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9 de Dezembro de 2006   Ética

A distinção facto/valor

Roger Crisp
Tradução de Desidério Murcho

De acordo com os defensores da distinção facto/valor, nenhum estado de coisas do mundo pode ser um valor, e os juízos avaliativos não devem ser entendidos como juízos de facto puros. A distinção foi importante na ética do século XX e continua em aberto o debate sobre o estatuto metafísico do valor, a epistemologia do valor e sobre qual será a melhor caracterização dos juízos de valor.

Um facto é um estado de coisas efectivo. Um valor é ou algo bom (o prazer, por exemplo), ou uma crença de que algo é bom (dizer que o prazer é um dos meus valores é dizer que eu acredito que o prazer é bom). A distinção facto/valor foi de grande importância na filosofia moral do século XX, distinção traçada entre estados de coisas efectivos e valores nos dois sentidos (nem sempre se distinguindo claramente os dois sentidos).

Numa das versões da distinção facto/valor, não há valores “no mundo”. John Mackie (1977), por exemplo, argumentou que tais itens são demasiado peculiares para integrarem qualquer metafísica ou epistemologia decente, e que a inexistência de valores era a melhor maneira de explicar os desacordos avaliativos. De acordo com a ética existencialista, a não factualidade do valor deixa-nos numa posição de liberdade radical para escolher.

A distinção, se entendermos que é acerca de avaliações, sugere que estas não são tentativas puras de exprimir factos. Uma versão famosa e influente desta perspectiva é a de Hume (1739-40), que afirmou que as conclusões com “deve” não se seguem logicamente de afirmações com “é”. Logo, se afirmamos correctamente que algo deve ser feito (e isso pode ser um dos nossos valores) com base num argumento que aparentemente se refere apenas a factos, uma das afirmações “factuais” envolve um “deve” oculto.

Esta versão da distinção facto/valor, aliada a uma concepção restrita do que pode contar como afirmação factual, foi de grande importância. Se os factos se restringem, por exemplo, a descrições puramente neutras, tais como as que encontramos nas ciências da natureza, os juízos morais podem ser vistos como algo diferente de afirmação de factos. (Houve quem argumentasse que a própria ciência é um trabalho avaliativo, de maneira que a distinção facto/valor é espúria.) Pode-se então defender que palavras como “bom” ou “correcto” têm papéis especiais, não descritivos. De acordo com o emotivismo, afirmar que X é bom é expressar uma atitude favorável relativamente a X, e talvez encorajar os outros a adoptar tal atitude; de acordo com o prescritivismo, a afirmação deve ser entendida como um imperativo. Segundo estas perspectivas, certas palavras, como “corajoso”, por exemplo, podem ter algum conteúdo factual; mas isto pode sempre distinguir-se, pelo menos conceptualmente, do conteúdo valorativo.

Entre aqueles que defenderam que os valores são parte do mundo e que as avaliações exprimem factos incluem-se os defensores do realismo moral. Há pelo menos dois tipos de realismo moral. O naturalismo ético afirma que os valores são factos naturais, querendo-se dizer com “natural” que tais factos devem ser identificados com, ou ser vistos como constituídos por, factos susceptíveis de serem investigados pelas ciências da natureza. O não naturalismo ético entende os valores como factos sui generis, sendo que qualquer tentativa de os identificar com factos naturais incorre naquilo a que G. E. Moore (1903) chamou a “falácia naturalista”.

Roger Crisp
Publicado em Routledge Encyclopedia of Philosophy, org. Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)

Referências e leitura complementar

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ISSN 1749-8457