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11 de Setembro de 2005   Metafísica

Liberdade, determinismo e causalidade

Elliott Sober
Tradução de Paulo Ruas

Nas lições anteriores sobre o problema da relação mente/corpo, encontrámos uma ideia simples que nenhuma teoria contestava. Os dualistas, os defensores da teoria da identidade e os funcionalistas, admitem que a mente e o mundo físico interagem. As nossas crenças e desejos causam os vários movimentos do nosso corpo. Acresce que os próprios estados mentais têm antecedentes causais no mundo físico. Aquilo em que neste momento acreditamos e os desejos que agora temos — de facto, a nossa personalidade como um todo — podem ser reconduzidos às experiências que tivemos. Estas experiências foram causadas por itens pertencentes ao nosso ambiente físico. Além disso, a ciência moderna reconhece que algumas características da nossa mente podem ser influenciadas pela herança genética que recebemos dos nossos pais.

Assim, tal como a mente humana tem efeitos no ambiente físico, também o mundo físico — fora e dentro do nosso corpo — afecta os nossos estados mentais. O diagrama que se segue representa estas relações causais:

Mente
Meio ambiente →
Crenças + Desejos → Comportamento
Genes →

O problema da liberdade

O problema acerca da existência da liberdade humana pode ser apresentado numa formulação preliminar. As nossas crenças e desejos, e portanto, o nosso comportamento, são causados por coisas fora do nosso controlo. Não escolhemos livremente os nossos genes nem a sequência de ambientes em que crescemos. Se não os escolhemos livremente, porquê dizer que o nosso comportamento é o resultado de uma escolha livre da nossa parte? Como podemos ser responsáveis por acções causadas por acontecimentos (que tiveram lugar há muito tempo) sobre os quais não exercemos qualquer controlo? Aparentemente, somos tão livres como um computador: um computador comporta-se como o faz porque foi programado para isso.

Outra maneira de ver o problema consiste em considerar uma característica diferente do quadro causal acima indicado. Suponhamos que o nosso comportamento é o resultado das nossas crenças e desejos, tal como o comportamento de um computador é o resultado do seu programa. Há um aspecto na situação em que se encontra o computador que parece caracterizar também a nossa. Dado o programa nele instalado, o computador não pode agir de modo diferente do que age. Suponhamos que um computador foi programado para calcular a soma de dois números. Isto significa que se os dados de entrada são 7 e 5, o computador não pode deixar de fornecer 12 como dado de saída. O computador não pode agir de forma diferente.

Seremos neste aspecto como os computadores? Dados os desejos e crenças que presentemente temos, fazer o que fazemos não será inevitável? Os nossos desejos e crenças deixam tão em aberto o que faremos como o programa do computador deixa em aberto o que o computador fará. Este facto a respeito do computador, e a respeito de nós próprios se formos como o computador, parece implicar que não somos livres. A razão é que se uma acção for praticada livremente, então deve ter sido possível ao agente agir de outra maneira. Se foi livremente que levei aos lábios a chávena, deve ter sido possível abster-me de levar aos lábios a chávena. Mas, dados os desejos e crenças que tinha, eu não podia deixar de levar a chávena aos lábios. As nossas acções são a consequência inevitável das mentes que temos, tal como os dados de saída do computador são a consequência inevitável do seu programa.

Acabo de indicar duas características das relações causais representadas no diagrama precedente. Cada uma sugere o seu próprio argumento a favor da tese de que nenhuma acção humana é livre. Ao primeiro argumento chamarei Argumento da Causalidade à Distância; está centrado na ideia de que o nosso comportamento é causado por factores (os nossos genes e o ambiente em que crescemos) fora do nosso controlo. Ao segundo argumento chamarei Argumento da Inevitabilidade; centra-se na ideia de que não podemos agir de maneira diferente daquela que os nossos desejos e crenças nos fazem agir. Ambos os argumentos serão mais tarde clarificados. Por agora, basta ter presente que se pensamos que por vezes agimos livremente, temos de encontrar uma falha em cada um deles.

Transitividade

Alguns objectos têm relações com outros. A Alice é mais alta que o João. O David ama a Margarida. Os termos em itálico denotam relações. Os nomes denotam os objectos que têm essas relações.

