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9 de Setembro de 2004   Lógica

Conceitos, juízos e raciocínios(1)

Paulo Ruas

O objectivo destas páginas é esclarecer as noções de conceito, juízo e raciocínio. Estas noções surgem recorrentemente no ensino secundário. Todavia, graças à confusão da generalidade dos manuais disponíveis, professores e estudantes sentem-se perdidos quando se trata de compreender claramente estas noções centrais em filosofia. Na maior parte dos casos, usam-se os termos “conceito”, “juízo” e “raciocínio” sem se saber muito bem o que querem realmente dizer; isto é particularmente óbvio quando se pede a professores e estudantes para apresentarem exemplos claros de conceitos, juízos e raciocínios.

O que é um conceito?

O melhor que temos a fazer para determinar o que é um conceito é considerar as expressões linguísticas que exprimem conceitos e contrastá-las com outras expressões linguísticas que não exprimem conceitos. Uma vez esta diferença clarificada, estamos em condições de compreender o essencial acerca do que nos ocupa.

Se observarmos atentamente os recursos linguísticos que temos à nossa disposição quando pretendemos referir-nos a qualquer segmento da realidade, encontramos termos que utilizamos para referir coisas particulares, como indivíduos ou países, etc. Estes termos são, entre outros, os nomes e as descrições. Concentremos a nossa atenção apenas nos nomes. Dado que os nomes referem indivíduos ou coisas particulares (o nome “Lisboa” refere a cidade de Lisboa, o nome “Sócrates” refere Sócrates), dizemos que são termos singulares. No entanto, não existem apenas termos singulares. Existem também termos gerais, isto é, termos que se aplicam a uma diversidade (maior ou menor) de indivíduos. Vejamos do que se trata.

Na categoria dos termos gerais estão incluídos aqueles itens linguísticos que usamos para referir as propriedades que as coisas ou objectos singulares possuem, bem como as relações em que certas coisas se encontram. Estes itens linguísticos são os predicados.

Para verificarmos que função os nomes e os predicados desempenham, basta considerar um exemplo.

Quando dizemos “Fernando Pessoa é um poeta” estamos a construir uma frase declarativa que afirma, acerca do indivíduo que o nome “Fernando Pessoa” refere, que esse indivíduo possui uma certa propriedade, precisamente a propriedade de ser um poeta. Para isso, é necessário que o predicado “ser um poeta” exprima de facto esta propriedade. Por outro lado, quando dizemos “Ana ama Pedro” estamos a afirmar que a Ana e o Pedro se encontram numa certa relação, relação que pode ser expressa linguisticamente pelo predicado “amar”. O mesmo acontece com a frase “Leiria fica entre Lisboa e o Porto”. Neste caso, o predicado relacional é: “ficar entre”. Outro exemplo seria: a frase “2 é menor que 3” é composta por dois numerais (os numerais são nomes de números, tal como “Lisboa” é o nome de Lisboa) e pela relação “ser menor que”.

Um predicado é portanto a contraparte linguística das propriedades e das relações, tal como os nomes são contrapartes linguísticas dos objectos. Isto é: os predicados exprimem propriedades e os nomes referem objectos.

Geralmente, exprimimos os predicados através do infinitivo. O predicado presente na frase “O João é alto” é “ser alto”; o predicado presente na frase “Lisboa é bonita” é “ser belo”. Em filosofia e na lógica, porém, temos uma maneira mais eficaz de falar de predicados. Como um predicado é basicamente uma expressão que precisa de um termo singular (um nome, por exemplo), para formar uma frase, exprimimos os predicados assinalando o lugar vazio onde teremos de introduzir um termo singular para formar uma frase. Assim, dizemos que o predicado presente na frase “O João é alto” é “___ é alto”. Para não estarmos a usar riscos, usamos letras (x, y, z, etc.) para indicar o sítio onde falta um termo singular. Assim, dizemos que o predicado anterior é “x é alto”. Uma vantagem imediatamente visível desta maneira de falar dos predicados é que nos permite exprimir melhor os predicados relacionais, como “ficar entre”. Na nossa nova maneira de exprimir predicados, torna-se evidente que este é um predicado que precisa de 3 termos singulares: “x fica entre y e z”. É importante não esquecer isto: “x é alto” não é uma frase — é um predicado. Um predicado não é uma frase. É um elemento que pode ser usado para formar uma frase. Tal com um nome não é uma frase. É um elemento que pode ser usado para formar uma frase. E o que é uma frase? Uma frase é uma unidade linguística que podemos usar para fazer afirmações, perguntas, exprimir dúvidas, etc.

