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31 de Outubro de 2006   Lógica

Poderoso instrumento de estudo

Paulo Margutti
Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos
direcção de João Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Gonçalves Gomes
São Paulo: Martins Fontes, 2006, 803 pp.

Publicada inicialmente em Portugal, em 2001, pela Editora Gradiva, de Lisboa, sob a organização de João Branquinho e Desidério Murcho, a Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos surge agora pela Editora Martins Fontes, como resultado de uma colaboração entre os mencionados autores portugueses e o brasileiro Nelson Gonçalves Gomes, da Universidade de Brasília. Em sua versão lusitana, a Enciclopédia contava com 590 verbetes, alguns dos quais escritos por colaboradores de outras nacionalidades, escolhidos pelos organizadores. Para a versão luso-brasileira, a Enciclopédia foi revista e aumentada. Os verbetes originais foram todos mantidos, embora alguns tenham sido ligeiramente alterados ou mesmo totalmente revistos. Foram acrescentados dezesseis verbetes, todos escritos por colaboradores brasileiros. Desse modo, a Enciclopédia conta agora com 606 verbetes, cuja autoria se distribui por vinte e dois autores portugueses, quinze brasileiros, quatro ingleses, três norteamericanos e um holandês. Como se pode ver, trata-se de uma colaboração de caráter eminentemente internacional, com predominância luso-brasileira.

De acordo com a explicação dada por Desidério Murcho e João Branquinho no Prefácio da edição luso-brasileira, a obra abrange, de maneira introdutória, mas suficientemente rigorosa, diversos assuntos pertencentes à lógica, teoria do conhecimento, metafísica, filosofia da mente, filosofia da ciência e filosofia da linguagem. Todos se encaixam na área de estudos que atualmente têm sido denominados lógico-filosóficos e que se referem não só a questões sobre a natureza da linguagem, da mente e da cognição, mas também a questões sobre as conexões das mesmas com o não-mental e o extralingüístico. Esses estudos são lógicos em virtude do apelo constante a conceitos, métodos e técnicas provenientes da lógica; eles são filosóficos em virtude do elevado grau de generalidade e abstração exigido para o tratamento adequado das questões envolvidas. Os autores lusitanos sugerem que uma boa maneira de se obter uma visão sinótica do território disciplinar mencionado é extrair uma lista dos tópicos mais importantes que foram discutidos no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. Esse procedimento permitirá perceber que os estudos lógico-filosóficos incluem assuntos relativos tanto à lógica propriamente dita como a determinadas disciplinas filosóficas, todos eles relevantes para uma investigação filosófica a respeito da natureza da linguagem, do raciocínio e da cognição. Dentre as referidas disciplinas filosóficas, destacam-se aquelas que surgiram originariamente como extensões da lógica — por exemplo, a filosofia da lógica, a filosofia da matemática e parte da filosofia da mente mais recente — e aquelas que tiveram seu desenvolvimento estimulado por avanços no interior da lógica — por exemplo, certas partes da metafísica atual, da ontologia e da teoria do conhecimento.

Os autores da Enciclopédia declaram ter tido uma grande preocupação em abranger de forma exaustiva todas as noções e princípios básicos da lógica, no que se refere à sua versão aristotélica e à sua versão clássica de primeira ordem. Os demais verbetes relativos à lógica foram incluídos com base no critério de sua relevância para a investigação lógico-filosófica. Daí, por exemplo, a grande quantidade de verbetes ligados à teoria dos conjuntos e seus problemas.

Ainda no Prefácio, os organizadores portugueses destacam duas características da Enciclopédia. Em primeiro lugar, eles enfatizam a sua dimensão interdisciplinar, característica marcante dos estudos lógico-filosóficos, principalmente em suas conexões de mão dupla com as ciências cognitivas, que envolvem a lingüística teórica, a psicologia cognitiva e do desenvolvimento, as ciências da computação, a inteligência artificial, etc. Em segundo lugar, eles enfatizam sua preocupação em tratar as teorias e problemas do ponto de vista de seu valor intrínseco, sem dar muita atenção aos seus autores ou ao contexto histórico de seu aparecimento. Em virtude disso, a obra não inclui verbetes a respeito de grandes personalidades ligadas à temática estudada, embora tal fato não impeça que as principais idéias dessas pessoas sejam contempladas.