Algumas relações são transitivas; outras não. Se Alice é mais alta que João, e João mais alto que Maria, Alice é mais alta que Maria. Uma relação R é transitiva quando tem precisamente esta característica:

Para quaisquer três objectos a, b, e c, se a está na relação R com b, e b está na relação R com c, então a está na relação R com c.

Ser mais alto é uma relação transitiva. Amar não é uma relação transitiva. O facto de o David amar a Margarida e de a Margarida amar o João, não garante que o David ama o João.

A causalidade é uma relação entre acontecimentos. O facto de Holmes ter accionado o gatilho provocou a morte de Moriarty. A morte de Moriarty causou alarme no submundo de Londres. Seguir-se-á que Holmes ter accionado o gatilho causou alarme no submundo de Londres?

Ou seja: será a causalidade uma relação transitiva?

Será que o Argumento da Causalidade Distância, discutido mais à frente, pressupõe que a causalidade é transitiva?

Exemplos de acções não livres

Consideremos dois tipos de comportamento que ninguém pensa que sejam livres. O primeiro é o comportamento resultante de uma lavagem ao cérebro. Vejamos o caso de Patty Hearst. Herdeira de uma fortuna conseguida com jornais, Hearst foi raptada e violentada mental e fisicamente pelos seus raptores durante vários meses em 1974. Em seguida, participou com eles no assalto a um banco. Foi apanhada e levada a julgamento.

Nunca houve qualquer dúvida quanto a Hearst ter ajudado a assaltar o banco. A questão era saber se o tinha feito de livre vontade. Os advogados de defesa tentaram estabelecer que Hearst não tinha livre-arbítrio no momento em que o fez. Argumentaram que os seus raptores tinham de tal modo distorcido as suas faculdades mentais que ela se tornara um simples joguete nas suas mãos. As suas acções eram a expressão dos desejos deles, não dos seus, segundo defenderam. A acusação tentou mostrar que Hearst era um agente livre, argumentado que embora tenha sido violentada, participara de livre vontade no assalto ao banco.

A acusação ganhou o caso, e Patty Hearst foi presa. Independentemente de saber se esta foi a conclusão correcta, gostaria de chamar a atenção para uma ideia com a qual a acusação e a defesa estavam de acordo. As pessoas que agem em consequência de uma lavagem ao cérebro não agem de livre vontade. Eis, pois, um comportamento que penso podermos considerar não livre.

A segunda categoria de comportamento não livre foi descrita por Freud. Freud descreve um homem que obsessivamente lavava as mãos. Tinha sido apanhado nas malhas de uma compulsão. Mesmo depois de qualquer pessoa normal reconhecer ter as mãos limpas, o lavador de mãos compulsivo continua a esfregar. Por vezes, a compulsão é de tal modo extrema que a carne é consumida e o osso fica exposto. “Não conseguem evitá-lo”, poder-se-á dizer.

Outro exemplo deste género é a cleptomania. Um cleptomaníaco é alguém dominado pela compulsão de roubar. Mesmo quando reconhecem que roubar está a arruinar as suas vidas, os cleptomaníacos vêem-se impotentes para alterar o seu comportamento. Talvez algumas pessoas roubem por sua livre vontade; não parece ser este o caso dos cleptomaníacos.

Até os filósofos que pensam que por vezes agimos livremente, em geral concedem que a lavagem ao cérebro e a compulsão nos privam de livre-arbítrio. A questão é saber se há outras categorias de comportamento genuinamente livres. Já descrevi dois argumentos — o Argumento da Causalidade à Distância e o Argumento da Inevitabilidade — que respondem a esta questão negativamente.

Serão todos os comportamentos como os produzidos por lavagens ao cérebro ou por compulsões?

Para decidir se alguma vez agimos livremente é preciso decidir se algum dos nossos comportamentos difere significativamente dos comportamentos não livres que acabam de ser descritos. Se a lavagem ao cérebro nos rouba o livre-arbítrio, que dizer do modo como uma educação normal modela o tipo de pessoas que somos? Se a doutrinação priva as pessoas do seu livre-arbítrio, que efeitos tem a educação no que respeita à possibilidade de agir livremente? Se uma vítima de lavagem ao cérebro não é responsável por aquilo que faz, como poderemos dizer que os indivíduos “normais” são responsáveis por aquilo que fazem?