Vejamos agora a razão pela qual se diz que os predicados são termos gerais.

Se considerarmos o predicado “ser um poeta” (ou “x é um poeta”, na nossa nova maneira de falar) vemos que é possível construir uma ampla variedade de frases declarativas verdadeiras onde este predicado intervém. Um exemplo seria “Luís de Camões é um poeta”, ou ainda “Baudelaire é um poeta”. Tudo o que fizemos foi construir frases onde intervém um só predicado, fazendo-o anteceder por diferentes nomes. Quando o fazemos adequadamente, obtemos diferentes frases que resultam verdadeiras e outras que resultam falsas. “António Guterres é um poeta” é um exemplo do segundo caso. Isto significa que a propriedade de ser um poeta é partilhada por um certo conjunto de indivíduos, e não por outros. O mesmo acontece com o predicado relacional “x é menor que y”.

Pensemos agora em várias frases verdadeiras diferentes que podemos formar com o mesmo predicado. Pensemos, por exemplo, no predicado “é um poeta”. Com os nomes “Camões”, “Fernando Pessoa” e “Baudelaire”, podemos formar frases verdadeiras. Esses nomes referem 3 pessoas. Essas 3 pessoas constituem um conjunto: o conjunto de pessoas que são poetas. Claro que o conjunto de pessoas que são poetas é muito maior do que este. O importante aqui é notar a seguinte diferença: as propriedades que exprimimos com os predicados podem ser exemplificadas por vários objectos. No nosso caso, a propriedade de ser um poeta é exemplificada por várias pessoas, como Camões, Fernando Pessoa e Baudelaire, entre muitos outros.

Que os predicados, ao invés dos nomes, sejam termos gerais, é agora claro: a mesma propriedade pode ser exemplificada por uma variedade de coisas ou indivíduos diferentes. Essas coisas ou indivíduos formam um conjunto, o conjunto dos objectos que tornam verdadeira qualquer frase formada a partir da substituição de x e y por nomes de pessoas ou objectos (ou outras expressões que refiram pessoas ou objectos).

Ao conjunto de indivíduos que exemplificam uma propriedade, chamamos a extensão do predicado (o predicado pelo qual a propriedade é expressa). A extensão de um predicado ou relação é, pois, um conjunto cujos elementos são as coisas às quais essa propriedade pode ser correctamente atribuída. Se fizermos representar pelo símbolo “P” o predicado “é um poeta” e por “a” o indivíduo Fernando Pessoa, a frase “Fernando Pessoa é um poeta” pode ser representada na linguagem da teoria matemática dos conjuntos como “a ∈ P”. O mesmo acontece com a propriedade de “ser português e não ser português”: neste caso, como não existe um só objecto que, em simultâneo, seja português e não português, esta estranha propriedade não é exemplificada por objecto algum. Mas isto não significa que este predicado não possua uma extensão. A sua extensão é o conjunto vazio, que representamos pelo símbolo “Ø”.

Vejamos agora um outro aspecto. Há um célebre exemplo de Quine, um dos grandes filósofos do século XX, que nos permite enfrentar com perspicácia o nosso problema inicial: o de saber o que é um conceito. Vejamos as expressões “criatura com rins” e “criatura com coração”. “Criatura com rins” e “criatura com coração” exprimem diferentes propriedades. Porquê? Só porque são palavras diferentes? Claro que não; afinal, os predicados “vermelho” e “encarnado” são palavras diferentes, mas exprimem sem dúvida a mesma propriedade. Mas porquê? Porque são sinónimos: qualquer pessoa que domine a língua portuguesa sabe que todos os objectos vermelhos são encarnados, pois “vermelho” quer dizer “encarnado”. Ninguém precisa de fazer estudos científicos ou outros para saber que todos os objectos vermelhos são encarnados; é algo que depende unicamente do significado dos predicados “vermelho” e “encarnado”. Mas será que todas as criaturas com rins têm coração? Acontece que se sabe que sim. Mas para saber isto não basta dominar a língua portuguesa; trata-se de uma descoberta da zoologia. É por isso que “criatura com rins” e “criatura com coração” exprimem diferentes propriedades; apesar de terem a mesma extensão. Isto quer dizer que apesar de ser verdade que todas as criaturas com rins têm coração, esta não é uma verdade analítica; ao passo que é uma verdade analítica que todos os objectos vermelhos são encarnados.

