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21 de Maio de 2009   Filosofia da ciência

Um diálogo sobre o falsificacionismo

Desidério Murcho

Paulo — Gostei muito da aula de hoje. Achei a teoria de Popper fascinante! A ideia de dar importância ao que se pode provar que é falso em vez de dar importância ao que se pode provar que é verdadeiro é realmente brilhante.

Rita — Pois... eu não fiquei assim tão bem impressionada. Gostei da aula; a professora é o máximo. Mas a teoria de Popper parece-me subtilmente errada, ainda que aponte numa direcção correcta.

Paulo — Que queres dizer com isso?

Rita — É um pouco como ter uma teoria da queda dos objectos. Como realmente os objectos caem, parece logo que a teoria é verdadeira — porque tem de ter um grão de verdade, já que nos diz algo que é óbvio. O problema é saber se, em termos mais precisos e rigorosos, a teoria é realmente verdadeira.

Paulo — Sim, estou a ver a analogia. Uma teoria pode ser falsa apesar de ter aspectos verdadeiros, exactamente como acontece com a teoria da gravitação de Newton. Mas não vejo como aplicas a analogia ao falsificacionismo de Popper.

Rita — Bom, isto vai levar algum tempo a discutir. E que tal se formos para casa do Jorge? Sei que ele já estudou esta matéria e que gosta de discutir ideias.

Paulo — OK, vou telefonar-lhe para saber se está em casa.

...

Jorge — Viva, pessoal! Que história é essa de andarem a pôr Popper em causa? Não sabem que os grandes filósofos nunca se enganam?

Rita — Tolices, claro que se enganam e erram, como toda a gente. Apenas têm ideias mais sofisticadas do que as outras pessoas. Tal como os cientistas se enganam, e os poetas e os místicos. Ainda está para nascer o primeiro ser humano que não erre.

Jorge — Eu sei! Disse isto só para me meter contigo porque já sabia que ias responder isso. O que estavam vocês a discutir relativamente a Popper?

Paulo — Estávamos a discutir a falsificabilidade, pois tivemos uma aula muito boa sobre isso. Tu já estudaste isso, certo? A mim pareceu-me que a falsificabilidade é uma ideia brilhante, e mata dois coelhos com uma cajadada: permite resolver, ou melhor, dissolver, o problema da indução, e resolver o problema da demarcação.

Jorge — É de facto uma ideia notável. Vale a pena recordar o que está em causa nos dois casos. No primeiro, trata-se de defender que as ciências empíricas como a biologia ou a física não dependem da indução — o que é uma sorte porque Popper pensa que a indução é uma forma errada de raciocínio, ou pelo menos uma forma irracional de raciocinar, dado ser impossível (pensa ele) justificar o raciocínio indutivo.

Rita — Bem explicado. Popper considera, por razões que não são completamente claras para mim, que Hume tem a última palavra no que respeita à indução: é um tipo de raciocínio insusceptível de justificação, ao contrário da dedução. Não fiquei nem um pouco convencida com o problema da indução tal como Hume o levanta, e por isso também não fiquei muito impressionada com a tentativa de Popper de conceber as ciências empíricas sem recorrer à indução. A meu ver a indução é crucial e é justificável, mesmo que tal justificação não seja tão óbvia como acontece na dedução.

Jorge — Não tenho assim tanta certeza na justificabilidade da indução, mas compreendo o teu ponto de vista. Em qualquer caso, a ideia de Popper é explicar o raciocínio das ciências empíricas sem recorrer à indução. Se conseguir fazer isso, dissolveu, do seu ponto de vista, o problema da indução.

Paulo — Sim, isso é claro para mim. No fundo, trata-se de pôr um modus tollens no lugar da indução. Por indução, raciocinamos assim: “Todos os corvos que vi até hoje são pretos; logo, todos os corvos são pretos”. Por modus tollens, raciocinamos assim: “Se todos os corvos forem pretos, nenhum corvo pode ser branco; mas eis um corvo branco; logo, nem todos os corvos são pretos”. Basta um corvo branco para provar que nem todos os corvos são pretos, mas nenhum número de corvos pretos observados pode provar que todos os corvos são pretos.