Mudando agora para exemplos de comportamento compulsivo, podemos perguntar, se o comportamento compulsivo não é livre, o que dizer dos casos normais de deliberação racional em que as pessoas agem com base na sua vontade? Talvez a única diferença entre alguém ter uma compulsão e uma pessoa “normal” é quererem diferentes coisas. Não é usual querer lavar as mãos 200 vezes por dia, mas já não é assim tão raro querer lavá-las quando ficam cobertas de sujidade. Mas se isto é tudo o que distingue os ditos comportamento compulsivo e comportamento normal, porquê afirmar que um é menos livre que o outro? Para compreender o que a liberdade é, teremos que responder a questões como estas.

Um choque entre concepções plausíveis

O problema da liberdade envolve um choque aparente entre duas das formas mais fundamentais que temos de nos conceber a nós próprios. Em primeiro lugar, há a ideia de que fazemos parte da rede causal. As nossas acções não surgem do nada; pelo contrário, podem ser reconduzidas às crenças, desejos e outras características mentais que possuímos. Estas características mentais também não surgiram do nada; têm os seus antecedentes causais nos nossos genes e meio ambiente. Em segundo lugar, há a ideia de que (pelo menos algumas vezes) praticamos acções livres. Existirá um choque entre estas ideias, ou podem ser conciliadas?

Os argumentos acima mencionados referem-se a estágios diferentes do processo causal representado no diagrama. O Argumento da Causalidade à Distância diz respeito à relação das nossas acções com os nossos genes e meio ambiente. O Argumento da Inevitabilidade diz respeito à relação das nossas acções com as nossas crenças e desejos. Apesar desta diferença, os dois argumentos têm algo em comum. Ambos afirmam que as nossas acções são causadas. E ambos afirmam que há algo acerca do modo com as nossas acções são causadas que mostra que essas acções não são livres. Como ficou claro antes, se pensarmos que algumas das nossas acções são livres, temos de rejeitar uma ou outra destas premissas.

O que é a causalidade?

Até final desta lição, quero concentrar-me no segundo destes conceitos chave. O que significa dizer que um acontecimento “causa” outro? Compreender a causalidade tem sido um problema filosófico muito profundo pelo menos desde o trabalho de David Hume no século XVIII. Não tentarei ir até ao fundo deste agregado de problemas. Mas tentarei clarificar o que é a causalidade — o suficiente para que possamos compreender melhor o problema da relação entre liberdade e causalidade.

O que significa dizer que riscar um fósforo causou que este se acendesse? Não significa que riscá-lo, por si só, é suficiente para o acender. Afinal, além de ser riscado, o fósforo tinha de estar seco, sendo ainda necessário que houvesse oxigénio no ar. Portanto, o primeiro facto a reter sobre causalidade é o seguinte: uma causa não tem de ser uma condição suficiente para o seu efeito.

O segundo facto sobre causalidade é que existem geralmente muitas maneiras de obter que um efeito particular ocorra. Riscar o fósforo fê-lo acender, mas isso não significa ser esta a única forma de o incendiar. Usando uma lente para fazer incidir a luz solar sobre a cabeça do fósforo teria obtido o mesmo resultado. E colocar o fósforo sobre uma frigideira fervente também. Portanto, o segundo facto é: por vezes as causas não são condições necessários para os seus efeitos.

Gostaria agora de assinalar a diferença entre uma causa de um acontecimento e o que podemos chamar a causa completa desse acontecimento. Riscar o fósforo é uma causa de o fósforo acender. É, no entanto, apenas uma parte do conjunto total de factos relevantes acerca do fósforo num dado momento. Nesse preciso momento o fósforo é riscado de uma certa maneira, há oxigénio presente, o fósforo está seco, e assim por diante. Dada toda esta informação, o que se pode concluir acerca do que irá acontecer em seguida?

Determinismo

Poder-se-á dizer que o fósforo pode acender? Sim. Mas poderemos dizer mais — que o fósforo tem de acender, dada a especificação completa de todos os factores causais? A ideia de que uma descrição completa dos factores causais garante o que acontecerá a seguir é a tese do determinismo.

Esta tese diz que se fizermos uma lista de todos os factos relevantes a respeito do fósforo e do meio ambiente num dado momento, estes factos determinam univocamente o que irá acontecer a seguir. O futuro do fósforo não fica em aberto pelo seu estado actual. Dado o estado actual do fósforo, há uma única opção a respeito daquilo que irá acontecer em seguida.

