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Crítica
4 de Julho de 2009   Ética

O problema ético da eutanásia

Faustino Vaz

Definição e problema

É útil saber que o termo “eutanásia” significa literalmente “morte boa” ou “morte feliz”. É verdadeiro que os casos reais envolvem dor e angústia. Mas o significado literal do termo capta um importante aspecto da eutanásia: a morte que dela resulta é para benefício do paciente. Podemos então dizer que a eutanásia consiste em produzir ou acelerar intencionalmente a morte de alguém para seu benefício. Parece haver uma diferença entre produzir e acelerar. Produzir, neste caso, implica matar; acelerar implica deixar morrer.

A definição dada tem a vantagem de mostrar que o problema ético da eutanásia não se esgota numa pergunta. A sua formulação é a seguinte: será permissível que as pessoas, especialmente aquelas que se encontram numa fase terminal da vida e em sofrimento agudo, determinem o fim das suas vidas? Se sim, é permissível que solicitem medidas activas que as matem? Ou é antes permissível que apenas solicitem que as deixem morrer, pedindo aos médicos que se abstenham de as tratar?

Tipos de eutanásia

As duas últimas perguntas sugerem que há dois tipos básicos de eutanásia: activa e passiva. A primeira consiste em tomar medidas activas que causem a morte. A segunda consiste em abster-se de usar os meios e oportunidades que impedem a morte. Esta distinção básica não é suficiente; como se verá a seguir, terá de ser enriquecida para dar conta de todos os casos possíveis de eutanásia. Assim, quando se mata activamente a pedido do paciente, estamos perante a prática de eutanásia activa voluntária; quando se mata activamente um paciente que caiu em coma irreversível ou se encontra em estado vegetativo persiste, e o paciente não teve a oportunidade de exprimir esse desejo, estamos perante a prática de eutanásia activa não-voluntária; quando se mata activamente um paciente que exprimiu o desejo contrário, ainda que para seu benefício, estamos perante a prática de eutanásia activa involuntária.

A estes três tipos de eutanásia activa correspondem igualmente três tipos de eutanásia passiva. Deixar morrer alguém a seu pedido é um caso de eutanásia passiva voluntária; deixar morrer alguém que não teve a oportunidade de exprimir esse desejo, dado encontrar-se em coma irreversível ou em estado vegetativo persistente, é um caso de eutanásia passiva não voluntária; deixar morrer alguém contra o seu desejo expresso, ainda que para seu benefício, é um caso de eutanásia passiva involuntária.

São então seis os tipos de eutanásia:

  1. Eutanásia activa voluntária
  2. Eutanásia activa não voluntária
  3. Eutanásia activa involuntária
  4. Eutanásia passiva voluntária
  5. Eutanásia passiva não voluntária
  6. Eutanásia passiva involuntária

Ter em mente os casos possíveis de eutanásia é essencial. Não é possível um debate claro e rigoroso do problema ético da eutanásia quando não se esclarece, à partida, que tipo de eutanásia se discute. Isto explica como por vezes são inúteis certos debates. É o que acontece se um interlocutor é contra a eutanásia por ter apenas em mente o pior caso possível, e outro é a favor por ter apenas em mente o melhor caso possível.

Desligar a máquina: um caso ambíguo

A distinção entre eutanásia activa e passiva parece clara. Administrar uma injecção letal é eutanásia activa; deixar de tratar, sabendo que isso conduzirá à morte, é eutanásia passiva. Mas nem todos os casos são simples. Admitindo que desligar a máquina de suporte à vida mata o paciente, este é um caso de eutanásia activa ou passiva? Uma vez que alguma coisa é feita — o gesto de desligar a máquina -, parece ocorrer uma acção. Estaríamos assim perante um caso de eutanásia activa. No entanto, a causa imediata da morte do paciente é a sua doença, e não a acção de desligar a máquina. De facto, parece evidente que há uma diferença entre administrar uma injecção letal e desligar a máquina. Atendendo a este aspecto, estaríamos perante um caso de eutanásia passiva.

Desligar a máquina é assim um caso ambíguo: está entre a eutanásia activa e passiva, não sendo claramente uma coisa ou outra. Ter em mente ambiguidades deste tipo é tão importante como saber que tipo de eutanásia estamos a debater.