Na Apresentação da edição brasileira, Nelson Gomes afirma que, a partir dos anos 1970, a filosofia passou por um amplo processo de profissionalização no Brasil, através da implantação da política de bolsas de doutorado. Esse processo estimulou o aparecimento e o desenvolvimento de programas de pós-graduação em filosofia. A produção intelectual na área aumentou, assim como o número de colóquios especializados. Desse modo, a participação de autores brasileiros na Enciclopédia tem como objetivo mostrar alguma coisa do que tem sido recentemente produzido no país nessa área. A obra poderá, assim, servir como um estímulo para que a contribuição da filosofia profissional no Brasil aumente não apenas na quantidade, mas também, e principalmente, na qualidade. Além disso, enquanto resultado de uma cooperação internacional em que predominam lusitanos e brasileiros, a Enciclopédia revela uma parte significativa daquilo que se pesquisa em Portugal e no Brasil na área em questão.

A pluralidade da autoria se reflete na composição dos verbetes. Alguns ocupam poucas linhas, ao passo que outros se estendem por muitas páginas. No mesmo espírito, alguns contêm bibliografias pormenorizadas, outros não. Mas o espírito da Enciclopédia, tal como estabelecido no Prefácio, prevalece em todos os casos: a importância do assunto no contexto dos estudos lógico-filosóficos determina o tipo de tratamento dado ao verbete; a busca da clareza e da acessibilidade a um público não especializado constitui o critério para a linguagem utilizada em cada verbete. Em virtude disso, o apelo ao formalismo lógico-matemático foi reduzido a um mínimo indispensável para o leitor não especializado.

Dentre os verbetes que recebem um tratamento mais alentado, destacam-se os seguintes: a priori, acontecimento, análise, atitude proposicional, atomismo lógico, atualismo, ceticismo semântico, princípio da composicionalidade, compromisso ontológico, consciência, teoria das contrapartes, de dicto/de re, regras de dedução natural, designador rígido, dilema do prisioneiro, disposição, estado de coisas, estado mental, existência, argumentos sobre a existência de Deus, filosofia da linguagem comum, funcionalismo, indexicais, intuicionismo, lógica dialógica, lógica paraconsistente, lógicas relevantes, máquina de Turing, números e conjuntos, pensamento, programa de Hilbert, teorias da referência, relações, sintaxe lógica, teleo-semântica, teoria da decisão, teoria da relatividade, teoria dos conjuntos, tese de Church, universal, teorias da verdade.