Por vezes, descrevemos factos causalmente relevantes acerca de um objecto de modo a que a descrição deixe em aberto o que acontecerá em seguida. Por exemplo, suponhamos que um par de dados não está viciado. Se isto é tudo o que sabemos a seu respeito, devemos concluir que a probabilidade de obtermos um duplo seis numa próxima jogada é 1/36. O facto de os dados não estarem viciados e de eu estar agora a lançá-los não me permite dizer o que tem de acontecer. Tudo o que podemos afirmar é que os dados poderão dar um duplo seis, mas também é verdadeiro que isso pode não acontecer.

Isto não significa que o par de dados viola a tese do determinismo. Esta tese apenas estabelece que uma descrição completa de um sistema determina o que irá acontecer a seguir. Talvez o determinismo causal seja verdadeiro e a minha descrição do par de dados incompleta.

Isto tem alguma plausibilidade. Por exemplo, não descrevi exactamente de que modo os dados deveriam ser lançados, como é a superfície em que irão cair, ou que condições de vento irão afectá-los ao largá-los da mão. O determinismo causal limita-se a dizer que se todos os factores causalmente relevantes forem considerados, deixam em aberto um único futuro possível para o par de dados.

Indeterminismo

Será o determinismo verdadeiro? Antes de responder a esta questão, sejamos claros sobre em que consistiria o determinismo ser falso. Se o determinismo for falso, então o mundo é indeterminista. Isto significa que uma descrição completa dos factores causais num dado momento deixa em aberto o que irá acontecer a seguir. Num tal universo, tudo o que se pode dizer é que o estado actual de um sistema torna alguns futuros mais prováveis do que outros: o importante é que mesmo uma descrição completa do presente deixa em aberto mais do que um futuro possível.

Até ao século XX, o determinismo foi considerado uma tese plausível acerca do mundo, e largamente aceite. As leis do movimento de Newton, por exemplo, têm um carácter determinista. Talvez recordemos da física que aprendemos na escola secundária que estas leis não usam o conceito de probabilidade. Por exemplo, “F = ma” diz que se uma força de magnitude F incidir sobre uma bola de bilhar de massa m, a bola sofrerá uma aceleração igual a F/m. Não diz que isto “provavelmente” acontecerá, como se existissem outras possibilidades. Pelo contrário, a lei diz o que tem de acontecer se um objecto for tratado de certa maneira.

Este quadro newtoniano acerca do modo como os objectos físicos se movimentam fornece um modelo sugestivo para a forma como todos os acontecimentos na natureza em última análise serão descritos. Os seres vivos são mais complexos que as bolas de bilhar; as criaturas com mentes são mais complexas que muitos seres vivos. A ideia que quero considerar, no entanto, diz que todas as coisas feitas de matéria são em última análise governadas pelas leis da física. Logo, como a teoria de Newton é determinista, a ideia é que o comportamento dos seres vivos e das criaturas com mentes deve ter um carácter determinista. A ideia envolvida nesta tese newtoniana generalizada é que o “determinismo se propaga aos níveis superiores”. Se as partículas elementares são deterministas, então também o será tudo o que for feito de partículas elementares. Se a mente de uma pessoa for algo de material, então as suas crenças, desejos e subsequente comportamento são governados por leis deterministas. Não estou a defender que Newton tinha razão sobre as partículas elementares; nem estou a afirmar que a mente é uma coisa física feita de partículas elementares. Pretendo ver considerada uma certa ideia: Se toda a matéria for determinista, e se a mente das pessoas for algo de material, então o comportamento humano é fisicamente determinado.

Um dos ses no que acabo de descrever — a ideia de que a matéria é determinista — não foi posta em questão até ao século XX. Foi então que Niels Bohr, Werner Heisenberg e Erwin Schödinger desenvolveram a Teoria Quântica. Esta teoria é interpretada de modos diferentes pelos físicos, mas segundo a interpretação canónica (chamada “a interpretação de Copenhaga”, em homenagem à terra natal de Bhor), de acordo com a Teoria Quântica, o comportamento das partículas elementares é indeterminista. Para esta interpretação da teoria, até uma descrição completa de um sistema físico deixa em aberto o que virá a ser o seu futuro. Alguns futuros serão mais prováveis que outros mas o número de possibilidades é sempre maior que um. Em resumo, o presente não determina o futuro — o acaso faz parte do mundo.

