que nos recorda a espécie de movimento observado nos mais altos vertebrados sujeitos a tensão como os mamíferos, e a truta injectada com ácido acético também esfregou os seus lábios no cascalho do tanque. Os peixes nos quais foram injectados ácido acético ou veneno de abelha demoraram quase três vezes mais tempo a retomar a alimentação comparados com os grupos de controlo injectados com solução salina ou simplesmente manuseados.

Será que o movimento repetitivo para trás e para a frente é prova de que a truta está a sofrer ou é apenas uma resposta reflexa? Sneddon entende-o como uma boa prova para a dor: outros negam-na. (Não tecemos, de todo em todo, comentários acerca da ética de efectuar tais experiências, mas um tal comentário teria de ter em conta um equilíbrio entre os benefícios preventivos que dimanariam de estabelecer que uma classe de criaturas podia sentir dor e o dano causado aos indivíduos que são objecto da experiência.)

O problema é que não é fácil interpretar o comportamento de outras espécies. Quando se trata de seres humanos, temos muitos recursos disponíveis. Podemos contar com relatórios verbais e, se isso não for possível, podemos observar a distorção da face, a palidez, as tentativas de remover a origem do estímulo e assim por diante. Sinais menos visíveis são, por exemplo, a dilatação das pupilas, o aumento da frequência do ritmo cardíaco e a temperatura do corpo. Os efeitos dos analgésicos e anestésicos fornecem provas adicionais (Bateson, 1991). Nem todas estas respostas comportamentais podem proporcionar a compreensão dos estados mentais de outros animais. Portanto, que recursos temos para avaliar a dor em animais não-humanos?

Não há resposta unânime a esta questão. Uma sugestão vem da bibliografia sobre a consciência animal na etologia cognitiva. Embora não esteja disponível uma definição última de consciência, a melhor prova que temos para a presença de consciência em não-humanos — e, portanto, para sensações conscientes de dor — é a flexibilidade do comportamento. Allen e Bekoff (1997) sugerem que a consciência se manifesta em graus e que podem legitimamente ser atribuídos estados conscientes àqueles sistemas cujas respostas comportamentais patenteiam integração multimodal, isto é, àqueles sistemas que têm a capacidade de aceder uma representação comum através de diferentes vias sensoriais e que detectam melhor o erro. Um exemplo interessante é apresentado por Sterelny (2000), que distingue entre detecção e representação. O comportamento de um organismo que detecta x não é tão sensível à resposta como o comportamento de um organismo que representa x, visto que o primeiro pode depender de uma única pista. Por exemplo, as formigas destroem os corpos das suas companheiras de ninho mortas porque detectam o acido oleico que a decomposição produz. Não têm outro mecanismo perceptivo que as ajude a determinar se as suas companheiras de ninho estão vivas ou mortas. Isso significa que num meio no qual se interfere na sua única pista, a presença do ácido, o seu comportamento higiénico não ocorrerá. A flexibilidade do comportamento, definida em termos de integração multimodal, é uma forma promissora de fazer uma distinção significativa entre as respostas comportamentais de seres sencientes e não sencientes.

O caso da investigação experimental em animais

Há um debate em curso acerca da utilização de animais não-humanos na agricultura, na caça, na pesca, na indústria do divertimento, em cenários educativos, em testes de toxicidade e na investigação científica em geral. Este ensaio centrar-se-á, apenas, no debate sobre o uso de animais não-humanos na investigação científica e pressupõe que pelo menos alguns animais são sencientes.

A posição utilitarista típica é ponderar quer os benefícios quer os custos (éticos) da investigação científica e considerar que é permissível se os benefícios pesarem mais do que os custos. De acordo com Singer (1993), têm de ser levados em conta muitos factores: sobre quantos indivíduos recai a experimentação, até que ponto eles vão ser afectados adversamente pelos procedimentos experimentais tanto em termos de dor como de angústia, até que ponto os resultados da investigação serão benéficos e se estão disponíveis métodos alternativos de investigação que não envolvam animais. Posições deontológicas como a de Regan (1985) sustentam que os animais que são sujeitos-de-uma-vida têm um direito à vida e ao respeito que derrota a utilidade. Nesta categoria, Regan coloca com confiança os mamíferos e sustenta que deve ser dado o benefício da dúvida às aves e a algumas outras espécies. A sua posição é a de que nenhum mamífero deve ser usado para investigação, independentemente dos benefícios. No entanto, abre uma excepção importante. Diz que quando os mamíferos não têm aquelas capacidade que caracterizam um sujeito-de-uma-vida, então as experiências são permissíveis desde que prevaleçam algumas condições. Para clarificar este ponto, importa citá-lo sobre a definição de sujeito-de-uma-vida:

“[os sujeitos-de-uma-vida] têm crenças e desejos: percepção, memória e um sentido de futuro, incluindo o seu próprio futuro; uma vida emocional juntamente com sentimentos de prazer e de dor; interesses de preferência — e de bem-estar; a capacidade de tomar a iniciativa de acções na prossecução dos seus desejos e objectivos; uma identidade psicofísica ao longo do tempo; e um bem-estar individual no sentido em que a sua vida experiencial corre bem ou mal para eles” (Regan, 1985).

Ora, consideramos esta definição questionável em muitos aspectos e há alguma razão para duvidar que a maioria dos seres humanos possa satisfazer todos estes variados requisitos, quanto mais outros mamíferos. Mas deixando isso de lado, Regan nota correctamente que os mamíferos recém-nascidos e os que vão nascer dentro de pouco tempo não satisfazem os padrões dos sujeitos-de-uma-vida. Por esta razão, afirma que não tem objecções directas à sua utilização na investigação, desde que os animais de laboratório usados para gerar os recém-nascidos, os embriões e os fetos sejam tratados com respeito e esta prática não encoraje atitudes que promoveriam a utilização de mamíferos maduros na investigação.

Na base da perspectiva que tem sido aqui corroborada, deve-se evitar causar dor desnecessária a seres sencientes. A nossa posição sobre a investigação em seres sencientes será a de que é permissível se existem benefícios claros e importantes a esperar dos resultados experimentais, e se não for causada dor ao animal que é objecto da experiência. Trivialmente, se os sujeitos não são sencientes, não se aplica a última limitação. Verificou-se nesta secção que mesmo aqueles filósofos que mais veementemente se opõem à investigação em animais fazem concessões à investigação que tem resultados potenciais benéficos para o bem-estar de seres humanos e não-humanos e aprovam a utilização científica de animais não sencientes sob certas condições. Estas considerações podem lançar alguma luz sobre o debate acerca da utilização de embriões humanos na investigação em células estaminais, como se verá na parte restante do ensaio.

Quando começa a senciência nos seres humanos?

Quais são os critérios na base dos quais podemos avaliar a senciência nos embriões humanos? Já foram analisados dois critérios, o fisiológico e o comportamental, para a avaliação da dor em não-humanos. Quando aqueles critérios são aplicados aos embriões humanos, verifica-se que os embriões humanos a serem utilizados na investigação em células estaminais não têm a capacidade de sentir dor.

Analisemos primeiro o critério fisiológico. Para o embrião ter consciência de uma sensação de dor precisam de existir, pelo menos, as seguintes estruturas anatómicas: i) receptores sensoriais capazes de responder a um estímulo doloroso; ii) nervos para conduzir os impulsos gerados nestes receptores até à medula espinal; iii) fibras nervosas na medula espinal que transmitam estes impulsos de dor ao cérebro. Provas comportamentais de que estas estruturas estão presentes são a presença de respostas reflexas, visto que estas requerem que os nervos que emergem da medula espinal estejam intactos e funcionais. Os nervos responsáveis por transportar as sensações da pele à medula espinal desenvolvem-se por volta do fim da sétima semana de gestação (por exemplo, observaram-se respostas labiais tácteis depois desse período), e o tálamo, ao qual as fibras nervosas transmitem os impulsos dolorosos, diz-se que está funcional a partir da oitava semana de gestação. Mas, como vimos, a presença de respostas reflexas não é, só por si, suficiente para a percepção da dor. Em algumas descrições da senciência em embriões, a formação de todas as estruturas necessárias à percepção da dor aparece muito mais tarde na tabela de desenvolvimento pré-natal, quando se estabelecem ligações sinápticas no cérebro. Isto acontece no terceiro trimestre de gravidez.