Assim, os predicados “criatura com rins” e “criatura com coração” possuem exactamente a mesma extensão. Sabemos, além disso, que sempre que dois conjuntos, A e B, possuem os mesmos elementos, são o mesmo conjunto. Portanto, o exemplo de Quine mostra claramente que diferentes propriedades podem determinar uma única extensão. Mas, mais importante ainda, mostra que possuir a mesma extensão não é suficiente para que dois predicados P e Q exprimam a mesma propriedade.

Dois predicados podem aplicar-se ao mesmo conjunto de indivíduos e exprimir propriedades distintas. O mesmo sucede com neste exemplo : os predicados “ser o autor de Os Maias” e “ser o autor de O Primo Basílio” exprimem propriedades distintas. No entanto, a extensão em ambos os casos é uma só: Eça de Queirós. Assim, dizer que os predicados ou termos gerais da linguagem têm uma extensão e que exprimem propriedades não é, de modo algum, a mesma coisa. Para distinguir o conjunto de indivíduos a que um predicado se aplica da propriedade expressa pelo predicado, utilizam-se, respectivamente, os termos extensão e intensão. Todos predicados já mencionados possuem uma extensão e uma intensão.

A extensão é apenas o conjunto de indivíduos a que os predicados se aplicam. A extensão do predicado “vermelho” são todos os objectos vermelhos. Mas o que são as intensões? A intensão é o modo como agrupamos os objectos que pertencem à extensão do predicado. Agrupar os indivíduos que escreveram Os Maias é diferente de agrupar os indivíduos que escreveram O Primo Basílio. Claro que no fim, em ambos os casos agrupámos o mesmo indivíduo (Eça de Queirós). Mas o modo como o fizemos foi diferente. É claro que podemos usar diferentes predicados para referir a mesma pessoa; foi precisamente isto que fizemos quando nos referirmos a Eça de Queirós como sendo o autor de Os Maias e também como sendo o autor de O Primo Basílio. Mas, embora a pessoa de quem estamos a falar seja a mesma, não é indiferente referi-la através de uma ou outra destas propriedades. Na verdade, ao usar um ou outro predicado, estamos a referir Eça de Queirós através de diferentes intensões ou conceitos. Os conceitos são, portanto, intensões.

Quando afirmamos que os conceitos são os instrumentos que utilizamos para representar a realidade, o que estamos a dizer é que nos referimos ao segmento da realidade de que falamos num determinado momento através das intensões dos predicados que intervêm nas frases que descrevem esse segmento da realidade. O facto de o fazermos não é sequer misterioso. Quando afirmo que Fernando Pessoa é um poeta português, estou a seleccionar entre a ampla diversidade de coisas que constituem a realidade, um pequeno segmento e a concentrar-me nele. O mesmo acontece quando dizemos que a água é H2O ou que a velocidade do som é de 332 metros por segundo.

No primeiro parágrafo afirmámos que a melhor maneira de esclarecer do que se está a falar quando falamos em conceitos consiste em indicar que os termos gerais exprimem conceitos. Vimos que os predicados se incluem nesta categoria e contrastámo-los com os nomes, que, ao contrário dos primeiros, são termos singulares. Podemos ir agora mais longe e dizer que os nomes não possuem intensões e, portanto, que não exprimem conceitos. Esta, no entanto, não é uma ideia que tenha prevalecido desde sempre entre os filósofos da linguagem (Rudolf Carnap, em Meaning and Necessity, por exemplo, defendeu que os nomes possuem intensões). Mas a ideia tem vindo a ser gradualmente abandonada, sendo escassas, hoje, as pessoas que a defendem. Ao contrário do que por vezes se afirma (ou sugere) existe progresso em filosofia (e não apenas em filosofia da linguagem). Este facto não deveria, aliás, espantar-nos: a filosofia é uma actividade cognitiva e seria espantoso que, ao invés de todos os outros ramos do conhecimento, apenas os filósofos fossem incapazes de realizar quaisquer progressos ao reflectirem criticamente sobre os seus próprios resultados.