Redefinir os casos ambíguos: o princípio do duplo efeito

Talvez desligar a máquina não seja, afinal, um caso de eutanásia. Como se verá, é essa a consequência da aplicação do princípio do duplo efeito aos casos ambíguos. Este princípio distingue dois tipos de efeitos: os pretendidos e os previstos. Quando há a intenção de que um certo efeito ocorra, esse é um efeito pretendido; quando apenas se prevê que um certo efeito ocorra, esse é um efeito previsto. Para quem defende o princípio do duplo efeito, a intenção é o factor moralmente relevante na avaliação dos actos.

Quando um médico justifica o acto de desligar a máquina com a intenção de evitar um tratamento desproporcionado, este é o efeito pretendido. O efeito de acelerar a morte é apenas o efeito previsto. Há também analgésicos com efeitos duplos: o efeito de aliviar a dor e o efeito de induzir o colapso do sistema respiratório do paciente, a que se segue a morte. Se um médico justifica o acto de administrar o analgésico com a intenção de aliviar a dor, esse é o efeito pretendido. O efeito de acelerar a morte é, mais uma vez, apenas o efeito previsto. Num caso e noutro, deixamos de estar perante a prática de eutanásia. Desligar a máquina talvez se trate agora de um acto simplesmente médico — um acto que não está sujeito a disputas morais.

Admitir que o princípio do duplo efeito é a justificação moral dos casos ambíguos implica pressupor que a eutanásia é moralmente duvidosa. Do mesmo modo, aceitar que a eutanásia está moralmente justificada, uma vez que beneficia o paciente, implica que as intenções dos agentes deixam de ser relevantes. Segue-se que o princípio do duplo efeito não pode concorrer para a justificação da eutanásia.

Para quem defende o princípio do duplo efeito, as intenções são o factor moralmente relevante. Isto levanta um problema: as intenções não são transparentes. Um médico pode ter a intenção de acelerar a morte de um paciente e servir-se do princípio do duplo efeito para mascarar essa intenção. E pode ter essa intenção por razões duvidosas ou mesmo repugnantes.

Matar e deixar morrer: o princípio da simetria moral

Há quem procure na diferença moral entre matar e deixar morrer a ética da eutanásia. Essa diferença parece confirmar-se nas nossas intuições morais e na prática legal. Alguém empurra uma criança a um rio para que ela morra afogada. Uma outra pessoa vê o que acontece, mas não salta para o rio, ainda que pudesse fazê-lo, salvando assim a criança. A pessoa que empurra mata, e isso parece bem mais grave do que simplesmente deixar morrer, não saltando para o rio. É essa a nossa intuição moral, que neste caso está de acordo com a prática legal. Podemos concluir então que a eutanásia passiva -deixar morrer — está moralmente justificada, mas não a eutanásia activa?

Alguns filósofos defendem que não podemos tirar essa conclusão. Isto implica que não há qualquer diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer — há, pelo contrário, simetria moral. O caso apresentado a favor do princípio da simetria moral é o seguinte. Dois irmãos querem que o seu pai morra para poderem herdar quanto antes a sua fortuna. Um deles, agindo apenas por sua conta, introduz um veneno na bebida do pai. O outro, por acaso, depara-se com as convulsões do seu pai. Acontece que dispõe de um antídoto contra o veneno, mas recusa-se a aplicá-lo. Um dos filhos iniciou um processo causal que conduziu à morte do pai; o outro não interferiu nesse processo de maneira a evitar o seu efeito.

Talvez este caso mostre que o princípio da simetria moral está certo: matar e deixar morrer são moralmente equivalentes. Caso se aceite que ambos os irmãos são igualmente culpados, essa parece ser a conclusão apropriada. Ainda que persista a intuição moral de que matar e deixar morrer não são moralmente equivalentes nos casos reais, esse facto deve-se à presença de factores extrínsecos.

Motivos, riscos para o agente ou a sociedade e probabilidade do efeito são alguns desses factores. No caso da criança que morre afogada, o desejo de que ela morra é o motivo que levou a atirá-la ao rio; mas o motivo que impediu a outra pessoa de saltar para o rio é apenas a crença de que seria incapaz de a salvar. Matar é assim moralmente pior devido ao motivo do agente. Por sua vez, o risco para o agente que poderia tentar salvar a criança é maior, dado que também ele pode morrer afogado. Por isso, deixar morrer é, neste caso, menos repreensível do que matar. E a probabilidade de que a morte ocorra é maior no caso de matar do que no caso de deixar morrer: a inacção de quem assiste à cena deixa ainda a possibilidade de outra pessoa salvar a criança, ou de a corrente do rio a empurrar para a margem.