Mesmo depois de tomar em consideração os critérios fisiológico e comportamental para a senciência nos embriões e fetos, não existe consenso sobre a resposta à questão de quando começa a senciência. A altura mais cedo possível na qual os embriões talvez estejam aptos a percepcionar sensações de dor é fixada por volta da oitava semana de gestação. Os embriões utilizados para a investigação em células estaminais não têm mais de catorze dias, portanto tal investigação não envolve, certamente, seres sencientes e não deve ser restringida pelas considerações éticas que se aplicam à investigação em animais sencientes. Se levantarmos a questão da investigação em embriões sencientes, então devem aplicar-se as mesmas restrições que se aplicam à investigação em animais sencientes. A investigação será permissível se houver benefícios claros e importantes a esperar dos resultados experimentais e se não for causada dor ao embrião.

Quando começam os seres humanos a ser pessoas?

Os seres humanos começam a ser pessoas quando começam a ter o sentido do eu e a responder a padrões de racionalidade. Os requisitos para ser pessoa são adquiridos gradualmente e estão relacionados com a capacidade de atribuir estados mentais de uma certa complexidade a si próprio e a outros. É muito difícil apontar para uma idade na qual estas capacidades se manifestam.

As crianças parecem adquirir consciência completa do eu algures durante o seu segundo ano de vida (Lewis e Brooks-Gunn, 1979; Kagan, 1981). As crianças abaixo dos 2 anos de idade são, naturalmente, conscientes, mas falta-lhes a consciência completa de si próprias enquanto distintas dos outros. Perto do fim do segundo ano começam a usar pronomes pessoais, a reconhecerem-se a si próprias ao espelho e a exibir emoções autoconscientes, como a vergonha (Zelazo, 2004). Além disso, descobriu-se que as crianças abaixo dos 3 anos falham a tarefa da “falsa crença” (Wimmer e Perner, 1983). O significado dos resultados experimentais é controverso, mas uma interpretação é que as crianças não são capazes de distinguir a sua própria perspectiva enquanto observadoras de uma história da perspectiva de uma das personagens ficcionais na história. Têm sido concebidas variantes desta experiência para testar a capacidade em animais não-humanos de atribuírem estados mentais a outros.

Embora não exista um teste definitivo para as capacidades envolvidas na autoconsciência, estes estudos empíricos excluem que os embriões e fetos humanos sejam pessoas. Visto que não satisfazem os requisitos para serem pessoas (racionalidade e autoconsciência), não se qualificam como pessoas e, na nossa perspectiva, não têm interesse na continuação da sua própria existência. Na bibliografia existe uma apelo frequente à ideia de que os embriões e fetos humanos são pessoas potenciais. O argumento tem a seguinte estrutura geral: se os embriões se desenvolverem normalmente e sem interferência, é provável que adquiram no futuro as capacidade que caracterizam as pessoas. Portanto, devemos tratar os embriões como tratamos as pessoas. Vamos aqui avaliar sucintamente os argumentos da potencialidade. Primeiro, vamos analisar o conceito de “potencial” e, em seguida, ponderar as consequências que os argumentos da potencialidade têm para a investigação em células estaminais.

Há um conceito fraco de potencialidade, de acordo com o qual A é um B potencial se A é um elemento causal na produção de B. Este conceito de potencialidade é muitíssimo grosseiro por duas razões principais. Em primeiro lugar, não sugere até onde devemos recuar na atribuição da pessoa potencial. Se o que interessa é o fim do processo (B) e o seu estatuto como pessoa, então todos os agentes causais envolvidos no processo têm igual direito a serem pessoas potenciais, mesmo os espermatozóides. Em segundo lugar, do conceito fraco de potencialidade seguir-se-ia que uma célula somática humana é uma pessoa potencial, já que uma pessoa pode ser obtida a partir dela através de clonagem. É implausível argumentar a favor de uma tal proliferação de obrigações morais directas com base na pessoa potencial (Harris, 1985; Sandel, 2004).