Rita — Exactamente. A ideia é que não podemos verificar que todos os corvos são pretos porque a indução é uma treta; mas podemos falsificar que todos os corvos são pretos dedutivamente, observando um corvo branco. E Popper usa depois a mesma ideia de falsificabilidade para distinguir a ciência da pseudociência — práticas que se fazem passar por ciência, mas que não o são.

Jorge — Popper metia no saco das pseudociências a psicanálise e o marxismo. Podemos não concordar que a psicanálise ou o marxismo sejam pseudociências, mas concordar com o critério de falsificabilidade. Penso que agora não queremos discutir estes polémicos casos particulares, mas apenas discutir a falsificabilidade — quer como critério de demarcação entre ciência e pseudociência, quer como explicação do modo como se sustenta teorias científicas.

Paulo — É isso mesmo. Eu achei brilhante a ideia de falsificação, nos seus dois papéis. Pareceu-me uma posição muitíssimo convincente, mas para minha surpresa — ou deveria dizer não surpresa? — a Rita pensa que Popper meteu o pé na argola algures.

Jorge — Porquê não surpresa?

Paulo — Porque a Rita está sempre a levantar objecções e contra-exemplos às ideias dos filósofos que estudamos nas aulas.

Rita — E qual é o problema de fazer isso?

Paulo — Na verdade, nenhum. Acho apenas que és mais rápida do que eu a ver dificuldades. Ainda eu estou maravilhado com uma teoria ou argumento que me parece muitíssimo convincente e vens logo tu e estragas-me a festa.

Rita — Não quero estragar a festa seja de quem for, mas fazer filosofia não é apreciar a beleza das ideias dos filósofos, mas sim avaliá-las criticamente. Não é isso que o professor está sempre a dizer?

Paulo — Claro! Estava só a brincar contigo. A verdade é que aprendo muito com as tuas objecções e contra-exemplos, porque parece que quando levantamos dificuldades às ideias de um filósofo as compreendemos muito melhor!

Jorge — Concordo inteiramente: levantar dificuldades às ideias dos filósofos é a melhor maneira de as compreendermos. Estou por isso com curiosidade de ver que dificuldades a Rita levantou desta vez. Explica lá.

Rita — É relativamente simples. A objecção tem duas partes, intimamente relacionadas. Primeiro, todos podemos concordar, incluindo Popper, que se uma dada afirmação, conjectura ou algo do género for verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa.

Jorge — Espera aí. Que queres dizer com “afirmação, conjectura ou algo do género”? Queres dizer teoria, argumento, proposição — o quê?

Rita — Não, argumento não pode ser, pois os argumentos não podem ser verdadeiros nem falsos, mas apenas válidos ou inválidos — ou já te esqueceste das aulas de lógica? Com “algo do género” quero dizer seja o que for que possa ter valor de verdade, ou seja, que possa ser verdadeiro ou falso. E entre as coisas que podem ter valor de verdade estão afirmações, proposições e teorias. Para o falsificacionismo não se exige qualquer uma delas em particular; o falsificacionismo aplica-se, se a teoria de Popper for verdadeira, a qualquer dessas afirmações ou conjecturas que os cientistas fazem e que pretendem ter carácter científico. São afirmações como “a atmosfera de Marte é composta pelos gases tal e tal”; ou afirmações mais gerais, como “a velocidade da luz é tal e tal”; ou afirmações ainda mais gerais e matematizadas, como a lei da queda dos corpos.

Jorge — OK, já compreendi. E qual é a tua primeira objecção?

Rita — Simples. Pensa numa proposição qualquer desse género. Como eu sei que a velocidade da luz é de cerca de trezentos mil quilómetros por segundo podemos usar essa para já como exemplo. Chamemos P a essa afirmação.

Paulo — Lá estás tu com os pês e os quês. Vamos ver se não me fazes é meter os pés pelas mãos com os pês e os quês!