Avaliar as acções implica não atender a factores extrínsecos deste tipo. O caso dos herdeiros tem a virtude de anular esses factores. É então possível captar a verdade de que matar e deixar morrer são intrinsecamente iguais. A intuição moral de partida — a de que matar e deixar morrer não são moralmente equivalentes — é um erro que resulta de se considerar relevantes factores meramente extrínsecos. Um erro que leva a presumir uma diferença moral relevante entre eutanásia activa e passiva. Se o princípio da simetria moral estiver certo, não há razão para se concluir que a eutanásia passiva está moralmente justificada, mas não a activa. Não faria sentido condenar os médicos que praticam a eutanásia activa e confiar naqueles que deixam os pacientes entregues a uma morte miserável, em vez de os matarem por compaixão.

Uma crítica ao princípio da simetria moral

Se o princípio da simetria moral afirma a equivalência entre matar e deixar morrer, então os deveres de não matar e de não deixar morrer têm a mesma força. No entanto, se for possível mostrar que estes deveres não têm a mesma força, o princípio da simetria moral corre um sério risco de cair por terra. É isso o que ensaiará uma das críticas a esse princípio.

Começa-se por distinguir deveres negativos de deveres positivos. Um dever negativo é um dever de não causar dano; um dever positivo é um dever de gerar benefícios. O dever de não matar é assim um dever negativo; e o de não deixar morrer é um dever positivo de assegurar a vida de alguém. Depois são apresentados os dois casos seguintes. Um condutor, a quem falham subitamente os travões do carro, tem duas opções: mata cinco peões que atravessam a passadeira ou desvia-se deles e mata um peão que vai no passeio. Um cirurgião tem cinco pacientes e cada um deles precisa urgentemente de um órgão para sobreviver. Depois de fazer um check-up a um paciente saudável, resolve raptá-lo para fazer a colheita dos órgãos de que precisa. Os cinco doentes terminais são salvos.

O que nos faz aplaudir o condutor e execrar o cirurgião? Num caso e noutro, morre uma pessoa para que cinco se salvem. O resultado é, portanto, o mesmo. E também não há diferença nos motivos: em ambos os casos deseja-se preservar o maior número possível de vidas. Os críticos da simetria moral afirmam que a conduta do cirurgião é execrada porque é violado o dever negativo de não matar, o que não acontece no caso do condutor. Neste caso, apenas se escolhe o dano menor perante dois danos inevitáveis. Mas o cirurgião não escolhe apenas um dano: produz o dano de matar. Cumpre assim o dever positivo de assegurar a vida dos cinco pacientes à custa da violação do dever negativo de não matar. Condená-lo mostra então que os deveres negativos têm mais força do que os positivos. Segue-se que o dever de não matar tem mais força que o dever de não deixar morrer. Isto implica que a eutanásia activa e passiva não são equivalentes.

Esta crítica parece deitar por terra a simetria moral entre matar e deixar morrer. Mas não é claro que assim seja. A própria distinção entre deveres negativos e positivos pode ser um problema. Há casos ambíguos em que não se sabe com segurança que deveres são negativos e que deveres são positivos. Pense-se no caso em que parece não haver dúvidas de que é mais humano matar uma pessoa para evitar mais sofrimento desnecessário. Se admitirmos que o dano, neste caso, é o sofrimento desnecessário e evitável, e não a morte, o dever negativo é então o de não prolongar esse sofrimento. Matar é assim o dever mais forte. E parece óbvio que é ainda mais forte quando a eutanásia activa é voluntária.

A dificuldade do problema

Há quem afirme que o debate acerca da distinção entre matar e deixar morrer termina num impasse. E há ainda quem vá mais longe e afirme que a ética da eutanásia não cabe em princípios gerais, como o da simetria ou o da diferença moral. É verdadeiro que o caso dos herdeiros silencia o “ruído” dos factores extrínsecos (motivos, riscos e probabilidades, entre outros possíveis). Mas esse “ruído” emerge na maior parte dos casos reais. Em muitos desses casos é suficientemente ensurdecedor para termos de o considerar como moralmente relevante. Saber se o motivo é pôr fim a um sofrimento devastador ou aos pesados encargos de uma família é moralmente relevante. Assim como é saber se pôr fim à vida é um gesto de compaixão ou um sinal de interesses duvidosos.

