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3 de Fevereiro de 2010   Filosofia da ciência

Uma nova maneira de explicar a explicação

David Deutsch
Tradução de Desidério Murcho

Estou certo que ao longo dos cento e tal mil anos de existência da nossa espécie, e até antes, os nossos antecessores olhavam para o céu nocturno e perguntavam-se o que são as estrelas. Perguntavam-se portanto como explicar o que viam em termos de coisas que não viam. Bom, a maior parte das pessoas só se perguntavam isto ocasionalmente — como acontece hoje — quando paravam momentaneamente de se preocupar com o que normalmente se preocupavam. Mas o que as preocupava normalmente também envolvia uma ânsia de conhecer. Gostariam de saber como evitar que as suas provisões por vezes faltassem, e como poderiam descansar quando estavam cansados sem correr o risco de passar fome. Como ficar mais quente, mais fresco, mais seguro, como ter menos dor. Aposto que aqueles artistas pré-históricos das cavernas teriam adorado saber desenhar melhor. Desejavam progredir em todos os aspectos das suas vidas — tal como nós. Mas falharam quase completamente. Não sabiam como fazê-lo. Descobertas como o fogo aconteciam tão raramente que do ponto de vista de um indivíduo o mundo nunca melhorava, nada de novo se aprendia.

A primeira pista para a origem da luz das estrelas aconteceu tão recentemente quanto 1899 (radioactividade). E em quarenta anos os físicos descobriram toda a explicação, expressa como é de hábito em símbolos elegantes:

H + H → 2D + e+ + ve
e + + e- → 2γ
2D + H → 3He+γ
3He + 3He → 4He + 2H

Mas esqueçamos os símbolos — pense-se antes na imensidão de descobertas que representam. Núcleos e reacções nucleares, é claro, mas também isótopos; partículas de electricidade; antimatéria; neutrinos; a conversão da massa em energia (E = mc2); raios gama; transmutação — chegou-se a esse sonho antigo que sempre escapou aos alquimistas por via das mesmas teorias que explicam a luz das estrelas. E outros mistérios antigos. E fenómenos novos e inesperados.

Tudo isto, que foi descoberto em quarenta anos, não o foi nos cem mil anos anteriores — mas não por falta de se pensar sobre as estrelas e sobre todos os seus problemas urgentes. Chegaram até a respostas — como os mitos — que dominavam as suas vidas. No entanto, não tinham quase semelhança alguma com a verdade. A tragédia dessa prolongada estagnação não é suficientemente tida em conta, penso. Estas eram pessoas que tinham cérebros com essencialmente a mesma estrutura que acabou por descobrir todas essas coisas. Mas essa capacidade para progredir permaneceu quase sem ser usada até ao acontecimento que revolucionou a condição humana e mudou o universo — ou pelo menos devemos ter essa esperança, pois esse acontecimento foi a revolução científica, desde a qual o nosso conhecimento do mundo físico e de como o adaptar aos nossos desejos tem crescido sem parar.

O que tinha mudado? O que estavam as pessoas então a fazer pela primeira vez que fez essa diferença entre a estagnação e a descoberta rápida e sem fim? Como fazer essa diferença é sem dúvida a mais importante verdade universal susceptível de ser conhecida. Mas não há, o que é preocupante, qualquer consenso sobre o que é isso. Por isso, vou eu dizer o que é.

Terei contudo de recuar um pouco. Antes da revolução científica, as pessoas acreditavam que tudo o que de importante era conhecível já era conhecido, estando consagrado em escritos antigos, instituições e em algumas regras de senso comum genuinamente úteis — que eram contudo interiorizadas como dogmas, juntamente com muitas falsidades. Acreditavam assim que o conhecimento vinha de autoridades que, efectivamente, pouquíssimo sabiam. E portanto o progresso dependia de aprender a rejeitar a autoridade de homens de instrução, padres, tradições e governantes — razão pela qual a revolução científica tinha de ter um contexto mais lato, o iluminismo, uma revolução na maneira como as pessoas procuravam o conhecimento, tentando não se apoiar na autoridade: nullius in verba é o mote da Royal Society (fundada em 1660), “Não aceites a palavra seja de quem for”.