Nos manuais portugueses da disciplina de introdução à filosofia para o ensino secundário encontramos demasiadas vezes uma preferência injustificada pela ideia que os nomes possuem intensões, ainda que o nome de Rudolf Carnap ou qualquer outro dos proponentes da teoria nunca apareça citado. Além disso, que os nomes possuam intensões é uma ideia apresentada como evidente, passando por um facto teoricamente estabelecido (o que é falso). Um manual correntemente utilizado afirma, por exemplo, que “Mário Soares” é um conceito, por exemplo. Esta é uma afirmação que estamos agora em condições de compreender ser falsa. Ela parte, aliás, de um erro óbvio: o de confundir termos linguísticos (neste caso um nome) com conceitos (que são entidades abstractas). Segundo Carnap, que não cometeu este erro, a intensão do nome “Mário Soares” seria o conceito individual MÁRIO SOARES, que seria uma propriedade que só Mário Soares teria; por sua vez, ao usarmos o nome “Mário Soares” estaríamos a referir Mário Soares através desse conceito ou, se quisermos, dessa propriedade. O que está doutrina afirma é que os nomes são propriedades disfarçadas, e não que os nomes, tomados na sua simplicidade, exprimem conceitos; Carnap achava que os nomes exprimiam conceitos porque os nomes só eram nomes enganadoramente — não eram verdadeiramente nomes, mas termos gerais que, por acaso, só se aplicavam a um único indivíduo e que, por isso, tinham a aparência de nomes. Em última análise, este tipo de doutrina resulta do facto de na altura não se conseguir explicar como poderiam os nomes referir os objectos que referem, e porque havia a ilusão de que a relação de aplicação (que ocorre entre predicados e objectos) era mais simples do que a relação de referência (que ocorre entre nomes e objectos).

As intensões são dispositivos através dos quais captamos os objectos, isto é, modos particulares de nos referirmos a certos objectos. Ora, é fácil verificar que não nos referimos a Mário Soares de nenhum modo em particular quando usamos para esse efeito o seu nome. O mesmo não acontece se nos referirmos a Mário Soares através, por exemplo, das seguintes descrições: (i) o fundador do Partido Socialista Português; (ii) a pessoa que imediatamente precedeu Jorge Sampaio na função de presidente da República Portuguesa. Nos dois últimos casos, a referência a Mário Soares é efectuada através de diferentes conceitos uma vez que (i) e (ii) se referem a propriedades (distintas) que Mário Soares exemplifica. Mas, qual é a propriedade referida por “Mário Soares” que justifique o conceito MÁRIO SOARES? Nenhuma, é evidente. A doutrina de Carnap (semelhante à de Russell e Quine) consiste basicamente em introduzir um artificialismo para explicar a relação de referência. Ora, um artificialismo técnico dificilmente pode ser encarado, no ensino da filosofia, como uma noção de base que deva ser transmitida como um conteúdo filosófico consensual. Este é mais um caso do atraso gritante e que urge corrigir no ensino da filosofia em Portugal.

O erro cometido por Rudolf Carnap (e acriticamente repetido nos manuais de introdução à filosofia portugueses) tem, no entanto, uma explicação plausível. Tal como muitos outros filósofos da linguagem, Carnap defendia que um nome refere o indivíduo que refere porque lhe está associada uma descrição cujos predicados o referente do nome é o único indivíduo acerca do qual a descrição é verdadeira. Se pensarmos na descrição “A pessoa que imediatamente precedeu Jorge Sampaio na função de presidente da República Portuguesa”, verificamos que Mário Soares é o único indivíduo acerca do qual esta descrição é verdadeira. São muitas as pessoas que associam esta descrição (ou equivalente) ao nome “Mário Soares”, facto que nos poderia levar a pensar que os conceitos intervenientes na descrição constituem um dispositivo através do qual o nome “Mário Soares” refere Mário Soares. Ainda que fosse assim, seriam às intensões dos predicados intervenientes na descrição, e não ao nome “Mário Soares” enquanto tal, que caberia esse trabalho. Logo, mesmo que uma ou mais descrições possam estar associadas a nomes, não são os nomes que realmente possuem intensões, mas os predicados que ocorrem nas descrições relevantes.

O que é um juízo?