Parece, portanto, que os factores moralmente relevantes que intervêm nos casos reais não cabem em princípios de carácter geral. À diversidade dos factores que intervêm nesses casos correspondem diferenças morais. Isto dá uma ideia da dificuldade do debate. Essa dificuldade, porém, não acaba aqui. Diferentes factores não introduzem apenas diferentes considerações morais — introduzem igualmente tipos diferentes de considerações.

Isto quer dizer que a eutanásia pode ser defendida ou rejeitada a partir de considerações de tipo consequencialista. No primeiro caso, defende-se a eutanásia porque ela tem a consequência de minimizar o sofrimento; no segundo, rejeita-se a eutanásia porque ela tem a consequência de diminuir a confiança nos profissionais de saúde. E também quer dizer que a eutanásia pode ser defendida ou rejeitada a partir de considerações deontológicas. No primeiro caso, defende-se a eutanásia porque ela respeita o dever de cuidar do paciente; no segundo, rejeita-se a eutanásia porque ela não respeita o princípio da santidade da vida humana. Estes são apenas alguns exemplos. Outras razões consequencialistas ou deontológicas poderiam ser apresentadas.

Temos assim argumentos do mesmo tipo de lados opostos e argumentos de tipo diferente do mesmo lado. Isto dá mais uma ideia da dificuldade do debate. Seja como for, vale a pena ensaiar uma discussão consequencialista da eutanásia. Dada a força que as intuições consequencialistas têm no debate acerca da eutanásia, essa discussão pode ser bastante útil.

O mal que a eutanásia involuntária poderá fazer

Há uma diferença entre matar alguém contra a sua vontade, ainda que para seu benefício, e matar alguém contra a sua vontade por outra razão. Mas essa diferença não é moralmente relevante. Introduzir a regra de matar para o bem de uma pessoa levaria à erosão da confiança nos médicos e em todo o sistema de saúde. Outra consequência muito provável é que a erosão da confiança se estenderia a toda a sociedade. É de admitir que uma das proibições básicas — a proibição de matar inocentes — perderia a sua força normativa. A verdade é que ninguém se sentiria seguro numa sociedade em que se mata uma pessoa para seu bem. Talvez nada nos aterrorize mais do que a “tirania que veste o manto da benevolência”.

Há uma razão consequencialista para isso: a autonomia é um elemento decisivo do bem-estar. Matar ou deixar morrer contra a vontade das pessoas até pode gerar o benefício de minimizar o sofrimento. No entanto, sem autonomia esse benefício é insuficiente para gerar bem-estar. Ninguém melhor do que o próprio sabe quais são as suas aspirações, vulnerabilidades, gostos e por aí fora. Não parece haver qualquer dúvida de que cada um é o “melhor guardião do seu próprio bem-estar”. E não só o melhor guardião, mas também o melhor arquitecto possível: ter controlo sobre a própria vida, ser o agente do que faz é uma fonte de prazer. Sem esse prazer o bem de cada um não é concebível.

O bem que a eutanásia poderá fazer

A autonomia tem mais importância moral do que o prazer ou a ausência de dor. Isto favorece a eutanásia voluntária. De facto, há mais autonomia se as pessoas têm maneira de controlar quando acabam as suas vidas. E se as pessoas têm também maneira de controlar como acabam as suas vidas, a autonomia é maior ainda. Isto, por sua vez, favorece a eutanásia activa. No entanto, levanta sérias reservas à eutanásia não voluntária. Considerações baseadas na autonomia são irrelevantes para a justificação deste tipo de eutanásia.

A autonomia é importante e, parece, decisiva; minimizar o sofrimento, além de não ser decisivo, deixa um problema para resolver. O desejo que implica — o desejo de minimizar o sofrimento — pode ser demasiado intenso numa situação de grande sofrimento. A racionalidade de uma decisão quanto ao fim da vida fica assim comprometida. Assegurar essa racionalidade é um meio de proteger a autonomia. Há doenças terminais que envolvem grande sofrimento e tipos de dor que as drogas não bloqueiam; e, se bloqueiam, é à custa de eliminar a consciência ou qualquer processo mental digno de crédito. Como assegurar nestes casos a racionalidade de decisões favoráveis à eutanásia? E, por implicação, a autonomia?