Para que se tenha uma idéia do tipo de tratamento dado aos assuntos mais relevantes, consideremos de maneira resumida o verbete acontecimento, de autoria de João Branquinho. O texto se inicia com uma explicação do que é um acontecimento ou evento, como sendo algo que se dá em determinada região do espaço ao longo de determinado período de tempo. Exemplos de acontecimentos, que podem ser de curta ou longa duração, são a erupção do Etna, o jogo no qual Pelé fez seu milésimo gol, o assassinato de John Kennedy, o erguer do braço direito para chamar um táxi, etc. Um acontecimento pode ser tomado como tipo ou como espécime. Neste ponto, a Enciclopédia remete ao verbete tipo-espécime, que explica a conhecida distinção entre type e token. Acontecimentos-tipo são entidades universais, repetíveis e abstratas, ou seja, não localizáveis no espaço-tempo, como, por exemplo, a Maratona Anual de Boston. Com efeito, essa expressão se refere a algo que todas as realizações da maratona na cidade de Boston têm em comum. Desse modo, um acontecimento-tipo pode ser visto como uma certa classe de acontecimentos específicos. Acontecimentos-espécime são entidades particulares, irrepetíveis e concretas, ou seja, localizáveis no espaço-tempo, como, por exemplo, a edição de 1997 da Maratona de Boston. A discussão prossegue concentrando-se nos acontecimentos-espécime, dada a sua relevância filosófica. Tais acontecimentos podem ser classificados em gerais e particulares, ou em simples e complexos, ou em contingentes e não-contingentes. Na explicação e discussão dessas classificações, a Enciclopédia remete aos verbetes conectivo, uso atributivo e estados de coisas. O tópico dos acontecimentos é importante para a filosofia, em particular para a metafísica, porque a relação de causalidade é em geral tida como existindo entre acontecimentos. Assim, uma concepção adequada de causalidade depende de uma concepção adequada de acontecimento, principalmente no que diz respeito à questão filosófica da causalidade mental, que geralmente é formulada num vocabulário de acontecimentos. No fisicismo, por exemplo, as identidades psicofísicas podem ser entendidas de duas maneiras, que dependem da noção de acontecimento envolvida. Para o fisicismo tipo-tipo, as propriedades de acontecimentos-tipo de caráter mental são identificadas com propriedades de acontecimentos-tipo de caráter físico; para o fisicismo espécime-espécime, as propriedades de acontecimentos-espécime de caráter mental são identificadas com propriedades de acontecimentos-espécime de caráter físico. Na discussão desse ponto, a Enciclopédia remete aos verbetes problema da mente-corpo e fisicismo. Os tópicos centrais da filosofia dos acontecimentos parecem ser dois: a) o problema da existência — existem de fato acontecimentos, de modo que devemos admitir tal categoria de entidades em nossa ontologia? b) o problema da identidade — que critérios devemos utilizar para individualizar acontecimentos? Com respeito ao problema da existência, Davidson procura estabelecer a necessidade de admissão dos acontecimentos em nossa ontologia através da análise da forma lógica de determinado fragmento de frases da linguagem natural. Desse modo, uma frase como “Claudia Schiffer caiu aparatosamente na cozinha” pode ser interpretada como possuindo a seguinte forma lógica: “existe um evento e tal que e é uma queda e e foi dada pela Schiffer e e foi aparatosa e e ocorreu na cozinha”. Como a forma lógica dessa frase é considerada responsável pelo seu papel inferencial num dado argumento e como a sua verdade depende do fato de que entidades como acontecimentos estejam entre os valores das variáveis quantificadas, devem existir acontecimentos. Mas nem todo mundo aceita esse gênero de argumento. Pode-se, por exemplo, ser cético em relação à doutrina davidsoniana de que uma identificação das propriedades centrais da linguagem nos dê uma identificação das características centrais da realidade. Alternativamente, pode-se, de maneira mais modesta, contestar a análise lógica proposta ou então rejeitar o critério de identidade para eventos. Nesse ponto, a Enciclopédia remete ao verbetes compromisso ontológico e existência. Com respeito ao problema da identidade, é possível reconhecer duas perspectivas principais. A primeira é a de Davidson, para quem os acontecimentos são entidades individuais concretas, localizadas no espaço-tempo, semelhantes aos objetos materiais. Em virtude disso, acontecimentos e objetos podem ser identificados por uma diversidade de descrições. O princípio de individuação de eventos sugerido por Davidson é o seguinte: e e e' são o mesmo acontecimento-espécime se e somente se ambos ocupam a mesma região do espaço durante o mesmo tempo. Essa proposta não permite discriminar entre acontecimentos de maneira suficientemente fina. Por exemplo, se, num dado momento, eu espirro e simultaneamente levanto o braço e, em seguida, um táxi se detém para eu entrar, não podemos dizer o que diferencia o evento de espirrar do de levantar o braço. Isso permitiria concluir que o meu espirro causou a parada do táxi, o que não parece ser verdadeiro. A segunda perspectiva é a de Jaegwon Kim, para quem os acontecimentos são entidades abstratas, mais semelhantes a proposições do que a objetos materiais. Em virtude disso, acontecimentos podem ser identificados com estados de coisas, ou seja, com exemplificações de atributos por seqüências de objetos em ocasiões dadas. Desse modo, o assassinato de César por Bruto no momento t pode ser identificado com o estado de coisas representado pelo quádruplo ordenado <Bruto, César, assassinar, t>, em que assassinar é a relação diádica de assassinar. A proposta de Kim permite uma individuação de acontecimentos mais fina do que a de Davidson, mas impõe restrições severas sobre as descrições que podem ser usadas corretamente para identificar um dado acontecimento. Por exemplo, “o assassínio de César por Bruto” e “o esfaquear de César por Bruto” devem ser considerados acontecimentos diferentes, sendo o primeiro representado pelo quádruplo ordenado <Bruto, César, assassinar, t> e o segundo, pelo quádruplo <Bruto, César, esfaquear, t>. Mas essa proposta também tem dificuldades. Por um lado, ela discrimina entre acontecimentos de maneira demasiadamente fina e, por outro, ao conceber os acontecimentos como entidades abstratas, ela os torna inadequados para constituir uma relação causal. Nesse ponto, a Enciclopédia remete aos verbetes proposição e atributo.