Rita — Os pês e os quês servem apenas para facilitar a discussão. Em vez de estar sempre a falar da mesma afirmação, digo só P e vocês já sabem do que estou a falar. Portanto, falemos de P. Imaginemos que P é realmente verdadeira. Claro que hoje se pensa que é verdadeira — foi o resultado de medições cuidadosas. Mas é claro que ninguém mediu a velocidade de todos os feixes de luz do universo. Mediu-se apenas, muito cuidadosamente, a velocidade de alguns feixes de luz. O indutivista dirá que sabemos por indução que todos os feixes de luz têm essa velocidade. Popper dirá que P é apenas uma boa conjectura, porque ainda não foi refutada, mas que só é boa como conjectura científica genuína precisamente porque pode ser refutada, e não porque possa ser verificada.

Paulo — Claro, se P pudesse ser verificada teria de ser indutivamente, mas Popper recusa tal coisa.

Jorge — Este é um aspecto que me parece curioso, se me permitem a interrupção. É que os cientistas que hoje aplaudem Popper não vêem que eles mesmos não aceitam Popper. A verdade é que nenhum cientista empírico passa sem a indução; e em alguns casos os estudos e cálculos estatísticos e probabilísticos — que são formas de indução — são cruciais na ciência. De modo que muita da aceitação das ideias de Popper que se vê entre os cientistas me parece fruto de ignorância ou desatenção. Não é pura e simplesmente viável ser um cientista empírico — um biólogo, um físico, um astrónomo — e fazer trabalho de campo, ao invés de mero trabalho de tratamento de dados, e não usar a indução crucialmente. A indução parece estar no centro da teorização científica.

Rita — Bom, isso não sei, pois não sei muito sobre a actividade real, diária, dos cientistas. Mas, a julgar pela história da ciência, a indução parece realmente central nas ciências empíricas. Todavia, o meu argumento não depende dessa observação histórica, que poderá ser verdadeira ou falsa. Depende apenas, num primeiro passo, de reconhecer que se P é verdadeira, nunca se irá realmente falsificar P.

Paulo — Não vejo porquê. Podemos medir a velocidade da luz e descobrir que afinal não era como pensávamos que era.

Rita — Mas isso quer apenas dizer que P era falsa desde o início. Ora, o que eu estou a dizer é que se P for verdadeira, não iremos jamais descobrir que é falsa. Como raio se pode descobrir que é falso algo que é verdadeiro?

Paulo — Parece-me que estás a compreender mal as coisas. Claro que Popper não é tão idiota que pense que podemos descobrir que é falso algo que é verdadeiro. Se P é verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa. Mas a questão é que não sabemos se P é verdadeira ou falsa. P pode ser falsa, ainda que pensemos que é verdadeira. E o que conta para a falsificabilidade é isso mesmo.

Rita — Isso parece-me ridiculamente fraco, como teoria. Nesse caso, Popper estaria apenas a dizer que sempre que pensamos que uma proposição é verdadeira, podemos estar enganados porque a proposição é falsa. Dificilmente isso poderia ser encarado como um critério de demarcação ou sequer como uma maneira de dissolver o problema da indução. A ideia de Popper não é apenas essa banalidade de que podemos estar enganados. A ideia de Popper é que a proposição, ela mesma, pode ser falsa e é ao facto de ela poder ser falsa que ele chama falsificável.

Jorge — Sim, neste aspecto tens razão. A ideia de Popper é contrastar proposições que podem ser falsas com proposições que não podem ser falsas. Chama-se a isso proposições contingentemente verdadeiras e proposições necessariamente verdadeiras. A ideia é que verdades analíticas, como “Nenhum solteiro é casado”, ou aritméticas, como 7+5=12, não poderiam ser falsas — são necessariamente verdadeiras. Ao passo que as afirmações científicas empíricas sobre a velocidade da luz, etc., são contingentes, sejam elas verdadeiras ou falsas. Isto é, são afirmações que, mesmo que sejam verdadeiras, poderiam ter sido falsas se o mundo fosse diferente do que é; e mesmo que sejam falsas, poderiam ter sido verdadeiras se o mundo fosse diferente do que é.