Não está estabelecido que a interpretação de Copenhaga é a melhor interpretação da Teoria Quântica. Nem sequer é inconcebível que esta bem confirmada teoria venha um dia a ser substituída por outra, que assegure que o universo é determinista. O que parece agora claro é que não podemos simplesmente pressupor que o determinismo tem de ser verdadeiro. Talvez o universo seja determinista, talvez não. Esta é uma questão científica a ser resolvida pela investigação científica. Não podemos decidir a priori se o determinismo é ou não verdadeiro.

Suponhamos que somos feitos de matéria e que as nossas características psicológicas não se devem à presença de uma substância imaterial (um ego cartesiano), mas à maneira como a matéria de que somos feitos está estruturada. Se isto estiver certo, sugiro que o nosso comportamento deve ser como o comportamento das partículas elementares. Se o acaso influencia o comportamento das partículas, também influencia o das pessoas. Ou seja, estou a propor que o indeterminismo se propaga para os níveis superiores. Se os objectos físicos não obedecem a leis deterministas, os nossos desejos e crenças não determinam o que serão as nossas acções. Esses desejos e crenças tornarão algumas acções mais prováveis que outras. Do mesmo modo, os nossos genes mais o meio em que vivemos não determinam o que serão os nossos pensamentos e acções. A relação é uma vez mais probabilística, não determinista.

A maioria dos filósofos que escreveram sobre o problema da liberdade humana não se mostraram preocupados com as implicações da Teoria Quântica. Pressupõem, em geral, que a matéria é determinista e, depois, tentam considerar o que isso implica para a questão de saber se somos ou não livres. Isto é inteiramente compreensível para pessoas como David Hume, que escreveram sobre a questão do livre-arbítrio muito antes de a Teoria Quântica entrar em cena; afinal, Hume escrevia no apogeu da concepção newtoniana do mundo.

Dois usos da probabilidade

Usamos com frequência o conceito de probabilidade para descrever a nossa falta de conhecimento. Quando dizemos de uma moeda que tem a mesma probabilidade de sair cara ou coroa, queremos geralmente dizer que a moeda está bem calibrada e que não sabemos exactamente de que modo será lançada e quais serão as condições do vento no momento do lançamento.

Se o determinismo é verdadeiro, então a única razão por que precisamos de falar em probabilidades é a falta de uma descrição completa do estado inicial da moeda. Convém recordar que o determinismo diz que a descrição completa de um sistema num dado momento determina univocamente o que sucederá em seguida: o presente não pode deixar em aberto diferentes possibilidades em que cada uma tem alguma hipótese de se tornar verdadeira. Ou seja, se o determinismo é verdadeiro, o conceito de probabilidade é apenas necessário para descrever algo de subjectivo — nomeadamente, a falta de informação do sujeito cognoscente.

Por outro lado, se o determinismo é falso, as probabilidades descrevem um facto objectivo acerca do mundo. O acaso é uma característica da maneira como as coisas acontecem. O idioma das probabilidades não é, neste caso, uma forma de representar a nossa ignorância.

Em resumo, saber se o determinismo é falso afecta o modo como podemos usar o conceito de probabilidade.

Será que o indeterminismo nos torna livres?

Se o mundo é indeterminista, de que modo esse facto afecta a questão de saber se somos livres? Suspeito que a mudança do determinismo para o indeterminismo não ajuda muito. A razão é que se suspeitamos que o determinismo exclui a liberdade, provavelmente estaremos inclinados a pensar que também não seriamos livres se o indeterminismo fosse verdadeiro.

Suponhamos que pensa que não temos livre-arbítrio com o fundamento de que os nossos pensamentos e desejos são causalmente determinados por factores que estão fora do nosso controlo. Não escolhemos livremente os nosso genes, ou o meio em vivemos a nossa infância. Ambos nos foram impostos. Modelaram o género de pessoa que somos e os desejos e crenças específicas que temos. Dado tudo isto, como podem as nossas acções ser livres? É este o pensamento expresso pelo Argumento da Causalidade à Distância.

Talvez considere plausível o Argumento da Causalidade à Distância. A questão que quero colocar-lhe é: mudaria de ideias acerca da liberdade se o acaso fosse introduzido nesta perspectiva? Ou seja, suponha que os seus desejos e crenças se devem aos genes, meio ambiente e acaso. Se o determinismo lhe rouba a liberdade, o acaso também parece fazê-lo.