Estas objecções instigaram um conceito de pessoa mais rigoroso (Hursthouse, 1987). De acordo com este conceito mais recente, A é um B potencial se i) A produzirá B se A se desenvolver normalmente; e ii) o B assim produzido será tal que outrora foi A. Embora esta seja uma formulação melhor do que a anterior, há ainda alguns problemas sérios. O que quer dizer ser produzido ou desenvolver-se “normalmente” ou “naturalmente”? A clonagem é um processo natural em alguns aspectos, visto que ocorre na natureza sem intervenção humana na criação de gémeos monozigóticos. Stone (1987) apresenta uma definição de desenvolvimento normal. A desenvolve-se normalmente se originariamente segue até ao fim a via de desenvolvimento que é determinada pela sua natureza e que conduz a B, um membro da sua espécie na idade adulta. Abstraindo-nos da evidente circularidade desta definição, o que nos surpreende é a segunda condição que parece sugerir que existe uma continuidade de identidade entre A e B ou que A e B são o mesmo indivíduo em diferentes fases. Se é este o caso, então os embriões humanos na sua fase inicial, aproximadamente até aos 14 dias, perdem o seu direito de serem pessoas potenciais, visto que se podem formar gémeos e os embriões podem dar origem não a uma mas a duas ou mais pessoas.

A conclusão dos argumentos da potencialidade é que é errado impedir o desenvolvimento de um embrião porque o embrião tem o potencial de se tornar uma pessoa. Isto apoia-se na assumpção de que devemos tratar uma pessoa potencial da mesma forma que tratamos uma pessoa. Mas nós temos obrigações morais directas em relação às pessoas em virtude dos seus interesses no seu próprio bem-estar. Será justificado conferir o mesmo estatuto moral aos embriões na sua fase inicial que não têm interesse no seu próprio bem-estar? A pessoa potencial não tem interesse em crescer, dado o conceito de interesse que foi examinado no princípio deste ensaio. Isto é também conhecido como o problema lógico dos argumentos da potencialidade. Se B tem direitos porque satisfaz um certa condição, não se segue que A tem os mesmos direitos porque pode satisfazer essa condição no futuro. Em resumo, nós somos todos potencialmente cadáveres, mas isso seguramente não significa que tenhamos razões convincentes para nos tratarmos uns aos outros como se já fôssemos cadáveres. Assim, o argumento da potencialidade falha em mostrar que devemos tratar os embriões humanos como pessoas. Algumas pessoas talvez tenham outras razões para considerar os embriões humanos merecedores de respeito e nós vamos ponderá-las nas duas secções seguintes.

O princípio da dignidade humana

Há dois argumentos para defender a ideia de que os embriões devem ser tratados com respeito e estes argumentos podem dar origem a objecções à investigação em células estaminais em embriões humanos. O primeiro deriva da aprovação e aplicação do princípio da dignidade humana e o segundo baseia-se no valor simbólico do embrião.

De acordo com o princípio da dignidade humana, numa formulação que se pode encontrar em Kant (1785), a vida humana nunca deve ser pensada apenas como um meio, mas sempre também como um fim. Inspirados pela formulação de Kant, há quem defenda que os embriões humanos não podem ser tratados apenas como um meio para promover investigação. Nesta perspectiva, utilizar embriões para investigação em células estaminais é uma violação do princípio da dignidade humana, visto que é uma forma de instrumentalização da vida humana (Kahn, 1997).

É importante observar como passo preliminar que a ideia de Kant, a que actualmente se chama muitas vezes “instrumentalização”, pode ser utilizada para condenar práticas como a escravatura, pela qual tratamos outros seres humanos apenas como meios, mas não é útil noutros contextos em que tratamos os outros quer como um meio quer como um fim ao mesmo tempo (por exemplo, relações de família, amizade, etc).