Paulo — Ah, OK, eu fiz uma confusão. Agora estou a lembrar-me que a professora até falou nisso. Ela disse que Popper pensava que o que acontecia com as afirmações pseudocientíficas é que nem eram analíticas nem falsificáveis, o que as colocava num limbo de falta de cientificidade, digamos assim. Do ponto de vista de Popper as únicas afirmações que não são falsificáveis sem perder valor cognitivo são as analíticas — mas as afirmações da pseudociência são igualmente não-falsificáveis, sem contudo serem analíticas, e é por isso que são pseudocientíficas. Para serem científicas, dado que não são analíticas, teriam de ser falsificáveis.

Rita — Muito bem, agora estamos a avançar. Ora bem, Popper não defende a ideia ridícula de que a falsificabilidade é apenas a nossa falibilidade. Que podemos estar enganados sempre que pensamos que uma afirmação é falsa é muito diferente de dizer que uma dada afirmação pode ser falsa, ainda que seja verdadeira. O primeiro passo do meu argumento é forçar a compreensão deste aspecto crucial, chamando a atenção para isto: se P for realmente verdadeira, nunca iremos descobrir que é falsa.

Paulo — Certo, agora já entendo. Claro, se P é verdadeira nunca descobriremos que é falsa. O que se passa é que P, mesmo sendo verdadeira, poderia ter sido falsa — isto é, é contingentemente verdadeira, ao contrário das verdades analíticas.

Rita — E é aqui que entra a segunda parte do meu argumento. Como te lembras, P diz respeito à velocidade da luz. Popper está a pressupor que as proposições desse género são contingentes. E se não forem contingentes?

Jorge — Diabo! Nunca tinha pensado nisso. E eu até estudei algumas ideias de filósofos como Putnam e sobretudo Kripke ou Plantinga, que defendem que há verdades necessárias que não são analíticas! Agora apanhaste-me, Rita. Esses e outros filósofos defendem a ideia aristotélica segundo a qual nem todas as proposições empíricas são contingentes, como se pensava tipicamente até ao século XX. Os seus argumentos são complicados, mas não tanto assim. E são muitíssimo convincentes. Todavia, não me parece uma boa estratégia usar uma teoria filosófica como objecção a outra teoria filosófica. Popper pode limitar-se a recusar as ideias desses filósofos.

Rita — O meu argumento não se baseia numa teoria contra outra. O meu argumento só mostra que Popper pressupõe a contingência de P, e que se P não for contingente, a teoria dele cai por terra — ou tem de ser de tal modo enfraquecida que se torna desinteressante.

Paulo — Bolas, Rita. Agora estou a ver o que estás a fazer. Estás a atacar um pressuposto cego de Popper, digamos assim. Mas isso é precisamente o que muitos filósofos fazem quando criticam outros filósofos. Lembro-me de ter estudado as críticas de Kant ao argumento ontológico de Anselmo e de Descartes — a crítica de Kant, se bem a entendi, é que ambos pressupõem sem pensar que a existência é um predicado. E tu estás a dizer que Popper pressupõe sem pensar que P é contingente. Boa!

Rita — Não afirmo que Popper pressupõe algo sem pensar, porque não faço ideia do que pensava ele. O que afirmo é que a teoria dele precisa desse pressuposto, porque sem ele se torna uma teoria banal. A ideia é a seguinte: imaginemos que P é verdadeira. O primeiro passo é mostrar que a teoria de Popper se aplica explicando que P é verdadeira, mas poderia ser falsa — e que é precisamente porque P poderia ser falsa que é científica, dado não ser analítica. Aplicando a ideia ao problema da indução, nunca podemos provar que P é falsa, se for verdadeira, mas poderíamos provar que é falsa se fosse falsa. O segundo passo consiste em mostrar que se P for necessária, apesar de não ser analítica, não é pura e simplesmente falsificável. “Falsificável” quer dizer “pode ser falsificada”; mas é evidente que P só pode ser falsificada se pode ser falsa.

Jorge — Hum... Espera aí. Por que estás a supor que o tal pode não se refere apenas a nós, em vez de se referir ao valor de verdade de P? Com certeza podemos enganar-nos e pensar que P é verdadeira e depois descobrir que é falsa. E portanto Popper poderia dizer que é nesse sentido que diz que P pode ser falsificada. Nesse caso, não estaria comprometido com a ideia de que P é realmente contingente.