De modo a clarificar o que se entende pelo termo “juízo” é talvez conveniente desfazer um equívoco. Comecemos por esclarecer o que se pretende quando se diz que alguém formulou um juízo acerca de determinado assunto. Usado nesta acepção, um juízo significa geralmente que alguém emitiu sobre esse assunto uma opinião. Esta opinião é comunicada oralmente ou por escrito através de uma frase declarativa. Assim, a frase declarativa em questão exprime o juízo que alguém formulou. No entanto, uma frase declarativa é apenas um certo conjunto de sons ou inscrições num suporte físico, por exemplo, num papel. Se a frase pôde expressar a opinião ou juízo de alguém é porque há um certo conteúdo associado à frase. Esse conteúdo poderia ter sido expresso por uma frase diferente da que foi utilizada, por exemplo, uma frase sinónima pertencente a uma diferente linguagem natural. Um exemplo seriam as seguintes frases: (i) a neve é branca; (ii) snow is white. Ambas exprimem o mesmo conteúdo e ambas permitem formular, no contexto apropriado, o mesmo juízo. Dizemos que a frase que permite comunicar o juízo tem o mesmo conteúdo que o juízo.

O conteúdo de uma frase declarativa, bem como do juízo que a frase permite comunicar, é geralmente designado pelo termo “proposição”. Assim, a frase “A neve é branca” exprime a proposição que a neve é branca. Mas, se ao falar em conteúdo de uma frase declarativa quero referir um significado linguístico, quando falamos no conteúdo de um juízo queremos indicar um acto mental ao qual está associado um significado (o pensamento de que a neve é branca, por exemplo). Assim, o termo “juízo” é geralmente utilizado numa acepção psicológica, para referir o acto mental que nos conduz a formar (captar) uma certa proposição. O mesmo sucede quando afirmamos: “Já captei (apanhei) a ideia”. Estamos a indicar que compreendemos a proposição que a pessoa tem em mente, isto é, aquilo que a pessoa estava a tentar comunicar.

Mas queremos ainda outra coisa fundamental. Queremos que o conteúdo do juízo que formulamos (a nossa opinião) seja também verdadeiro ou falso. É por isso que formulamos juízos ao reflectir sobre a realidade. Se o conteúdo dos nossos juízos não fosse verdadeiro nem falso não estaríamos a afirmar coisa alguma sobre a realidade.

Por vezes, a noção de juízo é apresentada como um acto mental que consiste em estabelecer uma relação entre conceitos. Esta é uma maneira insatisfatória de caracterizar um juízo. Porquê? Bem, porque, se esta caracterização fosse correcta, a frase “Fernando Pessoa é um poeta” não exprimiria um juízo, consequência que é obviamente inaceitável. Dado que “Fernando Pessoa” não exprime conceito algum, ao afirmarmos que Fernando Pessoa é um poeta não estamos a estabelecer uma relação entre dois conceitos. A frase “Fernando Pessoa é um poeta” inclui apenas um predicado.

Mas “Fernando Pessoa é um poeta” exprime um pensamento: que Fernando Pessoa é um poeta. E é óbvio que quando penso ou afirmo que Fernando Pessoa é um poeta estou a formular um juízo.

O que é um raciocínio?

Uma maneira intuitiva de caracterizar um raciocínio consiste em dizer que se trata de um processo pelo qual é possível alcançar uma conclusão. A conclusão a que chegamos, por sua vez, é para ser entendida como o resultado da informação de que dispomos à partida. Um exemplo frequente seria o seguinte: se possuo a informação que (1) todos os homens são mortais e (2) Sócrates é homem, estou em condições de concluir que (3) Sócrates é mortal. Por razões de precisão e de economia, dizemos também que (1) e (2) são as premissas do raciocínio e que (3) é a conclusão.

Além disso, as premissas do raciocínio permitem exibir as razões de que dispomos para afirmar a conclusão. Se quisermos justificar por que razão defendemos que 4 é maior que 2, podemos fazê-lo da seguinte maneira: sabendo que (1) 4 é maior que 3 e (2) 3 é maior que 2, concluiu-se que 4 é maior que 2. Qualquer pessoa que aceite (1) e (2) como verdadeira, encontra-se na necessidade de aceitar como verdadeira a afirmação inicial que pretendemos justificar. Quando raciocinamos estamos a determinar que consequência se segue de um certo conjunto de razões dadas. E é claro que nem todos os raciocínios que efectuamos têm a simplicidade aparente dos exemplos acima. Nem sempre estamos em condições de afirmar exactamente que consequências se seguem da informação que possuímos acerca de um dado assunto. Pelo menos, antes de efectuarmos o raciocínio. Um exemplo de raciocínio cuja conclusão não é tão óbvia como a dos casos anteriores é o seguinte. Aceite-se que as afirmações da lista seguinte são verdadeiras acerca do João: (1) Se ele estudar, obtém boas notas; (2) Se ele não estudar, diverte-se no colégio; (3) Se ele não receber boas notas, não se diverte no colégio (2). Que conclusão podemos extrair acerca do comportamento escolar do João? Interessar-se-á pelos estudos? Deixá-los-á para segundo plano?