A resposta habitual defende que deve ser evitada a aplicação imediata da eutanásia. O período de espera que se segue é visto como um teste do desejo de terminar uma vida de sofrimento. Caso a vontade do paciente se mantenha de maneira que impeça qualquer dúvida razoável, parece que a eutanásia voluntária respeita a autonomia. Esse período de espera é também essencial na eutanásia passiva. O facto deste tipo de eutanásia não conduzir imediatamente à morte é irrelevante. Não havendo período de espera, retirar comida e líquidos degradaria significativamente o paciente, incluindo as suas capacidades cognitivas. Deixariam assim de estar reunidas as condições para determinar a racionalidade dos seus desejos e afirmar a sua autonomia.

Supondo que a autonomia está assegurada, minimizar o sofrimento passa então a ser o factor moralmente decisivo. A eutanásia activa, neste caso, está mais justificada. É provável que uma morte mais rápida seja uma maneira menos dolorosa de pôr fim ao sofrimento do paciente. Teria, portanto, as melhores consequências.

O mal que a eutanásia voluntária e não voluntária poderá fazer

Há casos em que a eutanásia voluntária e não voluntária não têm as melhores consequências. Para evitar estes casos, uma defesa consequencialista destas eutanásias terá de adoptar restrições.

Os casos de diagnóstico errado determinam restrições. Uma pessoa sabe que tem uma doença que, quase imediatamente, conduzirá a dores horríveis, perdas cognitivas consideráveis e, por fim, à morte. Avaliados os factos, pede então que a matem ou deixem morrer antes que a dor e a demência sejam esmagadoras. O exame post-mortem conclui que o diagnóstico estava errado. Afinal, a pessoa sofria de uma doença curável. Como evitar uma tragédia destas? Restringindo a eutanásia a casos em que a opinião de três especialistas independentes, pelo menos, não deixa dúvidas razoáveis acerca do estado do paciente.

Os casos de diagnóstico certo mas de prognóstico errado também determinam restrições. Por exemplo, os médicos têm a opinião de que não há meios que impeçam uma certa doença de levar a uma morte dolorosa. No entanto, a cura ou um analgésico eficaz podem brevemente ser descobertos. Matar ou deixar morrer, nestes casos, teria também consequências trágicas. Algumas restrições são necessárias. Uma consiste em permitir a eutanásia apenas na fase terminal da doença, quando é já muito improvável que novas curas ou tratamentos sejam eficazes. Outra defende a permissão apenas depois de uma investigação séria acerca do estado da pesquisa de curas e tratamentos para aquela doença. A eutanásia é proibida quando é realista esperar uma cura ou um novo tratamento durante a vida do paciente.

As restrições adoptadas, como é óbvio, não excluem as eutanásias em discussão. Apenas as proíbem em certos casos. Mas há um tipo de caso que pretende ir mais longe — é o caso do abuso intencional, que alguns presumem fornecer um argumento conclusivo contra qualquer tipo de eutanásia, particularmente a eutanásia activa. Os casos de diagnóstico ou prognóstico errado dependem de falhas cognitivas. Há razões para admitir que estes erros podem ser evitados. Daí apenas a adopção de restrições. O abuso intencional depende de motivações impuras. Uma vez que não se sabe muito bem como evitar estas motivações, o abuso intencional apoia frequentemente a proibição absoluta da eutanásia.

O abuso intencional pode ocorrer quando há interesse na morte do paciente. As pessoas que têm de cuidar do paciente e suportar todos os encargos que daí resultam podem ter interesse na sua morte. Os herdeiros de uma fortuna podem igualmente ter esse interesse. E o próprio hospital onde se encontra o paciente pode ser um dos herdeiros. O que fazer para evitar casos destes? A resposta está em restringir a autoridade para tomar a decisão às pessoas que, exceptuando o próprio, nada têm a ganhar, directa ou indirectamente, seja qual for a decisão final. Assegura-se assim que estas pessoas têm em consideração apenas os melhores interesses do paciente. Isso implica que a sua morte, segundo uma avaliação independente, tem as melhores consequências. Esta restrição protege o paciente contra pressões da família ou dos herdeiros.