Esta limitação do princípio na sua formulação Kantiana tem sido apontada por Harris e Sulston (2004) que sugerem uma interpretação utilitarista da dignidade humana. Estes autores corroboram a ideia de Bentham de que cada ser humano deve ter uma posição igual com respeito aos direitos e interesses (Bentham, 1789). Esta interpretação elimina o conceito de instrumentalização como uma violação da dignidade humana, mas realça dois outros aspectos da dignidade humana: i) cada vida tem igual importância e ii) cada vida interessa.

Ambas as interpretações do princípio da dignidade humana que foram aqui consideradas podiam ser usadas contra a utilização de embriões humanos na investigação em células estaminais. Apoiando-se na leitura kantiana do princípio, alguém podia argumentar que nenhuma vida humana pode ser usada apenas como meio. Se os embriões humanos contam como uma forma de vida humana, e certamente contam, então não é permissível utilizá-los apenas como um meio de colher células estaminais. Recorrendo à formulação utilitarista do princípio, alguém podia afirmar que a vida dos embriões humanos interessa tanto como a vida de qualquer outro ser humano, e os embriões têm os mesmos interesses e direitos que os outros seres humanos têm.

Note-se que em ambos os casos a objecção se apoia no pressuposto de a dignidade ser um atributo da vida humana enquanto tal. Mas como sustentámos até agora, nada há de intrinsecamente valioso em pertencer à espécie Homo sapiens. Outorgar direitos e interesses unicamente com base na qualidade de membro da espécie parece ser totalmente arbitrário e é comparável, como prática, a conferir direitos e interesses com base na raça e no sexo. Equivale a uma forma de preconceito com base no qual se pode exercer discriminação. A razão pela qual julgamos a vida humana valiosa e queremos protegê-la é que o ser humano típico tem as capacidades que têm sido descritas como moralmente relevantes e que são requisitos para a senciência e a pessoa.

Por conseguinte, as objecções à investigação em células estaminais em embriões por causa do princípio da dignidade iludem a questão de qual é o alcance do princípio. Como o princípio é expresso como um princípio da dignidade humana, podia trabalhar-se sob a hipótese de que é a humanidade que determina se alguma coisa ou alguém tem certos direitos e interesses. Mas a humanidade é valiosa somente até ao ponto em que defende as capacidades que são plausivelmente valiosas. Quando se trata do valor da vida ou da dignidade da vida devemos assegurar-nos de que nenhuma pessoa é usada apenas como um meio (formulação kantiana) ou de que todas as pessoas contam como iguais com respeito aos seus direitos e interesses (formulação de Bentham).

O valor simbólico dos embriões humanos

A segunda perspectiva influente admite que somente os seres sencientes, dos quais as pessoas são uma subclasse, são candidatos apropriados à consideração moral directa. De acordo com este ponto de vista, apresentado por Steinbock (1992), os embriões não são pessoas mas também não são semelhantes a qualquer outro tecido corpóreo. Deve ser-lhes conferido respeito como formas de vida humana em desenvolvimento. Assim, os embriões não têm estatuto moral mas têm valor moral e pode ser-lhes conferida consideração moral indirecta, como às árvores ou às obras de arte. Steinbock sustenta que os embriões humanos impõem respeito porque representam o princípio da vida humana, analogamente aos restos mortais humanos que impõem respeito visto que representam o fim da vida humana. Para mostrar respeito pelos restos mortais humanos, seguimos rituais que variam de cultura para cultura e que celebram o fim de uma vida humana. É difícil demonstrar que obrigações nos impõe o respeito pelos embriões com base no seu valor simbólico.

Quer para Steinbock (1992) quer para Robertson (1995) os embriões humanos ocupam aquele espaço entre as pessoas totalmente desenvolvidas com direitos e interesses e os seres não sencientes sem valor simbólico. Assim, o respeito a que estamos obrigados para com os embriões não é tão grande como o respeito a que estamos obrigados para com os seres com interesses.