O verbete acima parafraseado foi escolhido em virtude de sua importância, tanto pela riqueza e novidade do assunto como pelas suas ligações com outras disciplinas. Como se pode ver, o tratamento do tópico apresenta os aspectos mais importantes relativos à problemática dos eventos quando tratados do ponto de vista lógico-filosófico. É verdade que, em alguns momentos, há imperfeições. Por exemplo, a apresentação da forma lógica da sentença que descreve a queda de Cláudia Schiffer troca inadvertidamente e ocorreu na cozinha por e ocorreu no banheiro. Além disso, a expressão acontecimento-espécime é subitamente trocada por acontecimento-exemplar, que não tinha sido antes definida e que poderia ser confundida com acontecimento-tipo, em virtude das conotações da palavra exemplar. Mesmo assim, os principais aspectos ligados à problemática são tratados, como, por exemplo, a distinção entre tipo e espécime de acontecimento, a pluralidade das classificações dos eventos, a importância do tema dos eventos para a filosofia, as ligações do tema com a questão da causalidade e com o problema da identidade psicofísica, os principais problemas filosóficos relativos aos eventos, a ontologia davidsoniana dos eventos e a contraposição entre os critérios de Davidson e os de Kim para a identificação de eventos. Através do procedimento de remeter a outros verbetes, são exploradas as ligações do tema dos eventos com outros tópicos filosoficamente relevantes, como, por exemplo, o usos atributivo e referencial das descrições definidas, os estados de coisas, o problema da relação mente-corpo, a posição do fisicismo, a questão do compromisso ontológico, a questão do critério quiniano de existência, a questão da natureza das proposições e a questão dos atributos. Além disso, e esse é um aspecto crucial, a linguagem é suficientemente clara e rigorosa para que o leitor possa, por si mesmo, sanar as possíveis dúvidas. E, embora o texto tenha caráter introdutório, todos os aspectos do problema são tratados de maneira clara e adequada. Certamente, após a leitura do verbete, o leitor terá uma idéia bastante completa da candente questão relativa à ontologia dos eventos, bem como dos principais pensadores envolvidos. Além disso, a bibliografia apresentada ao final relaciona os principais autores e obras que trataram do assunto, como Bennett, Davidson, Horgan, Kim, Parsons e Strawson. Os demais verbetes da Enciclopédia seguem um padrão semelhante, de modo que o tratamento dado ao problema dos acontecimentos pode servir como ilustração da maneira elegante, sistemática, rigorosa e exaustiva com que os tópicos são tratados, apesar de seu caráter introdutório.

Numa varredura geral da obra, foi possível constatar a falta de alguns verbetes relevantes para a temática lógico-filosófica, como, por exemplo, fisicismo não-reducionista, epistemologia naturalizada, semântica behaviorista, significado-estímulo, postura intencional, postura de projeto, postura física, mito do dado, mito de Jones. Isso, entretanto, fica mais como uma sugestão de ampliação das próximas edições da Enciclopédia, pois os seiscentos e seis verbetes da versão atual são mais que suficientes para cumprir sua função a contento.

Num balanço geral, pode-se dizer que a versão ampliada da edição luso-brasileira da Enciclopédia consegue atingir todos os objetivos a que se propõe. Com efeito, ela abrange de forma exaustiva os princípios e noções básicas da lógica, tanto em sua versão aristotélica como fregiana, ela lida de maneira adequada com o caráter interdisciplinar da temática lógico-filosófica, ela dá mais importância aos problemas teóricos em si mesmos, sem contudo deixar de mencionar os grandes autores ligados a tais problemas e, finalmente, ela fornece uma boa idéia a respeito das pesquisas realizadas nessa temática em Portugal e no Brasil. Desse modo, a Enciclopédia constitui um poderoso instrumento de estudo para todos aqueles que venham a pesquisar na área, fornecendo um excelente material para os interessados em filosofia, letras, lingüística, computação, matemática e psicologia. Cumpre parabenizar os organizadores e a Martins Fontes pela brilhante iniciativa, que certamente envolverá renovadas edições dessa obra.

Paulo Margutti

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ISSN 1749-8457