O mesmo se aplica ao Argumento da Inevitabilidade. Suponhamos que concorda com a tese defendida por este argumento — que as suas acções não podem ser livres por serem inevitáveis, dadas as crenças e desejos que tem. Será que introduzir o acaso nesta perspectiva deixa mais espaço para a liberdade? Penso que não. Se o facto de as suas crenças e desejos determinarem as suas acções as impedem de serem livres, creio que continuaria a não se considerar livre se as suas acções fossem causadas pelas suas crenças e desejos, e pelo acaso.

Para sublinhar este aspecto, consideremos um certo tipo de cirurgia cerebral. Suponha que é agora um sistema determinista: os seus desejos e crenças determinam aquilo que irá fazer. Eu, entretanto, ofereço-lhe um implante cerebral, por meio do qual uma pequena roda de roleta é introduzida nos seus processos de deliberação. Se pensa que não é livre por ser um sistema determinista, torná-lo-ia a operação livre? Parece implausível. Antes da operação, era um escravo das suas crenças e desejos. Com a cirurgia, passou a ser um escravo das suas crenças, desejos, e da roda de roleta. A alteração de um sistema determinista para um sistema indeterminista não produziu qualquer diferença no que se refere à liberdade.

A questão é a causalidade e não o determinismo

A minha sugestão é, portanto, que ambos, determinismo e indeterminismo, colocam um problema à liberdade humana. A razão é que a causalidade tanto pode existir num universo indeterminista como num universo determinista. Se os nossos estados mentais são causados por factores fora do nosso controlo, o enigma consiste em saber como podemos ser agentes livres. Se esses factores determinam ou não determinam o nosso comportamento, não é essencial.

Não é difícil conceber como certos acontecimentos podem causar outros num universo determinista. Se riscar o fósforo faz o fósforo acender, o determinismo diz-nos que fazê-lo veio completar um conjunto de condições causais que determinou que o fósforo tem de acender. Mas como podem certos acontecimentos causar outros num universo indeterminista?

O exemplo seguinte (devido a Fred Dretske e Aaron Snyder, “Causal Irregularity”, Philosophy of Science, Vol. 39, 1972, pp. 69-71) mostra, creio, que isto é possível. Vamos supor que uma roda de roleta está ligada a uma pistola, que está apontada a um gato. Se se fizer girar a roleta e a bola cair no número 0, isto causará o disparo da pistola, que matará o gato. Suponhamos que a roleta é um sistema indeterminista — girar a roda não determina onde a bola irá cair. Imagine-se que eu faço a roda girar e que a bola cai no número 0, matando deste modo o gato. Parece-me que o ter feito girar a roleta causou a morte do gato, embora o processo não seja determinista. A morte do gato pode ser reconduzida ao acto de fazer girar a roleta. Para que isto seja verdade, não é necessário que o eu ter feito girar a roleta torne inevitável a morte do gato. É por isto que é possível ter causalidade sem determinismo.

O meu palpite é que o verdadeiro problema não é se o determinismo e a liberdade podem ser reconciliados. Mas dado que as posições tradicionais acerca do problema da liberdade se centram na causalidade determinista, farei o mesmo.

O que diz o determinismo acerca da causalidade do comportamento?

Para fixar ideias, sejamos claros acerca do modo como a tese do determinismo se aplica ao diagrama acima. Este diagrama representa a ideia de que os nossos genes e meio ambiente causam o nosso estado mental actual, e que este, por sua vez, causa o nosso comportamento. Que significam estas relações causais, caso a causalidade seja entendida deterministicamente?

Suponhamos momentaneamente que este diagrama é completo. Ou seja, suponhamos que representa todos os factores que influenciam os nossos estados mentais e o nosso comportamento subsequente. O que tem a dizer a tese determinista sobre esta cadeia? Ela afirma o seguinte: dados os nossos genes e meio ambiente, não poderíamos ter tido um conjunto de crenças e desejos diferente do conjunto que de facto temos. E dadas as nossas crenças e desejos, não poderíamos ter praticado acções diferentes das que de facto praticámos. O determinismo, recordemo-nos, é a tese de que os factos num dado momento determinam univocamente o que vem a seguir.

O determinismo difere do fatalismo

O determinismo é uma doutrina inteiramente diferente da doutrina designada por fatalismo. O fatalismo resume-se ao dito “Que sera, sera” (“O que será, será”). É muito fácil compreender o que diz o fatalismo considerando de que modo surge expresso no mito grego de Édipo.