Algumas destas restrições pressupõem que o paciente é suficientemente racional para ter a capacidade de optar. Segue-se que não podem aplicar-se à eutanásia não voluntária. Para proteger pacientes que nunca tiveram a capacidade de optar, ou que a perderam de maneira irreversível, ou não a têm de maneira estável, são necessárias restrições específicas.

Das restrições referidas para a eutanásia voluntária, mantêm-se aquelas que procuram salvaguardar a diminuição do sofrimento do paciente. Caso se aceite que o único factor moralmente relevante é minimizar o sofrimento, essas restrições são suficientes. Supondo que são atendidos os melhores interesses do paciente, isto significa que a eutanásia não voluntária é apoiada apenas por uma análise custo-benefício. Para alguns consequencialistas, porém, este tipo de análise não é suficiente para tomar decisões em todos os casos. São também necessárias restrições que procurem salvaguardar a autonomia do paciente quando se trata de alguém que já teve capacidade de optar, ou que ainda a tem mas não de maneira estável.

Uma importante restrição consiste em requerer que adultos capazes de racionalidade digam se querem a eutanásia em certas condições. Caso queiram, esse desejo terá de ser submetido a confirmação todos os anos. À partida, esta restrição salvaguarda a autonomia das pessoas em decisões que, no futuro, podem já não ser capazes de tomar.

Questões empíricas

Uma das objecções consequencialistas à eutanásia activa, seja voluntária ou não voluntária, afirma que o nível de abuso intencional pode ser muito alto. É provável que, nesse caso, o medo e a insegurança se generalizassem. Uma outra consequência aterradora destes tipos de eutanásia seria diminuir consideravelmente a força da proibição de matar inocentes contra a sua vontade. Estas eutanásias seriam então o primeiro passo numa encosta escorregadia. O último passo seria, muito provavelmente, a mais perigosa mudança normativa: a revogação prática da proibição de matar inocentes contra a sua vontade. Sem esta proibição, é provável que as sociedades se desagregassem.

Estas objecções levantam questões empíricas, e não conceptuais. Cabe a ciências sociais como a sociologia ou a psicologia social dar-lhes uma resposta. No entanto, mesmo os inquéritos mais rigorosos e sistemáticos apenas nos podem dar probabilidades. Essa resposta é assim parcialmente especulativa. Não é possível gerar certezas quanto aos resultados práticos da permissão moral da eutanásia activa voluntária e não voluntária.

Possibilidades

Uma das características mais salientes do debate acerca da eutanásia é a sua estrutura adversarial. De um lado, os seus defensores; do outro, os que a rejeitam. Há quem veja nisso um empobrecimento das possibilidades de debate. Factores centrais como a autonomia e o sofrimento têm de ser conjugados com outros factores. Parece ser essa a maneira de dar conta das dificuldades levantadas pelos casos reais. Foi disso um exemplo a defesa consequencialista da eutanásia apresentada. Na verdade, as restrições introduzidas não permitem encarar a autonomia como uma medida absoluta. E o mesmo se diga da minimização do sofrimento.

Por sua vez, do lado dos que rejeitam a eutanásia há uma maior disposição para considerar todos os custos de manter uma vida. É hoje mais provável que aceitem medidas que aceleram a morte, como desligar ventiladores e administrar opiáceos de duplo efeito. Por outro lado, os progressos da medicina paliativa dão uma resposta cada vez mais eficaz ao desejo de aliviar o sofrimento. Ainda que não seja a solução que concilia o lado contra e o lado a favor, “representa um progresso em direcção a um consenso parcial”.

Estas possibilidades sugerem uma alteração da natureza do debate. Essa alteração pode ser parcial, mas nem por isso deixa de ser importante. Em vez de cerrar fileiras em torno de fronteiras rígidas, o debate acerca da eutanásia poderá vir a desenvolver-se num continuum de posições. Alguns vêem nisto um sinal de maturidade. E também uma nova questão: com mais possibilidades em aberto, talvez a questão do sentido pessoal da vida adquira importância no debate acerca da melhor maneira de morrer.

Faustino Vaz

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