Os exemplos que acabámos de referir não permitem ilustrar todos os géneros de raciocínios que estamos em condições de efectuar. De facto, existem pelo menos dois géneros distintos: os raciocínios dedutivos e os não-dedutivos. A nossa tarefa consiste em indicar brevemente as principais diferenças entre eles de modo a não os confundirmos.

Comecemos com os raciocínios dedutivos. A melhor maneira de caracterizar os raciocínios dedutivos consiste em dizer que se todas as suas premissas forem verdadeiras, é logicamente impossível que a conclusão seja falsa. Isto, é claro, se a conclusão for, de facto, uma consequência lógica das premissas (é o caso dos exemplos acima). É esta, precisamente, a razão pela qual a ideia de rigor aparece por vezes associada à dedução. Se a informação de que partimos for verdadeira, quaisquer que sejam as consequências dela resultantes, podemos estar seguros de que serão também verdadeiras. Isto não quer dizer que todas as conclusões dos raciocínios dedutivos sejam verdadeiras. Podemos, por exemplo, partir de premissas falsas. Quando isso acontece, há uma forte possibilidade de as consequências delas resultantes serem também falsas.

Necessitamos, além disso, de seguir regras quando raciocinamos. A função das regras é precisamente conduzirem-nos de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras. Um exemplo típico de raciocínios dedutivos governados por regras são os silogismos (embora a maior parte dos raciocínios dedutivos que efectuamos não sejam silogismos).

Um exemplo de silogismo é o seguinte:

Os mamíferos são seres vivos.
Por outro lado, as baleias são mamíferos.
Logo, as baleias são seres vivos.

Os silogismos são raciocínios constituídos por apenas duas premissas e uma conclusão. Além disso, são compostos por três termos, um dos quais — o termo médio — surge repetido em ambas as premissas e está ausente na conclusão. O termo médio, no exemplo acima, é “mamíferos”. Os restantes termos são “baleias” e “seres vivos”.

Aristóteles, um filósofo grego, foi o primeiro a preocupar-se em determinar que regras nos conduziriam de premissas verdadeiras a conclusões verdadeiras caso usássemos silogismos para raciocinar. Hoje, vinte séculos depois, sabemos que as regras propostas por Aristóteles não são de facto as regras de que dependem estes raciocínios. Como qualquer outra ciência, a lógica evoluiu. Isto não significa que, se respeitarmos as regras aristotélicas do silogismo, sejamos conduzidos a conclusões falsas partindo de premissas verdadeiras; significa que, ao seguirmos as regras de Aristóteles, estamos, por acaso, também a seguir as regras de que os silogismos de facto dependem, ainda que não o saibamos. Uma comparação seria: digamos que nos encontramos na situação de uma pessoa que desejando viajar até Lisboa, é bem-sucedida ao respeitar as indicações que encontra num mapa bastante antigo e desactualizado.

Um exemplo de regra aristotélica é: se ambas as premissas forem afirmativas (isto é: não contiverem uma negação como em “Alguns portugueses não gostam de teatro”) a conclusão deve ser também afirmativa. Se, no exemplo acima, alguém concluísse “As baleias não são mamíferos” estaria a desrespeitar esta regra e seria conduzido a uma conclusão falsa, embora partisse de premissas verdadeiras (algo que se quer evitar).

Em síntese, podemos dizer o seguinte: os raciocínios dedutivos são aqueles em que a verdade das premissas é logicamente preservada na conclusão. Para que tal suceda é necessário raciocinar de acordo com regras cuja função é garantir que não se chega a uma conclusão falsa partindo de premissas verdadeiras. Apesar de estas regras estarem presentes, e serem respeitadas sempre que raciocinamos de forma correcta, não é indispensável conhecê-las para que sejamos bem-sucedidos no dia-a-dia, ao raciocinar. (Tal como não é necessário saber qual é a composição química da água para tomar banho.) No entanto, se as conhecermos (e é isso que a lógica estuda) estaremos em condições de evitar erros lógicos e de os detectar nas outras pessoas — estaremos em condições de justificar racionalmente os raciocínios que efectuamos. Embora não seja necessário saber que a água é H2O quando se toma banho, é bom conhecer os efeitos nocivos do sal e não beber água do mar se tivermos sede.