Steinbock sustenta que temos obrigação de respeitar os embriões delimitando a sua utilização a objectivos moralmente relevantes. Esta autora força a analogia com as autópsias em cadáveres ou com a utilização de corpos mortos para fins de educação médica: certas práticas são permitidas quando existe uma boa razão para as efectuar. Assim, não há objecção à utilização de embriões humanos na investigação em células estaminais quando este tipo de investigação tem o objectivo de salvar vidas humanas e é considerado moralmente relevante. Mas haveria objecções à utilização de embriões para fins mais insignificantes ou fúteis, como, por exemplo, testes de toxicologia de cosméticos. Robertson (1995) defende uma perspectiva muito semelhante e afirma que o valor dos embriões humanos tem de ceder aos interesses das pessoas que podem ser fomentados por via investigação científica.

Mas combinada com um conceito “tudo-ou-nada” de respeito, de acordo com o qual o respeito não admite gradações, a perspectiva de que os embriões têm valor simbólico podia dar lugar a uma objecção à investigação em células estaminais embrionárias. O argumento seria o seguinte: i) se devemos, de todo em todo, algum respeito aos embriões, devemos-lhes a mesma quantidade de respeito que devemos às pessoas humanas; ii) nós tratamos respeitosamente as pessoas, nunca as usando apenas como meios; iii) os embriões têm valor simbólico e requerem tratamento respeitoso; iv) portanto, os embriões nunca devem ser utilizados apenas como meios, ainda que os nossos fins sejam moralmente relevantes. Esta é uma perspectiva do valor simbólico, segundo a qual este derrota a utilidade, e seria um desafio directo à permissibilidade da investigação em células estaminais em embriões.

Ambas as perspectivas se baseiam no conceito de valor simbólico que precisa de se tornar exacto e não se pode meramente ilustrar apenas por meio de analogias, visto que as analogias são sempre imperfeitas. Mesmo admitindo que a forma pela qual as entidades adquirem valor simbólico é sempre arbitrária até certo ponto, persiste uma importante questão: como é que o valor simbólico iguala o valor moral? Nenhuma justificação convincente da relevância moral do valor simbólico foi apresentada até agora. Como Jonathan Glover frisou numa conferência recente em Veneza (20–22 de Novembro de 2003), o valor simbólico, tal como foi apresentado por Steinbock como analogia por referência à bandeira americana, somente protege as bandeiras se uma atitude específica para com elas for incontroversa. Glover fez notar que, enquanto os americanos podem reverenciar universalmente a bandeira deles, os britânicos tendem a ter para com a sua uma atitude mais gracejante e irreverente, pintando-a muitas vezes em cuecas e sutiãs. Segue-se que o valor simbólico pode permitir uma ampla série de respostas, incluindo a irreverência e a instrumentalização.

Conclusão

A perspectiva da derrota da utilidade conduz a profundas tensões no nosso modelo ético. Como podemos justificar a atribuição de direitos que derrotam a utilidade a seres não sencientes como os embriões na sua fase inicial e não conceder direitos de derrota da utilidade a seres sencientes, apenas com base do valor simbólico? Esta não é, seguramente, uma opção coerente para quem quer que acredite que a relevância moral assenta firmemente nos interesses dos indivíduos no seu próprio bem-estar. Outro problema com esta última interpretação do valor simbólico é que, no contexto da investigação em células estaminais, ao respeitar os embriões talvez estejamos a desprezar os interesses de pessoas totalmente desenvolvidas cujas graves condições médicas podiam ser melhoradas pelo resultado da investigação em células estaminais. Se conferíssemos aos embriões o valor simbólico de derrota da utilidade, teríamos de justificar a posição de acordo com a qual o respeito que devemos aos seres com valor simbólico pesa mais do que as exigências éticas das pessoas.

Este ensaio definiu a pessoa e a senciência e sustentou a sua relevância moral. Seguidamente, disputou três argumentos comuns a favor da afirmação de que os embriões devem ser tratados como pessoas: os argumentos da potencialidade, da violação do princípio da dignidade humana e do valor simbólico dos embriões. Estes argumentos são muitas vezes transformados em objecções à investigação em células estaminais em embriões humanos, mas demonstrou-se que estas objecções, na sua forma actual, não são convincentes e não excluem os embriões da utilização ou criação enquanto objectos de investigação.

Lisa Bortolotti e John Harris
Reproductive BioMedicine Online, Vol. 10, Sup. 1, 2005, pp. 68–75.

Referências

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ISSN 1749-8457