Mas não pode ser isto que fez a diferença. As autoridades já tinham antes sido rejeitadas, muitas vezes — e isso raramente deu origem a algo parecido à revolução científica, se é que alguma vez o fez. Na altura, o que pensavam que distinguia a ciência era uma ideia radical sobre coisas que não vemos, conhecida como “empirismo”: todo o conhecimento deriva dos sentidos. Bem… vimos que isso não pode ser verdade. Mas foi uma ajuda, promovendo a observação e a experimentação. Desde o início, contudo, era óbvio que algo havia de horrivelmente errado com isso. O conhecimento vem dos sentidos… em que linguagem? Certamente que não na linguagem da matemática, que Galileu correctamente afirmou ser a linguagem do livro da natureza. Olhe-se para o mundo: não vemos equações esculpidas nas montanhas. Se víssemos, seria porque as pessoas as tinham esculpido. (A propósito, por que não fazemos isso? Que se passa connosco?)

O empirismo é inadequado porque as teorias científicas explicam o que vemos em termos do que não vemos. E o que não vemos, temos de o admitir, não nos vem através dos sentidos. Não vemos aquelas reacções nucleares nas estrelas; não vemos a origem das espécies; não vemos a curvatura do espaço-tempo e outros universos. Mas sabemos dessas coisas. Como?

Bem, a resposta empirista clássica é a indução. O que não vemos é parecido com o que vemos. Mas não é parecido! Todos sabemos qual foi o indício decisivo de que o espaço-tempo é curvo: foi uma fotografia, não do espaço-tempo, mas de um eclipse, com um ponto num lado em vez de noutro. E os indícios a favor da evolução? Pedras e tentilhões. Universos paralelos? Uma vez mais: pontos num lugar em vez de outro, num ecrã. O que vemos, em todos estes casos, não tem qualquer semelhança com a realidade que concluímos ser a sua responsável. Só uma longa cadeia de raciocínio teórico e interpretação conecta as duas coisas.

“Ah!”, dizem os criacionistas, “Então você admite que é tudo interpretação! Ninguém alguma vez viu a evolução. Vemos pedras. Você tem a sua interpretação, nós temos a nossa. A sua vem de conjecturas, a nossa da Bíblia”.

Contudo, o que tanto os criacionistas quanto os empiristas ignoram é que, nesse sentido, também ninguém viu alguma vez uma Bíblia. O olho só detecta luz, que não percepcionamos. Os cérebros só detectam impulsos nervosos. E nem sequer os percepcionam como realmente são: nomeadamente, crepitações eléctricas. Não percepcionamos coisa alguma como realmente é. A nossa conexão com a realidade nunca é apenas percepção. Está sempre, como dizia Karl Popper, impregnada de teoria. O conhecimento científico não é derivado de coisa alguma. Como todo o conhecimento, é conjectural. Testado pela observação e não derivado dela.

Assim, terão sido as conjecturas testáveis a grande inovação que abriram os portões da prisão intelectual?

Não. Ao contrário do que habitualmente se diz, a testabilidade é comum — nos mitos e em todo o género de outros modos irracionais de pensar. Qualquer doido que afirma que o Sol irá acabar terça-feira tem uma previsão testável.

Considere-se o mito da Grécia antiga que explica as estações do ano. Hades, o deus do mundo dos mortos, rapta Perséfone, a deusa da primavera, e consegue um contrato de casamento forçado, exigindo-lhe que regresse regularmente — e deixa-a partir. E todos os anos ela sente-se magicamente obrigada a regressar. Então, a sua mãe, Deméter, deusa da Terra, fica triste, e torna-se fria e sem vida.

Este mito é testável. Se o inverno tem origem na tristeza de Deméter, então tem de ocorrer em toda a Terra simultaneamente. Assim, se os gregos antigos soubessem que a Austrália está na sua estação mais quente quando Deméter está no seu período mais triste, saberiam que o seu mito é falso. Assim, o que havia de errado com esse mito, e com todo o pensamento pré-científico? O que fez então essa diferença momentosa?