Vejamos agora os raciocínios não-dedutivos. Há vários tipos destes raciocínios; concentremo-nos nos indutivos. Se quisermos justificar que todas as esmeraldas são verdes, como poderemos fazê-lo? Talvez o fizéssemos recorrendo ao testemunho alheio, por exemplo, que encontrámos num livro essa afirmação ou que um joalheiro o garantiu. Mas quais serão as razões em que se apoia o joalheiro ou o autor do livro? Podemos conjecturar que estas pessoas diriam algo do género: acredito que todas as esmeraldas são verdes porque todos os exemplares até hoje encontrados são verdes. O que acabo de expor consiste num raciocínio tipicamente indutivo.

A informação disponível refere-se às esmeraldas que foram descobertas até hoje, e é esta informação que usamos como premissa. Depois, concluímos algo que supomos verdadeiro acerca de todas as esmeraldas e, portanto, também daquelas que serão descobertas no futuro. Se a conclusão for verdadeira, é claro que todas as esmeraldas que encontraremos no futuro serão verdes. Mas será que podemos estar certos disso?

Um exemplo de raciocínio indutivo com premissas verdadeiras e conclusão falsa é o seguinte. A existência de cisnes negros foi desconhecida na Europa até ao século XIX. Daí que, qualquer europeu que quisesse justificar a afirmação de que todos os cisnes são brancos procederia exactamente como o nosso joalheiro. Diria talvez o seguinte: acredito que todos os cisnes são brancos porque todos os cisnes até hoje encontrados são brancos. Repara que se trata do mesmo tipo de raciocínio num e noutro caso. Se a conclusão acerca de cisnes se revelou falsa, porquê supor que o mesmo não possa acontecer com a conclusão acerca de esmeraldas? Tudo quanto podemos dizer é que são ambas falíveis. No entanto, num caso e noutro, as premissas com que começámos eram verdadeiras. Logo, quando estamos perante raciocínios indutivos, partir de premissas verdadeiras não é suficiente para garantir logicamente a verdade da conclusão. Daí também o facto de as conclusões obtidas por indução serem logicamente falíveis.

Mas há ainda um outro aspecto interessante que merece ser notado. Que foi exactamente que aconteceu quando passámos das premissas para a conclusão no primeiro e segundo casos? Bem, o que aconteceu foi: generalizámos o resultado de um certo número de observações (todos os cisnes e esmeraldas que observámos até hoje) de modo a incluir também todos os outros casos do mesmo tipo ainda não observados.

É este processo de generalização que está na base das sondagens que os jornais publicam. Para se efectuar uma sondagem de opinião, por exemplo, são seleccionados um certo número de indivíduos com características que se admite representativas da população em geral. Esses indivíduos constituem a amostra cujo comportamento se vai observar. A população constitui o universo acerca do qual se pretende obter informações, digamos, prever o seu comportamento numa eleição nacional. Daí que os resultados das sondagens generalizem os dados obtidos na amostra tornam-nos extensíveis ao universo de referência. É claro que o resultado de uma sondagem é apenas aproximado, podendo ser calculada a sua margem de erro. Isto significa que a possibilidade de errar (como no caso dos cisnes) não pode ser afastada. Mas significa também que o raciocínio indutivo pode ser extremamente preciso e de confiança; acontece apenas que, do ponto de vista estritamente lógico, as suas conclusões podem ser falsas ainda que todas as suas premissas sejam verdadeiras. E isto acontece por causa do carácter “aberto” dos raciocínios indutivos; a qualquer momento podemos descobrir um facto que irá alterar completamente a conclusão a que entretanto chegámos. Por exemplo, hoje em dia nenhum biólogo concluiria, ao ver que todos os cisnes europeus eram brancos, que todos os cisnes do mundo inteiro seriam também brancos. Pois o conhecimento que hoje temos de biologia e evolução natural diz-nos que as cores das penas das aves pode variar, dentro de uma espécie, em função do meio ambiente. Em conclusão: a complexidade dos raciocínios indutivos é muito superior à dos raciocínios dedutivos; consequentemente, é muito fácil errar. Todavia, quando os raciocínios indutivos são correctamente feitos e baseados em informação fidedigna (isto é, quando partem de premissas verdadeiras e usam todas as premissas relevantes), são extremamente fiáveis. Podemos prever com uma precisão espantosa, por exemplo, em que posição estará Júpiter dentro de 5 dias; podemos prever com uma precisão espantosa onde irá aterrar uma sonda enviada para Marte; etc.