Rita — Concedo que essa é uma resposta possível. Na verdade, penso que essa é a única resposta possível. Mas é terrivelmente má. Pois se “falsificável” quer dizer apenas “podemos estar enganados”, a teoria de Popper é uma banalidade. Claro, podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira. E depois? Como poderia isto constituir um critério de demarcação entre a ciência e a pseudociência? Como poderia isto constituir a sua famosa dissolução do problema da indução? Uma pessoa quer distinguir a biologia da bruxaria e o critério é que num caso, mas não no outro, podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira? Isto é ridiculamente anémico. E no caso do problema da indução é ainda pior. Queremos saber o que justifica a nossa crença nas conclusões aparentemente indutivas. E vem Popper e explica-nos que na verdade não chegámos a P por indução; P é apenas uma conjectura e o que justifica a nossa crença nessa conjectura é que podemos estar enganados quando pensamos que P é verdadeira? Isto nem sequer conta como uma teoria filosófica sobre o problema da indução. É apenas uma tolice.

Jorge — Estou estupefacto. Mas parece-me que tens razão. Pelo menos, não estou a ver como se poderia continuar a defender o falsificacionismo, quer como critério de demarcação, quer como solução do problema da indução.

Paulo — A defesa parece-me simples: defender que as proposições empíricas das ciências são contingentes, sejam elas verdadeiras ou falsas.

Rita — Sim, a defesa é mesmo essa. Mas enveredar por essa defesa é aceitar o meu argumento. É aceitar que realmente a teoria de Popper exige que todas as proposições empíricas das ciências são contingentes. E isso era tudo o que eu queria defender. Não defendi ainda que algumas proposições empíricas das ciências não são contingentes. Nem preciso defender tal coisa. Tudo o que defendo é a seguinte tese condicional: se algumas proposições empíricas das ciências não forem contingentes, a teoria de Popper é falsa. Estabelecer a verdade da antecedente desta condicional é uma discussão diferente, e podemos deixá-la para outro dia.

Paulo — Estou siderado. Bom, só falta explicares uma coisa.

Rita — O quê?

Paulo — Disseste que a teoria de Popper está errada nos pormenores, mas que aponta na direcção correcta e que é isso que faz os cientistas pensarem que ele tem razão. O que querias dizer?

Rita — Repara: a teoria de Popper não é realmente uma teoria que nos diga que devemos procurar contra-exemplos às nossas teorias e afirmações. Isso é algo que decorre da teoria, digamos. Mas é essa banalidade que é verdadeira: não se pode ser epistemicamente virtuoso quando se é casmurro. E ser casmurro é recusar-se a aceitar objecções e contra-exemplos e dados contrários ao que se afirma. Quando não se é epistemicamente virtuoso, mas também não se é epistemicamente vicioso, não se é casmurro. Mas também não se procura activamente refutar o que pensamos — afinal, gostamos em geral de o que pensamos, e parece bizarro darmo-nos ao trabalho de tentarmos refutá-lo. Mas isso é precisamente o que caracteriza as ciências — ou a filosofia, ou a história — e que não caracteriza a bruxaria ou outras pseudociências. Nestes casos, somos casmurros. No caso das ciências, procuramos activamente refutar teorias e ideias. Isto é realmente importante e constitutivo das ciências, ou de qualquer prática cognitivamente relevante. E como o falsificacionismo implica que esta atitude é correcta, parece que o falsificacionismo é correcto. Mas isto é uma falácia: o falsificacionismo implica a virtude epistémica de procurar refutações; procurar refutações é realmente crucial; logo, o falsificacionismo está correcto.

Paulo — Isso é a falácia da afirmação da consequente!

Rita — Nem mais. Seria como pensar que a teoria de Newton é verdadeira porque implica que os objectos caem e por ser realmente verdade que os objectos caem. A teoria de Popper implica um certo tipo de atitude epistemicamente virtuosa, que realmente corresponde ao que os cientistas estão habituados a fazer; daí a sua adesão. Mas isso não implica que a teoria é verdadeira.

Desidério Murcho

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