Penso que há uma coisa a que temos de dar importância. E isso implica testabilidade, o método científico, o Iluminismo e tudo isso. Eis o crucial: uma história pode ter um defeito. Não tenho em mente um defeito lógico. Tenho em mente uma má explicação (fácil variabilidade). Que quer isso dizer? Bem, uma explicação é uma asserção sobre o que está lá e não se vê mas explica o que se vê. Porque o papel explicativo do contrato de casamento de Perséfone poderia ser igualmente bem desempenhado por um número infinito de outras entidades ad hoc. Porquê um contrato de casamento e não qualquer outra razão para uma acção anual regular? Eis uma delas: Perséfone não foi libertada; fugiu. E regressa todas as primaveras para se vingar de Hades com os seus poderes primaveris. Arrefece o domínio de Hades com o seu ar primaveril, empurrando o calor para a superfície, o que cria o verão. Isto explica o mesmo fenómeno explicado pelo mito original. É igualmente testável. E contudo, o que afirma sobre a realidade é, em muitos aspectos, o oposto. Isso é possível porque os pormenores do mito original não têm qualquer relação com as estações do ano — excepto por via do próprio mito. Esta variabilidade fácil é o sinal de uma má explicação. Porque sem uma razão funcional para preferir uma de entre inúmeras variantes, é irracional preferir uma em vez das outras. Assim, para captar a essência do que faz a diferença que permite o progresso, procure-se boas explicações, explicações que não podemos fazer variar facilmente continuando a explicar os fenómenos.

Ora bem, a nossa explicação actual das estações da natureza é que o eixo da Terra está inclinado, de modo que cada hemisfério está inclinado na direcção do Sol metade do ano e na direcção oposta na outra metade. Isto é uma boa explicação. É difícil de fazer variar porque cada pormenor desempenha um papel funcional. Por exemplo, sabemos, independentemente das estações do ano, que as superfícies inclinadas na direcção oposta de uma fonte de calor aquecem menos, e que uma esfera em rotação no espaço aponta numa direcção constante. E a inclinação também explica o diferente ângulo de elevação do Sol em diferentes momentos do ano, e prevê que as estações do ano estarão desfasadas nos dois hemisférios. Se tivéssemos observado que as estações do ano são iguais, a teoria teria sido refutada. Mas o facto de ser também uma boa explicação, difícil de fazer variar, faz a diferença crucial. Se os gregos antigos tivessem descoberto as estações do ano na Austrália, poderiam facilmente fazer variar o mito para o prever. Por exemplo, quando Deméter está zangada, afasta o calor da sua presença, para o outro hemisfério, onde origina o verão. Assim, mesmo provando por observação que estavam errados e mudando a sua teoria de acordo com isso os gregos não se teriam aproximado nem um passo da compreensão das estações do ano porque a explicação que tinham era má: era fácil de fazer variar. E é só quando uma explicação é boa que importa se é ou não testável. Se a teoria da inclinação do eixo tivesse sido refutada, os seus defensores não teriam para onde ir. Nenhuma mudança fácil poderia fazer aquela inclinação axial causar as mesmas estações do ano nos dois hemisférios.

A procura de explicações difíceis de fazer variar é a origem de todo o progresso. É o princípio básico regulador do iluminismo. Assim, na ciência, duas abordagens falsas prejudicam o progresso. Uma delas é bem conhecida: teorias que não são testáveis. Mas o mais importante são as teorias sem poder explicativo. Sempre que nos dizem que uma dada tendência estatística irá continuar mas não nos dão uma explicação difícil de fazer variar do que causa essa tendência, estão-nos a dizer que foi um feiticeiro que as fez. Quando nos dizem que as cenouras têm direitos humanos porque partilham metade dos nossos genes, mas não nos dizem como a percentagem de genes confere direitos, é o feiticeiro. Quando alguém anuncia que o debate natureza/cultura foi resolvido porque há indícios de que uma dada percentagem das nossas opiniões políticas são herdadas geneticamente, mas não nos explicam como os genes causam opiniões, nada estabeleceram — estão a dizer que as nossas opiniões são causadas por feiticeiros (presumivelmente também as suas próprias opiniões o são).

Que a verdade consiste em asserções difíceis de fazer variar sobre a realidade é o facto mais importante do mundo físico. É um facto que, em si, não se vê; e no entanto, é impossível fazê-lo variar.

David Deutsch
Transcrição de Desidério Murcho da palestra apresentada pelo autor no TED.
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