O paralelismo a estabelecer entre as sondagens e os raciocínios indutivos é que ambos procedem por generalização com base em amostras (no caso dos cisnes ou das esmeraldas a amostra é o número de cisnes e de esmeraldas observados até um dado momento). E, embora no caso das sondagens, a generalização efectuada obedeça a regras estritas, o facto de generalizarmos de acordo com essas regras não é suficiente para garantir logicamente que a conclusão seja verdadeira se as premissas o forem.

Um raciocínio indutivo, como o que está na base das sondagens, não permite garantir logicamente a verdade da conclusão com base no facto de as premissas serem verdadeiras. Além disso, não é monotónico: uma nova informação (isto é, uma nova premissa) pode transformar um argumento que antes encarávamos como bom num argumento que depois passamos a encarar como mau.

Em síntese, podemos dizer o seguinte. Num raciocínio dedutivo, a conclusão é uma consequência lógica obtida das premissas pelo uso de regras que garantem a sua verdade (caso todas as premissas sejam verdadeiras). Estas regras estão sempre presentes mesmo que não saibamos indicá-las explicitamente. Mas, nos raciocínios indutivos, o mesmo não se verifica. Embora com premissas todas verdadeiras, a conclusão de um raciocínio indutivo não é uma consequência lógica das premissas. As regras utilizadas numa sondagem não são do mesmo tipo que as regras usadas nos raciocínios dedutivos e não podem garantir logicamente a verdade da conclusão. Ainda que uma conclusão obtida por indução seja altamente provável, não é de todo logicamente impossível que venha a revelar-se como falsa. Mas, num raciocínio dedutivo é logicamente impossível que a conclusão seja falsa se todas as premissas forem verdadeiras, caso as regras sejam seguidas.

Em contrapartida, há um bom número de manuais que apresenta a diferença entre indução e dedução da seguinte maneira: os raciocínios dedutivos partem do universal para o particular enquanto os raciocínios indutivos partem do particular para o universal. Esta caracterização é incorrecta. Para o verificar basta considerar o silogismo acerca de baleias que usei como exemplo. Todas as proposições que nele intervêm são universais. A primeira premissa fala de todas as baleias, e não apenas de algumas, enquanto a segunda premissa fala de todos os seres vivos e não apenas de alguns. Há, obviamente, raciocínios dedutivos que não partem de premissas universais para conclusões particulares: a conclusão aplica-se a todas as baleias e não apenas de algumas. Mas há mais. Existem raciocínios dedutivos por generalização. Um caso simples é: Sócrates é grego; logo, existem gregos. Neste caso, como em qualquer outro raciocínio dedutivo, se a premissa for verdadeira, é impossível que a conclusão seja falsa. Depois, porque há uma regra que o garante claramente, e não apenas em termos probabilísticos. Este exemplo mostra também que falar em raciocínios que partem de premissas particulares para conclusões de carácter geral não permite, por si só, distinguir deduções de induções, mesmo para casos simples. Apesar disso, a caracterização que apresentei é insuficiente. Uma caracterização mais satisfatória destas diferenças exigiria, no entanto, recursos que o contexto não justifica.

Por último, resta dizer que os termos “raciocínio”, “pensamento” e “argumento” podem ser encarados como diferentes nomes para a mesma coisa: o processo que consiste em retirar consequências de afirmações dadas. Quando compreendemos isto, verificamos que ser um pensador não é condição suficiente de qualidade; é preciso que os pensamentos desse pensador sejam consequências razoáveis de premissas dadas para que valha a pena estudá-los ou tê-los em consideração. E, em última análise, isto significa que estudar unicamente as conclusões dos filósofos, ignorando os argumentos, os raciocínios, que eles usaram para chegar a essas conclusões, é uma visão redutora da filosofia; é como ler só o desfecho de um romance ou o fim de um filme, sem prestar atenção a tudo o resto que conduziu a esse desfecho.

Paulo Ruas

Notas

  1. Comecei a escrever estas notas para a minha filha Diana Ruas, que actualmente frequenta o ensino secundário. Em seguida, a primeira versão foi revista e cresceu, com os comentários de Desidério Murcho.
  2. Exemplo extraído de Kalish, D., Montague, R., Mar, G. (1980) Logic, Techniques of Formal Reasoning, 2.ª ed., Harcourt Brace Jovanovich College Publishers, New York.
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ISSN 1749-8457