Édipo foi uma vítima do destino. As Parcas decretaram que ele mataria o seu pai e casaria com a sua mãe. Na história, Édipo fez exactamente isto apesar dos seus esforços em contrário. As Parcas de certa maneira asseguraram-se de que Édipo se encontraria neste lamentável estado de coisas quaisquer que fossem as escolhas que fizesse ou as acções que empreendesse.

O determinismo diz que o presente determina o futuro, e não que o futuro está gravado na pedra, sem ser afectado por aquilo que é verdadeiro no presente. O determinismo é consistente com a ideia de que aquilo que é verdadeiro num tempo posterior depende do que é verdadeiro num tempo precedente. O determinismo não exclui a ideia de que se o passado tivesse sido diferente, o presente seria diferente. O determinismo não exclui a ideia de podemos afectar o modo como o futuro irá ser ao agirmos hoje de uma maneira em vez de outra. O fatalismo nega isto; afirma que o futuro é independente do que façamos no presente.

Newton disse que as bolas de bilhar formam um sistema determinista. Se batermos a bola de uma certa maneira (chamemo-lhe W1), a bola mover-se-á para uma certa posição (digamos, P1). Mas a física newtoniana também diz que se batermos a bola de uma outra maneira (W2), a bola mover-se-á para uma diferente posição (P2). Note-se que segundo esta teoria, o presente faz diferença relativamente ao futuro. O futuro está sob o controlo do presente.

O que aconteceria se Édipo fosse um sistema determinista? Esta hipótese não exige que aceitemos a existência das Parcas. Édipo seria um sistema determinista se as suas acções fossem deterministicamente controladas pelos seus desejos e crenças. Se Édipo possuísse um conjunto de crenças e desejos (digamos S1), seria capaz de produzir uma certa acção (A1). Se tivesse tido um conjunto diferente de crenças e desejos (S2), as suas acções teriam sido diferentes (A2).

Eis uma perspectiva de Édipo de acordo com a qual ele é um sistema determinista, embora nele o fatalismo seja falso: as crenças e os desejos de Édipo, em conjunto com o meio ambiente em que se encontrava envolvido, asseguraram que mataria o pai e casaria com a mãe. Mas se Édipo tivesse tido um conjunto diferente de crenças e desejos, não teria feito nenhuma destas coisas.

É fácil confundir determinismo e fatalismo, embora estejam em causa ideias muito diferentes. Na verdade, são quase o oposto no que afirmam. O fatalismo diz que os nossos desejos e crenças não fazem qualquer diferença relativamente às nossas acções e àquilo que nos acontece. Num certo sentido, o fatalismo diz que os nossos desejos e crenças são impotentes: não têm o poder de fazer a diferença. Mas o determinismo, seguindo o modelo newtoniano, afirma que as nossas crenças e desejos não são impotentes; controlam causalmente aquilo que fazemos e, desse modo, influenciam poderosamente o que nos acontece.

De acordo com o fatalismo, não faz sentido tentar fazer seja o que for. Se está destinado alguém obter um 20 numa certa disciplina, então é isso que essa pessoa irá obter, quer se esforce para isso quer não; e se está destinado que alguém obterá um 7, será isso a acontecer, quer a pessoa tente evitá-lo quer não. Por outro lado, pensar que o nosso esforço influencia o que nos acontece — pensar que tentar faz diferença para a nota que se obtém — é rejeitar o fatalismo.

A mitologia grega falava das Parcas. Vou supor que elas não existem. Vou supor que o fatalismo é falso. Isto deixa em aberto a questão muito diferente de saber se o determinismo é verdadeiro. A maioria dos que escreveram sobre o problema do livre-arbítrio aceitaram que a causalidade requer o determinismo. Espero que se compreenda por que rejeito esta conexão. Penso que a causalidade é um facto acerca do mundo que habitamos, mesmo que o determinismo seja falso.

Na próxima lição, considerarei várias posições acerca da relação entre liberdade e determinismo. Embora pense que o determinismo não é o problema central — a verdadeira questão diz respeito à relação entre liberdade e causalidade — o facto é que a maioria dos filósofos reflectiram sobre a relação entre liberdade e determinismo. É esta forma tradicional de colocar o problema que irei investigar seguidamente.

Elliott Sober
Core Questions in Philosophy (Prentice Hall, 2008)
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ISSN 1749-8457